Acessibilidade / Reportar erro

A ilusão fecunda: a luta por educação nos movimentos populares (2. ed.)

RESENHAS

A ilusão fecunda: a luta por educação nos movimentos populares (2. ed.)

Marilia Pontes Sposito. São Paulo: HUCITEC, 2010, 398 p.

A ampliação das oportunidades educacionais experimentada pela sociedade brasileira nos últimos anos tem motivado grande número de pesquisas. Dos aspectos relacionados à universalização do ensino fundamental na passagem para o século XXI, ao crescimento de matrículas no ensino médio e ao incremento do número de estudantes de nível superior, ainda que nas faculdades privadas, novos desafios são postos para aqueles que se dedicam à compreensão do fenômeno educacional. Ser capaz de analisar as transformações sociais suscitadas por essas conquistas no Brasil exige um olhar retrospectivo sobre as dinâmicas que possibilitaram o acesso à educação formal para parte da população excluída, até então, dos bancos escolares. A reedição de A ilusão fecunda, de Marilia Pontes Sposito, deve ser saudada como mais uma possibilidade de os pesquisadores e leitores ampliarem conhecimentos sobre um período ímpar da história dos movimentos sociais pelo direito à educação.

A autora é professora titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e atua principalmente na área de Sociologia da Educação, desenvolvendo pesquisas sobre temas relativos a juventude, movimentos sociais e ação coletiva. Já investigara a educação no âmbito dos movimentos populares1 1 O Povo vai à escola: a luta popular pela expansão do ensino público em São Paulo. São Paulo: Loyola, 1992. abordando o período relativo aos anos 1950, e o trabalho em foco nesta resenha, oriundo de tese de doutorado, se insere em uma linha de continuidade com a pesquisa anterior.

A leitura de A ilusão fecunda possibilita o entendimento das lógicas que motivaram a ação dos movimentos sociais populares, os quais tiveram como palco a cidade de São Paulo de 1970 a 1980. Por meio de ampla investigação sobre os movimentos populares do período ditatorial e da transição política, a autora leva o leitor a uma compreensão privilegiada dos movimentos sociais pelo direito à educação, demonstrando que esses se inscrevem em uma linha complementar e em diálogo com as demais mobilizações coletivas que se processaram no período.

A pesquisa é orientada pelos aportes teóricos marxistas, sobretudo as reflexões de Henri Lefebvre, no que se refere às questões relacionadas à apropriação da cidade pelos seus moradores, e de Agnes Heller, no que diz respeito às carências cujas consequências é a mobilização dos atores sociais.

O livro é composto por nove capítulos, agrupados em três partes. O trabalho de acurada investigação sociológica, que se baseia em extensa pesquisa de noticiários de jornais de grande circulação e, também, de bairros, é apresentado nos primeiros capítulos. Neles são analisados os movimentos populares ocorridos nos bairros, o que permite ampliar o conhecimento sobre a profusão de manifestações que, direta ou indiretamente, questionaram o regime militar e, posteriormente, reivindicaram dos governantes do campo democrático a ampliação das oportunidades educacionais e das possibilidades de participação política. No segundo momento da pesquisa, a autora aborda a posição do Estado em relação à participação popular, investigando aspectos do período autoritário bem como as propostas que se originaram na transição política para a democracia. Na terceira parte do trabalho, o leitor é apresentado ao campo empírico da pesquisa qualitativa, realizada junto a movimentos populares no extremo leste da cidade: o Movimento de Educação da Zona Leste, um grupo de moradores do Jardim das Oliveiras e a comissão de mulheres do Pedro Nunes, com a observação direta de campo e a realização de entrevistas.

Voltando à obra passo a passo, vemos que, na introdução, se define uma concepção ampliada da política para além das esferas do Estado, do parlamento e dos partidos. Os movimentos populares são abordados como espaços de redefinição da política e como ações coletivas que podem engendrar uma nova sociedade.

No capítulo 1 da primeira parte, é discutido o modelo de desenvolvimento que se processou na cidade, calcado em forte crescimento econômico e acentuada concentração de riqueza. A exclusão das camadas populares das benesses do desenvolvimento exacerbou as desigualdades sociais, espoliando esse segmento da população do direito de usufruir da cidade. Dessa exclusão e das carências daí originadas, emergiram as lutas pela conquista de equipamentos de uso coletivo na periferia e, por sua vez, o acúmulo de experiências na luta pela supressão dessas carências propiciou, por meio do aprendizado nos movimentos sociais, o surgimento da demanda popular por educação. No entanto, mesmo alcançando seus objetivos, a população se vê às voltas com processos extremamente burocráticos e centralizadores, que dificultam a participação popular no interior dos estabelecimentos de ensino e ensejam novos dilemas e desafios para a luta política.

No segundo capítulo, é abordada diretamente a luta pelo direito à educação nos anos 1970. Discute-se a participação consentida pelo regime autoritário, consubstanciada em uma relação clientelista entre o poder público e os representantes populares. As Sociedades Amigos de Bairro – SABs – são os interlocutores privilegiados pelo poder nesse momento. O surgimento dos Clubes de Mães é tratado no capítulo, demonstrando a entrada em cena de novos atores sociais que resulta no Movimento Contra a Carestia, com milhares de pessoas tomando as ruas em protesto contra o elevado custo de vida.

O capítulo seguinte focaliza uma diversidade de práticas coletivas, nem sempre confluentes, que ora enfrentam e ora aderem à política do Estado. É o período de redemocratização e as reivindicações passam a ser tratadas pelos governos de oposição ao regime militar já em seus estertores. Nesse período, a luta encaminhada pelo Movimento de Educação da Zona Leste se volta para a conquista de cursos de segundo grau e de cursos supletivos.

