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Pedagogia: o espaço da educação na universidade

Resumos

Este artigo destaca a importância da pedagogia como o espaço específico da universidade para o desenvolvimento de estudos educacionais e de formação profissional de educadores abordando, a partir daí, as diretrizes curriculares nacionais recentemente definidas pelo Conselho Nacional de Educação para o Curso de Pedagogia. Para tanto, após considerar a emergência histórico-teórica do conceito de pedagogia, identifica a relação teoria-prática como o problema fundamental do qual derivam as duas grandes correntes pedagógicas que desembocam num dilema e que alimentam o caráter polêmico da pedagogia. Sobre esse pano de fundo é analisado o espaço da educação na universidade brasileira no interior do qual ocupa lugar central o Curso de Pedagogia. Por fim, procede a um exame sucinto das diretrizes curriculares nacionais, revelando uma situação paradoxal: o documento é, ao mesmo tempo, extremamente restrito e demasiadamente extensivo; é muito restrito no essencial e muito extensivo no acessório. À vista dessa constatação, o trabalho se encerra indicando um possível caminho para se contornar o paradoxo.

PEDAGOGIA; FORMAÇÃO DE PROFESSORES; SISTEMA DE EDUCAÇÃO; HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO


This article points out the importance of pedagogy as the specific realm within the university for the development of educational studies and educators´ professional training. From then on, it addresses the national curricular guidelines which have been lately defined by the National Council of Education for the Pedagogy Course. To that end, after considering the historical and theoretical emergence of the pedagogy concept, it identifies the theory-practice relationship as the fundamental problem from which the two main pedagogical currents arise ending up in a dilemma and feeding the polemic character of pedagogy. Against this background, the paper analyzes the place education occupies within the Brazilian university, where Pedagogy plays a major role. Finally, it briefly examines the national curricular guidelines revealing a paradoxical situation: the document is at the same time extremely limited and too extensive; it is very limited in the essentials and too extensive in the accessories. Considering this finding, the work is concluded by proposing a possible way around the paradox.

PEDAGOGY; TEACHER EDUCATION; EDUCATIONAL SYSTEMS; HISTORY OF EDUCATION


TEMA EM DESTAQUE

FORMAÇÃO DE PROFESSORES VERSUS FORMAÇÃO DE PEDAGOGOS

Pedagogia: o espaço da educação na universidade

Dermeval Saviani

Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, Grupo Nacional de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil, dermevalsaviani@yahoo.com.br

RESUMO

Este artigo destaca a importância da pedagogia como o espaço específico da universidade para o desenvolvimento de estudos educacionais e de formação profissional de educadores abordando, a partir daí, as diretrizes curriculares nacionais recentemente definidas pelo Conselho Nacional de Educação para o Curso de Pedagogia. Para tanto, após considerar a emergência histórico-teórica do conceito de pedagogia, identifica a relação teoria-prática como o problema fundamental do qual derivam as duas grandes correntes pedagógicas que desembocam num dilema e que alimentam o caráter polêmico da pedagogia. Sobre esse pano de fundo é analisado o espaço da educação na universidade brasileira no interior do qual ocupa lugar central o Curso de Pedagogia. Por fim, procede a um exame sucinto das diretrizes curriculares nacionais, revelando uma situação paradoxal: o documento é, ao mesmo tempo, extremamente restrito e demasiadamente extensivo; é muito restrito no essencial e muito extensivo no acessório. À vista dessa constatação, o trabalho se encerra indicando um possível caminho para se contornar o paradoxo.

PEDAGOGIA – FORMAÇÃO DE PROFESSORES – SISTEMA DE EDUCAÇÃO – HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

EMERGÊNCIA HISTÓRICO-TEÓRICA DO CONCEITO DE PEDAGOGIA

Ao longo da história da chamada civilização ocidental a pedagogia foi se firmando como correlato da educação, entendida como o modo de apreender ou de instituir o processo educativo. Efetivamente, a educação aparece como uma realidade irredutível nas sociedades humanas. Sua origem se confunde com as origens do próprio homem. Na medida em que o homem se empenha em compreendê-la e busca intervir nela de maneira intencional, vai se constituindo um saber específico que, desde a paidéia grega, passando por Roma e pela Idade Média chega aos tempos modernos fortemente associado ao termo pedagogia.

No quadro apontado, a pedagogia se desenvolveu em íntima relação com a prática educativa, constituindo-se como a teoria ou ciência dessa prática sendo, em determinados contextos, identificada com o próprio modo intencional de realizar a educação. Ao longo de vários séculos a pedagogia construiu uma rica tradição teórica e científica sobre a prática educativa que deve continuar a ser desenvolvida, a despeito e até mesmo por causa das inúmeras negativas de que foi alvo na história do pensamento humano.

Desde a Grécia delineou-se uma dupla referência para o conceito de pedagogia. De um lado, desenvolveu-se uma reflexão estreitamente ligada à filosofia, elaborada em função da finalidade ética que guia a atividade educativa. De outro lado, o sentido empírico e prático inerente à paidéia, entendida como a formação da criança para a vida, reforçou o aspecto metodológico presente já no sentido etimológico da pedagogia como meio, caminho: a condução da criança. A partir do século XVII esses dois aspectos tenderam a se unificar como o demonstra o esforço realizado por Comênio. Procedendo como Bacon o fez para as ciências em geral, Comênio procurou equacionar a questão metodológica da pedagogia. Por esse caminho buscou construir um sistema pedagógico articulado em que a consideração dos fins da educação constituía a base para a definição dos meios, compendiados na didática como a arte de ensinar tudo a todos. Foi, porém, com Herbart que os dois aspectos da tradição pedagógica foram identificados como distintos, sendo unificados num sistema coerente: os fins da educação, que a pedagogia deve elaborar a partir da ética; e os meios educacionais, que a mesma pedagogia elabora com base na psicologia. A partir daí, a pedagogia se consolidou como disciplina universitária, definindo-se como o espaço acadêmico de estudos e pesquisas educacionais.

No âmbito do idealismo, a pedagogia tendeu a ser dissolvida na filosofia, sendo considerada como filosofia aplicada identificando-se, pois, com a filosofia da educação, em seu aspecto positivo em contraponto ao aspecto negativo exemplarmente expresso no juízo de Gentile: a pedagogia é o "tormento da nossa escola normal que desejaria ser o tormento das universidades e de todos os futuros professores, ensinando-lhes aquilo que não pode ser ensinado". Na verdade, Gentile nega o nexo entre ética e psicologia explicitado por Herbart. Para ele, adepto do idealismo, a pedagogia se identifica com a filosofia. Entendendo a educação como o desenvolvimento do próprio espírito e o ensino como teoria em ato, para Gentile o método é o próprio professor, que não pode se sujeitar a nenhuma programação didática: o método não pode ser ensinado. Daí, sua frase lapidar, que recusa peremptoriamente a identificação da pedagogia com a metodologia do ensino ou didática.

No âmbito do positivismo a pedagogia foi, na origem, assimilada à prática educativa. É este o entendimento de Durkheim (1965), para quem a pedagogia é uma teoria prática, interessada na realização do fenômeno educativo, em contraposição à teoria científica, interessada no conhecimento do fato educativo, tarefa essa atribuída à sociologia da educação. Posteriormente se manifestou, ainda no interior do positivismo, o empenho em imprimir caráter científico à pedagogia. No entanto, em lugar de lhe granjear autonomia científica, apenas a transmutou de uma submissão, aquela da filosofia, a uma outra: a das ciências empíricas reconhecidas como tais e que foram tomadas como modelo para a pedagogia. Recentemente, porém, em especial a partir do final dos anos 70 do século XX, a pedagogia enveredou por um caminho de autonomia científica que já não é mais suscetível de maiores contestações, como pode ser atestado por Schmied-Kowarzik, Frabboni e Genovesi. Para Schmied-Kowarzik (1983, p.7), a pedagogia é "justamente uma das ciências práticas mais ricas em tradição". Franco Frabboni procura articular a educação e a pedagogia no contexto dos chamados novos paradigmas que vieram a obter grande circulação a partir da década de 90 do século XX. E nesse quadro admite, sem restrições, o estatuto científico da pedagogia como se pode constatar na obra Manuale di pedagogia generale, escrita juntamente com Franca Pinto Minerva (1994, p.56-107). Giovanni Genovesi, por sua vez, afirma com toda clareza:

A pedagogia é ciência autônoma porque tem uma linguagem própria, tendo consciência de usá-la segundo um método próprio e segundo os próprios fins e, por meio dela, gera um corpo de conhecimentos, uma série de experimentações e de técnicas sem o que lhe seria impossível qualquer construção de modelos educativos. (1999, p.79-80)

Conforme o autor, o papel da pedagogia, como ciência, não é outro senão oferecer modelos formais sobre o problema da formação do indivíduo racionalmente justificáveis e logicamente defensáveis, particularizando as variáveis que os compõem enquanto instrumentos interpretativos e propositivos de uma classe de eventos educativos (p.98).

A RELAÇÃO TEORIA-PRÁTICA COMO PROBLEMA fUNDAMENTAL DA PEDAGOGIA

Em sua trajetória multissecular, a característica mais saliente da pedagogia pode ser identificada na relação teoria-prática. Entendida como "teoria da educação" evidencia-se que ela é uma teoria da prática: a teoria da prática educativa. Não podemos perder de vista, porém, que se toda pedagogia é teoria da educação, nem toda teoria da educação é pedagogia. Na verdade o conceito de pedagogia se reporta a uma teoria que se estrutura a partir e em função da prática educativa. A pedagogia, como teoria da educação, busca equacionar, de alguma maneira, o problema da relação educador-educando, de modo geral, ou, no caso específico da escola, a relação professor-aluno, orientando o processo de ensino e aprendizagem. Assim, não se constituem como pedagogia aquelas teorias que analisam a educação sem ter como objetivo formular diretrizes que orientem a atividade educativa. Situam-se nesse âmbito todas as teorias da educação oriundas das ciências humanas que se voltam para a análise do fenômeno educativo, como ocorre com a sociologia da educação, psicologia educacional, biologia educacional, economia da educação, antropologia educacional.

