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Uma historiadora militante: Maria Lúcia Mott (1948-2011)

Una historiadora militante: Maria Lúcia Mott (1948-2011)

A militant historian: Maria Lúcia Mott (1948-2011)

Resumos

Este artigo é uma homenagem à memória de Maria Lúcia Mott, historiadora que tem seu nome e sua produção acadêmica ligados à história das mulheres e, particularmente, à história do parto, das parteiras, das instituições de saúde e da filantropia. Partindo da trajetória acadêmica da historiadora colocamos em relevo os temas de seus estudos e as principais publicações que a destacaram como uma pesquisadora incansável, criativa e comprometida com a investigação histórica.

Memória; historiografia; história das mulheres; Mott, Maria Lúcia de Barros


Este artículo es un homenaje a la memoria de Maria Lúcia Mott, historiadora cuyo nombre y producción académica están vinculados a la historia de las mujeres y sobre todo a la historia del parto, de las parteras, de las instituciones de salud e la filantropía. Partiendo de la trayectoria académica de la historiadora ponemos en relieve los temas de sus investigaciones y las principales publicaciones que la destacaron como una investigadora incansable, creativa y comprometida con la investigación histórica.

memoria; historiografía; historia de las mujeres; Mott, Maria Lúcia de Barros


This article is a tribute to the memory of Maria Lúcia Mott, a historian whose name and academic research are related to the history of women, and particularly to the history of childbirth, midwives, health institutions and philanthropy. We present the historian's academic career and highlight the topics of her research and her major publications, which distinguish her as a tireless and creative scholar committed to historical research.

memory; historiography; women´s history; Mott, Maria Lúcia de Barros


OUTROS TEMAS

Uma historiadora militante: Maria Lúcia Mott (1948-2011)

A militant historian: Maria Lúcia Mott (1948-2011)

Una historiadora militante: Maria Lúcia Mott (1948-2011)

Ana Paula Vosne Martins

Professora do Departamento de História e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Federal do Paraná – UFPR; pesquisadora do CNPq ana_martins@uol.com.br

RESUMO

Este artigo é uma homenagem à memória de Maria Lúcia Mott, historiadora que tem seu nome e sua produção acadêmica ligados à história das mulheres e, particularmente, à história do parto, das parteiras, das instituições de saúde e da filantropia. Partindo da trajetória acadêmica da historiadora colocamos em relevo os temas de seus estudos e as principais publicações que a destacaram como uma pesquisadora incansável, criativa e comprometida com a investigação histórica.

Palavras-chave: Memória; historiografia; história das mulheres; Mott, Maria Lúcia de Barros

ABSTRACT

This article is a tribute to the memory of Maria Lúcia Mott, a historian whose name and academic research are related to the history of women, and particularly to the history of childbirth, midwives, health institutions and philanthropy. We present the historian's academic career and highlight the topics of her research and her major publications, which distinguish her as a tireless and creative scholar committed to historical research.

Keywords: memory; historiography; women's history; Mott, Maria Lúcia de Barros

RESUMEN

Este artículo es un homenaje a la memoria de Maria Lúcia Mott, historiadora cuyo nombre y producción académica están vinculados a la historia de las mujeres y sobre todo a la historia del parto, de las parteras, de las instituciones de salud e la filantropía. Partiendo de la trayectoria académica de la historiadora ponemos en relieve los temas de sus investigaciones y las principales publicaciones que la destacaron como una investigadora incansable, creativa y comprometida con la investigación histórica.

Palabras clave: memoria; historiografía; historia de las mujeres; Mott, Maria Lúcia de Barros

