Acessibilidade / Reportar erro

Desdobramentos da associação "público-privado" na administração do ensino técnico no Ceará

Developments of the "public-private" partnership in the technical teaching management in Ceará

Resumos

O texto traz resultados de estudo de caso que focaliza escola técnica de nível médio administrada por Organização da Sociedade Civil de Interesse Público - Oscip -, por meio de contrato de gestão estabelecido com o governo do Estado do Ceará. Os dados indicam que a associação "público-privado" focalizada afasta-se do criticado modelo de "quase-mercado", tal como implantado na área educacional na Inglaterra, uma vez que os mecanismos de mercado introduzidos revelam-se bastante diferentes do paradigma inglês. No caso estudado, o enfraquecimento da dimensão pública da escola passa por outra vertente, na qual a exigência de que a escola venda serviços para completar seu orçamento parece ter desdobramentos deletérios na dinâmica escolar, dos quais a alta taxa de evasão pode ser um indicador relevante.

ESTUDO DE CASO; ENSINO TÉCNICO; POLÍTICAS PÚBLICAS; ADMINISTRAÇÃO DA EDUCAÇÃO


This text presents the results of a case study focusing on a secondary technical school managed by an a Civil Society Organization of Public Interest - Oscip -, through the analysis of a management contract that was signed with the Ceará State government. Data indicate that this particular "public-private" partnership departs from the criticized "quasi-market" model implemented in the educational area in England, since the market mechanisms introduced here turned out to be quite different. In the case studied, the weakening of the schools' public dimension passes through another discussion, in which the demand to sell services to supplement the school's budget seems to have harmful developments in the school dynamics, of which the high rate of drop-outs can be a relevant indicator.

CASE STUDY; TECHNICAL EDUCATION; EDUCATIONAL POLICIES; EDUCATIONAL ADMINISTRATION


OUTROS TEMAS

Desdobramentos da associação "público-privado" na administração do ensino técnico no Ceará

Developments of the "public-private" partnership in the technical teaching management in Ceará

Dagmar M. L. Zibas

Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas dzibas@fcc.org.br

RESUMO

O texto traz resultados de estudo de caso que focaliza escola técnica de nível médio administrada por Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – Oscip –, por meio de contrato de gestão estabelecido com o governo do Estado do Ceará. Os dados indicam que a associação "público-privado" focalizada afasta-se do criticado modelo de "quase-mercado", tal como implantado na área educacional na Inglaterra, uma vez que os mecanismos de mercado introduzidos revelam-se bastante diferentes do paradigma inglês. No caso estudado, o enfraquecimento da dimensão pública da escola passa por outra vertente, na qual a exigência de que a escola venda serviços para completar seu orçamento parece ter desdobramentos deletérios na dinâmica escolar, dos quais a alta taxa de evasão pode ser um indicador relevante.

ESTUDO DE CASO – ENSINO TÉCNICO – POLÍTICAS PÚBLICAS – ADMINISTRAÇÃO DA EDUCAÇÃO

ABSTRACT

This text presents the results of a case study focusing on a secondary technical school managed by an a Civil Society Organization of Public Interest – Oscip –, through the analysis of a management contract that was signed with the Ceará State government. Data indicate that this particular "public-private" partnership departs from the criticized "quasi-market" model implemented in the educational area in England, since the market mechanisms introduced here turned out to be quite different. In the case studied, the weakening of the schools' public dimension passes through another discussion, in which the demand to sell services to supplement the school's budget seems to have harmful developments in the school dynamics, of which the high rate of drop-outs can be a relevant indicator.

CASE STUDY – TECHNICAL EDUCATION – EDUCATIONAL POLICIES – EDUCATIONAL ADMINISTRATION

POR QUE O CEARÁ?

O Nordeste é um milagre à procura de um santo milagreiro.

Anônimo, literatura de cordel, secundando Pirandello

Desde meados da década de 1990 até 2006, os sucessivos governos do Estado do Ceará, filiados à mesma orientação político-partidária, fizeram um grande esforço para se aproximar do modelo da chamada "nova administração pública". Como se sabe, tal modelo, largamente inspirado na racionalidade econômica do mercado e nos princípios e técnicas que orientam a administração de empresas privadas (Varone, 1998), sugere, na área educacional, a "desresponsabilização" do Estado pelos processos internos às escolas. Ou seja, esse discurso de abrangência internacional propõe, no que se refere à educação, que o Estado seja considerado o construtor de políticas, indutor de sua implementação e fiscal dos resultados, cabendo às unidades escolares responder pelo rendimento dos alunos e pela gestão dos recursos estatais. Para os países pobres ou em desenvolvimento, também foi muito recomendado que se obtivesse – junto às famílias e às diversas instâncias do entorno escolar – uma complementação do financiamento estatal.

Essa argumentação, que insere a educação na lógica de mercado, está presente em diversos documentos das agências multilaterais. Por exemplo, ao introduzir os Programas de Ajuste Estrutural [Structural Adjustment Programmes], o Banco Mundial confere à educação o caráter de área de inversão econômica socialmente produtiva e, explicitamente, incentiva a contribuição das famílias e a redução do financiamento estatal à educação, estabelecendo, implicitamente, outras prioridades para o uso dos fundos públicos. O seguinte trecho é bastante revelador das orientações políticas divulgadas pelo banco:

As condições macroeconômicas adversas e a intensa competição intersetorial por fundos públicos reduziram a capacidade da maioria dos governos para continuar expandindo a educação. Ao mesmo tempo, os sistemas atuais de financiamento limitam a possível contribuição das unidades familiares. O resultado no setor da educação é insuficiente e não aproveita a disposição das unidades familiares a favor da educação. (World Bank, 1987, p.17, tradução minha)

Como era de se esperar, essa "receita" de abrangência global sofreu entre nós toda sorte de resistências e críticas, não conseguindo prevalecer nos moldes divulgados e incentivados pelo discurso internacional. No entanto, no Ceará (assim como em outros estados, principalmente em São Paulo, Minas Gerais e Paraná), houve a implementação de diversos programas como tentativas de aproximação ao modelo internacional.

