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Apresentação

TEMA EM DESTAQUE

POLÍTICAS DE ENSINO MÉDIO

Apresentação

O ensino médio está na ordem do dia nos debates educacionais, tanto na Europa como na América. Os problemas e os desafios que o afetam têm muitos pontos em comum: altos índices de evasão e fracasso escolar, falta de consenso em torno da identidade da escola média, falta de interesse por parte dos jovens, entre outros. A questão é problematizada em países que possuem diferenças importantes na gênese desse nível de ensino, na sua consolidação nos sistemas educacionais nacionais e também na configuração que ele assume atualmente.

É comum a afirmação de que a falta de identidade do ensino médio é o que dificulta as mudanças necessárias e o caminho a seguir. Isso acontece de forma concomitante ao debate por ele suscitado e às políticas de democratização desse nível de ensino.

O ensino médio surge e se mantém nos diferentes países ocidentais durante quase toda metade do século XX com uma configuração dual, cumprindo com a dupla função de formação de mão de obra qualificada para a maioria da população escolarizada e de formação de elites políticas e profissionais, com uma finalidade socialmente distintiva, sem pôr em questão a apropriação diferenciada do conhecimento socialmente produzido.

O processo de reconstrução do "capitalismo democrático" na Europa do pós-guerra e a hegemonia política da ideologia social-democrata conceberam a educação escolar e, em especial, o ensino médio, como um espaço privilegiado não só de formação de mão de obra qualificada, mas também, e principalmente, de formação de uma cidadania política. Isso seria possível pela difusão de um conjunto de saberes e valores nos quais se acentuou o projeto universalista-humanista da modernidade.

A valorização da educação como um processo de formação cidadã, as tensões sociais produzidas pelo fracasso das promessas democratizantes e a comprovação dos efeitos discriminatórios da educação formal que favorecem os alunos de origem social mais alta puseram em questão a dualidade da organização dos sistemas educativos e os mecanismos de seleção, promovendo diferentes reformas. Em alguns países europeus se realizaram as chamadas reformas compreensivas no final da década de 1960, prolongando o tronco comum no ensino médio. O debate e as reformas dele decorrentes influíram também nas políticas de diferentes países latino-americanos. A tensão entre universalização e seleção, entre articulação interna e segmentação - que expressa a disputa entre diferentes grupos sociais pela apropriação de parcelas do conhecimento socialmente construído, por um espaço no mercado de trabalho e pela participação no ensino superior - acompanhará as diferentes reformas do ensino médio.

Ao publicar Sistemas educativos, culturas escolares y reformas, pela Morata, em 2006, Viñao mostra que a conformação dos sistemas de ensino nacionais europeus a partir do século XIX implicou um duplo processo de articulação interna e de segmentação: com a adoção de critérios uniformes, mas, ao mesmo tempo, a diferenciação e hierarquização interna, com planos de estudo e alunado diversos.

A falta de consenso em torno da identidade do ensino médio (formação geral e/ou profissional), as constantes reformas na sua estrutura ao longo do século XX, passando de uma organização única a uma organização com diferentes orientações e vice-versa, e as demandas constantes para inclusão e/ou exclusão de novos conteúdos no currículo são exemplos das tensões em torno desse nível de ensino nos diferentes países.

A chamada terceira revolução industrial trouxe importantes transformações sociais com novas expressões das relações de poder, mudanças nas relações de trabalho e na vida cotidiana das pessoas, e novas configurações nas relações internacionais. Ela veio acompanhada de um reconhecimento maior da informação e do conhecimento nos processos de produção, e, também, de diferentes expressões do caráter socialmente seletivo dos sistemas educacionais.

O Brasil está em meio a um processo progressivo de inclusão educacional pela transformação do ensino médio para poucos em universal e obrigatório, ao mesmo tempo em que se intensificam processos que reforçam a desigualdade de oportunidades na sociedade brasileira. Refiro-me à intensificação da segmentação horizontal e vertical do sistema educacional por meio de mecanismos cada vez mais sutis de diferenciação socioeducativa.