No 10º seminário internacional fazendo gênero, realizado em setembro de 2013, a organização do evento propôs uma mesa redonda em homenagem às feministas e pesquisadoras falecidas recentemente. Foram homenageadas pessoas que deram uma contribuição inegável aos estudos sobre mulheres, gênero e à construção do pensamento feminista brasileiro contemporâneo. A ausência das colegas homenageadas era incontornável, mas a mesa redonda operou esse gesto tão sensível e verdadeiro de evocar suas presenças por lembranças de relações de amizade, acadêmicas e profissionais, como também por escritos e reflexões que constituem seus legados e pelas nossas memórias a respeito de quem elas foram, sobre o que escreveram e quais ideias defenderam.1 1 Mesa redonda "O legado das feministas que se foram: Bel, Cuca, Cristina, Heleieth, Karin e Miriam". Integraram a mesa Albertina de Oliveira Costa, Ana Paula Vosne Martins, Luzinete Simões Minella, Maria Ignez Costa Moreira, Mary Garcia Castro e Francisrosy Campos Barbosa Ferreira. As homenageadas foram Maria Lúcia Mott, Heleieth Iara Bongiovani Saffioti, Cristina Bruschini, Karin Ellen Von Smigay, Maria Isabel Baltar da Rocha e Miriam Lifchitz Moreira Leite.

Este artigo é uma continuação daquele momento de lembranças, e somente pode ser escrito na primeira pessoa. Recordo aqui a trajetória e a produção singular da historiadora Maria Lúcia Mott. Fomos colegas e compartilhamos alguns interesses relativos à pesquisa sobre a história das mulheres. Nossos caminhos se cruzaram na Bahia, em Salvador, quando participamos de um evento sobre parto, maternidade e parteiras, organizado pela professora da Universidade Federal da Bahia – UFBA –, a historiadora Lina Maria Aras. Na sequência, encontramo-nos por ocasião de minha defesa de doutorado na Universidade de Campinas – Unicamp –, em 2000, sendo ela uma das integrantes da banca. Continuamos a nos encontrar a partir de então em eventos como o Seminário Estado, Filantropia e Assistência, realizado no Rio de Janeiro, em 2009, organizado pela Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz. Naquela ocasião tive a oportunidade de comentar um de seus últimos textos numa mesa redonda junto com Tereza Ortiz, Maria Martha Luna Freire, Fabíola Rohden e Maria Renilda Barreto.

Nossa convivência acadêmica durou quase dez anos. Não tenho a pretensão de escrever sobre a trajetória biográfica de Maria Lúcia. Uma vida é sempre tão complexa e enredada em múltiplos fios da existência individual, familiar, dos amigos, dos amores, dos sonhos, das expectativas, das frustrações, das realizações. Esse é um desafio para os biógrafos, e escapa ao objetivo desta homenagem prestada à colega Maria Lúcia. Debruço-me sobre a sua trajetória de pesquisadora e de historiadora; sobre o labor com o tempo, com o passado, com a memória que ela tão bem desempenhou. Maria Lúcia foi uma historiadora plena, competente, profundamente ciente e envolvida no seu ofício. Manejava muito bem os conceitos e as teorias, conhecia com profundidade nosso ambiente de trabalho – os arquivos – e nossos instrumentos de pesquisa – as fontes –, a documentação primária da qual ela tinha profundo conhecimento.

No entanto, antes de enveredar pelos caminhos do conhecimento e da pesquisa históricos produzidos por Maria Lúcia, vou desviar-me um pouco e propor outra aproximação, mesmo que parcial, da pessoa que ela foi. Trata-se de uma publicação que está fora do registro acadêmico e historiográfico, mas que é um bom começo para falar de sua relação com a escrita.

Em 1997, ela publicou com Lô Galasso um livro infanto-juvenil belamente ilustrado por Cecília Iwashita (GALASSO; MOTT, 1997). Tive conhecimento dessa publicação ao participar de uma conversa com Maria Lúcia e Lina Aras em Salvador. Elas falavam sobre as dificuldades das mães naquelas infindáveis negociações para ir à escola: acordar, tomar banho, vestir-se, arrumar o cabelo, tomar café da manhã, enfim, coisas miúdas do cotidiano materno que podem se transformar em situações tensas. Maria Lúcia e sua amiga Lô escreverem um livro para o público infanto-juvenil a partir de suas experiências pessoais como mães, falando da dificuldade de crianças e adolescentes com seus cabelos que nunca ficam no lugar, ou que nunca são como elas gostariam que fossem.

