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Políticas de constituição do conhecimento escolar na pesquisa educacional brasileira

Políticas de constitución de conocimiento escolar en la investigación educacional brasileña

Resumos

Este artigo aborda os processos escolares contemporâneos para entender as práticas de socialização e de transmissão cultural como processos socialmente produzidos. Para tanto, parte-se de uma revisão de literatura dos estudos sobre as políticas curriculares na América Latina, identificando duas tendências da produção sobre a constituição do conhecimento escolar. Revisaram-se, então, artigos publicados em cinco periódicos brasileiros ao longo da última década, elaborando-se "mapas da literatura". Notou-se a predominância de três perspectivas: políticas de organização do conhecimento escolar; práticas escolares; epistemologias do currículo. Após o exame dos artigos selecionados, constatou-se que apresentam significativa consistência teórica, embora ainda apresentem poucos estudos empíricos.

conhecimento escolar; currículo; políticas educacionais; revisão da literatura


Este artículo aborda los procesos escolares contemporáneos para entender las prácticas de socialización y de transmisión cultural como procesos que se producen socialmente. Para ello, se parte de una revisión de literatura de los estudios sobre las políticas curriculares en América Latina, identificando dos tendencias de la producción sobre la constitución del conocimiento escolar. Se revisaron artículos publicados en cinco revistas brasileñas a lo largo de la última década y se elaboraron "mapas de la literatura". Se puso de manifiesto la predominancia de tres perspectivas: políticas de organización del conocimiento escolar; prácticas escolares; epistemologías del currículo. Después de examinar los artículos seleccionados, se constató que presentan significativa consistencia teórica, aunque todavía presentan pocos estudios empíricos.

conocimiento escolar; currículo; política educativa; revisión de la literatura


This article discusses contemporary school processes in order to understand the practices of socialization and cultural transmission as socially produced processes. For that purpose, we start by reviewing the literature concerning studies about curriculum policies in Latin America. We identified two trends relating to the the constitution of school knowledge. Articles published in five Brazilian journals over the past decade were then reviewed giving rise to "maps of the literature". A predominance of three perspectives was observed: policies of organization of school knowledge; school practices; and curriculum epistemologies. After examination of the selected articles, it was found that they present significant theoretical consistency, but still few empirical studies.

knowledge; curriculum; educational policies; literature review


OUTROS TEMAS

Políticas de constituição do conhecimento escolar na pesquisa educacional brasileira

Políticas de constitución de conocimiento escolar en la investigación educacional brasileña

Roberto Rafael Dias da SilvaI; Anna Luiza Verdi PereiraII

IDoutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos; professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS – Erechim (RS) robertosilva@uffs.edu.br

IIBolsista de Iniciação Científica do curso de Pedagogia da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS – Erechim (RS) alvp@gmail.com

RESUMO

Este artigo aborda os processos escolares contemporâneos para entender as práticas de socialização e de transmissão cultural como processos socialmente produzidos. Para tanto, parte-se de uma revisão de literatura dos estudos sobre as políticas curriculares na América Latina, identificando duas tendências da produção sobre a constituição do conhecimento escolar. Revisaram-se, então, artigos publicados em cinco periódicos brasileiros ao longo da última década, elaborando-se "mapas da literatura". Notou-se a predominância de três perspectivas: políticas de organização do conhecimento escolar; práticas escolares; epistemologias do currículo. Após o exame dos artigos selecionados, constatou-se que apresentam significativa consistência teórica, embora ainda apresentem poucos estudos empíricos.

Palavras-chave: conhecimento escolar; currículo; políticas educacionais; revisão da literatura

RESUMEN

Este artículo aborda los procesos escolares contemporáneos para entender las prácticas de socialización y de transmisión cultural como procesos que se producen socialmente. Para ello, se parte de una revisión de literatura de los estudios sobre las políticas curriculares en América Latina, identificando dos tendencias de la producción sobre la constitución del conocimiento escolar. Se revisaron artículos publicados en cinco revistas brasileñas a lo largo de la última década y se elaboraron "mapas de la literatura". Se puso de manifiesto la predominancia de tres perspectivas: políticas de organización del conocimiento escolar; prácticas escolares; epistemologías del currículo. Después de examinar los artículos seleccionados, se constató que presentan significativa consistencia teórica, aunque todavía presentan pocos estudios empíricos.

Palabras clave: conocimiento escolar; currículo; política educativa; revisión de la literatura

Iniciamos este texto analítico servindo-nos das reflexões propostas por Jurjo Torres Santomé (2006), um dos principais estudiosos contemporâneos do currículo. O autor, em suas reflexões, propõe-se a retomar as históricas funções da instituição escolar, seja na conservação e –distribuição dos saberes historicamente produzidos, seja na instauração de processos democráticos. Entretanto, frente a esses desafios, o autor sugere-nos, para o nosso tempo, uma dupla condição: a retomada da liderança cultural e pedagógica exercida pela profissão docente e a centralidade do conhecimento nos processos escolares. Assim sendo, nessa abordagem, seria necessário revitalizar a instituição escolar enquanto espaço intencional no qual os sujeitos acessam o legado cultural da sociedade em que se constituem e são constituídos (SANTOMÉ, 2006).

