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RESENHAS

Maria de Fátima Barbosa Abdalla

Professora do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação da Universidade Católica de Santos e pesquisadora associada do Centro Internacional de Estudos em Representações Sociais, Subjetividade - Educação da Fundação Carlos Chagas, mfabdalla@uol.com.br

Brasil: Ideia de Diversidade e Representações Sociais. LÚCIA PINTOR SANTISO VILLAS BÔAS

SÃO PAULO: ANNABLUME, 2010, 213p.

Considerar a diversidade um dos eixos organizadores das representações sociais que se tem sobre o Brasil é, sem dúvida, o fio condutor deste livro, que pretende destacar, sobretudo, a historicidade das representações sociais.

Nessa perspectiva, o percurso de Lúcia Pintor S. Villas Bôas é instigante, pelo menos, por três motivos. Primeiro, pela leveza e rigor com que trata uma temática tão complexa, como é a ideia da diversidade, especialmente, quando se tem a necessidade de discutir, hoje, a "identidade" nacional brasileira. Segundo, por sua proposição em "articular os conteúdos das atuais representações sociais de Brasil, associados à diversidade, à produção historiográfica do século XIX" (p.36). E terceiro, por integrar duas perspectivas diferentes de análise, evidenciando, como já apontou Denise Jodelet, no prefácio do livro: "o lugar que a historiografia reserva às representações e a emergência, na corrente de estudo das representações sociais, da consciência da historicidade desta" (p.19-20).

Para compor suas ideias, a autora apresenta o estudo, que tem origem em uma pesquisa com 1.029 estudantes universitários de primeiro ano de 23 instituições, públicas e privadas, em sete estados, coordenada pelas professoras Angela Arruda (da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ) e Clarilza Prado de Sousa (da Fundação Carlos Chagas - FCC - e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP), intitulada "Imaginário e representação social de jovens universitários sobre o Brasil e a escola brasileira. Optou, então, pelo banco das questões desta investigação: "Por que você acha que isso tudo é Brasil?" e "O que, para você, diferencia o Brasil dos outros países? Por quê?", no intuito de analisar seus aspectos constitutivos, associados à diversidade, para relacioná-los à produção historiográfica do século XIX. Selecionou, assim, obras de Carl Friedrich Phillip Von Martius (1845/1982), Francisco de Adolfo Varnhagen (1854/1975), Joaquim Manoel de Macedo (1864/1905) e Affonso Celso (1901), que foram escolhidos, porque, segundo a autora, sistematizam um conjunto de ideias sobre a singularidade do país, dando origem a uma história oficial que representa a "diversidade como unidade" (p.37).

Diante desse quadro, Villas Bôas estrutura sua obra em três capítulos, trazendo uma contínua reflexão sobre a necessidade de se abordar a historicidade das representações sociais, "de modo a compreender como as representações sociais contemporâneas são impactadas por conteúdos que vêm se constituindo em outras épocas históricas" (p.27).

No primeiro capítulo a autora busca analisar a historicidade das representações sociais em dois níveis, que estão intrinsecamente relacionados, ainda que distintos. O primeiro analisa o papel da dimensão histórica na estruturação da representação, reforçando o conceito de thêmata, que, conforme a autora, "dá conta da generatividade das representações sociais conferindo um peso ainda maior aos seus processos de formação, sobretudo, o de ancoragem" (p.68). E o segundo destaca a dimensão histórica do conteúdo representacional, alinhavando as três fases das representações sociais: a da emergência, "em que há uma mediação entre a existência de determinado objeto e o surgimento de saberes estáveis e consensuais ligados a ele"; a da estabilidade, "em que a representação torna-se um saber consensual"; e a de transformação, "em que os saberes mais antigos se relacionam com os mais novos" (p.71). Nesta direção, a autora não se descuida de explicitar a ação combinada de dois processos, a objetivação e a ancoragem, que "estão na base da origem e do funcionamento das representações sociais e que concorrem para a determinação de seu conteúdo e de sua estrutura" (p.58), recorrendo, assim, à teoria das representações sociais.

No segundo capítulo, Villas Bôas apresenta a trajetória metodológica para a investigação da historicidade das representações sociais, visando à questão da diversidade. Tece esclarecimentos sobre as diretrizes teórico-metodológicas, destacando a perspectiva processual em que se concentram os trabalhos voltados para a historicidade das representações sociais (p.77-78).