Esse livro simples e divertido sobre o cotidiano de crianças em idade escolar é revelador da capacidade criativa de Maria Lúcia, bem como de sua abertura para o mundo, para a vida, tanto no que ela tem de extraordinário, de inusitado, de insólito, quanto para o que tem de comum e de repetitivo. Maria Lúcia não combinava com a imagem da intelectual de gabinete, sendo uma pessoa aberta a múltiplos interesses, como a arte, o artesanato, o cinema, a literatura, a cultura popular, atitude reveladora da inquietação que move a cabeça e o coração para muitos lugares. Maria Lúcia foi inquieta e atenta, mas desejo ressaltar uma marca distintiva de sua forma de ser e de se relacionar com os outros: a generosidade, tanto para escutar as pessoas quanto para sugerir, para apontar caminhos, para comentar sobre uma fonte interessante, sobre um acervo ainda a ser explorado. Testemunhei sua generosidade algumas vezes quando comentava textos meus ou de outras pessoas, sublinhando qualidades, mas também apontando para outras possibilidades, abrindo caminhos com a sua leitura atenta e cuidadosa.

Os traços da personalidade e a forma como Maria Lúcia se relacionava com as pessoas e o mundo podem ajudar a entender como ela se direcionou para certas áreas da investigação histórica, abrindo novas frentes de pesquisa, descobrindo acervos documentais ou então lançando outro olhar sobre acervos já conhecidos ou pouco explorados. Tratar da sua relação com o fazer histórico talvez seja a melhor maneira de homenageá-la, pois como ela declarou numa entrevista concedida à historiadora Joana Maria Pedro, seu comprometimento com a pesquisa crítica era o que a movia e o que para ela era mais importante (LAGO; TORNQUIST, 2011). Nesse sentido Maria Lúcia foi uma historiadora militante, porque sempre esteve comprometida com a produção do conhecimento histórico, bem conduzida do ponto de vista teórico e metodológico. Seus temas de pesquisa tinham uma dimensão social e política inegável ao tratar dos "recônditos do mundo feminino" (MALUF; MOTT, 1998), das práticas de cuidados com a saúde, das mães e de seus filhos, do parto e da arte de partejar, das parteiras e dos estreitos caminhos da profissionalização feminina em áreas como a medicina e a enfermagem, das possibilidades de participação no mundo público para as mulheres numa sociedade ainda avessa à visibilidade, à mobilidade e à expressão femininas como era a sociedade brasileira até meados do século XX.

Há que se ressaltar que o caráter apaixonado e militante da sua prática histórica encontrou as condições ideais para se fortalecer e florescer no fértil ambiente intelectual e político da Fundação Carlos Chagas – FCC. Maria Lúcia atuou como assistente de pesquisa de 1976 a 1988, e foi assistente editorial dos Cadernos de Pesquisa entre 1984 e 1988. Cabe destacar o papel vanguardista desempenhado pela Fundação Carlos Chagas no amparo e na produção de pesquisas sobre as mulheres e as relações de gênero no Brasil. A partir de 1978, um passo importante para a consolidação dessa área foram os concursos de dotações para a pesquisa, dos quais resultaram livros que são referências fundamentais para a história dos estudos sobre mulheres no Brasil (CADERNOS DE PESQUISA, 1985; BRUSCHINI; ROSEMBERG, 1980, 1982; BARROSO; COSTA, 1983; COSTA; BRUSCHINI, 1989, 1991). Maria Lúcia havia concluído seu curso de graduação em história pela Universidade de São Paulo – USP –, em 1977, e, ao ingressar na Fundação, encontrou as condições propícias para sua atuação como pesquisadora.