No contexto cearense, esse esforço de "aggiornamento neoliberal" teve desdobramentos diversos. De um lado, os formuladores de políticas trataram de introduzir uma nova racionalidade no sistema e, nesse sentido, o Ceará antecipou-se à promulgação, em 1996, da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB – (Lei n. 9.394), pois, no documento Todos pela educação de qualidade para todos (Ceará, 1995), foi delineada a reestruturação da Secretaria de Educação – Seduc – e dos órgãos intermediários, de forma a conferir mais autonomia às unidades escolares. Ficou instituída, por exemplo, a obrigação das escolas de elaborarem seu projeto político-pedagógico, em um processo no qual, afirmando sua autonomia, as instituições também deveriam estabelecer um compromisso passível de ser cobrado. Outras iniciativas consideradas modernizadoras foram tomadas, tais como:

a. organização de concursos públicos para a seleção de professores;

b. escolha de dirigentes regionais por meio de critérios técnicos;

c. preenchimento do cargo de direção por meio de processo eleitoral (com participação de todos os segmentos da comunidade escolar), combinado à realização de provas de conhecimentos e comprovação de títulos;

d. a construção de 18 "liceus modelos", localizados em bairros periféricos de Fortaleza e em outras regiões pauperizadas do estado, com o propósito de quebrar o tabu da incompatibilidade entre pobreza da população e qualidade do ensino.

Diversas dessas inovações sacudiram velhas estruturas eivadas de clientelismo, confrontando alguns procedimentos tradicionais, historicamente estabelecidos no sistema de ensino do Ceará, como, por exemplo, a indicação política para cargos de diferentes níveis, desde direção e docência até serviços de apoio e manutenção.

No período considerado, o conjunto de iniciativas do governo cearense constituiu uma tentativa de grande salto político-administrativo, visando passar da estrutura arcaica, baseada em relações patrimonialistas (troca de favores, privilégio de relações pessoais) para a concepção da "nova gestão pública". Esta exige, por um lado, regras burocráticas claramente estabelecidas e compromisso com seu cumprimento e, por outro, iniciativas locais que ocupem o espaço deixado pelo Estado, principalmente no que diz respeito à complementação do financiamento das atividades escolares e de acompanhamento dos processos pedagógicos e gestionários (Zibas, 2005).

Nesse quadro, a administração do ensino técnico de nível médio é outra face do "aggiornamento neoliberal" das políticas estaduais. O Decreto Federal n.2.208, de 1997, que extinguiu o ensino técnico integrado à educação geral, introduzindo cursos modulares exclusivamente profissionais, foi uma oportunidade para que o governo cearense tomasse uma decisão radical, eximindo-se da obrigação de oferecer ensino técnico de nível médio de qualquer tipo. Ele pretendia que, no Ceará, tal formação ficasse apenas a cargo do Sistema S (principalmente do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – Senai), da Escola Técnica Federal (integrada ao Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará – Cefet-CE) e das instituições privadas. Traçada essa diretriz, a Seduc, a partir de 1998, transformou todas as suas escolas profissionalizantes e técnicas em escolas de ensino médio regular1 1 . A iniciativa foi oficialmente justificada pelo fato de que a maioria das escolas técnicas era mal estruturada e mal equipada. Todavia, os poucos bons cursos também foram extintos. A única exceção foi o curso de enfermagem administrado por tradicional escola de nível médio, de Fortaleza, que, graças, principalmente, à resistência de professores e alunos, sobreviveu à decisão governamental. Dezessete escolas normais, em vista de sua especificidade, também escaparam da política de erradicação dos cursos profissionalizantes e técnicos. . Tal decisão estava claramente ancorada na retórica hegemônica dos anos 1990, a qual, diante da ampliação de tecnologias avançadas e da reestruturação produtiva, aconselhava aos sistemas de educação básica que se privilegiasse a formação geral e polivalente (Azevedo, 2001) e que se abandonasse a formação técnica, específica, à iniciativa privada ou aos empresários da indústria e do comércio.

No entanto, pressões de diversos tipos (econômicas, políticas, sociais e legais) obrigaram o Estado do Ceará a voltar a oferecer ensino técnico de nível médio. Em vista desses constrangimentos, o governo estadual elaborou um projeto que, a partir de 2004, veio, entretanto, reforçar a orientação de sua política educacional em direção ao modelo da "nova gestão pública". Isto é, a estratégia usada foi contratar uma Oscip, o Instituto Centro de Ensino Tecnólogico – Centec –, que já era associado ao estado na oferta de cursos tecnológicos de nível superior, para ministrar o ensino técnico estadual.

As Oscips são entidades recentemente instituídas no ordenamento jurídico do país. São sociedades civis de direito privado, formalmente sem fins lucrativos, as quais, entre outras atividades, podem assinar contratos com órgãos públicos para prestação de serviços. Todavia, foi a Secretaria de Ciência e Tecnologia – Secitece –, e não a Secretaria de Educação, o órgão que representou o governo estadual na negociação do contrato com o Centec. Sem dúvida, essa desvinculação entre o ensino técnico e a Secretaria de Educação também obedeceu a uma nova orientação das políticas educacionais, uma vez que a intenção era promover maior aproximação entre o processo de profissionalização e o mercado de trabalho. No estabelecimento desse vínculo, o setor de Ciência e Tecnologia tem, sem dúvida, maior tradição do que a área de educação. Por sua vez, como já dito, a Seduc havia avançado bastante, na década de 1990, em questões-chave de democratização do sistema, como no processo de designação de diretores e nos concursos públicos para o magistério. Nesse sentido, veremos adiante, a gestão das escolas técnicas pelo Centec significou um retrocesso.

O contrato assinado entre o governo cearense e o Centec, no que diz respeito ao ensino técnico de nível médio, prevê o repasse sistemático de verba para a manutenção dos cursos2 2 . Foi previsto que o repasse de verbas seria relacionado ao número de alunos inscritos a partir de 2007. No entanto, com a vitória da oposição nas eleições estaduais de 2006, o contrato com o Centec estava, em maio de 2007, sendo revisto, inclusive com a possibilidade de "federalização" de algumas escolas. . A instituição tem liberdade para contratar professores, nomear diretores, estabelecer planos de carreira, abrir cursos e elaborar currículos, não sendo cobrada por resultados. Há, no entanto, cláusula contratual que obriga o Centec a oferecer cursos de treinamento profissional de curta duração. Em decorrência, foram instalados, em 34 municípios, os Centros Vocacionais Tecnológicos. Tais centros, em parceria com diversas entidades, promovem cursos gratuitos de formação inicial e continuada de trabalhadores. Em quatro municípios, estão instaladas unidades do Centec que administram cursos superiores de tecnologia. Em seis municípios, o ensino técnico de nível médio é oferecido por centros geridos pela instituição.