AS DUAS GRANDES TENDÊNCIAS PEDAGÓGICAS

Podemos considerar que, do ponto de vista da pedagogia, as diferentes concepções de educação podem ser agrupadas em duas grandes tendências: a primeira seria composta pelas concepções pedagógicas que dariam prioridade à teoria sobre a prática, subordinando esta àquela sendo que, no limite, dissolveriam a prática na teoria. A segunda tendência, inversamente, compõe-se das concepções que subordinam a teoria à prática e, no limite, dissolvem a teoria na prática.

No primeiro grupo estariam as diversas modalidades de pedagogia tradicional, sejam elas situadas na vertente religiosa ou na leiga. No segundo grupo se situariam as diferentes modalidades da pedagogia nova. Dizendo de outro modo, poderíamos considerar que, no primeiro caso, a preocupação se centra nas "teorias do ensino", enquanto que, no segundo caso, a ênfase é posta nas "teorias da aprendizagem".

Na primeira tendência o problema fundamental se traduzia pela pergunta "como ensinar", cuja resposta consistia na tentativa de se formular métodos de ensino. Já na segunda tendência o problema fundamental se traduz pela pergunta "como aprender", o que levou à generalização do lema "aprender a aprender".

Em termos históricos, a primeira tendência foi dominante até o final do século XIX. A característica própria do século XX é o deslocamento para a segunda tendência que veio a se tornar predominante sem, contudo, excluir a concepção tradicional que se contrapõe às novas correntes, disputando com elas a influência sobre a atividade educativa no interior das escolas.

As concepções tradicionais, desde a pedagogia de Platão e a pedagogia cristã, passando pelas pedagogias dos humanistas e pela pedagogia da natureza, na qual se inclui Comênio, assim como a pedagogia idealista de Kant, Fichte e Hegel, o humanismo racionalista, que se difundiu especialmente em conseqüência da Revolução Francesa, a teoria da evolução e a sistematização de Herbart-Ziller, desembocavam sempre numa teoria do ensino (Suchodolski, 1978). Pautando-se pela centralidade da instrução (formação intelectual), pensavam a escola como uma agência centrada no professor, cuja tarefa é transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade segundo uma gradação lógica, cabendo aos alunos assimilar os conteúdos transmitidos. Nesse contexto a prática era determinada pela teoria que a moldava fornecendo-lhe tanto o conteúdo como a forma de transmissão pelo professor, com a conseqüente assimilação pelo aluno. Essa tendência atinge seu ponto mais avançado na segunda metade do século XIX com o método de ensino intuitivo centrado nas lições de coisas. Esse método, pela exigência do contato direto com os objetos sensíveis, já contém em si o gérmen da nova tendência.

Por sua vez, as correntes renovadoras, desde seus precursores como Rousseau e também Pestalozzi e Froebel, passando por Kierkegaard, Stirner, Nietzsche e Bergson (Suchodolski, 1978), chegando ao movimento da Escola Nova, às pedagogias não diretivas (Snyders, 1978), à pedagogia institucional (Lobrot, 1967; Oury, Vasquez, 1967) e ao construtivismo, desembocam sempre na questão de como aprender, isto é, em teorias da aprendizagem. Pautando-se na centralidade do educando, concebem a escola como um espaço aberto à iniciativa dos alunos que, interagindo entre si e com o professor, realizam a própria aprendizagem, construindo seus conhecimentos. Ao professor cabe o papel de acompanhar os alunos auxiliando-os em seu próprio processo de aprendizagem. O eixo do trabalho pedagógico desloca-se da compreensão intelectual para a atividade prática, do aspecto lógico para o psicológico, dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos de aprendizagem. Tais pedagogias se caracterizam pelo primado da prática sobre a teoria. Esta deve se subordinar àquela, renunciando a qualquer tentativa de orientá-la, isto é, de prescrever diretrizes a serem seguidas pela prática e resumindo-se aos enunciados oriundos da própria atividade dos alunos com o acompanhamento do professor. Essa tendência ganha força no início do século XX, torna-se hegemônica sob a forma do movimento da Escola Nova até o início da segunda metade desse século e, diante das contestações críticas que enfrenta, assegura seu predomínio assumindo novas versões, entre as quais o construtivismo é, provavelmente, a mais difundida na atualidade.

Se nos séculos XVII, XVIII e XIX a ênfase das proposições educacionais se dirigia aos métodos de ensino formulados a partir de fundamentos filosóficos e didáticos, no século XX a ênfase se desloca para os métodos de aprendizagem, estabelecendo o primado dos fundamentos psicológicos da educação. Nesse contexto emerge uma nova concepção pedagógica com um novo modelo de formação docente, cuja matriz pode ser localizada em Dewey, para quem, na atividade educativa, "o professor é um aluno e o aluno é, sem saber, um professor – e, tudo bem considerado, melhor será que, tanto o que dá como o que recebe a instrução, tenham o menos consciência possível de seu papel" (Dewey, 1979, p. 176).

Essa ênfase na experiência do aluno instaurado em agente da própria aprendizagem pode ser detectada também em Piaget e no construtivismo, ainda que a matriz filosófica de Dewey, que se reporta a Hegel, seja diferente daquela de Piaget, cuja base é Kant. Para Piaget (1983, p. 39) "uma epistemologia, em conformidade com os dados da psicogênese", não é empírica, isto é, resultante de observações, nem fundada em formas a priori ou inatas, "mas não pode deixar de ser um construtivismo, com a elaboração contínua de operações e de novas estruturas". Assim procedendo ele está, embora por outro caminho, centrando a questão do conhecimento na experiência já existente ou a ser realizada pelo aluno.

Em síntese, percebe-se que as duas grandes tendências pedagógicas nos conduzem a uma verdadeira aporia teórica: ambas se revelam coerentes e plausíveis, mas, aparentemente, se excluem mutuamente. Sua penetração nas escolas colocou os professores diante de um dilema prático que é preciso analisar.

AS ESCOLAS DIANTE DO DILEMA DA PEDAGOGIA

A oposição entre as duas tendências decorre das ênfases distintas com que cada uma delas lida com os vários elementos integrantes do processo pedagógico. A primeira tendência, a tradicional, pondo a ênfase na teoria, reforça o papel do professor, entendido como aquele que, detendo os conhecimentos elaborados, portanto, o saber teoricamente fundamentado, tem a responsabilidade de ensiná-los aos alunos mediante procedimentos adequados que configuram os métodos de ensino. A segunda tendência, a renovadora, pondo a ênfase na prática, reforça o papel do aluno, entendido como aquele que só pode aprender na atividade prática. Tendo a iniciativa da ação, expressa seu interesse quanto àquilo que é valioso aprender e percorre, com o auxílio do professor, os passos de sua educação que configuram o método de aprendizagem pelo qual ele, aluno, constrói os próprios conhecimentos.

Assim esboçado o contraponto entre as duas tendências pedagógicas, vemos que a recorrente presença da oposição entre teoria e prática na educação se manifesta, aí, como contraposição entre professor e aluno. No dia-a-dia da sala de aula os alunos tendem a, constantemente, reivindicar a primazia da prática: "esse curso é muito teórico", dizem eles; "precisaria ser mais prático". O professor, por sua vez, tende a defender a importância da teoria, alegando que, se isso não é percebido no momento da aprendizagem, será constatado depois, na vida social, na atividade profissional: "não sejam imediatistas", diz o professor aos seus alunos. "Mais tarde vocês verão como tudo isso que lhes estou ensinando é muito importante, indispensável mesmo, para a vida de vocês".

Será mesmo assim? A julgar pelos repetidos apelos dos alunos para que os cursos sejam mais práticos, concluímos que eles não levam a sério, não acreditam na afirmação do professor. Na verdade, a prova do acerto ou desacerto da asserção do professor só pode ser feita a posteriori. Somente após a conclusão do curso, com sua inserção profissional, é que os alunos poderão constatar: "É verdade. Eu não percebia quando era aluno mas agora vejo que aquelas coisas que o professor ensinou são mesmo importantes para a minha prática". Ou então: "O professor me enganou. Aquelas coisas que ele ensinou não têm nenhuma relação com a prática que desenvolvo no exercício profissional". Mas, como esse ex-aluno não volta à escola para mostrar as provas coletadas em sua experiência profissional, novas turmas de alunos chegam à escola e se repete indefinidamente a mesma oposição: os alunos reivindicando um curso mais prático e os professores insistindo na importância da teoria. E o problema não se resolve, configurando-se como um verdadeiro dilema, isto é, uma situação embaraçosa com duas saídas igualmente difíceis1 1 . Dilema é um termo derivado do grego . Trata-se de uma palavra composta de dois elementos: a partícula , que é elisão da preposição e também advérbio que, no caso, significa “separando”, “dividindo”, “de um e de outro lado”; e o vocábulo , que significa “lema”, “tema”, “proposição”, “premissa de um silogismo”. Dilema, portanto, tem o sentido de “premissa dupla”, o que levou, também, ao sentido de uma argumentação com duas conclusões contraditórias igualmente possíveis logicamente. A partir dessa acepção técnica, generalizou-se o significado de dilema como expressando uma situação embaraçosa com duas saídas igualmente difíceis. .