A partir de então, tornou-se bolsista da FCC/Fundação Ford, dando início à pesquisa pela qual viria a se tornar conhecida, e que resultaria em sua tese de doutorado sobre a parteira Mme. Durocher e a assistência ao parto no Brasil no século XIX. Como bolsista e assistente de pesquisa na Fundação Carlos Chagas, envolveu-se em outros projetos importantes, como o levantamento da bibliografia sobre as mulheres brasileiras, coordenado por Maria Malta Campos, com a participação de Miriam Lifchitz Moreira Leite, Elba Siqueira de Sá Barretto e Carmem Barroso; o belo projeto coordenado por Miriam L. Moreira Leite sobre as mulheres brasileiras nas obras dos viajantes estrangeiros no século XIX; e a pesquisa sobre a biografia e as obras escritas pela feminista Ercília Cobra Nogueira (MOTT, 1986) A oportunidade de atuar num ambiente intelectual com o da Fundação foi decisiva para o delineamento da trajetória de Maria Lúcia como historiadora social de problemáticas relacionadas às mulheres e à produção da memória.

Outra experiência contemporânea à sua inserção na Fundação foi a participação no movimento feminista e no jornal Mulherio, criado em 1981 também com apoio da Fundação Ford e da FCC e de algumas de suas mais destacadas pesquisadoras. Maria Lúcia viveu as esperanças e as utopias da contracultura, entre elas a da igualdade entre homens e mulheres e a resistência às ignomínias do racismo e de todos os tipos de preconceitos. Seu envolvimento com o feminismo já vinha, portanto, de uma experiência cultural de alguém cuja inquietação, despertada nas viagens que fez pelo mundo afora, foi temperada com a diversidade e o inconformismo rebelde daquela geração que sonhou com outro mundo, mais justo, mais igualitário, menos "careta", como se dizia na época. Maria Lúcia participou diretamente da produção do Mulherio desde 1986, quando começou a escrever resenhas de livros escritos por mulheres, a maioria de natureza autobiográfica e biográfica, demonstrando sua habilidade de historiadora com a escrita memorialística. Naquele mesmo ano passou a ser assistente editorial do jornal e a colaborar com mais frequência, escrevendo resenhas sobre livros de memórias. Em 1987, passou a integrar o conselho editorial do Mulherio, e foi nesse ano que ela deu início à série "Memória feminina contada em livros", publicada em cinco números entre setembro de 1987 e janeiro de 1988. Maria Lúcia apresentava às leitoras e aos leitores do jornal não só uma resenha informativa, mas fazia uma leitura crítica da escrita de autoria feminina tecida com os fios da memória e da experiência, situando aqueles livros em seus contextos sócio-históricos e procurando colocar em relevo as tensas e complexas dimensões dos indivíduos, da sociedade e das contingências históricas.

Nessa mesma época, Maria Lúcia passou a ser pesquisadora do Centro de Estudos de Demografia e História da América Latina – CEDHAL –, da USP. Os estudos produzidos pelo CEDHAL abriram novas frentes de investigação a partir dos estudos de demografia histórica nas interfaces com a história social e a história econômica. Dessas frentes, destacam-se a história da família, das mulheres e da infância na sociedade brasileira desde o período colonial. Outras dimensões da história das mulheres no Brasil, como a escravidão, a imigração, a urbanização e a modernização passaram a fazer parte do conjunto de problemas presentes nos seus trabalhos escritos desde a tese de doutorado.

O primeiro texto escrito por Maria Lúcia a respeito do tema de sua tese de doutorado apareceu no livro Entre a virtude e o pecado (COSTA; BRUSCHINI, 1991). Intitulado "Parteiras no século XIX: Mme. Durocher e sua época", o capítulo apresenta um mundo e pessoas pouco conhecidos pela historiografia brasileira. Falava de uma profissão exercida por mulheres no século XIX, a profissão de parteira e das relações entre elas e os médicos que começavam a partejar em decorrência da institucionalização da obstetrícia nas faculdades de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Seu breve capítulo já demonstrava a dimensão do que viria a ser sua tese, orientada pela historiadora e professora da USP Maria Odila Leite da Silva Dias.