Em que pese o fato de que a oferta de educação profissional esteja sendo feita, cada vez mais, pela transferência de recursos públicos para a iniciativa privada (Kuenzer, 2006), não é muito comum a total terceirização de todo o ensino técnico de nível médio sob a responsabilidade de uma unidade da federação3 3 . Em São Paulo, o Centro Estadual de Educação Técnica e Tecnológica Paula Souza tem, como autarquia, um status institucional que, em certa medida, se assemelha ao Centec, constituindo também um canal por onde avança a privatização do espaço público (Bueno, 2007). . Foi, principalmente, essa característica do ensino técnico estadual que nos estimulou a focalizar o caso cearense.

A PESQUISA: OBJETIVO, FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS E PROCEDIMENTOS

O objetivo mais amplo da pesquisa foi estabelecido nos seguintes termos: "apreender os processos institucionais de apropriação das orientações dos órgãos centrais e intermediários para a educação técnica de nível médio". Para atingi-lo, julgou-se que a abordagem mais apropriada seria a qualitativa, em sua vertente de estudo de casos.

O conceito de "apropriação", como utilizado na explicitação do objetivo, tangencia os aspectos mais básicos das elaborações de Ezpeleta e Rockwell (1985, 1985a), pois supõe que o intercâmbio dos agentes escolares estabelece tramas socioafetivas, culturais e políticas que interpelam, filtram, transformam, ignoram, escamoteiam ou absorvem, muitas vezes apenas fragmentariamente, as propostas oficiais. Para a análise desses processos intra-institucionais, uma aproximação aos conceitos de Stephen Ball pareceu útil para desvendar como a micropolítica escolar atua, no caso escolhido, para "reescrever" as diretrizes elaboradas pelos órgãos centrais. Ball (1989) não considera que a escola constitua um todo homogêneo. Ao contrário, classifica a instituição escolar como ideologicamente múltipla e fragilmente articulada; ou como um "campo de luta", dividido por conflitos atuais ou potenciais entre seus membros. Como decorrência de tais concepções, o autor destaca que, no estudo da micropolítica escolar, é necessário priorizar dois processos que são básicos na constituição da trama que, no cotidiano, tece a prática e a cultura institucional: o conflito e o controle. O conflito entre pessoas e grupos é inevitável em qualquer organização, principalmente quando a instituição é confrontada com orientações que prescrevem mudanças. O controle é a tentativa de resolver ou evitar conflitos e pode ser exercido, na escola, tanto pela direção, quanto por grupos ou pessoas de maior influência. Em sua definição do conceito de "controle", Ball faz questão de se distanciar dos estudos tradicionais das organizações, pois, em sua visão, a atenção que tais estudos dão ao controle hierárquico minimiza, equivocadamente, processos micropolíticos que muitas vezes colocam o "controle" em mãos de indivíduos ou grupos distantes dos mais altos níveis formais das organizações.

Embora admitindo a fragilidade da hierarquia institucional, para o autor, "o papel do diretor é fundamental e decisivo para a compreensão da micropolítica da escola" (Ball, 1989, p.91). Além disso, ele considera insuficiente focalizar o trabalho da direção apenas através das lentes da definição formal do papel e dos deveres do titular dessa posição. É preciso atentar para fatores contextuais que limitam, condicionam ou afetam de diversas maneiras o desempenho da função, pois tais fatores estão relacionados aos processos conflituosos e de luta pelo "controle" das organizações.

A partir de dados originados por estudos de caso, principalmente pela análise de entrevistas com diretores e outros membros da equipe escolar, Ball identificou três tipos principais de atuação dos diretores: o interpessoal, o administrativo e o político, este último subdividido em duas variantes, o antagonista e o autoritário. Os diretores de estilo interpessoal apelam principalmente para as relações pessoais e para o contato face a face para desempenhar seu papel. Em contraste a esses, os diretores de estilo administrativo recorrem mais aos comitês, aos memorandos e aos procedimentos formais. Os antagonistas tendem a desfrutar da discussão e do enfrentamento para manter o controle, enquanto os autoritários evitam e sufocam as discussões para favorecer o mando (Ball, 1989).

No desenvolvimento deste estudo, os conceitos de Ball, como conflito, controle e estilo de direção, foram úteis para orientar a coleta de dados e, conseqüentemente, como categorias de análise do material recolhido. Ou seja, esses conceitos foram considerados chaves adequadas para a compreensão da leitura que a escola faz das políticas oficiais e de sua tradução para a prática escolar.

Além de Stephen Ball, o enfoque teórico-metodológico adotado também recorreu a Licínio Lima (2003), que propõe um nível "mesoanalitíco" do estudo da organização escolar, de forma a compreender a escola como um locus tanto de produção (como em Ball), mas também de reprodução de regras. Sob a perspectiva deste estudo, a associação entre Ball e Lima parece teoricamente consistente porque tais abordagens podem ser complementares na leitura do "fazer escolar". À ênfase, talvez excessiva, de Ball no poder da cultura escolar e nas relações interpessoais e intergrupais para a construção de procedimentos e objetivos alheios ao poder central, Lima contrapõe a consideração de um duplo movimento da dinâmica escolar, tanto de autonomia e produção de novas normas quanto de reprodução das disposições oficiais.

No entanto, essa lente sobre o microcosmo escolar não é suficiente para tornar compreensível a escola em sua relação com as macropolíticas; ao contrário, é necessário relacionar os dois enfoques que, muitas vezes, se apresentam dissociados: de um lado, o enfoque interno, que estuda as escolas como sistemas micropolíticos e, de outro lado, o enfoque estrutural, que apresenta a escola como instituição relacionada a interesses do sistema político e social mais abrangente. Nesse sentido, este estudo aproxima-se de elaborações de Santos Guerra (1997), quando esse autor sugere que as duas dimensões – a macro (políticas de Estado e seus fundamentos) e a micro (peculiaridades e dinâmicas institucionais) – são necessárias para se entender o sistema escolar e cada escola concreta.

