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Órfãos tutelados nas malhas do judiciário (Bragança-SP, 1871-1900)

Tuteled orphan in the entanglements of the judiciary (Bragança-SP, 1871-1900)

Resumos

Este artigo analisa autos de tutoria e contrato de órfãos pobres e desvalidos, entre 1871 e 1900, do Poder Judiciário da Comarca de Bragança Paulista, e identifica situações que envolvem exploração do trabalho de menores de idade, violência e maus-tratos. São rastreadas as iniciativas educacionais para esse grupo de crianças e adolescentes, associadas às relações de trabalho que se estabeleceram entre elas e seus tutores. Com base nas práticas da administração da Justiça, uma vez que os órfãos ficavam sob sua jurisdição, verifica-se de que forma se processava o acesso à educação dos menores e os mecanismos de controle sobre a infância pobre no momento de conformação do trabalho assalariado no país. Notadamente, é nessa época que crianças e adolescentes pobres, desvalidos, passam a ser vistos mais pontualmente. Isso porque a crença no trabalho para as classes pobres, a fim de evitar a marginalidade, ia ao encontro do discurso da carência de mão de obra, relacionado às visões sobre o trabalho que estavam sendo construídas no momento da abolição/imigração.

CRIANÇAS; TRABALHO INFANTO-JUVENIL; VIOLÊNCIA; EDUCAÇÃO


The present article analyzes records of the Judiciary in the District Court of Bragança Paulista, regarding orphan's tutelage and labor contracts for poor and vulnerable children between 1871 and 1900. It identifies situations involving the exploitation of adolescent and child labor, violence, and mistreatment. It tracks education initiatives which are related to the work relations between children and adolescents and their guardians. Based on Judiciary practices, as orphans were under its jurisdiction, it shows how the access to education by these children was processed, as well as the mechanisms of control of poor children when wage employment arise in Brazil. That was notably the time when these poor and vulnerable children and adolescents started to be observed on more carefully since the belief in the efficiency of providing labor for the poor classes in order to avoid delinquency was related to the discourse on the lack of labore and the conceptions of work developed at the time of abolition of slavery/immigration.

CHILDREN; ADOLESCENT AND CHILD LABOR; VIOLENCE; EDUCATION


TEMAS EM DESTAQUE

TRABALHO INFANTO-JUVENIL E EDUCAÇÃO

Órfãos tutelados nas malhas do judiciário (Bragança-SP, 1871-1900)1 1 . Texto produzido no âmbito do projeto Infância e Educação na História: temas e fontes, com apoio do Conselho Nacional de Pesquisas Tecnológicas – CNPq –, e sob a coordenação de Kuhlmann Jr., e elaborado com base na dissertação de Bastos (2005).

Tuteled orphan in the entanglements of the judiciary (Bragança-SP, 1871-1900)

Ana Cristina do Canto Lopes BastosI; Moysés Kuhlmann Jr.II

IResponsável pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Escola para Formação e Capacitação Profissional da Fundação Casa e Doutoranda da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, anacriscanto@yahoo.com.br

IIProfessor da Universidade São Francisco e Pesquisador do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, mkuhlmann@pq.cnpq.br

RESUMO

Este artigo analisa autos de tutoria e contrato de órfãos pobres e desvalidos, entre 1871 e 1900, do Poder Judiciário da Comarca de Bragança Paulista, e identifica situações que envolvem exploração do trabalho de menores de idade, violência e maus-tratos. São rastreadas as iniciativas educacionais para esse grupo de crianças e adolescentes, associadas às relações de trabalho que se estabeleceram entre elas e seus tutores. Com base nas práticas da administração da Justiça, uma vez que os órfãos ficavam sob sua jurisdição, verifica-se de que forma se processava o acesso à educação dos menores e os mecanismos de controle sobre a infância pobre no momento de conformação do trabalho assalariado no país. Notadamente, é nessa época que crianças e adolescentes pobres, desvalidos, passam a ser vistos mais pontualmente. Isso porque a crença no trabalho para as classes pobres, a fim de evitar a marginalidade, ia ao encontro do discurso da carência de mão de obra, relacionado às visões sobre o trabalho que estavam sendo construídas no momento da abolição/imigração.

CRIANÇAS – TRABALHO INFANTO-JUVENIL – VIOLÊNCIA – EDUCAÇÃO

ABSTRACT

The present article analyzes records of the Judiciary in the District Court of Bragança Paulista, regarding orphan's tutelage and labor contracts for poor and vulnerable children between 1871 and 1900. It identifies situations involving the exploitation of adolescent and child labor, violence, and mistreatment. It tracks education initiatives which are related to the work relations between children and adolescents and their guardians. Based on Judiciary practices, as orphans were under its jurisdiction, it shows how the access to education by these children was processed, as well as the mechanisms of control of poor children when wage employment arise in Brazil. That was notably the time when these poor and vulnerable children and adolescents started to be observed on more carefully since the belief in the efficiency of providing labor for the poor classes in order to avoid delinquency was related to the discourse on the lack of labore and the conceptions of work developed at the time of abolition of slavery/immigration.

CHILDREN – ADOLESCENT AND CHILD LABOR – VIOLENCE – EDUCATION

Este artigo analisa resultados obtidos em pesquisa de autos cíveis de tutoria e contrato de órfãos da Comarca de Bragança Paulista, Estado de São Paulo, com a intenção de compreender as implicações educacionais para crianças e adolescentes órfãos e pobres, a partir de cinco anos de idade, decorrentes das práticas da Justiça para com essa população, no final do século XIX e início do século XX2 2 . Comarca é uma das circunscrições judiciárias em que se divide o território de um estado da União, sob a jurisdição de um ou mais Juízes de Direito. O processo cível, diz-se do que se instaura para resolver conflitos envolvendo relações de ordem privada, enquanto processo crime, diz-se do que se instaura a fim de apurar a prática ou não de um delito penal (Neves, 1978, p.s/n). .

Essa documentação integra um acervo composto por aproximadamente 80 mil processos, distribuídos entre 1798 e 1980, pertencentes ao Fundo do Poder Judiciário da Comarca de Bragança (SP), custodiado pelo Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa em História da Educação da Universidade São Francisco – CDAPH/USF –, em Bragança Paulista. Esse é um dos poucos acervos dessa natureza no Estado de São Paulo, constituindo rica fonte de pesquisa, baseada em casos concretos e a sua análise não se circunscreve apenas à localização geográfica das ocorrências, mas ao seu valor históricocultural. Certamente, o que ocorreu em Bragança Paulista, guardadas suas particularidades, não se desvincula de todo o processo histórico da sociedade brasileira, e demonstra uma prática que, ainda que tenha sido regionalizada, configura, inequivocamente, uma resposta à nova ordem social e política que surgia no período em estudo.

A terminologia "auto" significa o conteúdo documental gerado durante o processo. É o conjunto ordenado das peças de um processo judicial ou administrativo. E "processo" é o conjunto de procedimentos adotados na administração da Justiça até a sentença; é a unidade documental em que se reúnem oficialmente documentos de natureza diversa, no decurso de uma ação administrativa ou judiciária, formando um conjunto materialmente indivisível (Camargo, Belloto, 1996).

A análise dessas fontes é trabalhosa, pois são documentos textuais manuscritos com tinta ferrogálica, a qual costuma esmaecer ou até desaparecer com o passar do tempo, e quando aplicada em quantidade excessiva, pode borrar a escrita. São costurados com barbante e, às vezes, presos com grampos de metal que oxidam o papel. O número de páginas é variado. Em alguns casos são compostos por mais de um volume. Na capa, vem definido o tipo de auto, as partes envolvidas e a autuação que abrirá o processo. A primeira página indica os procedimentos para as práticas necessárias ao andamento do recurso em questão.