A HISTORIADORA

A tese de Maria Lúcia foi defendida no Programa de Pós-Graduação em História da USP, em 1998, com o título Parto, parteiras e parturientes. Madame Durocher e sua época. O primeiro parágrafo é direto, e explica como Maria Lúcia encontrou Mme. Durocher e aquele mundo dos cuidados com as mulheres, com as parturientes, mães e crianças; dos conflitos e parcerias com os médicos e o saber institucionalizado e controlado; das profissões femininas no século XIX; da imigração, das tensões e dos preconceitos raciais:

O meu interesse pela vida e pela obra de Mme. Durocher (1809-1893) foi despertado em 1988 durante uma pesquisa sobre a criança e a infância na História do Brasil. Na biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo deparei com pequenas lembranças, homenagens, biografias, caricatura, reprodução fotográfica e artigos da primeira parteira diplomada no Brasil. Se as ilustrações de Mme. Durocher com roupas masculinas causaram-me surpresa, as primeiras informações sobre a vida da parteira foram impactantes. (MOTT, 1998, p. 5)

Estruturada em quatro capítulos, a tese aborda um tema então inédito no Brasil, mas não em outros países europeus e nos Estados Unidos, nos quais a discussão sobre os cuidados com a gravidez, o parto e as doenças femininas era já bastante desenvolvida pelos estudos sobre mulheres, pelo menos desde o começo da década de 1970. Maria Lúcia descobriu um corpus documental riquíssimo e não explorado depositado no Arquivo Nacional, nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro e em diversas bibliotecas e arquivos públicos de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais. Há 26 páginas de referências de fontes primárias e de localização de arquivos e bibliotecas em sua tese, bem como de referências bibliográficas – o que revela sua capacidade e seu fôlego de pesquisadora. O resultado de tão detalhada e cuidadosa pesquisa foi uma tese reveladora de outras imagens das mulheres oitocentistas numa sociedade escravista na qual se encontravam de forma tensa e conflituosa, mas também solidária e com muitas margens de criação na luta cotidiana pela sobrevivência, mulheres pobres, brancas, pardas e negras, escravas, forras e imigrantes como mãe e filha Durocher.

Maria Lúcia fez um belo trabalho, que segue as linhas biográficas da parteira Maria Josefina e de sua mãe, a florista Anne Colette, quando chegaram ao Rio de Janeiro em 1816 e se estabeleceram no comércio local. Mas, antes da defesa da tese, a paixão pela memória levou Maria Lúcia para outro registro de escrita: o romance histórico. Em 1995, publicou O romance de Ana Durocher (MOTT, 1995), no qual conta a história da mãe da parteira, Josefina Durocher, construindo uma delicada trama narrativa na qual história e ficção se misturam de forma elegante, sensual e bem sustentada nas fontes primárias de sua tese de doutorado, revelando-se uma escritora de qualidade e de sensibilidade. Maria Lúcia deu corpo a personagens que, em parte, são imaginários, mas que trazem em sua composição fragmentos de personagens históricos que ela conheceu nos arquivos e na documentação. Uma tese é sempre limitada pelo tempo e pelas exigências formais da escrita acadêmica, mas Maria Lúcia encontrou no romance um meio de libertação da forma pela criação literária.

Apesar de tão perto, a tese de Maria Lúcia não é uma biografia de Mme. Durocher. Ela produziu um trabalho que coloca no centro da análise a formação da famosa parteira e de sua longa carreira atendendo mais de 5.500 partos e, a partir desse centro, tece uma rede intrincada sobre o que então se chamava de condição feminina na sociedade oitocentista brasileira, a organização e a institucionalização do saber médico e da profissão médica no país, a organização do atendimento obstétrico pelas parteiras e pelos médicos, a profissionalização das parteiras por cursos das faculdades de medicina, o nível dos conhecimentos a respeito da gravidez e dos partos. Sua tese foi inegavelmente fonte de inspiração para tantos outros trabalhos sobre parto, parteiras e maternidade, sobre a problematização dos cuidados com o corpo e a saúde das mulheres, mas também já se encontrava no seu trabalho a abertura de outras frentes de pesquisa que ela mesma percorreu, como das profissões femininas no atendimento à saúde, a institucionalização da saúde no Brasil entre o final do século XIX e o começo do século XX, a organização da assistência à maternidade e à infância e o associativismo feminino benemerente.

