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TEMA EM DESTAQUE RELIGIÃO, MORAL E CIVISMO NA ESCOLA PÚBLICA

TEMA EM DESTAQUE

RELIGIÃO, MORAL E CIVISMO NA ESCOLA PÚBLICA

A discussão sobre a presença do Ensino Religioso nas escolas públicas surgiu, sempre, nas culminâncias do processo de reelaboração do quadro jurídico-político da Educação Brasileira, como as Constituições e as Leis de Diretrizes e Bases. Fora desses momentos, a questão como que não existia. Ela parecia hibernar, agasalhada pela naturalização do dia-a-dia, sem que essa disciplina fosse entendida como um enclave curricular conflituoso, com defensores e opositores. Onde ela era oferecida, prosseguia sem contestações abertas. Onde não o era, ninguém a reclamava - prevalecia uma espécie de laicidade difusa nas escolas públicas.

Não estamos hoje, certamente, numa culminância de reforma educacional. Mas, pela primeira vez em nossa história, fora de tais momentos, a questão do Ensino Religioso nas escolas públicas emerge para o primeiro plano das discussões. A expressão disso é que têm sido publicadas matérias sobre essa questão em periódicos da área, assim como surgem trabalhos nos eventos acadêmicos, inclusive em áreas conexas, como nas Ciências Sociais. A imprensa diária também tem se manifestado mais freqüentemente sobre esse tema, não se abstendo de manifestar opinião em editoriais.

Desde o ano 2000, o Ensino Religioso nas escolas públicas projetou o Rio de Janeiro no cenário nacional, por causa de sua peculiar legislação e das declarações de seus governantes a respeito do tema, inclusive o apoio ao ensino do criacionismo nas escolas públicas.

Não é por acaso que os quatro textos aqui reunidos tenham sido escritos por autores que têm o Rio de Janeiro, mais particularmente a Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - como instituição de referência: dois professores e dois doutorandos. As vicissitudes da fusão entre o Estado da Guanabara e o Estado do Rio de Janeiro, realizada sem consulta à população, em 1 974, a dificuldade de configuração de novo quadro político-partidário e o agravamento dos problemas econômicos estão entre os elementos determinantes da crise social (desemprego, insegurança, serviços públicos em colapso etc.). Para saná-la, soluções religiosas são recorrentemente evocadas em todos os espaços públicos - na Assembléia Legislativa, nos meios de comunicação de massa, nas escolas e nos cursos de formação de professores.

Mas, o Ensino Religioso remete à Educação Moral e Cívica, articuladas ambas as disciplinas pela matriz de valores conservadores e pela função de controle social, tanto do comportamento individual quanto da atuação sociopolítica dos educandos.

Ao contrário do Ensino Religioso, que dispõe de poderosos aparatos materiais e ideológicos de sustentação, a Educação Moral e Cívica já não conta com a pressão das Forças Armadas sobre os conselhos de educação, como a que, em 1 969, dobrou o Conselho Federal de Educação e canalizou o pensamento de direita para a produção da ordem via ensino público e privado.

Estigmatizada a Educação Moral e Cívica por sua implantação durante a ditadura militar, é o Ensino Religioso que tem recebido e canalizado as demandas de conter os conflitos intra e extra-escolares por meio de disciplina específica.

Passemos aos textos aqui reunidos sob a rubrica Religião, Moral e Civismo na Escola Pública.

Com base na legislação federal do período 193 1/1997, o artigo de Luiz Antônio Cunha examina as relações entre as disciplinas Ensino Religioso e Educação Moral e Cívica. O autor conclui que, no período estudado, ambas as disciplinas expressaram diferentes sentidos (em somatório ou em alternância) no jogo de forças entre o campo político e o campo religioso. Nesse rastreamento, o autor destaca a reiterada defesa dos grupos religiosos, particularmente a Igreja Católica, de que toda moral tem e só poderia ter base religiosa, portanto, não haveria Educação Moral (e Cívica?) sem Ensino Religioso. A decorrência tem sido o descarte da segunda em proveito da oferta da primeira ou, então, a convergência de ambas as disciplinas. Daí o título do artigo, "Sintonia oscilante".

Ana Maria Cavaliere, em seu artigo "O mal-estar do ensino religioso nas escolas públicas", apresenta e analisa a política do Estado do Rio de Janeiro, de ministrar essa disciplina na forma confessional desde 2000, para o que se aprovou lei específica e se realizou concurso de duvidosa base jurídica. Além de selecionar os professores segundo suas crenças individuais - católicos, evangélicos e "outras crenças" -, o edital do concurso transferiu poderes inéditos às entidades religiosas: não bastasse o credenciamento dos candidatos ao concurso público, cada entidade credenciadora pode, sem condição objetiva alguma, descredenciar o professor que perder a fé original, converter-se a outra crença ou simplesmente deixar de ter a confiança da entidade. A autora realizou pesquisa em escolas da rede estadual fluminense e chegou à conclusão de que a implementação dessa política se deu em direções diferentes das estipuladas, principalmente pela impossibilidade prática do confessionalismo e pela dissimulação do seu caráter constitucionalmente facultativo para os alunos. Apesar do mal-estar provocado pelo Ensino Religioso confessional e pelo polêmico concurso, essa disciplina tem sido, de um modo geral, assumida pelos professores, que esperam dela uma ajuda no controle social dos alunos, uma espécie de panacéia a preencher os espaços deixados vagos pela orientação educacional e pela limitação da atuação da escola.