Além das dificuldades de leitura, ressalta-se a aridez desse conjunto documental, por se tratar de manuscritos com organização da escrita e ordem discursiva de um outro tempo histórico. Os processos do Judiciário constituemse de textos produzidos e lidos por juízes, advogados, promotores e escrivães, dentre outros funcionários do Judiciário, raramente lidos pelas demais partes interessadas, ou seja, réus, vítimas e suplicantes.

É importante esclarecer que, no período em questão, intervinham no processo orfanológico o Juiz, o Escrivão e o Curador Geral dos Órfãos, assim como as pessoas interessadas no feito, diretamente ou por seus representantes. Porém, "só havia juízes privativos dos órfãos na Comarca da capital. Em cada Comarca do estado havia um Juiz de Direito com atribuições de Juiz do civil, do comércio, do crime, da provedoria, dos órfãos e ausentes" (Toledo, 1912, p.5).

"Tutoria" e "tutela" são palavras que aparecem na capa dos autos como definidoras do tipo de processo em curso. A palavra tutoria é usada com muito mais frequência, embora defina o exercício da tutela. Segundo Rodrigues Nunes, tutoria "diz-se ao cargo ou da autoridade de tutor", enquanto tutela é o "encargo civil que a lei confere a alguém juridicamente capaz para governar e proteger a pessoa do menor que se acha fora do pátrio poder, administrar seu patrimônio e representá-lo nos atos da vida civil" (1997, p.544).

No livro Primeiras linhas sobre o processo orphanologico, o autor considera que esse procedimento, ou seja, a tutela, não deve ser voltada às questões relacionadas somente ao "inventário e partilha de bens [...] é também o de outras cousas que interessem as mesmas pessoas sujeitas a jurisdição dos Juízes de Órphãos, como a renovação de tutores, curadores e outros" (Carvalho, 1915, p.12).

A legislação previa o tratamento diferenciado para órfãos ricos e pobres, mas a documentação tem demonstrado que, até meados do século XIX, a atenção de Juízes de Órfãos e tutores esteve voltada aos órfãos ricos:

Aquelles que voluntariamente se offerecem para tutores, e principalmente dos órphãos ricos, devem ter-se por suspeitos, pois é raro que alguém queira sujeitar-se a incommodos e trabalhos penosos por impulsos de benevolência [...] e o citado Guerreiro acrescenta: que tendo visto disputar muitas vezes a preferência na tutela dos órphãos ricos, nunca viu acontecer o mesmo a respeito dos pobres, de quem tratam de excusar-se. (Carvalho, 1915, p.218)

Esse interesse na tutela de órfãos ricos tinha como motivo subjacente, a possibilidade de se usufruir os bens dos menores. Somente a partir das últimas décadas do século XIX é que se verifica a disputa pelos órfãos pobres, marcadamente pelo interesse na exploração de sua mão de obra. De acordo com Toledo:

Os tutores são obrigados a cuidar da creação dos seus pupilos; a dar-lhes educação e instrução convenientes, tendo em vista sua aptidão e seus bens; e mandarlhes ensinar algum offício, ou dalos á soldada si forem pobres, com autorização do juiz. (1912, p.176, grifos nossos)

A tutela foi progressivamente utilizada, acompanhada de outro mecanismo, o contrato de soldada – empregado anteriormente para a contratação dos serviços de filhos de escravos –, e definido pela tutela dativa que, segundo a legislação, deveria ser dada ou imposta pelo juiz. A "soldada", segundo Pedro Nunes, é a "remuneração de criados, operários e trabalhadores" (1956, p.405). Nos processos, o contrato de soldada era o documento assinado pelo contratante pela locação dos serviços dos órfãos intermediada pelo Poder Judiciário.

A tutela não impunha pagamento pela prestação de serviço dos menores. A considerar esse fato, o contrato de soldada acabou por beneficiar os menores ao garantir a remuneração do trabalho, ainda que o recebimento do valor depositado no cofre dos órfãos só pudesse ser resgatado quando se atingisse a maioridade ou por emancipação pelo casamento. No entanto, não era incomum a ocorrência de falta de pagamento por parte de contratantes negligentes, que assim burlavam a lei.

Os autos de tutoria seguiram procedimentos diferentes entre si e o tipo de documentação não é o mesmo em todos os processos. Por exemplo, a partir de 1896, apenas em parte dos processos se explicita a obrigatoriedade de o tutor mandar o órfão para a escola, em atenção ao regulamento da Instrução Pública, referente às leis n.88, de 8/9/1892, e n.169, de 7/8/1893, e ao Decreto n.218, de novembro de 1893, (Reis Filho, 1998, p.23). Os recibos dos depósitos feitos no cofre dos órfãos também não aparecem sempre, embora fosse obrigação do contratante depositar o valor das soldadas combinadas entre o juiz e o tutor.

Os juízes estipulavam um valor a ser pago em troca dos serviços prestados pelos órfãos. Esses valores variavam, ao que tudo indica, de acordo com a idade e o sexo da criança ou adolescente, como demonstra o caso dos irmãos Martinho, 11 anos, e Sebastião, 14 anos. Os dois foram tutelados e contratados pelo mesmo tutor pelo prazo de dois anos. Martinho receberia pela prestação de serviços a quantia de 86 mil réis3 3 . Consideramos importante esclarecer que não fica claro no auto se as soldadas deveriam ser pagas mensalmente ou anualmente. Fica claro, entretanto, que os contratos deveriam ser renovados de dois em dois anos, ocasião em que se verificavam as irregularidades relacionadas ao não pagamento que ocorriam frequentemente. . Enquanto seu irmão Sebastião, três anos mais velho, teria direito a um valor maior, 108 mil réis, que seriam depositados no cofre dos órfãos (1918, caixa 165, pasta 5). Neste caso, os órfãos permaneceram com o mesmo tutor até completarem a maioridade, quando resgataram o valor das soldadas do cofre dos órfãos.

Já no caso de Benedita, 15 anos, e sua irmã Lourdes, 13 anos, que tiveram seus serviços contratados dois anos antes do exemplo anterior, a soldada foi estipulada em 60 mil réis para ambas. Porém, não consta do auto nenhum recibo de depósito feito em favor dessas menores no cofre dos órfãos, o que pode significar que as soldadas não foram pagas. Observe-se que a contratante, Carolina Villaça, pode ter pertencido à mesma família do juiz de direito, Manoel José Villaça, que teve papel fundamental nos despachos envolvendo tutoria e contrato de órfãos na Comarca de Bragança, no período em que essa prática teve aumento significativo, ou seja, a partir de 1894, conforme se verifica na documentação pesquisada (1916, caixa 179, pasta 5).

A TUTELA E AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E POLÍTICAS

Desde 1871, quando foi instituída a Lei do Ventre Livre, desenvolvese uma nova relação entre empregadores e trabalhadores. Chalhoub (1986) aponta que não havia carência de trabalhadores e sim dificuldade de ajustálos às condições concretas de luta pela sobrevivência. "A oferta abundante aumentava a competição entre os trabalhadores, dificultava a organização das lutas reivindicatórias" (p.37), sem contar os milhares que não se integravam a esse "mercado" e sobreviviam como ambulantes, mendigos, biscateiros. Desse modo, antes de entrarem em vigor as leis contra a escravidão, criaram-se mecanismos com vistas a manter o controle do trabalho compulsório.

Não se tratava apenas de um modo de controle sobre os libertos ou de conservação em seu poder, por parte dos senhores, de uma parcela de mão de obra a ser explorada gratuitamente. "Tratava-se, principalmente, de uma redefinição nas relações sociais, intimamente ligada às transformações que iam ocorrendo na sociedade brasileira" (Alaniz, 1997, p.20).