Indispensável, portanto, é desvelar a "articulação" entre as duas esferas, que constituem a prática e a cultura escolar. O conceito de "articulação" tem sido usado para abordar a complexa rede de "lugares" e "dispositivos de mediação" existente entre a formulação das propostas governamentais e as práticas escolares (Almandoz, Vitar, 2006). Neste estudo, o conceito de "articulação" é associado ao conceito de "sustentabilidade", aqui entendido como as condições financeiras, político-administrativas e pedagógico-culturais que dão (ou não) suporte às políticas propostas. Com tal abordagem, pretende-se apreender, pelo menos até um certo nível, as mediações e contradições que – no âmbito político-administrativo, pedagógico-cultural e do financiamento – se estabelecem entre a complexidade do tecido institucional e os processos que se desenvolvem no âmbito da macroestrutura. De certa forma, este estudo fundamenta-se em determinada tradição de pesquisa educacional, representada, por exemplo, por Ezpeleta e Rockwell (1985), que se propõe a relacionar o singular ao histórico. Ou, em outras palavras, há a preocupação de situar as análises do "caso" dentro de um conjunto de conhecimentos voltados para a apreensão dos fundamentos concretos, isto é, históricos, dos fenômenos registrados (Martins, 1973).

No Centec cearense, foi escolhida, como "caso" para pesquisa, uma unidade situada em município do interior do estado. A escola ocupa uma grande área cedida pelo governo estadual ao Centec para a instalação de curso superior de tecnologia, mas, a partir de 2004, passou também a oferecer cursos técnicos de nível médio. Conta com um total de 68 docentes para o ensino tecnológico superior e técnico.

Os procedimentos selecionados para a coleta de dados foram aqueles mais comumente usados em estudos de caso: observações, análise de documentos e entrevistas (individuais e em grupos) com o corpo diretivo, coordenadores, professores e alunos. Um questionário com poucas questões também foi respondido por um total de 67 estudantes, entre os 155 matriculados, em 2007, nos quatro cursos técnicos da escola. Embora não previsto inicialmente, o uso do questionário tornou-se necessário para a captação de dados mais gerais sobre o alunado, uma vez que tais informações não estavam disponíveis na secretaria do estabelecimento.

OS DADOS E SUA ANÁLISE4 4 . Todos os sujeitos da pesquisa foram informados dos objetivos do estudo e se apresentaram voluntariamente para participar como fontes de informação. As dificuldades apontadas quanto ao funcionamento da escola foram discutidas com gestores e com um grupo de docentes que se mostrou interessado nos resultados. Houve o compromisso de não divulgação da identidade da escola ou dos depoentes.

A primeira característica da escola a chamar a atenção foi a existência de muito espaço ocioso, encontrado em laboratórios razoavelmente bem equipados, em amplas salas de aula e em outras dependências. A observada ociosidade das instalações parece conseqüência da grande evasão de alunos ao longo dos cursos, como se verifica pelas informações fornecidas pela secretaria acadêmica da escola. Em 2004 havia 111 matriculados nos cursos técnicos com duração de cinco semestres, sendo que em 2006 foram registrados apenas 40 concluintes, o que indica ter havido uma evasão5 5 . Foi considerada evasão a diferença entre os matriculados em 2004 e os concluintes em 2006, porque, segundo informações da secretaria da escola, não houve, nesse período, qualquer retenção ou reprovação. de 73%.

Os dados, resumidos em seguida, talvez expliquem, pelo menos em parte, o elevado índice de evasão registrado.

  • Os cursos técnicos foram agregados, em 2004, à escola que, até então, somente oferecia cursos superiores de tecnologia, todos diurnos. Os mesmos professores dos cursos superiores, a maior parte com formação em nível de pós-graduação, foram alocados para lecionar nos cursos técnicos, todos noturnos. Assim, foram reproduzidas, à noite para o ensino técnico, as mesmas especializações oferecidas no diurno para os cursos superiores de tecnologia. Isso explica o fato inusitado de oferta apenas noturna de cursos das áreas de agricultura e conservação do meio ambiente, o que os torna artificiais e, possivelmente, improdutivos.

  • As reclamações dos professores são muitas, pois se sentiram coagidos a assumir as aulas noturnas, sem ganhar adição salarial. A compensação, com o menor número de horas trabalhadas durante o dia, parece não contentar esses docentes. O menor

    status social e profissional dos cursos técnicos, em comparação aos cursos superiores de tecnologia, também pode ser um fator a criar resistências. Essa insatisfação pode afetar a qualidade do processo ensino-aprendizagem, incentivando a evasão.

  • Para diminuir as resistências, alguns professores mais qualificados estão sendo substituídos por tecnólogos formados na própria escola. Dados obtidos por meio de entrevistas com os novos professores e seus alunos indicam que faltam, a alguns desses jovens docentes, conhecimento pedagógico e prática de sala de aula, o que cria muita insatisfação entre os estudantes e consiste, talvez, em outro fator que incide sobre a evasão.

  • A função dos coordenadores é apenas administrativa. Assim, cada professor trabalha isoladamente, não havendo espaço para planejamento conjunto. Os contatos entre docentes sobre o conteúdo dos cursos são muito esporádicos e informais. Nesse cenário não há possibilidade de que os jovens professores possam ser orientados de forma sistemática, sob o ponto de vista pedagógico e didático, pela coordenação ou pelos colegas mais experientes.