Depois do doutorado, Maria Lúcia deu início a uma intensa atividade de pesquisa em diferentes espaços institucionais. Em sua trajetória, destaca-se um traço de sua personalidade que merece ser enaltecido. Refiro-me à sua capacidade agregadora de colocar as pessoas juntas para conversar e para trabalhar na pesquisa histórica. Maria Lúcia não combinava com a imagem da pesquisadora solitária, isolada em seu gabinete ou nos arquivos. A partir da década de 2000, revela-se sua liderança nas equipes de pesquisa, e ela aparece como coautora de artigos, de capítulos de livros e de livros. Um registro de sua liderança: em 2005, propôs a organização de um simpósio temático sobre parto, parteiras e maternidade no Encontro da Rede Nacional de Estudos Feministas – Redefem –, em Salvador, oportunidade na qual pude compartilhar com ela e a pesquisadora Dagmar Meyer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS –, a coordenação do simpósio temático que resultou no dossiê de mesmo tema na revista Gênero, do Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero da Universidade Federal Fluminense – UFF (MOTT, 2005a). Foi a primeira vez que um simpósio com esse recorte foi proposto num evento feminista, abrindo a possibilidade para outras edições no Seminário Internacional Fazendo Gênero, com participação de pesquisadoras de diferentes áreas.

Ainda sobre a valorosa contribuição de Maria Lúcia para os estudos sobre parto, parteiras e maternidade, é preciso lembrar do dossiê "Parto", presente no volume 10 da Revista de Estudos Feministas, publicado em 2002. Nesse mesmo número, Maria Lúcia traz uma inestimável "Bibliografia comentada sobre a assistência ao parto no Brasil", abrangendo três décadas de produção acadêmica sobre o tema – um instrumento de pesquisa fundamental (MOTT, 2002).

OUTROS CAMINHOS PARA A PESQUISA HISTÓRICA

A realização do pós-doutorado na Escola de Enfermagem da USP, em 1999, e sua inserção no Instituto de Saúde de São Paulo, a partir de 2004, demarcaram outros caminhos, abrindo novas frentes de pesquisa. Foi a partir de então que ela começou a se dedicar também à história das profissões na área de saúde, na qual as mulheres tiveram participação importante, como a medicina e a enfermagem. Convidei-a a escrever um dossiê sobre parto e maternidade para a revista História: Questões e Debates, publicado em 2007. É um artigo que evidencia o interesse de Maria Lúcia e de suas colegas do Instituto de Saúde pelas profissões femininas no atendimento ao parto e às parturientes. São seis as autoras do artigo "As parteiras eram 'tutte quante' italianas (São Paulo, 1870-1920)", demonstrando sua capacidade agregadora de liderança (MOTT et al., 2007). O trabalho de Maria Lúcia no Instituto de Saúde e depois no Instituto Butantan, no Laboratório de História da Ciência, representa uma contribuição preciosa para a história da saúde na cidade de São Paulo, tanto que ela foi convidada para organizar o volume História da Saúde em São Paulo: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958), em parceria com a historiadora Gisele Sanglard, integrando o projeto Rede Brasil: inventário nacional do patrimônio cultural da saúde (MOTT; SANGLARD, 2012).

Desde 2003, ela deu início à pesquisa sobre um tema pouco estudado pelos estudos de mulheres no Brasil. Novamente se percebe seu caráter desbravador e inovador na história das mulheres e dos estudos de gênero. Refiro-me aos estudos sobre a filantropia e à assistência às mães e à infância dispensada pelo associativismo feminino. Sabe-se que os estudos feministas produzidos a partir das décadas de 1970 e 1980 deixaram de lado esse tipo de ação organizada pelas mulheres, porque sobre ela pairava a marca negativa de que se tratava de uma organização elitista de mulheres que acabava por reproduzir lugares de gênero comprometidos com a ordem patriarcal e com a dominação de classe. Pesava sobre o movimento caritativo-filantrópico a pecha de ser um espaço para mulheres ricas, desocupadas e reprodutoras de ideologias de classe e de gênero, portanto, a léguas de distância do feminismo e das lutas pela igualdade de gênero e pela emancipação das mulheres.