Embora a abolição da escravidão tenha sido indiscutivelmente um grande benefício, a situação econômica dos ex-escravos não se alterou de forma significativa, deixando-os mergulhados em situação de extrema pobreza. Nota-se, na documentação, que um número significativo dos menores tutelados e assoldados eram filhos de ex-escravos. Com a lei da abolição da escravidão, de 13 de maio de 1888, o uso do trabalho infantil nas residências pode ter sido um recurso de substituição da mão de obra exercida antes por escravos adultos que, uma vez livres, procuravam outros meios de vida.

Antonio Evaristo de Moraes comenta que nem sempre um pretor, ou seja, um delegado, tinha para onde enviar crianças que eram apanhadas em situação de abandono. Assim sendo, restava-lhe encaminhar para decisão judicial:

Para o pretor. Mas se o pretor não dispõe d'um asylo, d'um recolhimento. Nessa conjunctura apparece o recurso extremo, aliás sómente applicavel em se tratando de meninos já um tanto crescidos: o juiz dá o menor à soldada, entrega-o a um particular que se obriga a exercer funções entre as de patrão e as de tutor. Para os menores essas entregas à soldada são na maioria dos casos, sobrevivencia do regime escravocratico. Quem chamar o systema usado em muitas pretorias nova escravidão não erra nem calunia. (Moraes, 1900, p.46, grifo nosso)

Assim, pode-se considerar que as tutelas e contratos de menores de idade apresentavam-se como uma forma jurídica legitimadora da manutenção do trabalho compulsório de crianças e jovens órfãos e pobres e se tornaram prática muito frequente em razão da ganância de proprietários, que perceberam nessa população a oportunidade de utilizar-se de mão de obra barata e, por vezes, gratuita.

No Gráfico 1, observa-se um aumento significativo no número de autos a partir de 1894, ano em que aparece a denominação "tutoria e contrato". Antes disso, utilizava-se "tutoria", "tutoria dativa", ou "justificação para tutoria de filhos". A ausência de dados sobre os anos de 1890 a 1893, assim como a diminuição de autos nos anos de 1898 e 1899, podem estar associadas à limitação das fontes, ou seja, a uma falha na sequência dos anos, ou mesmo ao extravio dos documentos.


Esse crescimento no biênio 1894-1896 associa-se às transformações ocorridas no Judiciário, com a mudança para o regime político republicano, quando se identifica a exigência de que as pessoas que estivessem utilizando os serviços de órfãos sem nenhum contrato deveriam comparecer perante o juiz, com a finalidade de regularizar a situação, conforme se verifica nas descrições a seguir:

Diz João Batista de Brito que tendo há poucos dias, contratado com sua criada, Rosa da Conceição, a qual veio acompanhada de um seu filho menor, de nome Emílio, natural e batizado em Atibaia, vem em virtude do ofício por vossa ordem publicado na Gazeta de Bragança, com data de sete do corrente, respeitosamente requerer-vos que digneis nomear o suplicante tutor do dito órfão. (1894, caixa 114, pasta 4)

Diz José Avelino de Oliveira, que desejando contratar os serviços do órfão Dionízio, filho natural da finada Theodora, ex-escrava, cujo órfão acha-se presentemente em sua companhia. O suplicante oferece os precisos documentos e pede a V.Ex.ª se digne mandar proceder na forma da lei, afim de que lhe seja passado o referido contrato. (1894, caixa 114, pasta 2)

Observa-se, com base nos exemplos, que houve a iniciativa da Justiça para regularizar a situação dos órfãos. Entretanto, nem sempre se cumpriu a lei, como em 1908, quatorze anos depois, quando se encontrou uma petição do Curador Geral dos Órfãos, para que o juiz intimasse Felisbino Domingues Faria, que mantinha o órfão Benedito Caetano, de 13 anos, trabalhando em sua casa, sem contrato (1908, caixa 120, pasta 4).

Outro fator relacionado ao alto número de contratos refere-se ao crescimento populacional em Bragança Paulista, no final do século XIX, "relacionado a um momento de euforia da cultura cafeeira na região", quando ocorre também "o desenvolvimento urbano, a diversificação do sistema de transporte, a expansão do comércio interno, do setor de serviços, do sistema de crédito, da produção e consumo de energia etc." (Bragança Paulista, 1998, p.78).

A crença na educação pelo trabalho para as classes menos favorecidas, como forma de evitar a marginalidade, ia ao encontro do discurso de falta de mão de obra que se professava no período. A mão de obra dos órfãos pode ter sido utilizada para além do trabalho doméstico, também na lavoura, no comércio e até mesmo nas fábricas que existiam no período, tais como: fábrica de chapéus, de macarrão, de velas de cera, de carroças, de fogos de artifício, de cerveja e outras bebidas e de sabão. Naqueles últimos anos do século XIX, Bragança contava com um comércio significativo de secos e molhados, encontrando-se, dentre outros: 48 estabelecimentos com vendas a varejo e 10 por atacado; 23 lojas de fazendas e armarinho; 13 açougues; 12 sapatarias. Havia também a prestação de serviços, como: alfaiates, costureiras, ferreiros, serralheiros, carpinteiros e construtores de obras (Maia, 1899, p.175).

Nos autos analisados, observam-se crianças e adolescentes que ingressavam para o mundo do trabalho compulsório com idade a partir de cinco anos. Em algumas vezes, a cor era especificada, em outras não, bastando apenas a sua condição de pertencer às famílias pobres.

Infância, adolescência, juventude, são palavras que não figuram nos documentos estudados para esta pesquisa, nem na legislação da época. O Poder Judiciário referia-se a pupilos, menores e órfãos. A palavra criança apareceu uma vez não nos autos, mas em um inquérito policial que tratava de apurar um caso de infanticídio ocorrido em 1888:

Levo ao conhecimento de V. Sra. que hontem, as seis horas da tarde, José Cardoso de Moraes, morador neste bairro, deo-me parte que havia encontrado, no ribeirão, próximo a sua casa, uma criança morta, já em estado de putrefação, a qual foi encontrada pelo mesmo, e constando-me que dita criança seja de sua filha Cândida, moça solteira (menor de dezessete anos, conforme documento), que se achava grávida, como é público, sendo tal fato indício de um crime previsto no artigo 198 do nosso código crime [...]. (1888, caixa 103, pasta 5, grifos nossos)

Pode-se aventar que a palavra criança era utilizada pelo Judiciário apenas para idades mais tenras, uma vez que nos autos de tutoria e contrato as crianças a partir dos cinco anos de idade eram tratadas como menores ou órfãos.

A infância, desde o Período Colonial, era tratada judicialmente pelas normas estabelecidas no Código Penal, que seguia o conjunto de leis proposto nas Ordenações Filipinas. Não existiam leis que tratassem somente das crianças. Portanto, elas eram passíveis das mesmas penas imputadas aos adultos. Essa característica perdurou até 1830, quando entrou em vigor o Código Penal que definiu que os menores de 14 anos não seriam julgados como criminosos, com a ressalva de que se tornariam imputáveis se ficasse provado que agiram com discernimento. A Resolução de 31 de outubro de 1831 estabeleceu que "menores são todos aquelles, homens ou mulheres, que ainda não completaram vinte e um annos de edade". E, ainda, que "os menores ou são púberes ou impúberes. Púberes são as mulheres maiores de doze annos e os homens maiores de quatorze". Os impúberes, portanto, "são os que não attingiram a edade de doze annos, si mulheres, e de quatorze si homens" (Toledo, 1912, p.152).

O critério de puberdade foi estabelecido pelo Direito Romano com o objetivo de determinar castigos mais leves quando as crianças cometessem alguma infração. Aos impúberes, portanto, caberiam as penas mais suaves.