Para levar adiante esses compromissos políticos, sobretudo no que tange à educação pública, precisamos interrogar as condições contemporâneas que perfazem as políticas curriculares, assim como os modos de constituição do conhecimento. Tais questões podem ser explicadas pelo pressuposto de que, sendo a educação uma prática social, o conhecimento escolar seria compreendido como um "artefato social e histórico sujeito a mudanças e flutuações, e não como uma realidade fixa e atemporal" (NÓVOA, 2001, p. 145). Os currículos escolares e as práticas profissionais dos professores apresentam-se então articulados aos dispositivos políticos de atuação do Estado moderno ao mesmo tempo em que interagem com as condições sociais e econômicas do seu momento histórico (SILVA; SILVA, 2012).

Ao examinarmos as teorias sociais contemporâneas, notamos uma proliferação de diagnósticos que remetem a contemporaneidade às noções de uma "sociedade do conhecimento" (DRUCKER, 1993), "sociedade da informação" (CASTELLS, 2002) ou mesmo "capitalismo cognitivo" (CORSANI, 2003). Em comum a essas abordagens podemos destacar a perspectiva de que o conhecimento tornou-se uma questão central para a vida social e para a produção econômica de nosso tempo.

Observamos também uma crítica bastante intensa acerca da confiabilidade do conhecimento (BURKE, 2003). Derivadas de determinadas correntes filosóficas, emergem um conjunto de novas perspectivas teóricas que visam a demarcar a natureza "fabricada" ou "inventada" do conhecimento.

Acompanhando a narrativa historiográfica de Peter Burke (2003) ao propor uma história social do conhecimento, não podemos supor que esta seja a primeira vez que as sociedades atribuem centralidade a essa questão. Segundo o pesquisador, "a mercantilização da informação é tão velha como o capitalismo" (BURKE, 2003, p. 11), uma vez que a busca da inovação ou progresso social pelo conhecimento é característica da própria Modernidade. Dessa forma, ao nos propormos estudar as formas contemporâneas do conhecimento, não é relevante considerarmos que estejamos tratando de formas originais do ponto de vista histórico ou sociológico. Seguindo as elaborações de Burke, um dos caminhos metodológicos para esse empreendimento seria a sociologia do conhecimento, campo teórico que remonta ao início do século XX, e que encontra em Émile Durkheim importantes delineamentos. É no pensamento desse sociólogo que encontramos as primeiras referências de educação como elaboração social.

Os estudos sobre as práticas educativas, como os de Émile Durkheim (1978), propõem a centralidade ao caráter social da educação. Diferentemente dos ideais abstratos dos atributos de uma natureza humana, típicos das pedagogias do século XVII às do início do século XX, o sociólogo propôs que a definição dos processos formativos é fabricada nas relações entre os diferentes indivíduos nas condições da sociedade de seu tempo. Isso implica considerar que, nas palavras do autor, "cada tipo de povo tem um tipo de educação que lhe é próprio, e que pode servir para defini-lo, tanto quanto sua organização moral, política e religiosa" (DURKHEIM, 1978, p. 79). A abordagem durkheiminiana sugere que inexiste a possibilidade de pensarmos em sistemas educativos universais, visto que a educação, seus métodos e conteúdos serão produto das contingências sociais de seu tempo.

Nessa direção, os modos de organização dos sistemas escolares vinculam-se a sistemas sociais determinados, uma vez que, sob esse enfoque, as aptidões necessárias para a vida em sociedade são transmitidas em processos sistemáticos e intencionais. Como elucida o sociólogo francês, tais aptidões "não podem transmitir-se de uma geração a outra por meio da hereditariedade. É pela educação que essa transmissão se dá" (DURKHEIM, 1978, p. 84). Sob esse ponto de vista, é possível reconhecer que os ideais pedagógicos são produções sociais. "A educação consiste, pois, em qualquer de seus aspectos, numa socialização metódica de cada nova geração" (DURKHEIM, 1978, p. 82). Em uma leitura apressada, poderíamos inferir da leitura desse pensador que a sociedade exerce um papel de dominação dos indivíduos pelas práticas educativas. Entretanto, o próprio Durkheim esclarece:

Estamos agora em condições de esclarecer uma dúvida que todo o trecho anterior sugere. Se os indivíduos, como mostramos, só agem segundo as necessidades sociais, parece que a sociedade impõe aos homens insuportável tirania. Na realidade, porém, eles mesmos são interessados nessa submissão; porque o ser novo que a ação coletiva, por intermédio da educação, assim edifica, em cada um de nós, representa o que há de melhor no homem, o que há em nós de propriamente humano. (1978, p. 44-45)

Ao referirmos nesta introdução o pensamento de Émile Durkheim, procuramos sublinhar um modo de leitura que demarcará a produção deste artigo, a saber: uma leitura sociológica da produção do conhecimento escolar. A partir de Durkheim, a sociologia da educação apresenta importantes ferramentas analíticas para a compreensão das escolas; sobretudo, interessa-nos aqui o conceito de educação enquanto socialização metódica das novas gerações pelos processos de transmissão cultural. Importa reiterar que, nesse pensamento, os conceitos de socialização ou transmissão cultural não se posicionam enquanto estruturas estáticas ou derivadas de um pensamento tradicional, mas como processos socialmente produzidos.