Há múltiplas evidências do processo de segmentação escolar horizontal, inclusive no setor público, pela seleção oculta que se manifesta na concentração espacial por classe social ou pertença étnica dos alunos nas instituições e/ou nas turmas de alunos. Entretanto, outro fenômeno menos estudado no contexto brasileiro é induzido principalmente pelas mudanças na gestão educacional. No novo modelo de gestão pública se advoga a melhoria da qualidade do ensino por meio da avaliação institucional e do protagonismo da escola e das famílias, produzindo a diferenciação e a competitividade entre as unidades escolares. Pesquisa realizada em escolas municipais do Rio de Janeiro e publicada em Cadernos de Pesquisa n.142/2011, mostra que, nos últimos anos, se tem acirrado a competição, por parte dos alunos, para frequentar determinadas escolas públicas com maior prestígio, ainda que elas não estejam no topo dos rankings. Costa e Koslinski, seus autores, indicam que há também entre essas uma disputa pelos estudantes por meio de procedimentos não explícitos de reserva de vagas e/ou de rejeição de alunos, o que se consubstancia em um determinado clima escolar.

O aumento significativo dos alunos que concluem o ensino fundamental e ingressam no ensino médio diminuiu a segmentação vertical entre os dois níveis de ensino. Ao mesmo tempo se produziram novos mecanismos de diferenciação socioeducativa, isto é, novas configurações da segmentação vertical: desvalorização dos diplomas de níveis cada vez mais altos no sistema educacional e mudanças das qualificações requeridas no mercado de trabalho.

Como se sabe, o modelo atual de organização do trabalho, provocado pela revolução da microeletrônica e da informação, trouxe alterações importantes no cenário de qualificação dos trabalhadores. Entre outros aspectos, passou a requerer poucos trabalhadores dirigentes, altamente qualificados, e pequena massa de trabalhadores para realizar tarefas mecânicas que não requerem muitas habilidades cognitivas, sendo estas últimas funções, no geral, terceirizadas para pequenas empresas. Ao mesmo tempo, a retração do mercado de trabalho causa o aumento da demanda, cria exigências mais elevadas de escolarização/certificação para o ingresso em qualquer ocupação e produz a desvalorização dos diplomas. Isso tem aprofundado a segmentação vertical entre os diferentes níveis de ensino e vem estabelecendo novas hierarquias entre os jovens trabalhadores.

Por sua vez, na chamada era da sociedade da informação e do conhecimento, pergunta-se sobre o futuro da escola de nível médio diante das novas formas de provisão e modalidades de aprendizagem. A difusão da informação é tão rápida e disponível para a maioria da população que talvez não existam nem instituições nem profissionais capazes de desempenhar mais eficazmente essa tarefa do que as novas tecnologias da informação e comunicação. Mas se pode também afirmar que o conhecimento nunca esteve tão distante dos processos de divulgação da informação e nunca a relação entre ambos foi tão perversa, aprofundando direta ou indiretamente a segregação educacional.

Discursos alarmistas afirmam que a ampliação das modalidades de informação e comunicação está fragilizando o papel da escola e o caráter formativo da profissão docente e que a escola já não responde sequer à formação requerida pelo mercado de trabalho. O jovem está acuado pela incerteza do mundo do trabalho, o que o leva a uma atitude imediatista em suas expectativas em relação à escola.

A instituição escolar deixou de ser para os jovens o único espaço de trocas sociais e de aquisição de informação, mas isso não significa necessariamente o fim da instituição escolar. Tampouco indica que ela deva competir com o consumo mediático na capacidade e na velocidade de transmissão da informação, ou que se deva restringir a atender ao olhar imediatista do jovem. No entanto, nós educadores, estamos, sem dúvida, sendo convocados por uma nova realidade para enfrentar o desafio de democratizar as possibilidades de ler de forma contextualizada, interpretativa e reflexiva os fatos, os acontecimentos e o mundo do trabalho.

O tema que reúne, neste dossiê, pesquisadores de vários países, é a preocupação com o potencial de seleção do ensino médio, com a discriminação constitutiva da sua historicidade e com as dificuldades das políticas educacionais para reverter essa situação. Os três primeiros autores oferecem aporte original ao estudo dos processos de seleção para o ensino médio, tendo como categoria-chave de análise a historicidade dos respectivos países, seja como resposta às tendências universalizantes (Tiramonti na Argentina) ou às políticas de integração (Puelles e Enguita na Espanha). O último artigo (Krawczyk) discute um conjunto de desafios postos para o futuro do ensino médio com base nas condições existentes na realidade escolar brasileira. Espera-se que o conjunto de textos possa alimentar e provocar as reflexões dos educadores, pesquisadores e de outros que, mesmo não diretamente envolvidos com o ensino médio, estão preocupados com o presente e o futuro dos jovens.

Nora Krawczyk

norak@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2011
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