Essas leis vigoraram até 11 de outubro de 1890, quando foi promulgado o primeiro Código Penal da República. Essa legislação alterou a divisão etária e as crianças com até 9 anos de idade, consideradas impúberes, tornaram-se inimputáveis. O critério de discernimento foi utilizado para imputar penas às crianças consideradas delinquentes, entre as idades de 9 a 14 anos. A partir de 14 anos, recebiam-se penas de acordo com a infração praticada (Soares, 1910).

Vale lembrar que, nesse período, conforme aponta Evaristo de Moraes (1900), por "falta de abrigos" e pela ausência de mecanismos voltados a protegê-los, os menores imputáveis, além dos castigos recebidos, cumpriam penas ao lado dos adultos e não contavam com atendimento adequado à sua faixa etária.

A TUTELA E AS RELAÇÕES ENTRE O JUDICIÁRIO E A FAMÍLIA

As crianças e adolescentes presentes nos autos de tutoria e contrato de órfãos estudados para esta pesquisa pertenciam a famílias de baixo extrato social, ou seja, desvalidas; alguns eram filhos de ex-escravos e, em muitos casos, considerados órfãos, ainda que tivessem mãe ou mesmo pai, o que pode significar que, no âmbito judicial, para definir sua condição de orfandade, bastava que a criança pertencesse a uma família sem recursos.

Não só a rua representava um espaço de risco, mas a própria família, se considerada incapaz, inclusive financeiramente, perdia o direito ao pátrio poder e a legislação permitia que o juiz tutelasse e contratasse seus filhos.

As mães, tanto as escravas quanto as não escravas, não tinham o direito de exercer o pátrio poder sobre seus filhos, que só lhes foi dado a partir de janeiro de 1890, pelo artigo 92, da lei 181, do Código Penal. Portanto, nas formas da lei, cabia ao pai a decisão sobre a situação civil dos filhos. Este fato parece explicar o tratamento de órfão dado pela Justiça aos menores que, em sua maioria, considerando a documentação, tinham mãe. Entretanto, mesmo após a concessão do direito ao pátrio poder para as mães, os menores pobres continuaram a ter o tratamento de órfãos e as tutelas e contratos de seus serviços chegaram a se intensificar, a partir de 1894.

Juridicamente, a situação de orfandade é atribuída aos filhos que perderam os pais por falecimento de ambos ou de um deles. O que se verifica nos autos é o uso do termo de forma generalizada para identificar filhos de famílias sem recurso. Órfão passou a designar não só os menores que perdiam os pais por falecimento, mas também os que pertenciam a famílias desvalidas. A concepção de pobreza passa a ser vinculada à marginalidade muito mais do que ao fator da desigualdade social e de injustiças cometidas contra as camadas menos favorecidas da população.

Há exemplos de menores órfãos dados às tutelas e contratos de soldadas que viviam em companhia da mãe, sendo o pai tratado como incógnito, sem que houvesse indicação da verificação de sua existência por parte da Justiça, o que pode ter facilitado as decisões de tutelar e contratar serviços. Como no caso do órfão Francisco, de 12 anos de idade, filho de Clementina Maria de Jesus, em que, após terem sido realizados todos os procedimentos de tutoria e contrato, com o pai considerado incógnito, este entra com escritura de reconhecimento de paternidade:

Bento de Oliveira da Silva Leme, tendo reconhecido por seu filho ao menor Francisco, filho de Clementina Maria de Jesus, como prova com a inclusa escritura pública, vem respeitosamente requerer a V.EX.ª se digne mandar que se lhe entregue o seu referido filho, cujos serviços, segundo consta estão contratados com o cidadão Timoteo Pereira de Araújo. 02 de março de 1895. (1895, caixa 117, pasta 9)

Vale notar que esse cidadão era membro de uma família que ocupava certa posição social na cidade – conforme se verifica na documentação, a família Leme consta como importante na época – assim, seu requerimento foi atendido. Já, em outro caso de reconhecimento de paternidade, ocorreu o seguinte:

Diz Manoel Theodoro do Espírito Santo, cidadão brasileiro com profissão de lavrador, residente nesta Comarca que no exercício do direito conferido pela Ord. [Ilegível] Liv. 2, tit 35, & 12 e pelo decreto de 2 de setembro de 1847, reconheceu solenemente pela escritura pública inclusa à sua filha natural Benedita do Espírito Santo que houve em soluto et soluta com Luiza Augusta do Amaral; e como esse fato gera uma nova relação jurídica entre o suplicante e sua filha, sendo sua primeira e imediata consequência não considerar-se órfã a filha do suplicante (como ensina Lobão, Obrig. Princp.& 234), porque ella tem pai; nem tão pouco poderá tutella que d'ora em diante continuar sobre a jurisdição do meritíssimo juiz de órphans, nem ser mantida a impóz justamente sua anterior condição [...]. (1895, caixa 117, pasta 3)

O reconhecimento de paternidade foi negado pelo Juiz, que procedeu a tutoria e contrato da órfã alegando que o pai não tinha condições de criá-la e educá-la.

O juizado de órfãos passou a desempenhar seu papel interferindo, sobretudo, nas relações envolvendo menores pobres. Pode-se observar que o testemunho dos próprios menores era ignorado, pois a sua fala não era permitida, ao que tudo indica, nem pelos juízes, nem pelos tutores ou familiares. Exceção que se verifica apenas em processos envolvendo violência sexual, em que, no auto de corpo de delito, encontram-se as perguntas ao menor, conduzidas de acordo com elaboração prévia, sem respeitar cada caso individualmente.

Nota-se que havia uma disputa pela contratação dos menores, como no caso de Vicência, de 14 anos:

Diz Francisco Gonzaga de Vasconcelos que, chegando ao seu conhecimento que José Manuel de Vasconcelos, requereu contrato dos serviços da órfã Vicência, filha de Felicia de tal, ex-escrava, vem o suplicante ponderar a V.Exa. o seguinte: Essa órfã foi nascida e criada na casa do suplicante e, onde sempre foi tratada com todo o desvelo e portanto, parece que deve ter ele suplicante preferência a tutela [...]. (1895, caixa 119, pasta 10)

Assim, além da disputa pelos órfãos, verifica-se a denúncia e a tentativa da legitimação de filhos, como recurso, ao que tudo indica, para garantir a permanência dos menores junto àqueles que utilizavam os seus serviços. A órfã Maria, de 8 anos de idade, que trabalhava sem contrato em casa de família, teve a sua situação denunciada por outro candidato que pretendia contratar seus serviços. Diz o auto: "João Batista Lisboa desejando contratar os serviços da órfã Maria, que se acha sem contrato prestando serviços em casa de José Vicente [...]". Diante da denúncia o juiz autoriza o contrato da órfã com o denunciante, mas em seguida é José Vicente Ferreira que alega ser o pai de Maria e, apresentando escritura de legitimação de filhos, requer a anulação do contrato assinado por João Batista (1895, caixa 119, pasta 5).