A partir das condições acima expostas, objetivamos, com este texto, apresentar uma revisão da literatura sobre as políticas de constituição do conhecimento escolar1 1 O presente artigo deriva-se do projeto de pesquisa "Políticas de ampliação da jornada escolar para o Ensino Médio no Rio Grande do Sul: um estudo sobre o conhecimento escolar", que conta com financiamento do CNPq. . Consideramos, para fins da investigação, os artigos publicados em cinco das principais revistas educacionais do Brasil no período compreendido entre 2002 e 2012. Assim sendo, organizamos o presente artigo em três seções. Na primeira seção, apresentamos uma sistematização dos debates e perspectivas investigativas nos estudos sobre o conhecimento escolar na América Latina. A seguir, na segunda seção, descrevemos os pressupostos metodológicos e os procedimentos investigativos que orientaram a produção desse estudo. Por fim, na terceira seção, examinamos as três tendências predominantes acerca das políticas do conhecimento escolar que emergiram de nossas investigações.

CONHECIMENTOS ESCOLARES NA AMÉRICA LATINA: DEBATES E PERSPECTIVAS INVESTIGATIVAS

Para mapearmos os estudos de revisão sobre a constituição escolar, nesta seção buscaremos uma interlocução com alguns textos da literatura pedagógica da América Latina. O objetivo deste primeiro mapeamento estará em dimensionar o referido debate na produção intelectual latino-americana, visando a caracterizar os diferentes sentidos de conhecimento escolar emergentes nas produções e sistematizações analíticas do referido campo. Para iniciarmos esse processo, consideraremos o percurso elaborado pela pesquisadora argentina Sílvia Finocchio (2010) que, em uma revisão dos estudos produzidos na América Latina, constatou que um dos temas menos trabalhados na última década foi a questão dos saberes escolares. Dessa forma, sua cartografia temática sugere algumas tendências analíticas para esse contexto, a saber: a) o descompasso da escola frente aos discursos pós-coloniais, a revolução digital e as culturas sentimentalistas; b) a necessidade de aprofundamento sobre os modos de produção e circulação dos saberes escolares; c) a dispersão das tendências regionais, dada sua hibridez teórica e política.

No contexto mexicano, encontramos uma preocupação intensa com as questões da equidade e da qualidade da educação ofertadas à população (ALCÁNTARA, 2008). Ao longo das últimas três décadas, as administrações nacionais, orientadas pela agenda das organizações internacionais, têm produzido significativas reformas nos sistemas de ensino, tomando como metas a expectativa de melhorar a situação do país e a possibilidade de fazer da educação um instrumento de justiça social. A partir da segunda metade da década de 1980, o México, através de programas nacionais de educação, ampliou o processo de descentralização da gestão dos processos escolares, dirigindo-se para a modernização do país (ALCÁNTARA, 2008). Assim, é na administração de Carlos Salinas (1988-1994) que as novas políticas educacionais são intensificadas, colocando ao centro cinco grandes orientações: "ampliar a cobertura e a redistribuição da oferta; elevar a qualidade, a pertinência e a relevância; integrar por ciclos; descentrar a administração; e melhorar das condições docentes" (ALCÁNTARA, 2008, p. 153). Na busca pela qualidade, o currículo será um dos alvos privilegiados, sobretudo a partir de uma medida adicional que previa "reformular conteúdos e planos para superar o caminho para a obtenção da qualidade" (ALCÁNTARA, 2008, p. 154).

Fortalecia-se, então, uma gramática política que buscava centralizar os conceitos de equidade, qualidade e pertinência na educação. Mesmo em administrações posteriores, como a de Vicente Fox (2000-2006), com outra conotação política, resguardava-se o compromisso com esses aspectos. Os programas mexicanos, em suas reformulações dos conteúdos e materiais didáticos, enfatizavam a leitura e escrita, a matemática e resolução de problemas, o estudo da história, da geografia e do civismo e os cuidados com a saúde e o meio ambiente (ALCÁNTARA, 2008). Conforme Alcántara, as políticas educativas, fortemente influenciadas por pressupostos neoliberais, "têm mostrado sua inefetividade para mudar o estado das coisas importantes no último quarto de século" (2008, p. 147).

Na mesma direção, notamos na educação do Chile importantes reflexões sobre as aproximações entre as políticas de escolarização pública e o neoliberalismo (VALENZUELA; LABARRERA; RODRÍGUEZ, 2008). Com o advento das políticas neoliberais no governo chileno, a partir da presença dos militares no poder em 1973, iniciou-se um processo de ressignificação da atuação do Estado, fazendo com que este assumisse um papel de subsidiário, "no qual deixa de ser responsável direto pelas escolas do país" (VALENZUELA; LABARRERA; RODRÍGUEZ, 2008, p. 132). A mudança no campo de atuação do Estado produziu ressonâncias nos processos de redefinição do currículo nacional, assim como na descentralização das políticas educativas. No caso chileno, encontramos, a partir de 1980, as escolas particulares subvencionadas, "financiadas pelo Estado, porém de propriedade e administração privada, particulares ou fundações" (VALENZUELA; LABARRERA; RODRÍGUEZ, 2008, p. 133). Entre continuidades e rupturas, na década de 1990, com a retomada da democracia, é colocada em curso "uma nova política educacional, a qual se sustenta em dois princípios fundamentais: o da qualidade e o da equidade" (VALENZUELA; LABARRERA; RODRÍGUEZ, 2008, p. 136). Com a reforma educacional desse período, nota-se um direcionamento nos currículos escolares para a formação de sujeitos flexíveis, com capacidade de adaptação à mudança e de inovação. Diante desse objetivo, também é intensificada a busca pela melhoria dos resultados obtidos nos programas de avaliação internacionais.