  • A pressão do governo do estado para que as escolas do Centec vendam serviços tem, como justificativa oficial, o argumento de que, sendo um centro tecnológico, uma das funções da instituição é a de contribuir para o desenvolvimento regional. No entanto, a renda gerada pela atividade comercial tem também a importante função de complementar o financiamento estatal da escola, considerado insuficiente. Isso faz com que um setor especial – o de Extensão Tecnológica – tenha, nas palavras de seu coordenador, a tarefa de "vender a escola". Isso significa oferecer serviços – de assessoria técnica, de confecção de peças especiais e de organização de cursos – para empresas privadas e órgãos públicos, como prefeituras. Da renda assim gerada, 70% são enviados à sede do Centec, em Fortaleza, que redistribui esses recursos entre as escolas sob sua responsabilidade. Os restantes 30% são atribuídos diretamente aos professores que se encarregaram da prestação do serviço. Principalmente em vista dos baixos salários, essa estratégia pode motivar uma parte do corpo docente a maior dedicação a essas atividades "extra-remuneradas", colocando em segundo plano as aulas nos cursos financiados pelo estado.

  • A mesma estratégia de venda de serviços tende a subtrair dos alunos a oportunidade de conhecer novos processos ou de lidar com equipamentos mais novos e mais modernos, em geral financiados pelo governo federal, os quais são reservados para os serviços especiais, encomendados por indústrias ou outras entidades. Esses serviços são desenvolvidos apenas por professores e pelos técnicos de laboratórios. A separação entre "venda de serviços" e "atividades de ensino" é justificada oficialmente pelo fato, já mencionado, de que uma das funções sociais do centro é a de contribuir para o desenvolvimento da região. Isso exigiria serviços complexos e de excelência, níveis que seriam prejudicados pela participação discente. Um dirigente foi bastante claro a respeito:

    Nossa função é contribuir para o desenvolvimento das regiões. Esses equipamentos mais caros são comprados com financiamento federal e destinam-se a isso. São para serviços que os professores e técnicos dos laboratórios das escolas prestam às empresas. São altamente especializados... esses equipamentos não podem ser usados pelos alunos, porque vão quebrar... são muito caros... E depois esses alunos não vão encontrar esses equipamentos nas empresas quando forem trabalhar. As empresas vêm até nós para ter acesso a esses equipamentos.

  • Adicionalmente, observou-se que a compra de equipamentos caros para a prestação de serviços convive com a falta de material básico para as práticas de alunos em laboratórios.

  • A maior parte das atividades de assessoria é desenvolvida no período diurno, de segunda a sexta-feira, o que veda a participação dos estudantes dos cursos técnicos noturnos que trabalham durante o dia. Mesmo quando há possibilidade de que esses serviços se realizem aos sábados, muitos professores não têm disponibilidade para trabalhar nesse dia

    6 6 . Foi registrada pelo menos uma exceção: professora que fazia esforço para que os trabalhos de assessoria que assumia servissem também de atividade prática para os alunos, levando-os para o campo aos sábados. .

  • A autonomia da escola em relação ao estado é contraposta à grande centralização do sistema Centec. Conforme observado durante o trabalho de campo, diversos procedimentos triviais, como o fornecimento de dados estatísticos da escola para a pesquisa, necessitam de aprovação da gerência central da instituição, sediada em Fortaleza. Tal dependência é de molde a impedir maior agilidade da unidade escolar para resolver problemas locais e atender com rapidez as reivindicações dos estudantes.

  • Os diretores da unidade têm sido escolhidos pela direção do Centec, sem consulta aos professores e muito menos aos alunos. Esse procedimento gera muita insatisfação no ambiente escolar

    7 7 . Em 2007, esse procedimento estava em revisão, em vista de exigência do MEC, como requisito para o credenciamento dos cursos superiores de tecnologia. .

  • A duração dos cursos (cinco semestres) é considerada excessiva pelos alunos. Argumentam que o curso de tecnólogo é de sete semestres e confere um diploma de nível superior. Os jovens não levam em conta o fato de que o curso de tecnologia exige, para a admissão, a conclusão do ensino médio, enquanto para se matricular no curso técnico o aluno pode estar apenas inscrito no primeiro ano do curso médio. A diferença não é considerada provavelmente porque a grande maioria dos alunos do técnico já concluiu o ensino médio

    8 8 . Essa característica do alunado dos cursos técnicos chegou a confundir uma das coordenadoras entrevistadas, que afirmou ser obrigatória, para admissão no nível técnico, a conclusão do ensino médio. . A matrícula no ensino técnico e não no curso superior de tecnologia se deve, nesses casos, ao fato de que o nível superior é oferecido apenas no período diurno, o que o inviabiliza para os jovens que trabalham. De todo modo, a comparação entre a extensão dos dois níveis de formação parece desmotivar os alunos dos cursos técnicos.

  • Muitos alunos moram e trabalham em municípios vizinhos. As longas viagens noturnas de ida e volta em estradas precárias depois da jornada de trabalho diurno são, sem dúvida, fatores de desestímulo à freqüência às aulas.

As características da dinâmica escolar, aqui resumidas, parecem explicar, pelo menos parcialmente, o alto índice de evasão registrado. Por sua vez, as categorias de análise estabelecidas podem lançar outras luzes sobre os dados.

Assim, é importante considerar os componentes da micropolítica escolar – como, por exemplo, o estilo de direção – na construção de redes de relações que ressignificam as normas oficiais. Na instituição focalizada, julgamos que houve, recentemente, com a nomeação de um novo diretor, a transição de um estilo "interpessoal" para um estilo "administrativo" de gestão. Como já vimos, em Ball (1989), a direção de estilo interpessoal prefere as interações face a face em seu trabalho na organização institucional, de modo a ouvir cada um dos agentes escolares e resolver caso a caso as questões. Na escola estudada, esse estilo pode ter incentivado os docentes a serem mais autônomos, quebrarem barreiras e reportarem-se diretamente à direção para expor os problemas. Entretanto talvez tenha também enfraquecido o coletivo, em vista da não explicitação de regras válidas para todos.