A disputa pelos órfãos dever-se-ia ao fato de que a utilização do trabalho infantil permitia vantagens ao contratante, uma vez que os valores das soldadas estipuladas eram baixos e a exploração poderia ser bem maior, o que aumentaria os lucros. A escritura de legitimação de filhos, ao contrário de representar um bem para o menor, poderia significar sua manutenção na condição de mero prestador de serviço, sem nenhum pagamento. No exemplo a seguir verifica-se a fala do próprio juiz restringindo esse procedimento:

Tendo-se já repetido o abuso de indivíduos reconhecerem por escritura pública, filhos que não sam seos, levados apenas pela ganância de uzufruírem os serviços dos órfãos o qual por sua condição não tem capacidade para escolher ou aceitar o estado civil que por ventura eu lhe queira dar, além do acto segundo e de qual [ilegível], praticado em detrimento do mesmo orfão, o requerente justifique por qualquer meio de prova em Direito querendo achar-se em condições de ter em sua companhia a menor, bem como de poder aguentar encargo de sua creação e educação. (1895, caixa 117, pasta 3)

A questão dos menores abandonados, ou apenas pobres, não escapou aos conflitos envolvendo o Judiciário e a população. Situações de tensão e confronto são observadas, seja da parte de mães que não desejavam ter seus filhos sob a tutela de outros e burlavam as decisões da Justiça, sem entregar seus filhos aos candidatos a tutores, ou até mesmo fugindo com eles para escapar da apreensão; seja da parte dos tutores que, para burlar o pagamento da soldada estipulada por lei, alegavam ter o órfão se tornado desobediente e, por esta razão, não pretendiam ficar com ele, solicitando desistência da tutela e contrato e a dispensa do pagamento da soldada, como no caso da menor Amélia, de dez anos, filha de ex-escravos:

Diz o suplicante Jacintho Domingues de Oliveira que, tendo assignado contrato dos serviços da órfã Amélia, com a clausula de pagar o duplo das soldadas estipuladas no caso de rescindir o contrato, sem motivo justificável, antes de terminado o prazo respectivo: vem requerer a V. Exa. se digne dispensá-lo de pagar o duplo dessas soldadas, apezar de ter antes do prazo rescindido o contrato, por isso o que fez pelos justíssimos e [ilegível] motivos que passa a expor: A órfã, desde muito, tem manifestado muitíssimo pouca vontade de prestar serviços ao suplicante, tanto que na sua ausência, não obedece a sua esposa, respondendo-lhe mal e não dá a menor importância as suas admoestações. O suplicante teve até agora paciência na esperança de melhorar o procedimento da mesma, mas, vendo que ela não se corrige, e não se importa com castigos morais; e, não podendo nem querendo fazer uso de castigos physicos, convenceu-se de que o melhor alvitre a seguir era fazer sahir de sua casa quem nella não queira estar, isto a bem da tranquilidade não só de sua família como da própria órfã, que, em outra casa, talvez possa viver melhor, melhor cumprindo com os seus deveres. (1896, caixa 120, pasta 4)

Neste caso, o Juiz de Órfãos dispensa o pagamento da multa. O parecer do Curador Geral dos Órfãos é favorável ao pedido de desistência do contratante e os autos são considerados conclusos pelo Juiz de Direito, sem que se mencione para onde a órfã foi encaminhada.

A petição, documento que dá início ao processo, partia sempre do interessado em contratar os serviços do menor e raramente a tutela era oferecida pela mãe ou pai desse, tendo sido encontrado apenas um caso em que, alegando falta de condições, a mãe solicita a intervenção do juiz. Quando o contrato era solicitado ao juiz, procedia-se à verificação, no cartório, se o menor em questão já possuía um tutor ou contratante. Não aparece na documentação o parecer da mãe, ou seja, se estava de acordo em tutelar ou contratar o filho. O que ocorre, frequentemente, é o que se nota no pedido a seguir:

Diz Antonio José Fagundes, residente neste município, que, tendo requerido em data de 14 do corrente a tutoria e contrato dos serviços do órfão Euphosino, filho de Emilia de tal, acontece que o Dr. Curador Geral dos órfãos, em sua resposta pede a presença da mãe do dito órfão; em vista disto vem o suplicante ponderar a V.Ex.ª que é impossível a presença da mesma, visto ser ela a primeira a ocultar-se afim de evitar a tutoria de seu filho. (1895, caixa 117, pasta 8)

Mesmo sem a mãe comparecer, o juiz autorizava a tutoria e contrato do menor, e o contratante tinha a segurança de poder utilizar-se de um outro recurso para conseguir a posse do dito órfão: o mandado de busca e apreensão despachado pela Justiça.

Diz Antonio José Fagundes que tendo contratado o órfão Eufosino [o nome ora aparece com PH, ora com F] no dia 17 do corrente, cujo órfão acha-se em companhia de Polycapo de tal conhecido por (Polyca Mandu) residente no bairro do Lopo deste Município e negando-se o mesmo a fazer a entrega do menor vos requer mandeis passar o competente mandado de entrega. (1895, caixa 117, pasta 8)

Em outro caso, o menor Florindo, de dez anos de idade, filho de Gertrudes Maria de Jesus, teve o contrato de seus serviços solicitado por Antonio José da Silva Ferraz. O pedido foi concedido pelo juiz e o contrato assinado em 19 de dezembro de 1896. No entanto, a mãe não entregou o filho:

Diz Antonio José da Silva Ferraz, deste município que tendo contratado a um mês os serviços do órfão Florindo, [...] sendo o contrato por dois anos, acontece que a mãe não tem querido entrega-lo, vem por isso o suplicante pedir-vos mandeis pessoas mandado para ser o órfão apreendido em qualquer parte onde se ache dentro da Comarca, visto como sendo, como é a mãe de vida duvidosa, não tem morada certa, pois que está ora em um bairro ora em outro e sendo ele apreendido lhe seja entregue; por ser justo o que pede. (1895, caixa 117, pasta 9)

Para legitimar o pedido de busca e apreensão feito ao juiz, o contratante alega ser a mãe "mulher de vida duvidosa", o que é acatado pela Justiça sem que seja verificado na documentação qualquer despacho no sentido de investigar o argumento do interessado, subtraindo-se à mãe o direito de permanecer com seu filho.

Há vários casos de mães que relutavam em entregar seus filhos para as tutorias e contratos. Algumas vezes fugiam com estes para outra cidade, ou ainda havia casos em que os próprios menores tomavam a iniciativa de fugir do domicílio dos patrões. O menor Zeferino, de nove anos de idade, que vivia com sua mãe Antonia, ex-escrava, teve seus serviços contratados em 19 de abril de 1895 e, no dia 25 do mesmo mês e ano, apareceu um pedido do contratante para que o juiz expedisse mandado de busca e apreensão, pois ele havia fugido, em companhia de sua mãe, para São José de Toledo, em Minas Gerais. Zeferino já estava frequentando a escola quando foi apreendido:

Aos seis dias do mês de maio do ano do nascimento deo Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e noventa e cinco, nesta freguesia de São José de Toledo, na Escola Pública ahi em cumprimento do mandado supra fiz a apreensão ao alunno Zeferino e entreguei a José Antonio de Simas. (1895, caixa 120, pasta 6, grifo nosso)

Além da resistência, nota-se o descaso da Justiça em relação à mãe, que se esforçava por ficar com seu filho e proporcionar-lhe alguma instrução, bem como a importância dada ao trabalho em detrimento da educação, visto que o menor foi apreendido dentro de uma escola e não há indícios de que tenha sido matriculado em outra. Após o prejuízo sofrido pela perda do convívio com a mãe e por ter sido retirado da escola, o contratante deixou de renovar o contrato dos serviços do menor, interrompendo o depósito das soldadas, conforme se observa no parecer do Curador Geral dos Órfãos:

Parece-me que o suplicante não tendo reformado o contrato dos serviços do órfão Zeferino, vencido há dois anos, deve pagar o duplo das soldadas vencidas pena em que incorreu, [...] e mais as soldadas que arbitro [...] pelo tempo em que, sem contrato, conservou em sua companhia o referido menor. (1895, caixa 120, pasta 6)

Não consta dos autos nenhum relatório sobre o acompanhamento desses menores, que uma vez estabelecidos nos locais em que trabalhariam, ficavam esquecidos até a ocorrência de algum evento que chegava ao conhecimento do Juiz dos Órfãos ou Curador Geral dos Órfãos. Portanto, as autoridades somente voltavam a se ocupar desses menores normalmente quando eram de interesse do contratante, tais como: pedido de renovação de contrato, que deveria ser feito de dois em dois anos; devolução do menor, quando considerado pouco prestativo ou inapto ao trabalho que lhe era proposto, e ainda solicitação para que fosse expedido o mandado de busca e apreensão quando este fugia do domicílio de seus senhores.