Sobre a educação na Argentina, ao estabelecer um diagnóstico da contemporaneidade, Pablo Pineau (2003) assinala que as matrizes conceitualizadoras da escola em seu país ainda alicerçam-se nos escritos de Domingo Sarmiento. Conforme o autor, essa matriz de pensamento interpreta a escola sob duas perspectivas diferentes, sendo marcadas por uma leitura dualizante. Por um lado, uma abordagem otimista, que sugere que "do lado de fora da escola não há nada" (PINEAU, 2003, p. 115), sendo a instituição a única responsável por desenvolver valores fundamentais como a disciplina, o progresso, a socialização ou mesmo a democracia. De outro lado, o autor observa uma leitura pessimista, que compreende o mundo exterior como o "espaço da barbárie", um espaço com o qual a escola precisa lutar permanentemente.

Dessa maneira, segundo Pineau, "a lógica de funcionamento escolar moderno na Argentina opõe uma escola como máquina superpoderosa e autoelogiada de produção educativa, enfrentada por um lado de fora de deserto-barbárie-crise" (2003, p. 115). O pesquisador delineia uma argumentação que opta pela revisão dessa matriz de pensamento, uma abordagem que colabore para a busca de alternativas para a instituição escolar em seu país. Além de uma ressignificação da função social da escola, o que implicaria reconhecer a importância do mundo social e dos seus próprios limites institucionais, Pineau descreve que a escola argentina "deve fortalecer-se como espaço específico de transmissão da cultura" (PINEAU, 2003, p. 117). Mesmo que essa não seja uma ideia nova, o pesquisador sugere que, em tempos de crise social, política e econômica, ela é ressignificada, uma vez que não é de uma cultura escolar messiânica que se está tratando. Porém, trata-se de "um lugar onde se desenvolvem atividades mais ou menos estáveis e prazerosas vinculadas com a cultura e a simples imaginação de um mundo melhor" (PINEAU, 2003, p. 118).

Ainda referindo-se ao contexto argentino, Dussel (2003) descreve que, atualmente, voltam a adquirir relevância os argumentos de que a escola é o lugar capaz de receber os indivíduos das diferentes camadas sociais, que pode protegê-los e oferecer-lhes possibilidades de futuro. Para além dos debates catastrofistas acerca das instituições sociais, dentre os quais o da escola, a pesquisadora recomenda uma postura otimista. Tal postura extrapolaria, em sua concepção, os discursos de "ajustes à realidade", permitindo "pensar formas de intervenção que produzam mudanças nas coordenadas da situação em que estamos" (DUSSEL, 2003, p. 23). Nessa direção, falar em crise nos cenários educativos argentinos implicaria repolitizar a escola e repolitizar a própria crise.

Servindo-se de aportes teóricos pós-estruturalistas, Dussel propõe novas conexões para as relações entre educação e política. Baseando-se no pensamento de Jacques Rancière, indica que "a política é o que permite que vejamos nos excluídos outra coisa que vítimas que devem ser tratadas pela via carcerária-repressiva ou pela filantrópica-caritativa, e que lhes demos um lugar de pares nessa ação de configurar a sociedade" (DUSSEL, 2003, p. 24). Da possibilidade de escapar de abordagens repressivas ou filantrópicas, deriva-se a perspectiva de que "existe uma especificidade da transmissão cultural que sustenta e singulariza a educação" (DUSSEL, 2003, p. 25). Em outras palavras, sua analítica conduz-nos a pensar que, para politizarmos a educação, precisamos reencontrar a singularidade desse processo – a transmissão cultural. Dussel ainda nos adverte que a escola de nosso tempo não pode renunciar ao ato de ensinar, de ampliar os conhecimentos dos sujeitos escolares e de prepará-los para a tarefa de renovar o mundo.

No Brasil, tal como visualizamos no contexto latino-americano, algumas investigações produzidas também privilegiam dissertar sobre as políticas de escolarização com foco na transmissão cultural. Nesse cenário, destacamos os estudos recentes de Moreira (2010) que privilegiam, analiticamente, o tratamento da questão do conhecimento escolar. O autor tem criticado determinadas propostas curriculares alternativas que, segundo sua leitura, atribuem "uma ênfase exagerada na experiência cultural do aluno" (p. 202). Segundo essa concepção, podem tornar-se problemáticas as políticas de currículo que se abrem a um conjunto de manifestações culturais contemporâneas, aos saberes comunitários e às experiências subjetivas dos estudantes. Nas palavras do pesquisador, "não basta procurar desenvolver no aluno uma auto-imagem positiva e organizar-lhe um espaço adequado para convivência, socialização e aprendizado de valores e condutas. Se tudo isso é indispensável, não é suficiente" (MOREIRA, 2010, p. 202).

A proposta de revitalizar o debate sobre o conhecimento escolar não implica reconhecê-los como entidades idealizadas, neutras, ou produto de ações verticais de poder. Segundo essa argumentação, a definição de conhecimentos básicos a serem ensinados seria uma construção coletiva, escapando "da polarização entre estratégias de mudança conduzidas de cima e a pura espontaneidade das escolas" (MOREIRA, 2010, p. 203). Continuando na perspectiva desenvolvida por Moreira, adquire relevância nesse processo a construção de uma educação de qualidade; a qual "deve permitir ao estudante ir além dos referentes de seu mundo cotidiano, assumindo-o e ampliando-o, de modo a tornar-se um sujeito ativo na mudança de seu contexto" (MOREIRA, 2009, p. 2). Enfim, nessa abordagem, uma educação de qualidade é aquela que garanta conhecimentos escolares relevantes (MOREIRA, 2009).