Na raiz do dilema está o entendimento da relação entre teoria e prática em temos da lógica formal, para a qual os opostos se excluem. Assim, se a teoria se opõe à prática, uma exclui a outra. Portanto, se um curso é teórico, ele não é prático; e, se é prático, não é teórico. E, na medida em que o professor é revestido do papel de defensor da teoria enquanto o aluno assume a defesa da prática, a oposição entre teoria e prática se traduz, na relação pedagógica, como oposição entre professor e aluno. No entanto, admite-se, de modo mais ou menos consensual, que tanto a teoria como a prática são importantes no processo pedagógico, do mesmo modo que esse processo se dá na relação professor-aluno não sendo, pois, possível excluir um dos pólos da relação em benefício do outro. Dir-se-ia, pois, que teoria e prática, assim como professor e aluno são elementos indissociáveis do processo pedagógico. Nesses termos, a saída do dilema por um ou por outro de seus pólos constitutivos se revela igualmente difícil e, no limite, impossível. Eis porque as duas tendências pedagógicas vigentes na atualidade resultam igualmente incapazes de resolver o dilema pedagógico.

PARA SUPERAR O DILEMA

A pergunta que cabe formular é, portanto, a seguinte: existiria um outro caminho, uma outra tendência pedagógica que permitiria superar o dilema em que se encontram enredadas as tendências pedagógicas contemporâneas?

O encaminhamento da resposta a essa questão implica considerar que a validade da lógica formal, como o nome está dizendo, se limita às formas. Ela se constrói a partir da linguagem e, portanto, regula os modos de expressão do pensamento e não, propriamente, o modo como pensamos. A lógica formal, enquanto tal, incide sobre o momento analítico, portanto abstrato, quando o pensamento busca se apropriar da realidade concreta que, sendo síntese de múltiplas determinações, é unidade da diversidade, portanto, algo complexo que articula elementos opostos. Para apreender o concreto nós precisamos identificar os seus elementos e, para isso, nós os destacamos, os isolamos, separamos uns dos outros pelo processo de abstração, procedimento este que é denominado análise. Uma vez feito isso, para apreender o concreto nós precisamos fazer o caminho inverso, isso é, recompor os elementos identificados rearticulando-os no todo de que fazem parte de modo a perceber suas relações. Com isso nós passamos de uma visão confusa, caótica, sincrética do fenômeno estudado chegando, pela mediação da análise, da abstração, a uma visão sintética, articulada, concreta. Ora, esse procedimento que nos permite captar a realidade como um todo articulado composto de elementos que se contrapõem entre si, que agem e reagem uns sobre os outros, num processo dinâmico, é o que, na história do pensamento humano foi explicitado sob o nome de lógica dialética formulada a partir de Hegel, no início do século XIX. Assim, se a lógica formal é a lógica das formas, portanto, abstrata, a lógica dialética é a lógica dos conteúdos, logo, uma lógica concreta que incorpora a lógica formal como um momento necessário do processo de conhecimento.

Consideremos o problema da relação entre teoria e prática tendo presente esse entendimento dialético. Teoria e prática são aspectos distintos e fundamentais da experiência humana. Nessa condição podem, e devem, ser consideradas na especificidade que as diferencia, uma da outra. Mas, ainda que distintos, esses aspectos são inseparáveis, definindo-se e caracterizando-se sempre um em relação ao outro. Assim, a prática é a razão de ser da teoria, o que significa que a teoria só se constituiu e se desenvolveu em função da prática que opera, ao mesmo tempo, como seu fundamento, finalidade e critério de verdade. A teoria depende, pois, radicalmente da prática. Os problemas de que ela trata são postos pela prática e ela só faz sentido enquanto é acionada pelo homem como tentativa de resolver os problemas postos pela prática. Cabe a ela esclarecer a prática, tornando-a coerente, consistente, conseqüente e eficaz. Portanto, a prática igualmente depende da teoria, já que sua consistência é determinada pela teoria. Assim, sem a teoria a prática resulta cega, tateante, perdendo sua característica específica de atividade humana. Com efeito, a ação humana é uma atividade adequada a finalidades, isto é, guiada por um objetivo que se procura atingir. Para ilustrar isso Marx dá o seguinte exemplo:

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. (Marx, 1968, livro 1, v. 1, p. 202)

Ora, o ato de antecipar mentalmente o que será realizado significa exatamente que a prática humana é determinada pela teoria. Portanto, quanto mais sólida for a teoria que orienta a prática, tanto mais consistente e eficaz é a atividade prática. Por isso, diante da observação dos alunos: "este curso é muito teórico; deveria ser mais prático", minha tendência sempre foi a de responder: "Oxalá fosse muito teórico, pois, de teoria nós precisamos muito".

À luz dessas considerações, retomemos o confronto entre teoria e prática que opôs professor e aluno. Examinada em termos dialéticos, notamos que, em lugar de se excluírem mutuamente, teoria e prática são opostos que se incluem, abrindo caminho para a consideração da unidade entre teoria e prática. Antes, porém, de nos apressarmos em considerar sem sentido o confronto estabelecido, faz-se necessário analisá-lo para compreender a razão de sua persistência.

Aprofundando o exame no terreno da própria linguagem percebemos que, em lugar de um binômio, temos um quadrilátero. No interior da oposição teoria-prática se insinua a oposição verbalismo-ativismo: o que se opõe de modo excludente à teoria não é a prática, mas o ativismo; do mesmo modo, o que se opõe de modo excludente à prática é o verbalismo e não a teoria. Pois o ativismo é a "prática" sem teoria e o verbalismo é a "teoria" sem a prática. Isto é: o verbalismo é o falar por falar, o blablablá, o culto da palavra oca; e o ativismo é a ação pela ação, a prática cega, o agir sem rumo claro, a prática sem objetivo.

Ora, creio estamos, agora, em condições de esclarecer o "imbróglio" desencadeado pela reivindicação "este curso é muito teórico; deveria ser mais prático". Na verdade, a situação se coloca nos seguintes termos:

Os alunos, movidos por um ativismo criticam, em nome da prática, o verbalismo do professor, que eles pensam ser a teoria. O professor, por sua vez, defende seu verbalismo, em nome da teoria, contra a reivindicação prática dos alunos, chamando-os de ativistas.

Podemos, então, compreender por que as duas tendências pedagógicas contemporâneas, tratando teoria e prática como pólos opostos mutuamente excludentes, se enredaram num dilema do qual jamais poderiam sair. A solução do dilema demanda uma outra formulação teórica que supere essa oposição excludente e consiga articular teoria e prática, assim como professor e aluno, numa unidade compreensiva desses dois pólos que, contrapondo-se entre si, dinamizam e põem em movimento o trabalho pedagógico. E essa nova formulação teórica foi a tarefa acometida à pedagogia histórico-crítica.

Nessa nova formulação a educação é entendida como mediação no seio da prática social global. A prática social se põe, portanto, como o ponto de partida e o ponto de chegada da prática educativa. Daí decorre um método pedagógico que parte da prática social em que professor e aluno se encontram igualmente inseridos, ocupando, porém, posições distintas, condição para que travem uma relação fecunda na compreensão e encaminhamento da solução dos problemas postos pela prática social. Cabe aos momentos intermediários do método identificar as questões suscitadas pela prática social (problematização), dispor os instrumentos teóricos e práticos para a sua compreensão e solução (instrumentação) e viabilizar sua incorporação como elementos integrantes da própria vida dos alunos (catarse).

PEDAGOGIA: UM CAMPO POLÊMICO

Das análises anteriores sobressai como marca na trajetória da pedagogia o seu caráter polêmico. Especialmente ao longo do século XX, o pensamento pedagógico foi atravessado por tendências contrapostas, a disputar a hegemonia do campo educativo. Pedagogia conservadora versus pedagogia progressista, pedagogia católica (espiritualista) versus pedagogia leiga (materialista), pedagogia autoritária versus pedagogia da autonomia, pedagogia repressiva versus pedagogia libertadora, pedagogia passiva versus pedagogia ativa, pedagogia da essência versus pedagogia da existência, pedagogia bancária versus pedagogia dialógica, pedagogia teórica versus pedagogia prática, pedagogias do ensino versus pedagogias da aprendizagem e, dominando todo o panorama e, em certo sentido, englobando as demais oposições, pedagogia tradicional versus pedagogia nova. Buscando tornar coesos os respectivos integrantes, cada um dos grupos em litígio elaborava o próprio discurso enfatizando as diferenças e destacando os pontos que o separavam do oponente, elegendo os slogans que melhor tipificavam cada posição e que possuíam maior poder de atração para agregar novos aderentes.

A corrente da filosofia analítica da educação, entendendo que a filosofia diz respeito à clareza e consistência dos enunciados relativos aos fenômenos e não aos fenômenos propriamente ditos, considera que o papel da filosofia da educação é fazer a assepsia da linguagem educacional, depurando-a de suas inconsistências e ambigüidades. Como tal, essa corrente tem operado análises de diferentes tipos sobre a lógica do discurso pedagógico.

Israel Scheffler, no livro A linguagem da educação examina, além das metáforas educacionais, as definições em educação, os slogans educacionais e explora mais detidamente os vários contextos de uso do verbo ensinar em correlação com o verbo dizer.

No Capítulo 2, Scheffler começa por mostrar a diferença entre os slogans e as definições; enquanto estas são consideradas esclarecedoras, aqueles são estimulantes, tendo por função unificar os movimentos educacionais: "exprimem e promovem, ao mesmo tempo, a comunidade de espírito, atraindo novos aderentes e fornecendo confiança e firmeza aos veteranos" (1974, p.46). Do mesmo modo que os slogans religiosos e políticos, os slogans educacionais resultam de espírito partidário. Diante disso, Scheffler considera "ocioso criticar um slogan por inadequação formal ou por inexatidão na transcrição do uso" (p.46), mas entende haver uma importante analogia entre eles e as definições. Embora os slogans sejam símbolos unificadores de idéias e atitudes, "com o correr do tempo, entretanto, muitas vezes os slogans passam progressivamente a ser interpretados de maneira mais literal, tanto pelos aderentes como pelos críticos dos movimentos que eles representam" (p.46-47). Por esse caminho, eles tendem a ser considerados "como argumentos ou doutrinas literais, e não mais simplesmente como símbolos unificantes" (p.47).