Um caso de tentativa de devolução pode ser verificado no caso do órfão Luiz, de 11 anos, filho de Emilia, ex-escrava, em que o contratante, em 22 de fevereiro de 1896, um ano após ter contratado os serviços do menor, alega o seguinte:

Diz José Pedroso de Moraes Leme Junior desta Comarca que tendo contratado em data de 19 de janeiro de 1895 os serviços do órfão Luiz, filho de Emilia ex-escrava de Eva Maria de Jesus, quer rescindir aquele contrato por ser o dito órfão muito doentio e pouco serviço por essa razão pode prestar, pelo que requer o tutor a V. Exa. se digne ordenar que feita a conta dos serviços prestados até hoje para ser recolhido a coletoria seja o dito contrato rescindido. (1895, caixa 119, pasta 4, (grifo nosso)

Nesse caso, o parecer do Curador Geral dos Órfãos foi desfavorável ao contratante:

Sou de parecer que entre o suplicante com as soldadas vencidas para o cofre dos órfãos, porém, quanto a recizão do contrato, entendo não ser razão suficiente aquella apresentada pelo suplicante e porisso me opponho-a essa pretenção. O suplicante apresentando o órfão ao juízo, este fará justiça, uma vez, verificado a sua fraqueza, reduzindo ou não as soldadas estipuladas no contrato rescindido. (1895, caixa 119, pasta 4)

Em 2 de março de 1896, no entanto, consta documento do contratante informando o juiz sobre a fuga do menino e, nesse caso, não entra com pedido de busca e apreensão. Por parte da Justiça não consta nenhum encaminhamento referente ao órfão, deixando-o à sua própria sorte.

A TUTELA E AS RELAÇÕES ENTRE TUTORES E TUTELADOS

De acordo com Toledo (1912, p.170), "o tutor era a pessoa a quem era imposto o encargo de cuidar da pessoa do menor", o que deveria incluir o seu bem-estar, acolhimento, educação e instrução. Evaristo de Moraes, em obra intitulada Creanças abandonadas: creanças criminosas, considerava que no trato com os órfãos, via de regra, o que se buscava era a sua inserção no exercício de uma ocupação, sem a preocupação de colocá-los sob os cuidados de famílias em que fosse possível estabelecer relações de afetividade: "não são as pessoas mais dignas, mais aptas moralmente, mais dotadas de affetividade familiar as que encomendam nos cartórios e aos juízes esses creadinhos baratos" (1900, p.46-47).

Pode-se perceber a ausência de afetividade com os órfãos nos autos em que ocorre a troca de tutores. A devolução do órfão ou a sua transferência para outro tutor acontecia, ao que tudo indica, por iniciativa do próprio tutor, salvo em caso de maus-tratos que se tornavam públicos e sofriam interferência por parte do Judiciário. O testemunho do menor era ignorado, pois não lhe perguntavam se queria a troca, se aceitava o novo responsável, ou qualquer opinião sobre o seu destino. A troca de tutores era frequente, bastando, para isso, alegar que o órfão era "preguiçoso" ou "doente", o que reforça a hipótese de ser o contrato de serviços o elemento determinante na relação de tutoria.

Em 1892, Antônio Joaquim de Mesquita Jr., requereu a tutela da sua afilhada, Clementina, com idade de 5 a 6 anos, mas 4 anos depois, "não lhe convindo mais por motivos independentes de sua vontade", solicitou a nomeação de outro tutor, embora desejasse manter o contrato de serviços (1895, caixa 117, pasta 6).

O Curador Geral não se opôs ao pedido, mas indicou que o próximo tutor fosse também o contratante dos serviços da órfã, o que veio a ocorrer com a tutoria e contrato passados para João Paulino de Souza Fernandes. Clementina contava então com nove anos de idade. Em 15 de outubro de 1901, encontra-se um termo de transferência de contrato para João de Mattos Pereira Godinho Jr. Em 8 de abril de 1907, consta novamente termo de declaração em que João de Mattos alega não mais querer ser o contratante e tutor. Em 10 de junho de 1907, tendo o Curador Geral da Comarca verificado em cartório que João de Mattos encontrava-se em atraso com as respectivas soldadas, nomeia para tutor de Clementina o mesmo cidadão que anteriormente desistiu da tutoria, Antônio Joaquim de Mesquita Jr. Dessa forma, os órfãos passavam de um tutor para outro, como mercadoria.

Além das questões envolvendo o trabalho compulsório dos órfãos, identificam-se também situações de violência contra as crianças tuteladas, em casos que envolvem defloramento, negligência em relação à saúde e ao vestuário. Algumas poucas vezes houve denúncia feita pelo próprio menor:

[...] a menor Maria da Conceição, vulgo Collecta, de idade presumível de treze para quatorze annos, pela mesma foi dito que ante hontem retirou-se da casa de Luiz Lopes de Oliveira a cujo serviço as achava como órfã contratada, foi a casa do Dr. Pedro Nolasco Xavier de Paula e d'onde pelo mesmo doutor foi hoje devolvida a este juizo, porque tendo sahido da casa do dito Luiz Lopez ilegível porque o mesmo não só a maltratava com pancadas como também não lhe dava o necessário vestuário, sendo que a roupa que ella tem consiste num vestido de xadrez, que custou a cento e oitenta reis o metro e numa camisa de algodaozinho de casto de doze vintens [...] sendo que ella tem um vestido de chita velho rasgado, duas camisas de algodão ilegível, e dois chales de algodão, e que tudo lhe fora dado por várias pessoas [...] (1889, caixa s/n)

A decisão sobre o destino dessas crianças ficava por conta do parecer de Juízes e Curadores de Órfãos, sem que sua opinião fosse considerada. Entretanto, cabe notar o espaço de conflito e as brechas na própria legislação para a sua defesa, visto que estava prescrita na Lei a obrigatoriedade do contratante em alimentar, vestir e cuidar da saúde do órfão.

Os processos apontam uma série de problemas enfrentados pela infância desvalida, tais como, excesso de trabalho, maus-tratos ou violência sexual cometidos, algumas vezes, pelo próprio tutor:

O Promotor Público e Curador Geral dos órfãos da Comarca, tendo recebido informações de que a menor Belmira se declara deflorada e como se trata de uma abandonada e miserável sem ninguém por si, vem requerer a V. Exa. mande proceder o exame médico na referida menor e abra inquérito a respeito do fato, sendo tomadas as declarações da mesma [...]. Belmira de sobrenome, idade e naturalidade ignorados, filha de Claudomira Maria moradora em Caxambú de onde veio a declarante em dezembro do ano passado, declarou que foi deflorada nesta cidade, em casa do senhor João Batista Grillo, onde se achava empregada em dia e hora que absolutamente não pode precisar nem si quer referir aproximadamente, pois de todo não se lembra; que o seu ofensor foi o próprio senhor João Batista Grillo [...] Em certa ocasião pela manhã achando-se a declarante acendendo o fogo na cozinha apareceu o referido João Baptista Grillo... que encostou-a na parede e quis deflorá-la não tendo no entanto conseguido por completo o seu intento[...]; que nessa ocasião a declarante sentiu pouca dor. Que era empregada também de João Grillo, Maria de tal a quem ela declarante relatou o fato. Que também sabe do fato, João, filho de Joaquim Nardy e o turco José Simão [...] Os três foram intimados a prestar declarações. Somente José Simão prestou depoimento e alegou não saber nada sobre o fato. (1894, caixa 114, pasta 3, grifos nossos)

O processo traz uma riqueza de detalhes sobre a violência sofrida pela menor revelando, de certa forma, abusos que eram frequentes no cotidiano dessas órfãs sem que se verifique nenhuma reparação ou cuidado pelo ocorrido. As investigações não chegaram ao fim: apenas um dos indiciados compareceu para prestar depoimento e o processo finaliza-se sem nenhuma conclusão.