O estilo administrativo de direção, que os dados indicam prevalecer com o novo diretor, inspira-se em relações e procedimentos de controle organizativo em uso na indústria. A formação do novo diretor em curso de engenharia e sua experiência de trabalho em empresa privada devem concorrer para a adoção desse padrão. O apoio em documentação, em comunicação escrita e em reuniões formais para coordenar o dia-a-dia da escola tem o importante objetivo de padronizar procedimentos, evitando exceções, e pode atender a necessidade de prestar contas minuciosas à direção central da instituição, em Fortaleza. No entanto, tal estilo, como qualquer outro, pode ter desdobramentos contraditórios, pois, ao lado da maior padronização das normas, pode causar rigidez das relações, burocratizando em demasia os procedimentos e regulações. Segundo Jares (1997), a tendência gerencialista da direção das escolas torna-se, quase sempre, fonte de conflitos entre a dimensão burocrática, vertical, e a dimensão educativa, horizontal. No caso em pauta, algumas observações dos alunos sobre a distância entre eles e a administração podem ser sintoma de uma atuação gerencialista da administração escolar, muito formal e menos acessível. É ainda necessário levar em conta que a liderança nunca é outorgada, mas conquistada, e que os professores são agentes integrados na construção da realização social de um estilo de direção. Há na instituição indícios de que os diferentes estilos de direção tiveram desdobramentos muito semelhantes em certos aspectos da dinâmica escolar.

Um exemplo da persistência das características institucionais, sob diferentes estilos de gestão, está no fato de que a grande centralização do controle na sede do Centec, na capital, não impede que os professores tenham também oportunidade de exercer poder e controle. Nesse sentido, seu espaço privilegiado é a sala de aula. Parece vigorar na escola o mesmo pacto tácito entre direção e docentes, muito comum nos sistemas de ensino, referente à ausência de controles mútuos (Bardisa Ruiz, 1997). Sob esse pacto, o isolamento do trabalho didático-pedagógico é eufemisticamente chamado de "autonomia" e muito valorizado pelos professores. No caso em tela, a falta de controle da "caixa-preta" da sala de aula tem outra face, que consiste na aceitação formal, por parte do corpo docente, de uma direção centralizadora e não participativa. Nesse quadro, os conflitos não desaparecem, mas são camuflados, de modo que as declarações mais incisivas de insatisfação foram feitas em off ou por meio da convocação de outra voz (no caso, um professor sindicalista, do curso superior) para expressar as críticas dos docentes.

Foi possível ainda registrar que, além da "autonomia" em sala de aula, os professores podem exercer controle sobre outros aspectos da dinâmica escolar. A prestação de serviços às empresas, por exemplo, parece constituir outra área vulnerável ao controle direto dos docentes, sob qualquer dos dois estilos de direção discutidos.

Quanto à categoria "conflito", esta também ilumina a análise, tornando-se chave importante para a compreensão da dinâmica escolar que se desenvolve ao largo das determinações oficiais. Na escola pesquisada, o oconflito latente entre docentes e direção, gerado pela resistência de diversos professores ao exercício do magistério nos cursos técnicos noturnos, dificulta a realização de um projeto pedagógico mais consistente. Há ainda conflito entre docentes que prestigiam os cursos noturnos, inclusive empenhando-se em aliar a venda de serviços à aprendizagem dos alunos, e seus colegas que priorizam os cursos superiores, expressando grande ceticismo em relação aos cursos técnicos noturnos. Boyd e Barret (apud Ball, 1989) consideram os conflitos entre grupos não só um fato inevitável da vida das organizações, mas também como processos nos quais as instituições crescem e se desenvolvem ao longo do tempo. Em outras palavras: segundo esses estudiosos, o desenvolvimento de processos conflituosos, a partir de uma perspectiva democrática e não violenta, tem efeitos didáticos, desde que questionem o próprio funcionamento da instituição e a correlação de forças existentes na cena escolar. Na instituição estudada, pelo menos no curto prazo, a nítida divisão do corpo docente tende a travar qualquer avanço institucional. Entretanto, levando-se em conta as elaborações dos teóricos da micropolítica crítica, é de se esperar que, em prazo mais longo, essas frentes de conflito evoluam para uma solução mais racional dos problemas da dinâmica e da organização escolar. Ou seja, os conflitos detectados, uma vez explicitados, talvez possam ter desdobramentos mais saudáveis do que teria uma "paz institucional" artificialmente construída e, nesse caso, sinônimo de imobilismo ou conformismo.

De outra parte, nossa compreensão dos aspectos contraditórios do cotidiano pode ser ampliada, recorrendo-se ao conceito de Lima (2003) sobre o funcionamento díptico da escola, que tanto reproduz as regras oficiais, quanto cria normas informas e não formais. Esse conceito esclarece, por exemplo, como, ao tratar de cumprir a norma oficial de vender serviços de modo a "contribuir para o desenvolvimento regional" (mas também para completar o orçamento da instituição), alguns agentes escolares podem passar a adotar procedimentos que secundarizam a função pedagógica e instrucional da escola, privilegiando as assessorias e serviços prestados às empresas. Tal privilégio, obviamente, não constitui diretriz oficial da instituição, podendo ser considerado exemplo de norma não formal posta em prática por alguns setores da organização.

Evidentemente, é necessário evitar a simplificação de responsabilizar apressadamente os docentes e a gestão da escola pela existência dessas regras não oficiais, em certo sentido transgressoras. Aqui, é preciso considerar que tais regras apenas põem a nu a agenda oculta da política oficial, que "desresponsabiliza" o Estado pelo financiamento adequado do ensino técnico. Ou seja, esses procedimentos devem ser compreendidos no amplo contexto de adesão dos formuladores de políticas ao discurso internacional, que, conforme já discutimos, isenta o Estado de financiamento integral da educação pública. No caso, tal opção gera precárias condições de trabalho docente e baixos salários. Nesse quadro, a ênfase para que a escola venda serviços se torna vetor de procedimentos que enfraquecem o projeto escolar. Se, por um lado, sob o aspecto formal, a exigência de geração de renda não prevê o privilégio das atividades lucrativas sobre a ação pedagógica, por outro lado, parece que nos deparamos com um processo de "apropriação", por parte dos professores, que vai muito além dos aspectos formais das diretrizes oficiais, incorporando o núcleo político-ideológico mais profundo que as orienta.

Adicionalmente, as categorias de análise de sustentabilidade (financeira, político-administrava e pedagógico-cultural) podem fazer avançar o quadro analítico aqui esboçado. De fato, ao examinar os dados colhidos em contraponto às categorias de sustentabilidade conforme as definimos, podemos formular a hipótese de que o objetivo central da escola – o qual se deve supor que seja o de formação adequada de técnicos de nível médio – está seriamente comprometido. A sustentabilidade financeira, em vista da necessidade constante de "vender" serviços para completar o orçamento, nunca estará plenamente assegurada, dependente que é da demanda por serviços da escola.