No caso da educação, sublinha Scheffler, diferentemente do âmbito político e religioso, os seus agentes não estão subordinados a uma doutrina oficial nem se encontram organizados em grupos confessionais. Nessas circunstâncias, "as idéias educacionais, formuladas primeiramente em textos cuidadosamente elaborados e muitas vezes difíceis, cedo tornam-se influentes em versões popularizadas entre os professores" (p.47). E não há como controlar esse processo submetendo-o a uma disciplina ou liderança que preserve a concepção em sua formulação original. Scheffler resume suas considerações afirmando ser necessária uma crítica dos slogans tanto sob o aspecto literal quanto sob o aspecto prático, devendo as doutrinas originárias ser objeto de uma avaliação independente.

Na seqüência, o autor vai tomar justamente o exemplo da influência de Dewey, observando que "suas afirmações sistemáticas, cuidadosamente formuladas e bem especificadas", logo se traduziram em "fragmentos de impacto que serviriam como slogans para as novas tendências progressistas da educação americana" (p.47). E, apesar da reação de Dewey criticando essa forma de utilização de suas idéias, o que não deixou de ser levado em conta, dada a sua condição de líder intelectual inconteste do movimento renovador, "os slogans progressistas foram, cada vez mais, assumindo uma vida própria. Foram defendidos como afirmações literais e atacados como tais" (p.48).

Após esses esclarecimentos passa a analisar detidamente os slogans "ensinamos crianças, não matérias" e "não pode haver ensino sem aprendizado" os quais se inserem no processo de difusão da Escola Nova. À guisa de exemplo, limito-me a uma breve referência ao enunciado "ensinamos crianças, não matérias". O que queremos dizer com essa expressão? Do ponto de vista gramatical, ela não se sustenta uma vez que o verbo ensinar é bitransitivo comportando, pois, tanto o objeto direto como o indireto. Na verdade não é possível, gramaticalmente, dizer que se ensina nada a alguém, nem que se ensina algo a ninguém. De fato, a ação de ensinar implica que algo seja ensinado a alguém. Portanto, deveríamos dizer que "ensinamos matérias às crianças", não fazendo sentido a afirmação de que "ensinamos crianças, não matérias", do mesmo modo que não faria sentido afirmar que "ensinamos matérias, não crianças". Então, qual é a razão do enunciado? Ora, ele se justifica exatamente na medida em que não se trata de uma definição, mas de um slogan. E, como slogan, tem o caráter de um símbolo aglutinador de adeptos em torno da idéia da centralidade da criança no processo educativo. Em outros termos, partindo da consideração de que as atenções dos educadores haviam se voltado excessivamente para o conteúdo da aprendizagem, deixando em segundo plano as crianças que são, ao fim e ao cabo, a razão de ser do processo educativo, cunhou-se o lema "ensinamos crianças e não matérias". Com isso se procurava alertar os professores para o fato de que sua preocupação principal deve girar em torno dos educandos a partir de cujos interesses o currículo e, portanto, o conteúdo deve ser organizado.

Impõe-se, pois, a conclusão: "ensinamos crianças, não matérias" é um slogan que a Escola Nova lançou contra a Escola Tradicional. Em outros termos, considerando que, com a predominância da Escola Tradicional, a vara foi entortada para o lado das matérias, a Escola Nova, exercitando a "teoria da curvatura da vara", buscou curvar a vara para o lado da criança. Ao fazê-lo, entretanto, por aquele mecanismo descrito por Scheffler segundo o qual os slogans passam a ser defendidos como afirmações literais, o enunciado se difundiu como se fosse a pura expressão de uma verdade pedagógica. Podemos, pois, concluir que a Escola Nova tem se utilizado amplamente da "teoria da curvatura da vara" considerando-a, diferentemente do uso feito por mim no livro "Escola e democracia", como um dispositivo instaurador da própria verdade. Com efeito, no uso que fiz, em nenhum momento deixei pairar no ar a suspeita de que eu tivesse a pretensão de enunciar alguma verdade ao me servir da "teoria da curvatura da vara". Ao contrário, deixei explícito com todas as letras que eu estava curvando a vara para o outro lado; que eu estava, portanto, forçando a barra; estava invertendo o modo corrente de pensar. E que, se a posição correta não estava do lado da Escola Nova, também não estava do lado da Escola Tradicional (Saviani, 2006, p. 57). Essas considerações recomendam que sejamos cautelosos no julgamento das correntes pedagógicas. Não cabe, pois, aderir a elas ou rejeitá-las em função dos slogans por meio dos quais se deu ou vem se dando a sua divulgação. Em suma, se os slogans devem ser criticados tanto sob o aspecto literal como sob o aspecto prático, as "doutrinas originárias" devem ser objeto de uma avaliação independente, isto é, devem ser examinadas sob o ponto de vista de suas definições, de forma serena, obedecendo às exigências da crítica científica.

PARA SUPERAR A POLÊMICA

Gramsci, em suas notas do cárcere, redigidas em 1932, coincidentemente no mesmo ano em que era lançado no Brasil o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, registrou agudas observações, concluindo com o seguinte comentário:

Deve-se distinguir entre escola criadora e escola ativa, mesmo na forma dada pelo método Dalton. Toda escola unitária é escola ativa, se bem que seja necessário limitar as ideologias libertárias neste campo e reinvidicar com uma certa energia o dever das gerações adultas, isto é, do Estado, de "conformar" as novas gerações. Ainda se está na fase romântica da escola ativa, na qual os elementos da luta contra a escola mecânica e jesuítica se dilataram morbidamente por causa do contraste e da polêmica: é necessário entrar na fase "clássica", racional, encontrar nos fins a atingir a fonte natural para elaborar os métodos e as formas. (Gramsci, 1975, v.3, p.1.537; na ed. brasileira, 1968, p. 124)

Penso ser válida essa diretriz para a nossa atuação como docentes do Curso de Pedagogia. Em lugar de alimentarmos a polêmica entre as correntes pedagógicas, em especial entre as concepções ditas tradicionais e aquelas renovadas, cabe aceitar o convite para entrar na fase clássica, que é aquela em que já se deu uma depuração, ocorrendo a superação dos elementos da conjuntura polêmica com a recuperação daquilo que tem caráter permanente porque resistiu aos embates do tempo.

O ESPAÇO DA EDUCAÇÃO NA UNIVERSIDADE BRASILEIRA

As tentativas de se elevar os estudos de educação ao nível superior remontam à reforma da instrução pública paulista do início da República. A Lei n.88, de 8 de setembro de 1892, instituiu o Curso Superior da Escola Normal tendo como objetivo a formação de professores secundários (Reis Filho, 1995, p.162). Embora essa legislação tenha permanecido até a reforma de 1920, o curso superior previsto jamais foi implantado.

Essa questão foi retomada em 1931 quando o Estatuto das Universidades Brasileiras previu, entre os cursos necessários para se constituir uma universidade no Brasil, o de Educação, Ciências e Letras.

O ministro Francisco Campos, em longa exposição de motivos esclarece as razões da introdução da Faculdade de Educação, Ciências e Letras. Para ele, essa faculdade, exercendo alta função na vida cultural, daria às unidades de ensino superior o "caráter propriamente universitário", transcendendo o interesse profissional e imprimindo à universidade o caráter que a define: a universalidade (2000, p.127). Mas essa aspiração geral resulta, no parágrafo seguinte, não apenas relativizada. Seu sentido é, mesmo, invertido. Argumenta o ministro que em "povos em formação, como o nosso", a alta cultura não pode ser objetivo exclusivo devendo gerar "benefícios imediatos". Daí "o caráter especial e misto da nossa Faculdade de Educação, Ciências e Letras, dando-lhe ao mesmo tempo funções de cultura e papel eminentemente utilitário e prático" (ibidem).

Assim, em lugar de um instituto de estudos desinteressados do ponto de vista profissional, voltado para o cultivo do saber humano em sua universalidade, antes sugerido, teríamos um instituto cuja inserção é motivada pelo seu caráter "utilitário e prático". O ministro justifica essa inversão considerando o estado de nossa cultura, marcada por "um ensino sem professores, isto é, em que os professores criam a si mesmos, e toda a nossa cultura é puramente autodidática" (Ibidem). Vai ficando claro que a razão de ser da inclusão da palavra "educação" nessa nova faculdade, em lugar de "filosofia", aponta para a questão da formação de professores. É o que se explicita no parágrafo seguinte, quando se afirma que essa nova faculdade não poderia se reduzir "a um adorno ou decoração pretensiosa em casa de pobre" (Ibidem). Deveria, ao contrário, assumir um "caráter pragmático", incidindo sobre a formação de professores, especialmente das matérias básicas e fundamentais.

Conforme o seu idealizador, a nova faculdade não seria apenas um "órgão de alta cultura ou de ciência pura e desinteressada", mas deveria ser "antes de tudo e eminentemente, um Instituto de Educação", cuja função precípua seria a formação dos professores, sobretudo os do ensino normal e secundário. Mas essa proposta não se concretizou.

O caminho efetivo de introdução da pedagogia na universidade se deu pelos Institutos de Educação, concebidos como espaços de cultivo da educação encarada não apenas como objeto do ensino, mas também da pesquisa. Nesse âmbito as duas principais iniciativas foram o Instituto de Educação do Distrito Federal, estruturado e implantado por Anísio Teixeira, em 1932, e dirigido por Lourenço Filho; e o Instituto de Educação de São Paulo implantado, em 1933, por Fernando de Azevedo. Ambos, sob inspiração do ideário da Escola Nova.