Conforme abordamos nesta seção, os debates e perspectivas investigativas sobre o conhecimento escolar na América Latina assinalam duas perspectivas complementares: por um lado, percebemos uma intensificação das reformas de inspiração neoliberal que apregoam um foco curricular nas noções de equidade e de qualidade e na formação de sujeitos flexíveis e inovadores; por outro lado, evidencia-se uma secundarização dos processos de transmissão cultural nas políticas contemporâneas de escolarização, permitindo que, em determinados contextos, o conhecimento escolar seja secundarizado nos currículos escolares. Com esse diagnóstico inicial, a seguir, descreveremos nossos procedimentos investigativos para a realização da revisão de literatura que empreendemos neste estudo.

O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA REVISÃO DE LITERATURA: ABORDAGEM METODOLÓGICA

Considerando o atual estado da questão no contexto latino-americano, conforme desenvolvemos na seção anterior, nesta seção apresentamos os procedimentos que orientaram nossa revisão. Para seu desenvolvimento, procuramos estabelecer um mapeamento das principais tendências analíticas que perfazem os estudos sobre as políticas do conhecimento escolar no Brasil. Assim sendo, nosso estudo mobilizou-se, pelo menos, com as seguintes intencionalidades: a) revisar a produção acadêmica sobre o assunto nos principais periódicos brasileiros; b) relacionar nossa abordagem investigativa a estudos consolidados na área; c) subsidiar novos estudos e pesquisas no contexto educacional brasileiro. Esse conjunto de objetivos permitiu que tivéssemos uma abordagem relativamente ampla sobre a produção no campo. A relevância dessa revisão decorre da importância desse procedimento para a familiarização com o campo em que pretendemos movimentar-nos, uma vez que "o encontro de novos insights precisa estar baseado no conhecimento já disponível" (FLICK, 2013, p. 42).

Como estratégia de organização da literatura, optamos pela realização de "mapas da literatura", conforme a abordagem metodológica proposta por Creswell (2010). Segundo o autor, tais mapas são ferramentas úteis para a apresentação das informações a pesquisadores iniciantes, como forma de resumo da literatura para referenciar pesquisas coletivas ou ainda para a publicação de artigos em periódicos especializados. Essas ferramentas permitem a composição de uma visão abrangente da literatura, ao mesmo tempo em que esboçam um quadro geral das pesquisas relevantes publicadas em determinada área.

Esse mapa é um resumo visual da pesquisa que já foi conduzida por outros e é tipicamente representado em uma figura. Os mapas são organizados de diferentes maneiras. Uma maneira pode ser uma estrutura hierárquica, com uma apresentação de cima para baixo da literatura, terminando na base com o estudo proposto. Outra maneira pode ser similar a um fluxograma, em que o leitor entende a literatura como se desdobrando da esquerda para a direita, com a seção mais à direita sugerindo o estudo proposto. Um terceiro modelo pode ser uma série de círculos, cada um representando um corpo da literatura e, a interseção dos círculos, o local em que a pesquisa futura está indicada. (CRESWELL, 2010, p. 61-62)

A elaboração e a organização dos "mapas da literatura" (CRESWELL, 2010) foi delineada a partir de estudos teóricos publicados nas revistas selecionadas. Entendemos que a literatura teórica inclui "as obras sobre os conceitos, definições e teorias usadas em um campo de investigação" (FLICK, 2013, p. 45). Nessa direção, pretendemos trabalhar com questões que concernem às principais teorias e campos teóricos utilizados nas investigações, as abordagens metodológicas emergentes nesses estudos e, principalmente, as tendências que orientaram a composição temática no campo.

Para a seleção dos materiais, recorremos a duas estratégias prioritárias. Inicialmente, examinamos estudos que produziam sínteses ou abordagens gerais acerca das pesquisas produzidas na área. Na segunda estratégia, buscamos artigos de periódicos nacionais no campo da educação (CRESWELL, 2010). Para a revisão de literatura, consideramos os artigos publicados nos seguintes periódicos: Cadernos de Pesquisa, Currículo sem Fronteiras, Educação e Pesquisa, Educação e Realidade e Revista Brasileira de Educação. A escolha dos referidos periódicos deve-se à sua relevância no campo educacional, bem como à concentração de artigos sobre temáticas relacionadas aos objetivos de nossa investigação.

Conforme vimos argumentando, para o estudo do conhecimento escolar nas políticas de escolarização mobilizadas pelo Estado brasileiro, realizamos uma revisão da literatura objetivando diagnosticar as principais tendências investigativas nos estudos realizados no campo. Para tal empreendimento, consideramos que o conhecimento escolar, segundo a acepção de Santos (1995, p. 27), "tem características próprias que o distinguem de outras formas de conhecimento". Nessa perspectiva, entendemos que tal forma de conhecimento é produto das relações entre as instituições escolares e o contexto social e econômico que o perfaz. Nessa direção, reconhecemos que "a compreensão do processo de produção desse conhecimento amplia a compreensão sobre a prática pedagógica e evita simplificações centradas na questão de conteúdo x método" (SANTOS, 1995, p. 27). Assim, iniciamos nosso estudo com uma concepção bastante ampliada desse conceito, o que nos permitiu que selecionássemos artigos de diferentes concepções teóricas e também de diferentes nuances investigativas.