A sustentabilidade político-administrativa do principal objetivo da escola também está ameaçada, uma vez que a zona cinzenta entre público e privado, em que se situa a organização, parece reunir os inconvenientes das duas instâncias. Por exemplo, a autonomia da escola em relação ao Estado é contraposta à grande centralização das decisões na sede da instituição, em Fortaleza. Tal processo dá insegurança aos docentes quanto à sua situação profissional, uma vez que, freqüentemente, se sentem como funcionários públicos submetidos a uma burocracia pesada, semelhante à estatal, mas, ao mesmo tempo, se dizem desprotegidos em relação ao status de funcionários públicos estáveis, que prefeririam ter. Na verdade, a adesão da política oficial às "virtudes" da iniciativa privada é bastante contraditória, pois alguns aspectos das relações de trabalho são "privatizados", tal como a contratação de docentes pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT –, enquanto outros conservam características da relação do Estado com o seu funcionalismo, como o controle apenas burocrático da atuação docente e a não responsabilização da escola pelos resultados.

A sustentabilidade pedagógico-cultural do projeto escolar oficial também não está assegurada, uma vez que há artificialidade na organização dos cursos. No entanto a desvalorização dos cursos técnicos e seus desdobramentos, como a resistência dos professores mais qualificados em dar aulas à noite, permeiam toda a cultura institucional e são percebidos nitidamente pelos estudantes, que dizem se sentir preteridos e até "esquecidos" em diversas situações escolares. Esse clima – do qual a evasão pode ser, ao mesmo tempo, causa e efeito – inibe a participação dos cursos técnicos na construção da identidade cultural da escola.

Neste ponto, parece oportuno pelo menos tangenciar a questão mais ampla relativa ao papel das Oscips como entidades em que o público e o privado, ou o estatal e o mercado, se encontram, desenhando novas opções de implementação de políticas sociais. No caso do ensino técnico sob a responsabilidade do governo do Estado do Ceará, a pergunta que se pode fazer é a seguinte: a estratégia utilizada pode ser incluída dentro do conceito de "quase-mercado", definido por Power e Whitty (2003) como "a introdução de forças de mercado e de processos de decisão característicos da iniciativa privada na prestação de serviços de educação e bem-estar social"? A resposta imediata deve ser um enfático "não". Vejamos por quê.

Como sabido, o conceito de "quase-mercado" é a versão inglesa da "nova gestão pública" para a área da educação. Surgiu na década de 1980 principalmente para descrever as políticas educacionais do governo de Margareth Thatcher. O paradigma inglês enfatizou a competição entre escolas para pautar a distribuição de fundos públicos, não prevendo o apelo a recursos privados para a manutenção do sistema, mas estabelecendo financiamento estatal proporcional ao número de alunos matriculados. A clara expectativa era que a competição pela preferência dos pais – considerados "consumidores" – melhorasse a eficiência das instituições, nos moldes das empresas privadas. Nesse contexto, a gestão escolar é responsabilizada pelos resultados de aproveitamento dos alunos e pela administração dos recursos estatais. Essas políticas, com alguns atenuantes, foram endossadas pelo governo trabalhista que, em 1997, substituiu os conservadores no comando político da Inglaterra.

Os efeitos dessas opções político-ideológicas são temas polêmicos naquele país até hoje, mas muitos analistas concordam que as estratégias de quasi-market, ou seja, de autonomia financeira e administrativa, de competitividade entre escolas e de cobrança de resultados, introduziram maior segmentação na população escolar, reforçando os mecanismos de que as escolas informalmente dispõem para selecionar alunos, submetidas que são ao regime de obtenção de recursos em razão dos resultados. Nesse cenário há a tendência de concentração de alunos mais pobres em escolas de pior desempenho (West, Pennell, 2002; Davies, Adnett, 1999).

O exame da organização e da dinâmica da escola do Centec cearense aponta para outra direção. Os mecanismos de mercado adotados são de ordem muito diferente, ou seja, apenas prevêem a venda de serviços e a autonomia financeiro-administrativa, a qual, no entanto, é outorgada ao Centec e não à unidade escolar. Ali, ao contrário do modelo inglês, não se trata de cultivar a competição entre escolas como meio de, teoricamente, melhorar o desempenho da gestão e do corpo docente, mesmo porque o financiamento, até 2007, era fixo e não condicionado ao número de matrículas.

Embora as atividades comerciais da escola pesquisada sejam justificadas oficialmente pela função social de "contribuir para o desenvolvimento regional", constatou-se que a renda assim gerada é essencial para a manutenção da instituição e para complementar o salário dos professores. Ampliando a tese de Enguita (2002) em seu polêmico questionamento da escola pública, é oportuno perguntar: nesse tipo de associação entre o público e o privado, o quanto ainda subsiste de público? (E por quanto tempo?)

Em resumo, pode-se dizer que, no contexto cearense, "a nova gestão pública" toma uma dimensão ainda mais crítica, pois, incentivando a venda de serviços, desresponsabiliza o Estado pela manutenção integral do sistema e não responsabiliza a escola – "meio pública e meio privada" – pelos resultados. Nas condições registradas, o caso parece configurar-se como planejada omissão estatal, que pode resultar em privatização crescentemente descontrolada e voraz do espaço público, estando muito distante do sutil modelo discriminatório de "quase-mercado", tal como definido no quadro internacional da "nova gestão pública".

Recebido em: abril 2007

Aprovado para publicação em: janeiro 2008

Este estudo fez parte de pesquisa mais ampla sobre a educação profissional de nível médio (Bueno, 2007), realizada pela parceria entre a Fundação Carlos Chagas e a Universidade Estadual Paulista/Campus de Marília, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp. As doutoras Maria Sylvia S. Bueno e Angela M. Martins desenvolveram a parte da pesquisa correspondente a estudos de caso no Estado de São Paulo. A pesquisa no Ceará, referente a dois estudos de caso, ficou sob a responsabilidade exclusiva da autora deste texto e está publicada em Zibas (2007). Os dados resumidos neste artigo referem-se a um dos estudos de caso. Resultados parciais deste estudo de caso foram apresentados no 4º Congresso Luso-Brasileiro de Política e Administração da Educação realizado em Portugal, de 12 a 14 de abril de 2007.