Com a reforma instituída pelo Decreto 3.810, de 19 de março de 1932, Anísio Teixeira se propõe a erradicar aquilo que ele considerava como o "vício de constituição" das escolas normais que, "pretendendo ser, ao mesmo tempo, escolas de cultura geral e de cultura profissional, falhavam lamentavelmente nos dois objetivos" (Vidal, 2001, p.79-80). Para esse fim transformou a Escola Normal em Escola de Professores, cujo currículo incluía, já no primeiro ano, as seguintes disciplinas: Biologia Educacional; Sociologia Educacional; Psicologia Educacional; História da Educação; Introdução ao Ensino, contemplando três aspectos: a. princípios e técnicas; b. matérias de ensino abrangendo cálculo, leitura e linguagem, literatura infantil, estudos sociais e ciências naturais; c. prática de ensino, realizada mediante a observação, a experimentação e a participação. Como suporte ao caráter prático do processo formativo, a Escola de Professores contava com uma estrutura de apoio que envolvia: a. Jardim-de- infância, escola primária e escola secundária, que funcionavam como campo de experimentação, demonstração e prática de ensino; b. Instituto de pesquisas Educacionais; c. Biblioteca Central de Educação; d. Bibliotecas escolares; e. Filmoteca; f. Museus Escolares; g. Radiodifusão.

O Instituto de Educação paulista seguiu, com Fernando de Azevedo, o mesmo caminho, criando também a sua Escola de Professores (Monarcha, 1999, p. 324-336).

Percebe-se que os Institutos de Educação foram pensados de maneira a incorporar as exigências da pedagogia que buscava se firmar como um conhecimento de caráter científico. Pretendia-se, assim, corrigir as insuficiências das velhas escolas normais caracterizadas por "um curso híbrido que oferecia, ao lado de um exíguo currículo profissional, um ensino de humanidades e ciências quantitativamente mais significativo" (Tanuri, 2000, p.72).

Os Institutos de Educação do Distrito Federal e de São Paulo foram ambos elevados ao nível universitário: o Instituto de Educação paulista foi incorporado à Universidade de São Paulo – USP –, fundada em 1934 e o Instituto de Educação do Rio de Janeiro foi incorporado à Universidade do Distrito Federal, criada em 1935. E foi sobre essa base que se organizaram os Cursos Superiores de Formação de Professores para as escolas secundárias, generalizados para todo o país a partir do Decreto-Lei n. l.190, de 4 de abril de 1939 que deu organização definitiva à Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.

Considerado como referência para as demais escolas de nível superior, o paradigma resultante do Decreto-Lei n.1.190 se estendeu para todo o país compondo o modelo conhecido como "esquema 3+1", adotado na organização dos cursos de licenciatura e de Pedagogia. Os primeiros formavam os professores para ministrar as várias disciplinas dos currículos das escolas secundárias. Os segundos formavam os professores para exercer a docência nas escolas normais. Em ambos os casos vigorava o mesmo esquema, isto é, três anos para o estudo das disciplinas específicas e um ano para a formação didática. Ao ser generalizado, o modelo de formação de professores em nível superior perdeu sua referência de origem, cujo suporte eram as escolas experimentais às quais competia fornecer uma base de pesquisa que pretendia dar caráter científico aos processos formativos.

O CURSO DE PEDAGOGIA

O mencionado Decreto n. 1.190/39, ao organizar a Faculdade Nacional de Filosofia, a estruturou em quatro seções: Filosofia, Ciências, Letras e Pedagogia acrescentando, ainda, a de Didática, considerada como "seção especial". Enquanto as seções de Filosofia, Ciências e Letras albergavam, cada uma, diferentes cursos, a de Pedagogia, assim como a seção especial de Didática, era constituída de apenas um curso cujo nome era idêntico ao da seção. Está aí a origem do Curso de Pedagogia.

Todos os cursos da Faculdade Nacional de Filosofia e, dado o seu caráter de modelo padrão, também das demais faculdades de filosofia, ciências e letras instaladas no país, se organizaram em duas modalidades: o bacharelado, com a duração de três anos, e a licenciatura. O Curso de Pedagogia foi definido como um curso de bacharelado ao lado de todos os outros cursos das demais seções da faculdade. O diploma de licenciado seria obtido por meio do curso de didática, com a duração de um ano, acrescentado ao curso de bacharelado. Está aí a origem do famoso "esquema 3+1".

Foram definidos, para todos os cursos, os respectivos currículos plenos. Para o Curso de Pedagogia foi previsto o seguinte currículo: 1º ano: Complementos de Matemática; História da filosofia; Sociologia; Fundamentos Biológicos da educação; Psicologia Educacional; 2º ano: Psicologia Educacional; Estatística Educacional; História da Educação; Fundamentos Sociológicos da Educação; Administração Escolar; 3º ano: Psicologia educacional; História da Educação; Administração Escolar; Educação Comparada; Filosofia da Educação. Vê-se que Psicologia Educacional se destaca, pois é a única disciplina que figura em todas as séries. Em seguida posicionam-se História da Educação e Administração Escolar, figurando em duas séries. Às demais disciplinas reservou-se apenas um ano de estudo.

O Curso de Didática, com duração de um ano, se compunha das seguintes disciplinas: Didática Geral; Didática Especial; Psicologia Educacional; Fundamentos Biológicos da Educação; Fundamentos Sociológicos da Educação; Administração Escolar. Assim, no caso do bacharel em pedagogia, para obter o título de licenciado, bastava cursar Didática Geral e Didática Especial, uma vez que as demais já faziam parte de seu currículo de bacharelado.

Ao instituir um currículo pleno fechado para o Curso de Pedagogia, em homologia com os cursos das áreas de Filosofia, Ciências e Letras e não os vinculando aos processos de investigação sobre os temas e problemas da educação, o modelo implantado com o Decreto n. l.190, de 1939, em lugar de abrir um caminho para o desenvolvimento do espaço acadêmico da pedagogia, acabou por enclausurá-lo numa solução que se supôs universalmente válida em termos conclusivos, agravando progressivamente os problemas que se evitou enfrentar. Com efeito, supondo que o perfil profissional do pedagogo já estaria definido, concebeu um currículo que formaria o bacharel em pedagogia entendido como o técnico em educação que, ao cursar Didática Geral e Especial, se licenciaria como professor. Mas, quais seriam as funções técnicas próprias do pedagogo? Em que medida o currículo proposto para o bacharelado daria conta de formar esse técnico? E o licenciado em Pedagogia poderia lecionar que matérias? Por suposto, as matérias constantes de seu currículo de bacharelado, como ocorria com os cursos das seções de Filosofia, Ciências e Letras. No entanto, no caso das demais seções as disciplinas cursadas, de alguma forma, figuravam no currículo das escolas secundárias, estando assegurado que a formação dos professores dessas disciplinas se daria nos cursos das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. Diferentemente, no caso da Pedagogia as disciplinas cursadas figuravam escassamente nos currículos das escolas normais, pois a Lei Orgânica do Ensino Normal dispôs um currículo em que predominavam as matérias de cultura geral sobre as de formação profissional. Além disso, essa mesma lei determinava que, para lecionar no curso normal "era suficiente, em regra, o diploma de ensino superior" (Silva, 2003, p.14). Como uma espécie de prêmio de consolação, foi dado aos licenciados em pedagogia o direito de lecionar Filosofia, História e Matemática nos cursos de nível médio.

Essa estrutura prevaleceu até após a aprovação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB – n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961.

Uma nova regulamentação do Curso de Pedagogia decorreu do Parecer 251, de autoria do conselheiro Valnir Chagas, aprovado pelo Conselho Federal de Educação em 1962. O texto tece considerações sobre a indefinição do curso; refere-se à controvérsia relativa à sua manutenção ou extinção; lembra que a tendência que se esboça no horizonte é a da formação dos professores primários em nível superior e a formação dos especialistas em educação em nível de pós-graduação, hipótese que levaria à extinção do Curso de Pedagogia. Considera, entretanto, que a referida hipótese só poderia ser levada em conta num momento posterior justificando-se, ainda que em caráter provisório, a sua manutenção naquele início dos anos 60 do século XX. Em conseqüência, procede à sua regulamentação efetuando apenas pequenas alterações na estrutura até então em vigor.

Quanto à duração do curso, foi definida em quatro anos, englobando o bacharelado e a licenciatura, o que corresponde, portanto, à duração anterior. A diferença fica por conta de uma certa flexibilidade, uma vez que as disciplinas de licenciatura poderiam ser cursadas concomitantemente com o bacharelado, não sendo necessário esperar o quarto ano.

No que se refere ao currículo, foi mantido o caráter generalista, isto é, não foram, ainda, introduzidas as habilitações técnicas. Diferentemente da regulamentação anterior, não se fechou a grade curricular com a distribuição das disciplinas pelas quatro séries do curso. Essa tarefa foi deixada para as instituições.

O currículo da licenciatura se compunha das seguintes matérias: Psicologia da Educação: adolescência e aprendizagem; Elementos de Administração Escolar; Didática; Prática de Ensino. Considerando-se a revogação do esquema "3+1", a prática que se generalizou foi a de cursar Psicologia Educacional, Didática e Elementos de Administração Escolar na segunda e terceira séries do curso, deixando-se Prática de Ensino para a quarta série. Quanto ao Curso de Pedagogia, como já constavam de seu currículo Psicologia Educacional e Administração Escolar, para obter o título de licenciado bastava aos alunos cursar Didática e Prática de ensino.

A entrada em vigor da lei da reforma universitária (Lei n. 5.540) aprovada em 28 de novembro de 1968, ensejou nova regulamentação do Curso de Pedagogia, levada a efeito pelo Parecer 252/69 do Conselho Federal de Educação – CFE –, também de autoria de Valnir Chagas, do qual resultou a Resolução CFE n. 2/69.

Valnir Chagas, em seu parecer, situa o tema referindo-se aos antecedentes da questão, desde o Decreto n.1.190, de 1939, até o Parecer 251/62, esclarece as razões das opções adotadas e apresenta, em anexo, o anteprojeto de Resolução.

Tendo argumentado no parecer que a profissão que corresponde ao setor de educação "é uma só e, por natureza, não só admite como exige 'modalidades' diferentes de capacitação a partir de uma base comum" (Brasil/CFE, 1969, p.106), o relator conclui que não há razão para se instituir mais de um curso. Considera, assim, que os diferentes aspectos implicados na formação do profissional da educação podem ser reunidos sob o título geral de Curso de Pedagogia que constará de uma parte comum e outra diversificada. A primeira deverá dar conta da base comum e a segunda, das diversas modalidades de capacitação, traduzidas na forma de habilitações.