Para a realização desse objetivo, realizamos dois recortes empíricos, a saber: a) um recorte temporal, no qual optamos pelos artigos publicados no período entre 2002 e 2012; b) um recorte conceitual, no qual consideramos como descritores a serem examinados as seguintes palavras-chave: currículo, conhecimento escolar, conteúdos escolares, disciplinas escolares e políticas do conhecimento escolar. A articulação de ambos os critérios permitiu-nos a seleção do material a ser analisado, que totalizou 72 artigos (Gráfico 2).



De imediato notamos que, mesmo ingressando com intensa produtividade na última década, ao longo do período examinado os estudos sobre o conhecimento escolar tiveram uma redução em seu espaço editorial2 2 No ano de 2012 coletamos somente três artigos devido ao encerramento da primeira etapa da investigação. . Notamos, todavia, que, ao final do período examinado, ocorreu uma ampliação no número de artigos que versavam sobre a temática. Ao longo dos textos examinados, constatou-se uma predominância de estudos de natureza teórica, aproximando-se do que os autores do campo têm assinalado (Gráfico 3).


No que tange ao contexto de produção dos estudos analisados, notamos uma preponderância de pesquisas realizadas no Brasil (Gráfico 4). Obviamente que tais dados não sugerem nenhum tipo de endogenia na produção dos estudos, visto que boa parte dos estudos toma como escopo analítico correntes desenvolvidas em outros lugares. Quanto aos autores mais referenciados, podemos indicar Michel Foucault, Gilles Deleuze, Ernesto Laclau, Michael Apple, Michael Young, Thomas Popkewitz, Bernard Charlot, José Augusto Pacheco, Ivoor Goodson, Paulo Freire, José Carlos Libâneo, Antônio Flávio Moreira, Alfredo Veiga-Neto, Tomaz Tadeu da Silva, Alice Lopes, Elizabeth Macedo, entre outros.


Após termos percorrido a produção acadêmica publicada em cinco dos principais periódicos científicos do campo educacional brasileiro e termos selecionado setenta e dois artigos publicados ao longo da última década, notamos que os estudos sobre o conhecimento escolar, em suas amplas e diversificadas abordagens investigativas, apresentam uma importante consistência teórica. Entre as inúmeras possibilidades de análise, notamos a constituição de três grandes ênfases analíticas, a saber: políticas de organização do conhecimento escolar, práticas escolares e epistemologias do currículo. Examinaremos e aprofundaremos os mapas da literatura de cada uma das tendências na próxima seção.

POLÍTICAS, PRÁTICAS E EPISTEMOLOGIAS: TENDÊNCIAS PREDOMINANTES

A compreensão dos modos de constituição do conhecimento escolar tal como o estamos produzindo sugere a ampliação dos campos de problematização para além dos contextos estritamente vinculados às escolas. Nesse sentido, compreendemos a importância de problematizarmos as práticas de escolarização pelas condições culturais que lhes permitem a emergência. Conforme Forquin (1993), nessa direção, "o pensamento pedagógico contemporâneo não pode se esquivar de uma reflexão sobre a questão da cultura e dos elementos culturais dos diferentes tipos de escolhas educativas, sob pena de cair na superficialidade" (p. 10). A perspectiva desse posicionamento teórico sobre o campo educativo implica ainda uma ampliação de sua esfera de intervenção, visto que abrange desde os processos de socialização dos indivíduos até os processos formalizados de escolarização. Em comum a esses espaços formativos, podemos posicionar a necessidade de transmissão de algum tipo de conteúdo, visto que "o empreendimento educativo é a responsabilidade de ter que transmitir e perpetuar a experiência humana considerada como cultura" (FORQUIN, 1993, p. 13). Ou ainda, a escola sempre transmite algo da cultura.

Posicionarmos a questão educativa em uma perspectiva cultural não significa supormos a cultura como uma estrutura estável e permanente. Pérez Gómez (2011, p. 12), por exemplo, sugere uma ampliação dessa interpretação para uma abordagem mais plural, na qual a escola pode ser compreendida como "um cruzamento de culturas que provocam tensões, aberturas, restrições e contrastes na construção de significados". Essa perspectiva também pode ser lida na definição de Sacristán (2013, p. 10), na abertura de uma importante coletânea, quando define o currículo como "o conteúdo cultural que os centros educacionais tratam de difundir naqueles que os frequentam, bem como os efeitos que tal conteúdo provoca em seus receptores". Na acepção proposta pelo pesquisador espanhol, os conteúdos culturais ocupam a centralidade daquilo que nomeamos como currículo, visto que, em sua perspectiva, "a escola 'sem conteúdos' culturais é uma ficção, uma proposta vazia, irreal e irresponsável" (SACRISTÁN, 2013, p. 10). Em outras palavras, os conteúdos culturais, em sua multidimensionalidade, são as condições lógicas para a organização do ensino e, consequentemente, para a constituição dos currículos escolares.

Considerando as condições plurais que perfazem essa constituição, ao revisarmos a literatura notamos a concentração em três grandes tendências analíticas, vinculadas aos sentidos políticos, aos sentidos didáticos e aos sentidos epistemológicos (Gráfico 5).