Em relação aos procedimentos metodológicos, Lúcia Villas Bôas realizou a pesquisa do verbete "diversidade" em diferentes dicionários e chegou a 64 definições. Ela ressalva que a identificação de denominações no contexto atual não permite que seja "trasladada para outra época sob o risco de incorrer em anacronismos" (p.84). Mas assinala que o importante são os indicadores que devem ser levados em conta, tomando por princípio que o conceito atual de diversidade - "nódulo elementar de sentido das atuais representações sociais do Brasil" (p.85) - apresenta "a sedimentação de um conhecimento que contém uma construção histórica" (p.85).

A escolha do século XIX e dos autores mencionados, afirma a autora, "não foi aleatória" (p.85), pois se baseou na própria análise da produção textual dos estudantes, cujas categorias encontradas estão próximas aos discursos dos autores pertinentes à fase da constituição do Estado Nacional, e que pertenciam ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, fundado em 1838.

Assim, para a análise, foram utilizados aspectos da abordagem da história dos conceitos, sistematizados pelo historiador Reinhart Koselleck, e da história efeitual, desenvolvidos pelo filósofo Hans-Georg Gadamer. Entretanto, a análise da historicidade do nódulo elementar do sentido "diversidade", como organizador das atuais representações sociais de Brasil, foi realizada com base na perspectiva da história efeitual, como esclarece a autora, e não pelo estudo histórico acerca do conceito; uma vez que está preocupada com o estudo do "efeito" desse conceito na produção textual representada pelas respostas dos sujeitos pesquisados. Ela destaca ainda que o aporte analítico de Análise Lexical por Contexto de um Conjunto de Segmentos de Texto - Alceste - foi fundamental para: realizar a leitura do corpus, a partir das unidades de contexto inicial - UCIs -, ou seja, das respostas dos universitários a cada uma das questões de pesquisa; proceder ao cálculo das matrizes e a classificação das unidades de contexto elementar - UCEs; e gerar os dois dendogramas (Figura 1, p.109; Figura 2, p.110), resultantes da classificação hierárquica descendente do material textual coletado, desvelando, assim, os contextos temáticos associados à diversidade.

O terceiro capítulo apresenta as análises realizadas, a partir do universo semântico a respeito do conceito de diversidade presente na produção textual dos universitários, em articulação com as obras produzidas no século XIX, e que já foram mencionadas. A intenção é compreender "o processo de generatividade das representações sociais desses estudantes sobre o país" (p.39).

Nesta perspectiva, ao analisar as questões "Por que você acha que isso tudo é Brasil?" e "O que, para você, diferencia o Brasil dos outros países? Por quê?", a autora destaca que há uma rede de significados associados ao nódulo elementar de sentido que pôde ser concretizada por meio da análise da "fusão de horizontes interpretativos", a partir da história efeitual de Gadamer, e que pode ser sintetizada nos seguintes contextos temáticos: 1) "coexistência de contrários", que enfatiza, sobretudo, a característica oposicional da diversidade, ou seja, os aspectos positivos e negativos (p.119-122); 2) "variedade cultural", em que a diversidade caracterizada pela "síntese cultural", quando as evocações acerca da natureza não são preponderantes (p.124); 3) "espaço de experiência e "horizonte de expectativas", quando a diversidade ora engloba a "variedade de problemas vivenciados no cotidiano", "nas localidades os problemas apontados são mais agudizados" ou "os estudantes são mais críticos em relação a eles" (p.125); ora se relaciona a "expectativas" de que, no futuro, esses problemas serão solucionados, ou seja, "é feliz e tem esperança de que a situação melhore" (p.129);4) "ficção orientadora", em que a diversidade é relacionada à "mistura racial", fundamentada na "integração das diferenças" (p.138), e se enfatiza o papel da "natureza" na "construção daquilo que nos distingue dos demais países" (p.148). Esses elementos - raça e natureza (ou meio) - podem fragilizar a ação individual em face das mudanças sociais e políticas na construção da identidade nacional, segundo a autora, pois o povo não se vê como "agente da história" (p.158).