A parte comum foi composta pelas seguintes matérias: Sociologia Geral; Sociologia da Educação; Psicologia da Educação; História da Educação; Filosofia da Educação; Didática.

A parte diversificada contemplou as seguintes habilitações: Orientação Educacional; Administração Escolar; Supervisão Escolar; Inspeção Escolar; Ensino das disciplinas e atividades práticas dos cursos normais.

Essa regulamentação do Curso de Pedagogia, não obstante as tentativas de modificação, de iniciativa do próprio Conselho Federal de Educação e do movimento organizado dos educadores, permaneceu em vigor até a aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (n. 9.394), em 20 de dezembro de 1996.

O aspecto mais característico da referida regulamentação foi a introdução das habilitações visando a formar "especialistas" nas quatro modalidades indicadas (Orientação Educacional, Administração Escolar, Supervisão Escolar e Inspeção Escolar), além do professor para o ensino normal. As habilitações visavam à formação de técnicos com funções supostamente bem especificadas no âmbito das escolas e sistemas de ensino que configurariam um mercado de trabalho também supostamente já bem constituído, demandando profissionais com uma formação específica que seria suprida pelo Curso de Pedagogia, então reestruturado exatamente para atender a essa demanda. Entretanto, a dupla suposição se revelou inconsistente. Nem as funções correspondentes aos mencionados "especialistas" estavam bem caracterizadas, nem se poderia supor constituído um mercado de trabalho demandando aqueles profissionais correspondentes às habilitações propostas.

Ao que parece o problema do encaminhamento que se deu à questão do curso de pedagogia reside numa concepção que subordina a educação à lógica de mercado. Assim, a formação ministrada nas escolas deveria servir à produtividade social, ajustando-se, o mais completamente possível, às demandas do mercado de trabalho que, por sua vez, são determinadas pelas leis que regem uma sociedade de mercado como esta em que vivemos. Nessas circunstâncias, a questão educativa é reduzida dominantemente à sua dimensão técnica, afastando-se o seu caráter de arte e secundarizando, também, as exigências de embasamento científico. Daí a pretensão de formar os especialistas em educação por meio de algumas poucas regras compendiadas externamente e transmitidas mecanicamente, articuladas com o treinamento para a sua aplicação no âmbito de funcionamento das escolas. Eis porque se considerou como suficientes as matérias "Estrutura e Funcionamento do Ensino" e "Princípios e Métodos", seguidas de uma outra que alude a algo de algum modo relacionado com a "especialidade" em referência: "Legislação do Ensino" para a inspeção, "Estatística" para a administração, "Currículos e Programas" para a supervisão e "Orientação Vocacional" e "Medidas Educacionais", para a orientação. Supõe-se, portanto, que a escola já está devidamente organizada e o ensino funcionando dentro de parâmetros adequados cabendo ao especialista inserir-se nela para garantir-lhe a eficiência por meio de uma racionalidade técnica que maximize a sua produtividade. Trata-se, em suma, daquilo que estou denominando "concepção produtivista de educação" que, impulsionada pela "teoria do capital humano" formulada nos anos 50 do século XX, se tornou dominante no país a partir do final da década de 1960 permanecendo hegemônica até os dias de hoje.

Valnir Chagas, que havia participado do Grupo de Trabalho que elaborou a proposta da reforma universitária, integrara também o Grupo de Trabalho da Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971, tendo sido o relator e o principal mentor dessa reforma. Aprovada a Lei n. 5.692/71, o conselheiro se dedicou à tarefa de regular todo o sistema de ensino de acordo com a nova legislação. Entre 1973 e 1975 elaborou um conjunto de Indicações que foram reunidas no livro Formação do magistério: novo sistema (1976). Esse conjunto de medidas pretendia substituir o "Curso de Pedagogia", que sugeria uma visão bastante restrita, pelos "estudos superiores de educação", categoria bem mais ampla e pretensamente completa. Cumpria-se, assim, o vaticínio do próprio Valnir Chagas quando, no Parecer 251/62, afirmava: "se nos fixarmos na experiência de sistemas em que a formação do próprio mestre-escola já é feita em estabelecimentos de ensino superior, a existência de um curso especial de Pedagogia certamente não há de ter sentido" (Brasil/CFE, 1963, p.60).

Na linha dessa previsão o conselheiro elaborou, em 1975, a Indicação 70. A novidade dessa indicação reside, conforme o slogan lançado pelo autor, "formar o especialista no professor", no fato de que a formação preconizada pressupõe destinatários já licenciados, o que a situaria no âmbito da pós-graduação lato sensu. Entretanto, o autor, talvez para poder abarcar também a "solução transitória" dos que têm apenas formação de 2º grau, a situa na própria graduação, por meio de habilitações que se acrescentam a uma licenciatura anterior.

Fica claro, portanto, que, na concepção de Chagas tenderia a não haver mesmo espaço para o Curso de Pedagogia, ao menos no nível da graduação. É curioso notar que a nova LDB, ao mesmo tempo em que elevou ao nível superior a formação dos professores para atuar nos anos iniciais da escolarização, manteve a graduação em Pedagogia ao dispor, no artigo 64:

a formação de profissionais de educação para administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional para a educação básica, será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino, garantida, nesta formação, a base comum nacional.

A indicação referida chegou a ser homologada pelo ministro da educação, mas, diante das dúvidas suscitadas e das pressões do movimento educacional organizado, sua entrada em vigor foi sustada, prevalecendo, até a aprovação da nova LDB, a estrutura prevista no Parecer 252/69. Segundo Iria Brzezinski (2002, p.82), o "pacote" de indicações aprovado pelo CFE estimulou o movimento dos educadores que "era contra as possíveis mudanças que, em sua essência, propugnavam a extinção do Curso de Pedagogia e descaracterizavam ainda mais a profissão de pedagogo, que paulatinamente seria extinta".

O movimento dos educadores em torno da problemática da formação dos profissionais da educação materializou-se por ocasião da realização da 1ªConferência Brasileira de Educação, em 1980, quando foi criado o Comitê Pró-Participação na Reformulação dos Cursos de Pedagogia e Licenciatura. Esse comitê transformou-se, em 1983, em Comissão Nacional pela Reformulação dos Cursos de Formação de Educadores – Conarcfe – que, por sua vez, em 1990, se constituiu na Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação – Anfope – que continua em atividade.

A mobilização dos educadores foi importante para manter vivo o debate; para articular e socializar as experiências que se realizaram em diferentes instituições; manter a vigilância sobre as medidas de política educacional; explicitar as aspirações, reivindicações e perplexidades que os assaltavam; e para buscar algum grau de consenso sobre certos pontos que pudessem sinalizar na direção da solução do problema. Em termos concretos emergiram do movimento duas idéias-força. A primeira foi a de que a docência é o eixo sobre o qual se apóia a formação do educador. A partir dessa idéia prevaleceu entre as instituições a tendência a organizar o Curso de Pedagogia em torno da formação de professores, seja para a habilitação magistério, em nível de 2º grau, seja, principalmente, para atuar nas séries iniciais do ensino fundamental. A segunda idéia se expressou na "base comum nacional". Em vários dos eventos realizados essa idéia foi retomada sendo explicitada mais pela negação do que pela afirmação. Com efeito, foi se fixando o entendimento que "base comum nacional" não coincide com a parte comum do currículo nem com a idéia de currículo mínimo. Seria, antes, um princípio a inspirar e orientar a organização dos cursos de formação de educadores em todo o país. Seu conteúdo, entretanto, não poderia ser fixado por um intelectual de destaque, por um órgão de governo e nem mesmo por decisão de uma eventual assembléia de educadores. Deveria fluir das análises, dos debates e das experiências que fossem encetadas possibilitando, num processo a médio prazo, que se chegasse a um consenso em torno dos elementos fundamentais que devem basear a formação de um educador consciente e crítico, capaz de intervir eficazmente na educação visando à transformação da sociedade brasileira.

Como se pode perceber pelo artigo da atual LDB antes citado, a noção de "base comum nacional" foi incorporada ao texto da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. No entanto, o seu conteúdo ainda permanece pouco claro.

No período em pauta, isto é, a partir do início da década de 1970, instalaram-se os Programas de Pós-Graduação em cujo contexto a educação experimentou um vigoroso desenvolvimento que envolveu fortemente as universidades ampliando, pois, significativamente o espaço acadêmico da educação. Esse desenvolvimento conduziu a uma aproximação com as áreas afins das ciências humanas consolidando-se o lugar da educação na universidade. Porém, isso ocorreu ao preço do afastamento da pedagogia como teoria e prática da educação. Assim, enquanto os Programas de Pós-Graduação em Educação demonstravam toda a sua pujança, o Curso de Pedagogia definhava e se debatia em uma crise de tal profundidade que projeta a impressão de que jamais conseguirá dela sair. Um novo componente dessa crise se manifesta, na situação atual, com a controvérsia ligada aos Institutos Superiores de Educação e Escolas Normais Superiores introduzidos pela nova LDB.

AS DIRETRIZES CURRICULARES E SEU PARADOXO

Provavelmente esse quadro de crise por que passa o Curso de Pedagogia tem a ver com a demora na definição de suas diretrizes curriculares, o que veio a acontecer apenas neste ano de 2006, quando nos aproximamos do décimo aniversário da nova LDB, bem depois, portanto, das demais áreas. Após várias idas e vindas foi aprovado, em 13 de dezembro de 2005, pelo Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno – CNE/CP –, o Parecer 5/2005, reexaminado pelo Parecer CNE/CP 3/2006, aprovado em 21 de fevereiro de 2006 e homologado pelo Ministro da Educação em 10 de abril de 2006.