Na primeira tendência descrita, consideramos como políticas de produção do conhecimento escolar as pesquisas que versavam sobre democratização, justiça escolar, concorrência, mercado e regulação, globalização, políticas e identidades escolares, economia do conhecimento, conhecimento, culturas epistêmicas, políticas educacionais, neoliberalismo, aliança conservadora, mercado, estado, reforma, neoliberalismo, poder e controle, indicadores educacionais, gestão, sociedade de aprendizagem/conhecimento, governamentalidade, ideologia, trabalho docente, competência, qualificação, performance e performatividade, reforma escolar, teoria do capital humano, cidadania, programa institucional, disciplinas e diretrizes curriculares (Figura 1).


Dentro dessa perspectiva, destacamos imediatamente a abordagem de Pacheco e Pereira (2007) ao escreverem sobre a globalização e a identidade dentro da escola, entendendo que aquela promove a homogeneização cultural, enquanto esta se apresenta como o meio pelo qual isso acontece, pois a escola atua e relaciona-se com a diversidade e a identidade dos indivíduos. Por outra posição teórica, Apple (2002) afirmava que "a educação é um espaço de conflitos e de compromissos". O compromisso é com a educação, o desenvolvimento, o conhecimento escolar e a aprendizagem dos estudantes. Em sua argumentação, os conflitos se dão justamente nessas ações, na escolha dos conteúdos, no poder e ideologia que podem estar escondidos nos currículos.

Ainda acerca das políticas curriculares, essa perspectiva pode ser reforçada por Santomé (2004), que demonstra como a memória coletiva é controlada pelos sistemas de avaliação da educação, envoltos em processos de mercantilização. Não obstante, refletindo sobre os objetivos e funções da educação no Brasil, Libâneo (2012) discorre sobre o fato de as escolas viverem um dualismo, pois a formação dos mais pobres é voltada para o acolhimento social e à cidadania, enquanto que as escolas elitizadas são centradas numa aprendizagem tecnológica e no desenvolvimento para o futuro.

Permitindo, assim, refletir sobre o que Ball (2010) nomeia de performatividade, ou seja, a estratégia de atuação política que leva os sujeitos a pensarem e refletirem sobre si mesmos de forma ativa e empreendedora. Tendo em vista esses aspectos na constituição do conhecimento escolar, notamos certo direcionamento para que esse processo ocorra de forma flexível e reflexiva, articulando os processos formativos às demandas políticas e econômicas do capitalismo contemporâneo.

Como práticas escolares e mediações pedagógicas, segunda tendência, consideramos as pesquisas que tematizavam o trabalho docente, inclusão e sucesso escolar, avaliação, escola de ciclos, seleção e diferenciação, integração curricular, experiência e aprendizagem, aprendizagem colaborativa, formação de professores, ensino de língua materna, construção do conhecimento na infância, livros didáticos, identidade cultural, ferramentas culturais, didática, desenvolvimento do aluno, concepções de aprendizagem, acesso e permanência, transposição didática, relação com o saber, interdisciplinaridade, qualidade escolar e formação humana. Nessa tendência, notamos uma intensa diversificação teórica, tal como explicitaremos a seguir (Figura 2).


Questionando-se a respeito do sucesso na escola, Perrenoud (2003) argumenta que para agir corretamente quanto aos critérios que envolvem o sucesso escolar, há uma grande necessidade de se ater ao currículo e suas respectivas funções. Segundo o pesquisador, este é um dos documentos em que ficam estabelecidas normas, formas e objetivos que conduzirão o processo escolar ao possível "sucesso". Para tanto, o autor demonstra que o currículo precisa estar fundamentado no ensinar e no aprender, pois a avaliação do currículo, dessa maneira fundamentará o sucesso escolar.

Por outra perspectiva, Beane (2003) mostra também que o currículo tradicionalmente dividido por disciplinas ainda é a forma dominante, estando voltado a concepções oriundas de uma idealização do jovem para o mundo acadêmico. Em sua abordagem, assinala que o currículo deve estar voltado para a vida real do discente, de modo que este possa compreender seu mundo. Por isso, Beane propõe a concepção de integração curricular, em que o conhecimento partiria de centros geradores, dentro de um contexto, extrapolando "a compreensão de si próprios e do seu mundo" (BEANE, 2003, p. 94). Promover-se-ia, assim, uma quebra da hegemonia constituinte do poder que envolve os conhecimentos contidos no currículo, aos quais privilegiam certas classes sociais.

Ampliando a diversificação teórica, Saviani e Duarte (2010) partem de uma perspectiva metafísica e marxista para a análise da formação humana atual. Primeiramente defendem a ideia de que educação é a comunicação entre os homens, que são sujeitos históricos, formados historicamente, tendo como foco a perspectiva histórico-ontológica (preconizando a formação humana baseada no trabalho). Nessa tendência, notamos uma opção por estudar as formas escolares, indicando uma preocupação com o tratamento didático do conhecimento a ser ensinado na escola.

A terceira tendência mapeada nomeamos como epistemologias do currículo. Utilizamos tal caracterização pelos temas apresentados, a saber, multiculturalismo, sociologia do currículo, internacionalização, teorias educacionais, competência e desempenho, pesquisa e pós-graduação, transmissão cultural, escola e cidadania, teoria e método, diferença, saberes escolares, humanismo, consciência contemporânea, universalidade da cultura, pedagogia marxista, fracasso escolar, desigualdade, pensar e conhecer, pedagogia do conceito, sujeito cosmopolita, salvação educacional e interdisciplinaridade. Enfim, por epistemologias do currículo nomeamos os diferentes sistemas explicativos, advindo das diferentes ciências humanas, que se propõem a fundamentar os processos de constituição do conhecimento escolar.