  • ALMANDOZ, M. R.; VITAR, A. Caminhos da inovação: as políticas e as escolas. In: VITAR et al. (orgs.) Gestão de inovações no ensino médio: Argentina, Brasil e Espanha Brasília: Liberlivro; OEI; FCC, 2006. p.15-32.
  • AZEVEDO, J. Continuidades y rupturas en la enseñanza secundaria en Europa. In: BRASLAVSKY, C. (org.) La Educación secundaria: żCambio o inmutabilidade? Buenos Aires: Santillana, 2001. p.65-110.
  • BALL, S. La Micropolítica de la escuela Madrid: Paidós; MEC, 1989.
  • BARDISA RUIZ, T. Teoria y práctica de la micropolítica en las organizaciones escolares. Revista Iberoamericana de Educación, Madrid, n.15, p.13-52, 1997.
  • BUENO, M. S. S. (coord.) A Educação profissional de nível médio: construção de um novo perfil? São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2007. (Relatório de pesquisa)
  • CEARÁ. Secretaria de Estado da Educação. Todos pela educação de qualidade para todos Fortaleza, 1995. (Projeto educacional do Ceará
  • DAVIES, P.; ADNETT, N. Quasi-market reforms and vocational schooling in England and Wales: an economic analysis. Journal of Education and Work, v.12, n.2, p.139-154, 1999.
  • ENGUITA, M. F. És pública la escuela pública? In: ENGUITA, M. F. (org.) Debates: es pública la escuela pública? Madrid: Praxis, 2002. p.33-44.
  • EZPELETA, J.; ROCKWELL, E. A Construção social da escola. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v.66, n.252, p.106-120, jun.1985.
  • ________. Escuela y clases subalterneas. In: IBARROLA, M.; ROCKWELL, E. (orgs.) Educación y clases populares en América Latina México: DIE, 1985a. p.195-215.
  • JARES, X. R. El Lugar del conflicto en la organización escolar. Revista Iberoamericana de Educación, Madrid, n.15, p.53-74, 1997.
  • KUENZER, A. Z. A Educação profissional nos anos 2000: a dimensão subordinada das políticas de inclusão. Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n.96, p.877-910, 2006.
  • LIMA, L. C. A Escola como organização educativa São Paulo: Cortez, 2003.
  • MARTINS, J. S. A Imigração e a crise do Brasil agrário São Paulo: Pioneira, 1973.
  • POWER, S.; WHITTY, G. Mercados educacionais e a comunidade. Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n.84, p.792-816, 2003.
  • SANTOS GUERRA, M. A. La Luz del prisma para comprender las organizaciones Málaga: Alijibe, 1997.
  • VARONE, F. De l'irrationalité institutionnelle de la nouvelle gestion publique. Les Nouveaux cahiers de l'Institut Universitaires d'Études du Développement, Genebra; Paris, n.8, p.125-139, 1998.
  • WEST, A.; PENNELL, H. How new is new labour? The quasi-market and english schools 1997 to 2001. British Journal of Educational Studies, n.50, p.206-224, 2002.
  • WORLD BANK. Structural adjustment programmes Washington, 1987. mimeo
  • ZIBAS, D. M. L. O Ensino técnico a partir da década de 1990: a experiência cearense. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2007. (Textos FCC, 27)
  • ________. A Reforma do ensino médio no Ceará e suas contradições. Cadernos de Pesquisa, v.35, n.124, p.201-226, jan./abr.2005.
  • 1
    . A iniciativa foi oficialmente justificada pelo fato de que a maioria das escolas técnicas era mal estruturada e mal equipada. Todavia, os poucos bons cursos também foram extintos. A única exceção foi o curso de enfermagem administrado por tradicional escola de nível médio, de Fortaleza, que, graças, principalmente, à resistência de professores e alunos, sobreviveu à decisão governamental. Dezessete escolas normais, em vista de sua especificidade, também escaparam da política de erradicação dos cursos profissionalizantes e técnicos.
  • 2
    . Foi previsto que o repasse de verbas seria relacionado ao número de alunos inscritos a partir de 2007. No entanto, com a vitória da oposição nas eleições estaduais de 2006, o contrato com o Centec estava, em maio de 2007, sendo revisto, inclusive com a possibilidade de "federalização" de algumas escolas.
  • 3
    . Em São Paulo, o Centro Estadual de Educação Técnica e Tecnológica Paula Souza tem, como autarquia, um
    status institucional que, em certa medida, se assemelha ao Centec, constituindo também um canal por onde avança a privatização do espaço público (Bueno, 2007).
  • 4
    . Todos os sujeitos da pesquisa foram informados dos objetivos do estudo e se apresentaram voluntariamente para participar como fontes de informação. As dificuldades apontadas quanto ao funcionamento da escola foram discutidas com gestores e com um grupo de docentes que se mostrou interessado nos resultados. Houve o compromisso de não divulgação da identidade da escola ou dos depoentes.
  • 5
    . Foi considerada evasão a diferença entre os matriculados em 2004 e os concluintes em 2006, porque, segundo informações da secretaria da escola, não houve, nesse período, qualquer retenção ou reprovação.
  • 6
    . Foi registrada pelo menos uma exceção: professora que fazia esforço para que os trabalhos de assessoria que assumia servissem também de atividade prática para os alunos, levando-os para o campo aos sábados.
  • 7
    . Em 2007, esse procedimento estava em revisão, em vista de exigência do MEC, como requisito para o credenciamento dos cursos superiores de tecnologia.
  • 8
    . Essa característica do alunado dos cursos técnicos chegou a confundir uma das coordenadoras entrevistadas, que afirmou ser obrigatória, para admissão no nível técnico, a conclusão do ensino médio.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2008

    Histórico

    • Aceito
      Jan 2008
    • Recebido
      Abr 2007
    Fundação Carlos Chagas Av. Prof. Francisco Morato, 1565, 05513-900 São Paulo SP Brasil, Tel.: +55 11 3723-3000 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: cadpesq@fcc.org.br