O texto do parecer foi acompanhado de uma Resolução que traduziu em 15 artigos a normatização das considerações expressas no corpo do parecer. Observe-se que a Resolução aprovada como anexo do Parecer CNE/CP 5/2005, deu ao artigo 14 a seguinte redação:

A formação dos demais profissionais de educação, nos termos do art. 64 da Lei n. 9.394/96, será realizada em cursos de pós-graduação, especialmente estruturados para este fim, abertos a todos os licenciados.

Parágrafo único. Os cursos de pós-graduação poderão ser disciplinados pelos respectivos sistemas de ensino, nos termos do art. 67 da Lei n. 9.394/96.

O conjunto representado pelo Parecer e respectiva Resolução foi aprovado pelo Conselho Pleno, por unanimidade, mas com declarações de votos de três conselheiros. Em sua declaração de voto César Callegari chamava atenção para o conflito do disposto no artigo 14 com o enunciado do artigo 64 da LDB, entendendo "que aquilo que a Lei dispõe, só uma outra Lei poderá dispor em contrário". Encaminhada a matéria para homologação, após análise da área técnica do MEC o ministro devolveu o processo ao CNE para reexame, apresentando proposta de alteração do artigo 14 nos seguintes termos:

Art. 14. A Licenciatura em Pedagogia nos termos do Parecer CNE/CP nº 5/2005 e desta Resolução assegura a formação de profissionais da educação prevista no art. 64, em conformidade com o inciso VIII do art. 3º da Lei nº 9.394/96.

Parágrafo 1º Esta formação profissional também poderá ser realizada em cursos de pós-graduação, especialmente estruturados para este fim e abertos a todos os licenciados.

Parágrafo 2º Os cursos de pós-graduação indicados no § 1º deste artigo poderão ser complementarmente disciplinados pelos respectivos sistemas de ensino, nos termos do Parágrafo único do art. 67 da Lei nº 9.394/96.

Mediante o Parecer CNE/CP 3/2006, aprovado em 21 de fevereiro de 2006, o Conselho acolheu a proposta de alteração e deu redação definitiva à Resolução, finalmente homologada pelo MEC em 10 de abril de 2006.

É forçoso reconhecer que as diretrizes aprovadas se encontram atravessadas por uma ambigüidade que se fazia presente mesmo na primeira versão, quando se havia excluído deliberadamente a formação dos chamados especialistas em educação. Isso porque as funções de gestão, planejamento, coordenação e avaliação, tradicionalmente entendidas como próprias dos especialistas em educação, haviam sido assimiladas à função docente como atribuições dos egressos do Curso de Pedagogia, formados segundo as novas diretrizes. Com a alteração do artigo 14 a ambigüidade se torna explícita no próprio texto normativo uma vez que, mesmo sem regular a formação dos especialistas, esta é formalmente admitida.

Em resumo, o espírito que presidiu à elaboração das diretrizes curriculares nacionais do Curso de Pedagogia foi a consideração de que o pedagogo é um docente formado em curso de licenciatura para atuar na "Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade Normal, e em cursos de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar, bem como em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos", conforme consta do artigo 2º e é reiterado no artigo 4º. Eis aí a destinação, o objetivo do Curso de Pedagogia. E como as instituições devem proceder para organizar o curso tendo em vista esse objetivo? Quais as diretrizes a serem seguidas? Que orientação o CNE estabelece como substrato comum em âmbito nacional a dar um mínimo de unidade ao referido curso?

Sobre as condições de ensino e aprendizagem e procedimentos a serem observados, o texto da Resolução se refere, de passagem, a "contribuições de conhecimentos como o filosófico, o histórico, o antropológico, o ambiental-ecológico, o psicológico, o lingüístico, o sociológico, o político, o econômico, o cultural"; entende-os, porém, como "aplicação ao campo da educação". E passa a lançar mão, copiosamente, de termos como:

  • conhecimentos científicos e culturais, valores éticos e estéticos inerentes a processos de aprendizagem, de socialização e de construção do conhecimento, no âmbito do diálogo entre diferentes visões de mundo;

  • repertório de informações e habilidades composto por pluralidade de conhecimentos teóricos e práticos, cuja consolidação será proporcionada no exercício da profissão, fundamentando-se em princípios de interdisciplinaridade, contextualização, democratização, pertinência e relevância social, ética e sensibilidade afetiva e estética"; "superação de exclusões sociais, étnico-raciais, econômicas, culturais, religiosas, políticas e outras"; "consciência da diversidade, respeitando as diferenças de natureza ambiental-ecológica, étnico-racial, de gêneros, faixas geracionais, classes sociais, religiões, necessidades especiais, escolhas sexuais, entre outras;

  • diálogo entre conhecimentos, valores, modos de vida, orientações filosóficas, políticas e religiosas próprias à cultura do povo indígena junto a quem atuam e os provenientes da sociedade majoritária;

  • formação de professores para escolas de remanescentes de quilombos ou que se caracterizem por receber populações de etnias e culturas específicas.

Sobre o modo de organizar a estrutura do curso a Resolução prevê, no artigo 6º, três núcleos: 1. Estudos básicos; 2. Aprofundamento e diversificação de estudos; 3. Estudos integradores para enriquecimento curricular. Nos três casos apresenta-se uma lista de tarefas e um conjunto de exortações, mais do que a especificação dos componentes curriculares que integrariam os referidos núcleos. Em meio à profusão das tarefas e exortações faz-se menção ao "estudo da Didática, de teorias e metodologias pedagógicas, de processos de organização do trabalho docente"; em seguida, faz-se referência à "decodificação e utilização de códigos de diferentes linguagens utilizadas por crianças, além do trabalho didático com conteúdos, pertinentes aos primeiros anos de escolarização, relativos à Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História e Geografia, Artes, Educação Física".

Vê-se, pelos termos em que se encontram vazados os textos do Parecer e da Resolução, que se encontram impregnados do espírito dos chamados novos paradigmas que têm prevalecido na cultura contemporânea, em geral, e na educação, em particular. O resultado nos coloca diante do seguinte paradoxo: as novas diretrizes curriculares nacionais do Curso de Pedagogia são, ao mesmo tempo, extremamente restritas e demasiadamente extensivas: muito restritas no essencial e assaz excessivas no acessório. São restritas no que se refere ao essencial, isto é, àquilo que configura a pedagogia como um campo teórico-prático dotado de um acúmulo de conhecimentos e experiências resultantes de séculos de história. Mas são extensivas no acessório, isto é, se dilatam em múltiplas e reiterativas referências à linguagem hoje em evidência, impregnada de expressões como conhecimento ambiental-ecológico; pluralidade de visões de mundo; interdisciplinaridade, contextualização, democratização; ética e sensibilidade afetiva e estética; exclusões sociais, étnico-raciais, econômicas, culturais, religiosas, políticas; diversidade; diferenças; gêneros; faixas geracionais; escolhas sexuais, como se evidencia nos termos da Resolução antes citados.

Em suma, o mencionado paradoxo não permitiu responder satisfatoriamente às perguntas formuladas. Prevê-se, assim, que as instituições terão dificuldade quanto ao modo pelo qual devem proceder para organizar o Curso de Pedagogia e sobre as diretrizes a serem seguidas. Pois não é fácil identificar na Resolução do CNE uma orientação que assegure um substrato comum em âmbito nacional a dar um mínimo de unidade ao referido curso.

PARA ALÉM DAS DIRETRIZES CURRICULARES

Diante do resultado objetivado nas diretrizes curriculares nacionais do Curso de Pedagogia, poderíamos pensar em fazer uma autocrítica do movimento que desencadeamos em 1980, por ocasião da 1ª Conferência Brasileira de Educação. O movimento não teria sido capaz de concentrar sua atenção nas questões essenciais relativas à formação do educador, de modo geral, e do pedagogo, em especial, tendo se voltado para o aspecto da organização do curso. Em conseqüência, a excessiva preocupação com a regulamentação, isto é, com os aspectos organizacionais, teria dificultado o exame dos aspectos mais substantivos referentes ao próprio significado e conteúdo da pedagogia sobre cuja base cabe estruturar o curso correspondente.

No entanto, não parece que esse tenha sido o ponto decisivo. Considerando o clima cultural hoje vigente e a característica do CNE como um órgão que reflete a visão dominante e que, dadas as relações amistosas entre os conselheiros, induz à conciliação; tendo em vista, ainda, que disposições anteriores do próprio Conselho (ver Parecer CNE/CES 67/2003, de 11/3/2003) conceituaram as diretrizes curriculares dando-lhes ampla margem de fluidez em nome de se conceder às instituições flexibilidade e criatividade na organização dos currículos, dificilmente as diretrizes para o Curso de Pedagogia poderiam se distanciar muito daquilo que consta do documento aprovado.

Feita essa constatação, não nos resta outro caminho senão, diante do fato consumado, procurar tirar proveito da fluidez, exercitando a flexibilidade e criatividade apregoadas. Assim procedendo, poderemos, para além das diretrizes aprovadas, concentrar as atividades do Curso de Pedagogia nos aspectos essenciais, acolhendo os alunos e os colocando num ambiente de intenso e exigente estímulo intelectual que os incite ao estudo aprofundado dos clássicos da pedagogia como referência para compreender o funcionamento da escola e intervir deliberadamente na prática educativa desenvolvida em seu interior.