Com a experiência que Maria Lúcia tinha sobre as trajetórias por vezes incertas das mulheres trabalhadoras e de camadas médias que se cruzavam no espaço urbano, logo percebeu que havia muito mais do que ocupação do tempo ocioso por parte das mulheres que se envolveram nas organizações filantrópicas. Geralmente eram mulheres das classes mais privilegiadas que compartilhavam do éthos elitário e cristão da superioridade moral dos mais afortunados que deveriam prestar socorro e assistência aos desfavorecidos pela sorte. No entanto, Maria Lúcia conseguiu ver, amparada na produção acadêmica internacional então disponível sobre a ligação entre as mulheres e a filantropia, bem como na documentação inexplorada de organizações como a Cruzada Pró-Infância de São Paulo, que as mulheres foram protagonistas de um importante movimento na sociedade civil que antecipou as políticas públicas de saúde e de assistência. Resultaram dessa nova frente de investigação alguns artigos e a publicação de um belo livro em coautoria com Maria Elisa Botelho Byington e Olga Maria Fabergé Alves, intitulado O gesto que salva: Pérola Byington e a Cruzada Pró-Infância (MOTT; BYINGTON; ALVES, 2005).

Trabalhos como esse são inestimáveis para entendermos como eram poucas as oportunidades de participação das mulheres brasileiras no mundo público. Aquelas que se apresentavam eram as profissões adequadas às concepções predominantes sobre a feminilidade e tão propaladas pela ciência, a moral e a religião, como a educação de crianças, a enfermagem e, em certa medida, a medicina, especialmente naquelas especialidades voltadas para o atendimento às mulheres e às crianças, como a obstetrícia, a ginecologia e a pediatria. A filantropia foi um caminho que, se por um lado reforçava a concepção essencialista e limitadora da feminilidade, por outro lado abria fendas em tal concepção. Foi a partir da filantropia que algumas mulheres começaram a atuar no mundo público de maneira mais constante e, principalmente, a alargar suas visões de mundo no contato com o abandono, o sofrimento, a violência e os efeitos da desigualdade de gênero entre as mulheres que elas, em suas instituições filantrópicas, atendiam. Foi essa compreensão que Maria Lúcia teve da filantropia e das possibilidades que ela representou para mulheres como Pérola Byington, Alice Tibiriçá, Maria Renotte. Médicas, advogadas ou esposas de homens bem situados na sociedade começaram atendendo ao apelo de que o anjo do lar deveria estender seus cuidados para fora do espaço doméstico e familiar. Algumas conseguiram ir além e desempenhar um papel mais ativo e político, seja na organização da assistência e de instituições privadas de saúde, seja fazendo lobby junto às autoridades e aos políticos para que se organizasse uma assistência pública à saúde no país.

Essa é uma área a ser desbravada na pesquisa histórica brasileira. Há quase tudo ainda por se fazer. Maria Lúcia foi uma das primeiras a mostrar as potencialidades dessa área no Brasil. Penso que uma homenagem à altura da sua generosidade, inteligência e criatividade seja essa, destacar seu pioneirismo, sua capacidade analítica e, principalmente, sua liderança. Trilhar os caminhos abertos por ela é uma homenagem que eu, pessoalmente, faço a essa historiadora brilhante que Maria Lúcia foi e que tantas outras pessoas estão trilhando também com suas dissertações, teses e publicações que ela, certamente, gostaria de poder ler e comentar.

Recebido em: SETEMBRO 2013

Aprovado para publicação em: OUTUBRO 2013

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    Mesa redonda "O legado das feministas que se foram: Bel, Cuca, Cristina, Heleieth, Karin e Miriam". Integraram a mesa Albertina de Oliveira Costa, Ana Paula Vosne Martins, Luzinete Simões Minella, Maria Ignez Costa Moreira, Mary Garcia Castro e Francisrosy Campos Barbosa Ferreira. As homenageadas foram Maria Lúcia Mott, Heleieth Iara Bongiovani Saffioti, Cristina Bruschini, Karin Ellen Von Smigay, Maria Isabel Baltar da Rocha e Miriam Lifchitz Moreira Leite.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Mar 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      Set 2013
    • Aceito
      Out 2013
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