A título de conclusão, a autora faz três considerações que é útil reproduzir brevemente: a primeira é que se deve atentar para o "caráter polissêmico" do conceito de diversidade, e, por isso, não é possível afirmar que as palavras e/ou ideias obtidas e aqui enfatizadas possam ser "compartilhadas na íntegra, ou mesmo de uma maneira idêntica" (p.161). A segunda diz respeito à importância da utilização do programa Alceste, para desvelar os contextos temáticos associados à diversidade (p.161). E a terceira é que as análises realizadas indicam que as representações sociais de Brasil, reguladas pela diversidade, ancoram-se, de um lado, em aspectos "raciais" e "naturais", que foram moldados ao longo do século XIX, e, de outro, pela coexistência de "elementos contrários" (coisas boas e ruins), assim como por expectativas que estes possam ser solucionados "de forma milagrosa" (p.162).

Das três considerações, a autora destaca, ainda, três aspectos para se compreender a importância da historicidade das representações sociais. O primeiro refere-se ao fato de as representações sociais serem fenômenos historicamente situados, de conteúdos cristalizados, o que explica a manutenção de "contextos temáticos que apresentam a diversidade relacionada, por exemplo, a elementos raciais e naturais, à unidade na variedade, à crença na predestinação do país ao sucesso" (p.162). O segundo aspecto tem a ver com a "própria característica normativa e prescritiva das representações sociais que, ao servirem como guias para ações e para interpretação da realidade, necessitam ser alimentadas pela experiência cotidiana dependente das circunstâncias contemporâneas" (p.162-163). E o terceiro aspecto, considerado uma espécie de síntese dos anteriores, tem a ver com o entendimento de que as representações sociais se constituem "com base em um conhecimento preexistente que permite indicar permanências estruturais nos conteúdos representacionais originados em outras épocas históricas" (p.163). Parte, assim, do princípio de que "o acesso ao passado é mediado por sua vinculação com o contemporâneo" (p.163). Além disso, destaca a autora, "apesar de a representação se ancorar em conhecimentos preexistentes, apreendidos por meio do efeito que provocam no presente, esta não perde de vista seu aspecto pragmático, de ser guia para ação e tradutora da realidade social" (p.164).

Além de tudo isso, Villas Bôas nos ajuda a pensar que somente o estudo das representações sociais, aliado a uma análise histórica de seu conteúdo, permite verificar não apenas se a permanência e/ou mudança de um determinado conceito corresponde ao seu significado, considerando-se épocas distintas, mas também a manutenção de uma "estrutura de repetição", nos termos de Reinhart Koselleck.

Por fim, a autora tece considerações sob a perspectiva educacional, buscando esclarecer, mais uma vez, que, em relação ao contexto temático "espaço de experiência e horizonte de expectativa", os estudantes não se veem como agentes da ação política e, embora identifiquem uma série de problemas, assumem a crença na "inevitabilidade do sucesso brasileiro". Ou seja, nutrem, como ela mesma afirma, "a esperança de que os problemas evocados sejam solucionados por meio do milagre e da fé" (p.168).

E, também, em relação ao contexto temático "ficções orientadoras", ao fazer referência aos aspectos raciais, enfatiza-se a harmonia social fundamentada no discurso da fusão das três raças, enquanto, ao citar os aspectos naturais, realimenta-se a ideia de que "no Brasil, tudo dá", e isso independe da ação humana (p.168).

Sendo assim, o que se constata é que a autora fortalece os "nós" de sua "rede de significações", ao mesmo tempo em que vai capturando o mundo das representações sociais sobre a ideia de diversidade. Faz, então, uma análise histórica articulada a uma perspectiva psicossocial como forma de captar, no senso comum, tal como destaca Clarilza Prado de Sousa no posfácio deste livro, "os intrigados processos de legitimação que orientam o agir dos sujeitos e grupos" (p.173).

Ao recomendar a leitura do livro de Lúcia Villas Bôas, reconheço-a como contribuição não só para pensar quais ideias historicamente constituídas estão sendo incorporadas na construção do senso comum sobre a diversidade e que estruturam as representações sociais a respeito deste nosso país, mas, sobretudo, refletir o quanto estudos como este podem fazer avançar a educação que se deseja para enfrentar os desafios da sociedade brasileira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2011
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