Há casos de maus-tratos e abusos contra esses menores, praticados por pessoas com certa ascendência social e prestígio na comarca, sendo o desenrolar do processo quase nunca favorável às vítimas, como se pode verificar no inquérito policial envolvendo Nicolino Nacaratti, comerciante e morador no município de Bragança, empenhado em trazer progresso para a cidade – foi ele quem trouxe a telefonia, conforme se verifica no Anuário de Bragança de 1904. Esse cidadão figura por duas vezes em inquéritos policiais envolvendo menores. Um inquérito policial de 1888 traz denúncia de violência sexual contra a órfã Francisca, de 15 anos de idade, tutelada por Daniel Peluso e com seus serviços contratados por Domingues Cuoco. Embora a menor tenha confirmado o acontecimento, conforme exposto a seguir, Nicolino foi considerado inocente pelo fato de o exame de corpo de delito não ter comprovado o defloramento naquele momento.

Perguntada se foi deflorada no dia oito do corrente, por quem e como se deu o fato. Respondeu que no dia Sábado, oito do corrente, a tarde Nicolino italiano morador na esquina em frente a casa de Domingues casa onde mora para conversarem e saindo ela às nove horas da noite o referido Nicolino trepou pelo barranco e foi ter onde ela se achava, agarrou-a e deitando-a no chão a deflorou, apesar de gritar... Disse mais que não teve copula carnal se não com Nicolino pela primeira vez, e que no dia seguinte, Domingo, a pedido de Paulino, companheiro de Nicolino, saiu outra vez as nove horas da noite ao quintal e este pulando o barranco, também teve com ela respondente cópula carnal, forçando-a... (1888, caixa 105, pasta 2)

Em outro caso, envolvendo Belmira, de 12 anos de idade, a mãe, Januária Maria de Jesus, contratou verbalmente a menor para Nicolino Nacaratti, e tendo esta se arrependido, resolveu desfazer o acordo. Entretanto, o contratante recusou-se a devolvê-la, alegando que ficara viúvo e que só a devolveria quando encontrasse outra esposa. Neste caso, além do abuso de poder, fica claro o constrangimento a que estavam expostas essas menores que deveriam, por vezes, substituir as esposas para além dos trabalhos domésticos que deveriam dar conta (1895, caixa 117, pasta 3).

A EDUCAÇÃO DOS ÓRFÃOS TUTELADOS

Conforme se verifica quanto à educação escolar, os órfãos deveriam ser encaminhados para o aprendizado da leitura e da escrita, mas apenas aqueles que "tiverem qualidade para isso, até a idade de 12 anos", conforme se verifica em uma das atribuições dos Juízes dos Órfãos (Salgado, 1985, p.262, grifo nosso). Que "qualidade" deveria ter uma criança para que fosse considerada habilitada ao aprendizado da leitura e da escrita? Que critérios seriam adotados para que fosse estabelecida essa "qualidade"? Isso oferece claros indícios de que a educação era apenas para alguns.

Somente em 1892, é criada a lei n.88 e, em 1893, a lei n.169, que continham artigos sobre a obrigatoriedade de se enviar os tutelados para a escola. Há, em alguns autos, no termo de responsabilidade assinado pelo contratante, a indicação de que o órfão deveria ser encaminhado à escola; mas em outros não consta esse mesmo encaminhamento, o que deixa transparecer que não existia um rigor relacionado ao cumprimento desse item. Pode-se considerar que a educação escolar foi, em certa medida, sonegada às crianças e adolescentes pertencentes às camadas menos favorecidas, sobretudo em se tratando dos órfãos tutelados.

A título de exemplo, o auto a seguir foi o primeiro encontrado com a indicação de que Dionizio, filho natural de Theodora, ex-escrava, deveria ser enviado à escola:

O cidadão José Avelino de Oliveira tutor do órfão supra mencionado pelo juiz foram contratados os serviços do mesmo órfão com o referido tutor, pelo modo seguinte: Obrigou-se o contratante a pagar pelos serviços do órfão, pelo espaço de dois anos a contar desta data, a razão de oito mil réis ou noventa e seis mil réis por ano, pago em fins de cada ano. Obrigando-se mais a vestir, alimentar e tratar do órfão em suas enfermidades com médico e bothica e de conformidade com o decreto que deu execução a lei n.º 88 de 08 de setembro de 1892 e n.º 169 de 07 de agosto de 1893 artigo 200 e 201, ficando o mesmo contratante a mandar seu tutelado a escola, sob as formas da lei... (1894, caixa 114, pasta 2, grifo nosso)

Já Etelvina, de 13 anos, filha de Joaquina "de tal", que teve seus serviços contratados no ano seguinte, 1895, não recebeu o mesmo tratamento, embora a lei já estivesse em vigor. Não aparece em seu processo encaminhamento similar ao exemplo anterior, o que mostra a variação nos procedimentos, conforme consta do termo de responsabilidade anexado ao auto:

Ordenouci os serviços da referida órfã pelo modo seguinte: O prazo do contratante é de dois annos a contar desta data a razão de oitenta mil reis e pago no fim de cada anno, e ficando o dito contratante obrigado a vestir, alimentar a dita órfã e trata-la em suas enfermidades com médico e bothica tudo a sua custa, e correndo por conta do mesmo as despesas com o respectivo contrato. E aqui para constar fiz este termo em que assina com o juiz. (1895, caixa 117, pasta 7)

Em outra situação, a frequência da criança à escola e a intenção de propiciar uma formação profissional foram utilizadas como argumentos para buscar regularizar a situação de tutela:

Diz Olegário de Camargo Cunha desta cidade que tendo em sua companhia há seis anos mais ou menos o menor Amador de idade de dez anos, filho natural de Regina de tal que também mora em companhia do suplicante, e não tendo o mesmo menor tutor como mostra com as certidões que apresenta, vem requerer a V.Ex.ª se digne nomeá-lo tutor do mesmo. O referido menor está frequentando escola e pretende o suplicante mandar ensinar um ofício. Por ser de justiça [...] (1896, caixa 120, pasta 2)

CONCLUSÕES

No projeto de sociedade defendido pelas elites, ancorado nos padrões de racionalidade orientados pela lógica do capitalismo, as políticas sociais podem ser percebidas como tentativa de controle e subordinação das camadas mais pobres. Nesse sentido, a educação torna-se um mecanismo de controle social. Contudo, pode-se dizer que, no fervilhar das transformações sociais, políticas e econômicas pelas quais passava a nação a partir da segunda metade do século XIX, o problema da instrução popular só constituiu preocupação da classe dominante quando esta percebeu a necessidade de formação de mão de obra útil para seus interesses e que permitissem apresentar a nação como desenvolvida, baseando-se em padrões europeus.

Percebe-se a imbricação das relações entre juristas, médicos, Igreja, políticos e donos de terras, empenhados em formar cidadãos úteis que se adequassem às modificações em curso na nação. As disputas entre as forças sociais acirravam-se e criavam condições para a expansão da influência de grupos profissionais, caso dos juristas, médicos, educadores que, naquele momento, puderam elevar seu prestígio. Também os engenheiros e militares demarcavam seus espaços nos debates sobre o destino do país.

Do ponto de vista do Judiciário, o aumento que se observa na concessão de tutelas e contratos de menores pode estar na crença no trabalho como meio de disciplinar, conforme nos aponta Margareth Rago:

A estratégia disciplinar de confinamento das crianças no interior das unidades produtivas, retirando-as das ruas ameaçadoras [...] e dando-lhes uma ocupação profissional justificava-se como o meio de formar o novo trabalhador, moldando seu caráter desde cedo. (1997, p.140)

A criança, merecedora de pouca atenção, sobretudo aquela pertencente às classes menos favorecidas, passa a ser percebida como um corpo produtivo.