Penso que a organização do curso deveria se colocar na perspectiva de uma saída para a crise do modelo tradicional de escola visando à construção de um novo modelo, adequado às novas condições próprias da sociedade atual. Buscando encaminhar essa questão, o eixo da organização da educação escolar nas condições da nossa época me foi suscitado pela problematização da questão escolar realizada por Gramsci (1975, v.3, p.1.544-1.546; na edição brasileira, 1968, p.134-136). Reporto-me à passagem em que ele se referia à centralidade que tinha a cultura greco-romana na velha escola, traduzida no cultivo das línguas latina e grega e das respectivas literaturas e histórias políticas. Constituía-se, por esse caminho, o princípio educativo da escola tradicional, "na medida em que o ideal humanista, que se personifica em Atenas e Roma, era difundido em toda a sociedade", sendo "um elemento essencial da vida e da cultura nacionais". O latim, como língua morta, permitia o estudo de um processo histórico inteiro, analisado desde o seu nascimento até sua morte. Mas Gramsci acrescenta: "morte aparente, pois sabe-se que o italiano, com o qual o latim é continuamente comparado, é latim moderno". Estudando a história dos livros escritos em latim, sua história política, as lutas dos homens que falavam latim, o jovem submergia na história, adquirindo "uma intuição historicista do mundo e da vida, que se torna uma segunda natureza, quase uma espontaneidade, já que não é pedantemente inculcada pela 'vontade' exteriormente educativa". E acrescenta: "Este estudo educava, (sem que tivesse a vontade expressamente declarada de fazê-lo) com a mínima intervenção 'educativa' do professor: educava porque instruía". Claro, ele assinala, isto não se devia a uma suposta virtude educativa intrínseca ao grego e ao latim. Esse resultado era produto de toda a tradição cultural, viva não apenas na escola, mas principalmente fora dela. Uma vez "modificada a tradicional intuição da cultura", a escola entrou em crise e com ela entrou em crise o estudo do latim e do grego. Daí a conclusão: "Será necessário substituir o latim e o grego como fulcro da escola formativa; esta substituição ocorrerá, mas não será fácil dispor a nova matéria ou a nova série de matérias numa ordem didática que dê resultados equivalentes".

Desde a primeira vez em que li essas passagens nos idos da década de 70 do século passado, sempre me perguntava sobre a ou as matérias que pudessem desempenhar numa nova escola adequada aos tempos atuais, papel equivalente àquele desempenhado pelo latim e pelo grego na velha escola. E uma idéia começou a tomar forma em meu espírito. Essa idéia é a de que a História seria exatamente essa matéria que ocuparia o lugar central no novo princípio educativo da escola do nosso tempo: uma escola unitária porque guiada pelo mesmo princípio, o da radical historicidade do homem e organizada em torno do mesmo conteúdo, a própria história dos homens, identificado como o caminho comum para formar indivíduos plenamente desenvolvidos. Com efeito, que outra forma poderíamos encontrar de "produzir, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens" (Saviani, 2005, p. 13), senão fazendo-os mergulhar na própria história e, aplicando o critério do "clássico", permitir-lhes vivenciar os momentos mais significativos dessa verdadeira aventura temporal humana?

Esbocei rapidamente essa idéia na discussão do projeto pedagógico do Curso de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da USP, sugerindo que o eixo da organização curricular fosse dado pela história da escola elementar. Com efeito, pelo caminho da história os vários elementos que, na atualidade, são considerados como necessários à formação do educador serão contemplados no seu nascimento e desenvolvimento, explicitando-se as condições e as razões que conduziram ao entendimento de sua necessidade para a formação do educador. Com esse desenho curricular as disciplinas do currículo de Pedagogia ligadas à filosofia, história, sociologia, psicologia, estatística, política e gestão escolar, assim como à didática, à educação infantil e às várias metodologias das matérias do ensino fundamental etc., deixariam de ser estudadas como algo estático e esquemático tornando-se algo vivo, em íntima articulação com a história da escola, isto é, do próprio objeto de que se ocupam. Penso que essa idéia é rica de desdobramentos que podem ser explorados pelo conjunto do corpo docente do Curso de Pedagogia no desenvolvimento do trabalho pedagógico junto aos alunos, semana a semana, mês a mês, ano a ano. Assim procedendo, penso que seria possível efetivar o resgate da longa e rica trajetória histórica da pedagogia. Esta emergirá como um corpo consistente de conhecimentos que, constituindo-se historicamente, se revela capaz de articular num conjunto coerente as várias abordagens sobre a educação, tomando como ponto de partida e ponto de chegada a própria prática educativa. De um curso assim estruturado espera-se que irá formar pedagogos com uma aguda consciência da realidade onde vão atuar, com uma adequada fundamentação teórica que lhes permitirá uma ação coerente e com uma satisfatória instrumentação técnica que lhes possibilitará uma ação eficaz.

Tomando a história como eixo da organização dos conteúdos curriculares e a escola como lócus privilegiado para o conhecimento do modo pelo qual se realiza o trabalho educativo, será possível articular, num processo unificado, a formação dos novos pedagogos em suas várias modalidades. Por esse caminho poder-se-á atingir, ao mesmo tempo e no mesmo processo, os cinco objetivos previstos na Resolução: a formação para o exercício da docência 1.na Educação Infantil, 2. nos anos iniciais do ensino fundamental, 3. nos cursos de ensino médio na modalidade Normal, 4. em cursos de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar, e 5. em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos. E não apenas isso. Também a formação para as atividades de gestão e, portanto, o preparo inicial dos especialistas referidos no artigo 64 da LDB poderá ser contemplado nesse mesmo projeto. Isso porque, ao centrar o foco do processo formativo na unidade escolar, aquilo de que se trata é capacitar o futuro pedagogo para o pleno domínio do funcionamento da escola. Assim, uma escola viva, funcionando em plenitude, implica um processo de gestão que garanta a presença de professores exercendo a docência de disciplinas articuladas numa estrutura curricular, em ação coordenada, supervisionada e avaliada à luz dos objetivos que se busca atingir. Ora, um aluno que é preparado para o exercício da docência assimilando os conhecimentos elementares que integram o currículo escolar; estudando a forma pela qual esses conhecimentos são dosados, seqüenciados e coordenados ao longo do percurso das séries escolares; compreendendo o caráter integral do desenvolvimento da personalidade de cada aluno no processo de aprendizagem; e apreendendo o modo pelo qual as ações são planejadas e administradas, estará sendo capacitado, ao mesmo tempo, para assumir a docência, para coordenar e supervisionar a prática pedagógica, para orientar o desenvolvimento dos alunos e para planejar e administrar a escola; e, assegurada essa formação, estará também capacitado a inspecionar o funcionamento de outras escolas. Claro que, sobre a base dessa formação inicial, será recomendável que, de modo especial para exercer as referidas funções no âmbito dos sistemas de ensino, sejam feitos estudos de aprofundamento, aperfeiçoamento e especialização em nível de pós-graduação.

Essa centralização no funcionamento da escola não deve ser interpretada, porém, como coincidindo com a iniciativa de se colocar os alunos, desde o início do curso, em contato direto com as escolas, para as vivenciarem, para se familiarizarem com elas. Ao contrário. Quando os alunos ingressam no Curso de Pedagogia eles vêm de uma experiência de, no mínimo, 11 anos de escola. Portanto, eles estão mais do que familiarizados com ela. Nesse momento, parece mesmo recomendável que eles se distanciem da escola básica, vivam intensamente o clima da universidade, mergulhem nos estudos dos clássicos da Pedagogia e dos fundamentos filosóficos e científicos da educação, de modo a se municiarem de ferramentas teóricas que lhes permitam analisar o funcionamento das escolas de educação infantil e de ensino fundamental, para além do senso comum propiciado por sua experiência imediata vivenciada por longos anos no interior da instituição escolar. A partir daí eles poderão voltar-se para a escola elementar observando-a, porém, com outros olhos. Poderão, então, analisar a prática educativa guiados pela teoria pedagógica ultrapassando, assim, o nível da doxa (o saber opinativo) e atingindo o nível da episteme (o saber metodicamente organizado e teoricamente fundamentado).

Por fim, não é demais enfatizar a urgência de que, no âmbito das instituições de ensino superior, nos empenhemos em organizar, na direção acima sugerida, o espaço específico para os estudos e pesquisas educacionais que, em nível da graduação, gira em torno do Curso de Pedagogia. Sem isso, os alunos passarão pelos cursos, adquirirão um diploma universitário, mas não ultrapassarão o nível da doxa, reduzindo-se a formação de nível superior a mera formalidade, um ato cartorial.

Aliás, é exatamente isso o que revelam os dados relativos à expressão escrita de concluintes de um Curso Normal Superior, como se evidencia no artigo de Alda Junqueira Marin e Luciana Maria Giovanni, "A expressão escrita de concluintes de curso universitário para formar professores" (publicado nesta edição); os alunos estão saindo do ensino superior "em condição ou estado deplorável no que tange aos processos de comunicação e acesso ao universo simbólico da cultura ocidental". Ou seja, não se atingiu o nível da "segunda natureza", na expressão de Gramsci; não se atingiu a catarse, à qual me refiro no livro Escola e democracia (2006). Os alunos passam pelo ensino superior sem modificar sua "cultura" prévia, mantendo um tipo de pensamento ainda com fortes características pré-letradas. Por aí não é difícil antever que tipo de qualidade terá o trabalho pedagógico desses novos professores nas escolas de educação infantil e de ensino fundamental. Inevitavelmente estarão contribuindo para ampliar e aprofundar a falência do sistema escolar, agravando um círculo vicioso que será preciso romper por algum ponto. Empenhemo-nos em rompê-lo pelo ponto representado pelo Curso de Pedagogia, organizando-o na forma proposta neste artigo.

Recebido em: setembro 2006

Aprovado para publicação em: setembro 2006

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  • 1
    . Dilema é um termo derivado do grego
    . Trata-se de uma palavra composta de dois elementos: a partícula
    , que é elisão da preposição e também advérbio
    que, no caso, significa “separando”, “dividindo”, “de um e de outro lado”; e o vocábulo
    , que significa “lema”, “tema”, “proposição”, “premissa de um silogismo”. Dilema, portanto, tem o sentido de “premissa dupla”, o que levou, também, ao sentido de uma argumentação com duas conclusões contraditórias igualmente possíveis logicamente. A partir dessa acepção técnica, generalizou-se o significado de dilema como expressando uma situação embaraçosa com duas saídas igualmente difíceis.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Abr 2007

    Histórico

    • Aceito
      Set 2006
    • Recebido
      Set 2006
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