O artigo de Janayna de Alencar Lui, "Entre crentes e pagãos: a implantação do Ensino Religioso nas escolas públicas de São Paulo", analisa a formação do campo de disputa em torno da disciplina nas escolas da rede estadual paulista, a partir de 2001. Ao contrário da rede fluminense, a rede estadual paulista implantou a disciplina numa vertente pluriconfessional e não realizou concurso específico para professores, utilizando os docentes da própria rede, em especial os licenciados em Filosofia, História e Sociologia, na 8ª série do ensino fundamental. A autora identifica as entidades envolvidas com o Ensino Religioso no estado, tanto privadas, como associações de professores dessa disciplina e conselhos de interessados, por exemplo, quanto públicas, como a Secretaria e o Conselho Estadual de Educação. Um caso, talvez único no país, foi a participação de uma universidade pública, a Universidade Estadual de Campinas, pelo seu Departamento de História, na elaboração de apostilas para a capacitação de professores da disciplina na rede estadual. As disputas em torno da escolha dos conteúdos e da capacitação docente se fizeram num quadro em que o governo do Estado de São Paulo, diferentemente do Rio de Janeiro, estabeleceu limites à participação de entidades religiosas.

Os leitores encontrarão em Cavaliere e Lui interessantes elementos distintivos da concepção e da implantação do Ensino Religioso nas redes estaduais fluminense e paulista. Para os especialmente interessados nessa comparação, remeto ao artigo de Luiz Antônio Cunha, "Autonomização do campo educacional: efeitos do e no ensino religioso", Revista Contemporânea de Educação (www.educacao.ufrj.br/revista). Publicada pela Faculdade de Educação da UFRJ, essa revista dedicou um número temático ao Ensino Religioso - o que também não foi ocasional. Cumpre assinalar que a forte presença política da Igreja Católica foi assinalada pelas duas autoras no Rio de Janeiro e em São Paulo, constituindo tanto uma similitude quanto razão de contrastes. Adianto que não é um elemento de contraste significativo o fato de o Rio de Janeiro ter tido três governadores evangélicos consecutivos, pois nesse estado o protagonismo da Igreja Católica (e não das Igrejas Evangélicas) foi determinante na elaboração, aprovação e implantação daquela disciplina na modalidade confessional.

O artigo de Daniela Patti do Amaral, "Ética, moral e civismo: difícil consenso", mostra que os 11 anos que decorreram desde a promulgação da LDB foram férteis em projetos de lei de caráter moral e cívico. Ela identificou e analisou, no período 1997/2006, 12 propostas de lei apresentadas à Câmara dos Deputados e ao Senado, bem como uma recomendação ao Ministro da Educação para que assumisse a iniciativa normativa. Visavam todas à introdução de uma disciplina obrigatória no ensino fundamental (principalmente), no ensino médio (secundariamente) e até no ensino superior, ora denominada Educação Moral e Cívica, ora Ética, ora Ética e Cidadania, ora Organização Social e Política do Brasil. Proposta por parlamentares situados na faixa de centro-direita do espectro político, essa disciplina teria o objetivo de resgatar valores supostamente perdidos pela sociedade, por causa, sobretudo, da disseminação de valores anti-sociais pela mídia, especialmente pela TV. Para os 11 deputados e o senador, parece não constituir problema, para a definição dos conteúdos da nova disciplina, a prevalência de uma quase anomia (no sentido durkheimiano do termo) no âmbito do Congresso Nacional e da sociedade inclusiva, amplamente divulgada pela mesma mídia, posta na posição de vilã. Diante desse quadro, a autora pergunta se esse tipo de iniciativa poderia ser uma tentativa de driblar o caráter da disciplina Ensino Religioso, facultativo nas escolas públicas, por disciplina obrigatória, na qual conteúdos religiosos poderiam ser tratados de forma camuflada ou não. Produzir um consenso sobre a ética a incluir no currículo da escola é uma difícil empreitada que, na opinião da autora, cabe a todos os empenhados na construção da democracia.

Chamo a atenção do leitor para um item do artigo de Cavaliere, "Religião e controle social", e um item do artigo de Lui, "O ensino religioso como transmissor de valores éticos". Eles são convergentes com as propostas dos parlamentares, analisadas por Amaral. Se a base religiosa da Educação Moral (e Cívica) proposta no Congresso transparece sob as justificativas dos parlamentares, o Ensino Religioso tem sido concebido como uma espécie de Educação Moral (e Cívica?) de base transcendente.

Tudo somado, a questão do Ensino Religioso na escola pública, com o reforço da ressurgência dos projetos parlamentares de Educação Moral e Cívica, aponta para a redução da autonomia do campo educacional no Brasil. Ele parece ter, hoje, um grau de autonomia menor do que o usufruído há duas décadas, quando se preparava a Assembléia Nacional Constituinte. No que concerne ao nosso tema, a derrota política (momentânea?) dos setores laicos ativos é um elemento, dentre outros, da regressão do campo educacional, no que concerne à sua autonomização diante do campo político e do campo religioso.

Luiz Antônio Cunha

Núcleo de Estudos de Políticas

Públicas em Direitos

Humanos da Universidade

Federal do Rio de Janeiro

www. luizantonio.cunha.nom.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007
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