Caberia ao Estado moldar seu caráter, incutindo-lhe os conceitos da moral burguesa, ou seja, amor ao trabalho, à pátria e à família, além de noções de civilidade, ordem, respeito e obediência. Estratégias disciplinares são criadas para mantê-la ocupada o tempo todo, distante do espaço público das ruas. Para as crianças de famílias abastadas, "recomendava-se o preenchimento das horas vagas com leituras selecionadas e ginástica [...]" (Rago,1997, p.123). Para as crianças e jovens pobres, no entanto, o trabalho se apresentava como o melhor encaminhamento.

Embora a legislação previsse a responsabilidade dos tutores com relação à escolarização das crianças sob sua responsabilidade, observa-se que isso não era objeto de grandes preocupações nas práticas da administração da Justiça, pois a educação dos órfãos esteve atrelada à moralização e ao ajustamento ao trabalho imposto pela nova ordem social.

A escola primária também teve essa perspectiva de educação moral das classes populares, mas, além disso, foi pensada como instrumento de cidadania e de universalização do acesso aos conhecimentos básicos, até mesmo para proporcionar as habilidades necessárias aos processos produtivos da sociedade industrial. As instituições de educação popular que se constituíram no século XIX e início do século XX pautaram-se pela perspectiva de oferecer uma educação que "deveria ser mais moral do que intelectual, voltada para a profissionalização" (Kuhlmann Jr., 2001, p.231).

Uma iniciativa adotada para transformar os menores em cidadãos úteis foi a criação de escolas de ofício, onde ensinavam-se "primeiras letras; geometria e mecânica aplicada às artes; noções gerais de aritmética e álgebra; alfaiate, sapateiro, marceneiro, serrilheiro, correeiro e outros ofícios que o governo julgasse importante", conforme aponta Carmem Sylvia Vidigal de Moraes (2003), em livro sobre a instrução popular e qualificação profissional. Mas era uma oportunidade para poucos: a autora mostra que, nessas escolas havia uma seleção entre as crianças pobres, com critérios de escolha que excluíam aquelas que eram ainda mais pobres.

A pedagogia das instituições educacionais para os pobres constituiu uma pedagogia da submissão, uma educação assistencialista marcada pela arrogância que humilha para depois oferecer o atendimento como dádiva, como um favor aos poucos selecionados. Uma educação preconceituosa em relação à pobreza e que, por meio de um atendimento de baixa qualidade, buscava preparar os atendidos para permanecer no lugar social a que estariam destinados. Uma educação bem diferente daquela ligada aos ideais de cidadania, de liberdade, igualdade e fraternidade (Kuhlmann Jr., 2007, p.166).

No que se refere às crianças e adolescentes tutelados, pode-se analisar que a pedagogia da submissão prescindiu da própria inserção institucional, bastando o trabalho como elemento disciplinador e moralizador, trabalho simples que sequer exigia o acesso a conhecimentos sistematizados.

Os autos de tutoria e contrato de órfãos podem ter representado um mecanismo de controle e disciplina de menores pobres e desvalidos, que prolongava a organização do trabalho em regime próximo à escravidão. A procura pela mão de obra infantil, por meio dos contratos de soldada, fazia do trabalho um dos principais meios de educação para as crianças e jovens pobres.

Amparando-se na lei que determinava que todo órfão ou abandonado deveria ter um tutor, o Juiz dos Órfãos facilitava a entrega dos menores a tutores e contratantes que buscavam neles não mais que criados baratos. As tutelas se transformaram em mecanismo legal para a manutenção da criadagem.

A crença na educação pelo trabalho, para as classes pobres, como forma de evitar a marginalidade e a vadiagem, esteve presente tanto nos órgãos públicos da época, quanto em parte da sociedade civil. Os menores que perambulavam pelas ruas, no caso das cidades maiores, assim como aqueles do meio rural, cujos familiares eram considerados sem condições de cuidá-los, deveriam ser encaminhados aos juízes, para que estes encontrassem a solução. Isso pode explicar o aumento de tutelas e contratos de crianças pobres.

Em 14 de setembro de 1896, na sessão do Senado Federal, Lopes Trovão pronunciou o seguinte discurso:

Quem com olhos observadores percorre a capital da República vê apezarado que é n'este meio [a rua] que boa parte da nossa infância vive a's soltas, em liberdade condicional, ao abandono... saturando-se de todos os vícios, aparelhando-se para todos os crimes [...]. (Moraes, 1900, p.27)

A conquista de melhores condições de vida chocava-se com a realidade. E não tardou para que a população pobre fosse responsabilizada por todos os males da nova sociedade, incluídos os negros que acabavam de sair da condição de escravos.

Pode-se notar que, no bojo das transformações pelas quais passava a nação a partir da segunda metade do século XIX, estendeu-se o preconceito e a discriminação social e racial, não só contra o negro, mas a todos os setores pobres da população. Ainda que essas mudanças tenham ocorrido em meio a um discurso liberal, que falava do direito à participação política, ao trabalho e à instrução pública sem distinção de classe ou raça, vale dizer que as classes dominantes procuraram estabelecer mecanismos e critérios para proteger seus interesses, mesmo que isso resultasse em obstáculos para a democratização das relações sociais.

Como já se ponderou em texto que tratava de questões relacionadas à história da infância e sua educação, mesmo vivendo realidades diferentes e sofridas, não se poderia afirmar que determinada criança teve ou não infância:

"Seria melhor perguntar como é ou como foi sua infância. Porque geralmente se associa o não ter infância a uma característica das crianças pobres". O que as crianças e adolescentes pertencentes às camadas de excluídos, na verdade não têm, "é o que a sociedade lhes sonega. A vida, sofrida, enquanto dura, ao menos, é algo que lhes pertence". (Kuhlmann Jr., 2007, p.30)

É sempre necessário buscar entender de qual perspectiva os indivíduos contemplam a vida. Os autos de tutoria e contrato de órfãos são documentos que não foram elaborados com a pretensão de contar uma história da infância. A análise crítica dessas fontes, entretanto, contribui para se ampliar os conhecimentos sobre a história da infância no país, pois evidencia situações vividas por uma parcela de crianças e adolescentes que constituíram um segmento dos setores excluídos, em relação ao qual ainda há poucos estudos realizados.

Recebido em: setembro 2008

Aprovado para publicação em: novembro 2008

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  • SOARES, O. de M. Código penal da República dos Estados Unidos do Brasil Rio de Janeiro: Garnier, 1910. (Ed. Comentada)
  • TOLEDO, J. B. P. de. Notas sobre processo orfanológico: accommodadas à legislação vigente. São Paulo: Espindola & Comp., 1912.
  • 1
    . Texto produzido no âmbito do projeto Infância e Educação na História: temas e fontes, com apoio do Conselho Nacional de Pesquisas Tecnológicas – CNPq –, e sob a coordenação de Kuhlmann Jr., e elaborado com base na dissertação de Bastos (2005).
  • 2
    . Comarca é uma das circunscrições judiciárias em que se divide o território de um estado da União, sob a jurisdição de um ou mais Juízes de Direito. O processo cível, diz-se do que se instaura para resolver conflitos envolvendo relações de ordem privada, enquanto processo crime, diz-se do que se instaura a fim de apurar a prática ou não de um delito penal (Neves, 1978, p.s/n).
  • 3
    . Consideramos importante esclarecer que não fica claro no auto se as soldadas deveriam ser pagas mensalmente ou anualmente. Fica claro, entretanto, que os contratos deveriam ser renovados de dois em dois anos, ocasião em que se verificavam as irregularidades relacionadas ao não pagamento que ocorriam frequentemente.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009

    Histórico

    • Aceito
      Nov 2009
    • Recebido
      Set 2008
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