No capítulo quatro é feito um balanço dos movimentos populares que lutaram pelo direito à educação, com o objetivo de compreendê-los em sua especificidade e de articular sua ação a outras modalidades de práticas coletivas e à conjuntura política e macrossocial.

Na parte dois, são apresentadas as propostas do Estado com vistas a promover a participação política nas escolas. O primeiro capítulo aborda a criação das Associações de Pais e Mestres – APMs – e as relações conflituosas entre pais e funcionários das escolas sobre as obrigatoriedades decorrentes da criação dessas entidades. A autora mostra, no capítulo dois, que, mesmo nos momentos de maior abertura política da escola, vários mecanismos são acionados no intuito de dificultar a maior inserção popular nas unidades de ensino. Discute-se a continuidade das APMs com as mesmas características do período autoritário, a despeito das mudanças de governantes, sinalizando a permanência de práticas políticas tradicionais nas relações entre os mandatários e os representantes da população. Trata-se, também, do Projeto Fim de Semana, desenvolvido nos primeiros anos da democratização pelos governantes que se alinhavam com o campo democrático. Ambas as propostas são caracterizadas como de participação induzida pelo Estado, motivo pelo qual, na maioria das vezes, encontram grande resistência dos usuários da escola pública que se negam a uma participação tutelada.

Na parte três, a autora apresenta uma etnografia de seu campo empírico de pesquisa, levando a conhecer os desafios e dilemas cotidianos dos moradores que participavam das lutas por educação nos bairros da periferia. Inicialmente faz um histórico do Movimento de Educação da Zona Leste, mostrando sua articulação com as Comunidades Eclesiais de Base –CEBs –, organizadas pela igreja católica. No segundo capítulo apresenta os bairros pesquisados e seus protagonistas, considerando a necessidade de se compreender esses movimentos em sua relação dinâmica e processual com as esferas macrossociais. Segundo a autora, o sentido da luta não se esgota com o atendimento das demandas dos movimentos populares, mas amplia as possibilidades de entendimento do mundo aos seus participantes.

No capítulo três, trata da presença das mulheres nos movimentos, abordando as questões da participação política nos movimentos sociais não só pela perspectiva da investigação dos despossuídos, mas com um olhar sensível aos dilemas que essas donas de casa enfrentaram para conquistar escolas para seus filhos: as dificuldades de conciliar o trabalho doméstico com a participação nos movimentos e os aspectos envolvidos na superação da vergonha e do medo ao lidar com as autoridades escolares, desde as diretoras de escolas até o secretário de Estado. O capítulo, ao mesmo tempo, deixa transparecer a competência etnográfica da autora para captar essas recorrências – trabalho, vergonha e medo – que as participantes dos movimentos sociais tiveram de enfrentar para avançar em suas conquistas.

Sposito conclui demonstrando a necessidade de saber, manifesta pelas camadas populares, que vislumbravam, e possivelmente ainda vislumbram, a possibilidade de ascensão social pela escolarização. Ao lutar por escola e educação, o povo busca melhor qualificação e, consequentemente, acesso a maiores oportunidades de inserção no mundo do trabalho com melhores salários.

Segundo Pierre Bourdieu2 2 A Miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2003. (p. 483), "a instituição escolar é vista cada vez mais, tanto pelas famílias como pelos próprios alunos, como um engodo e fonte de uma imensa decepção coletiva: uma espécie de terra prometida, sempre igual no horizonte, que recua à medida que nos aproximamos dela" (p. 483). Pode-se dizer que, para as camadas populares da cidade de São Paulo, a escola é uma ilusão? Sem abandonar a perspectiva macrossocial e estruturante das relações sociais, Sposito trata dos atores e das ações coletivas que inquiriram o Estado e os governantes em busca da conquista de um direito recorrentemente negado e mostra que essa ilusão é extremamente fecunda para aqueles que veem a escola e a educação como uma possibilidade de ascensão social pela aquisição de diplomas, pois, ao mesmo tempo, observa as possibilidades de transformação social que a luta por esse direito engendra.

Paradoxalmente, ao conquistar o direito à educação e o acesso à escola, os atores desses movimentos percebem que a escola pela qual lutaram não é exatamente a que receberam e por isso mesmo são levados a questionar os sentidos da luta e da educação. O ato de participar e reivindicar se consubstancia, em um sentido amplo, também como um processo educativo para as mulheres que se inseriram na luta popular pela ampliação das oportunidades educacionais, o que permite a essas militantes entender os mecanismos que alimentam os processos de exclusão que se desenvolvem no interior da escola e as dinâmicas que produzem o fracasso escolar. Essas mulheres se deparam com os novos desafios postos pela conquista desse direito: a luta pela melhoria das condições e da qualidade do ensino oferecido aos filhos.

Dado o rigor sociológico com que são investigados os movimentos populares, esse livro é uma referência para todos que querem compreender as lutas populares no período e, em especial, os movimentos sociais pela ampliação e garantia do direito à educação. A questão central, formulada de maneira precisa e ao mesmo tempo poética no título, é mais que atual para todos os que lutam por oportunidades educacionais: trata-se de uma promessa ilusória que, contraditoriamente, se reverte em novos sonhos, novos embates, em aprendizagens e questionamentos.

GILBERTO GERIBOLA MORENO

Doutorando do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, E-mail: geribolamoreno@gmail.com

  • 1
    O Povo vai à escola: a luta popular pela expansão do ensino público em São Paulo. São Paulo: Loyola, 1992.
  • 2
    A Miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2003.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2011
    Fundação Carlos Chagas Av. Prof. Francisco Morato, 1565, 05513-900 São Paulo SP Brasil, Tel.: +55 11 3723-3000 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: cadpesq@fcc.org.br