Sublinhando estas questões da epistemologia do currículo, Dussel (2009) aponta que a escola está passando por uma crise de legitimidade, pois deixou de ser um espaço somente de transmissão cultural, com fins de socialização, mas passou a se confrontar com novos recursos para a transmissão de saberes. Para a autora, o desafio é transmitir uma cultura que possibilite o conhecimento do passado, bem como facilite a convivência direta do indivíduo em sociedade, formando uma cultura comum, não individualista; expondo a cultura dos sujeitos e aprendendo com o outro (Figura 3).


Acerca das relações com o saber, o acesso e permanência nas escolas, bem como com as desigualdades que fazem parte da contemporaneidade, Rochex (2006) coloca o saber escolar como uma produção que deve seguir a descontextualização, a recontextualização, o distanciamento e a redescrição dentro do que faz parte da experiência dos discentes. A relação com o saber deve ser vista dentro de um contexto histórico, social e cultural, diferente para cada indivíduo, mas que deve ser partilhada.

Moreira e Candau (2003), em outra direção, refletem sobre o papel dos cursos de licenciatura em proporcionar uma formação adequada aos futuros docentes, priorizando o trabalho com o multiculturalismo, de forma a emancipar os indivíduos. O papel dos professores seria problematizar em suas práticas as relações de poder nas quais estão inseridos, evitando constrangimentos e preconceitos. A escola, como um meio social, deve propor um hibridismo cultural, expandindo a visão dos discentes, promovendo a reflexão sobre o preconceito dentro da sala de aula, o reconhecimento das diferenças e uma ação conjunta, que não modifique apenas os conteúdos, e sim mude a visão de educação. Nessa concepção, percebemos uma predominância de estudos de natureza histórica, sociológica ou filosófica sobre o conhecimento a ser ensinado na escola. Ao mesmo tempo, visibilizamos uma ênfase em estudos críticos que problematizam os lugares sociais da escola e do conhecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do presente artigo, procuramos descrever os itinerários percorridos na produção de uma pesquisa cujo objetivo é elaborar uma revisão da literatura publicada no Brasil acerca da constituição do conhecimento escolar, na última década. Tomando como escopo analítico o campo da sociologia da educação e, consequentemente, reconhecendo a educação enquanto um processo formativo destinado às futuras gerações, desenvolvemos neste texto analítico uma abordagem crítica dos processos escolares contemporâneos, sobretudo esboçando um entendimento das práticas de socialização e de transmissão cultural enquanto processos socialmente produzidos. Para delinearmos essa perspectiva, partimos de uma revisão dos estudos sobre as políticas curriculares na América Latina, identificando duas grandes tendências teorico-políticas, a saber: de um lado, um fortalecimento das políticas educacionais focadas nas noções da qualidade e da equidade, visando a uma formação escolar centrada na inovação e na flexibilidade; de outro, uma diminuição do espaço atribuído ao conhecimento escolar nas novas políticas curriculares, geralmente secundarizando os processos de transmissão cultural.

Com esse diagnóstico, desencadeamos um processo investigativo de revisão da literatura sobre o conhecimento escolar publicada em cinco periódicos brasileiros ao longo da última década. Para a organização do processo, optamos metodologicamente pela elaboração de "mapas da literatura", tal como evidenciado por Creswell (2010). Ao produzirmos esses mapas, notamos uma predominância de grandes tendências investigativas sobre o conhecimento escolar nas revistas de nosso país: a) políticas de organização do conhecimento escolar; b) práticas escolares; c) epistemologias do currículo. Após termos examinado os setenta e dois artigos selecionados para essa investigação, notamos que os estudos sobre o conhecimento escolar, em seus amplos e diversificados modos de abordagem, têm apresentado significativa consistência teórica, embora ainda apresentem poucos estudos de natureza empírica.

Por fim, destacamos a relevância política e pedagógica de intensificarmos os estudos acerca das políticas de constituição do conhecimento escolar. Compreender as diferentes estratégias políticas que perfazem essa constituição, ao mesmo tempo em que diagnostiquemos suas múltiplas possibilidades de intervenção pedagógica na Educação Básica, apresenta-se, em nosso leitura, como uma tarefa e como um desafio. Experienciamos um tempo em que as gramáticas políticas e econômicas sobre a qualidade da escola pública tendem a reduzi-la a aspectos quantitativistas e produtivistas, o que nos desafia a examinar as práticas de escolarização por outras configurações analíticas. Talvez uma possibilidade seja revitalizarmos a escola enquanto uma arena democrática, capaz de promover a garantia do acesso e da permanência aos estudantes, com foco na seleção de conhecimentos escolares socialmente relevantes.

Recebido em: SETEMBRO 2013

Aprovado para publicação em: OUTUBRO 2013

La institución escolar nació y sigue existiendo con una finalidad expresa en la que todo el mundo coincide. Es el espacio donde se produce de manera "intencional" la toma de contato con el legado cultural que cada sociedad fue construyendo (SANTOMÉ, 2006, p. 84).

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  • 1
    O presente artigo deriva-se do projeto de pesquisa "Políticas de ampliação da jornada escolar para o Ensino Médio no Rio Grande do Sul: um estudo sobre o conhecimento escolar", que conta com financiamento do CNPq.
  • 2
    No ano de 2012 coletamos somente três artigos devido ao encerramento da primeira etapa da investigação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Mar 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      Set 2013
    • Aceito
      Out 2013
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