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Ensino superior de curta duração: a experiência norte-americana dos community colleges

Educación superior de corta duración: la experiencia norteamericana de los community colleges

Resumos

O artigo descreve inicialmente o lugar do community college no sistema de ensino superior norte-americano. Narra sua origem, crescimento, as fontes de renda, articulação com as demais instituições de ensino superior. Em seguida, registra alguns dos problemas do sistema - ao lado da ampliação do acesso, as análises têm apontado a fragilidade do sucesso, isto é, da performance dos estudantes, bem como da equidade, isto é, da forte estratificação e hierarquização do sistema educativo americano. Assim, argumenta-se que os dilemas e problemas não são estritamente localizados no sistema escolar, mas em uma formação social em que a desigualdade é particularmente aguda.

community college; ensino superior; sistema educacional; Estados Unidos


El artículo describe inicialmente el lugar del community college en el sistema de educación superior norteamericano. Narra su origen, crecimiento, las fuentes de ingreso, así como su articulación con las demás instituciones de educación superior. En seguida, registra algunos de los problemas del sistema - al lado de la ampliación del acceso, los análisis han señalado la fragilidad del éxito, es decir, del desempeño de los estudiantes, así como de la equidad, o sea, la fuerte estratificación y jerarquización del sistema educativo norteamericano. De este modo, se argumenta que los dilemas y problemas no se localizan estrictamente en el sistema escolar, sino en una formación social en que la desigualdad es particularmente aguda.

community college; educación superior; sistema de educación; Estados Unidos


Initially, the article tries to describe the role of Community Colleges in the American system of higher education. It describes its origin, growth, income sources, and relationship with other higher education institutions. After that, it shows some of the problems of the system - alongside the increase in access, the analyses have pointed to the fragility of the success, i.e., students' performance, as well as equity showing the strong stratification and hierarchy of the American educational system. Therefore, it is argued that the dilemmas and problems are not strictly related to the school system, but to a social formation in which inequality is particularly high.

community college; higher education; educational system; United States


OUTROS TEMAS

Reginaldo C. Moraes

Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp - ; pesquisador do CNPq (bolsa de produtividade) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos - INCT-INEU

rccmoraes@gmail.com

RESUMO

O artigo descreve inicialmente o lugar do community college no sistema de ensino superior norte-americano. Narra sua origem, crescimento, as fontes de renda, articulação com as demais instituições de ensino superior. Em seguida, registra alguns dos problemas do sistema - ao lado da ampliação do acesso, as análises têm apontado a fragilidade do sucesso, isto é, da performance dos estudantes, bem como da equidade, isto é, da forte estratificação e hierarquização do sistema educativo americano. Assim, argumenta-se que os dilemas e problemas não são estritamente localizados no sistema escolar, mas em uma formação social em que a desigualdade é particularmente aguda.

Palavras-chave: community college; ensino superior; sistema educacional; Estados Unidos

RESUMEN

El artículo describe inicialmente el lugar del community college en el sistema de educación superior norteamericano. Narra su origen, crecimiento, las fuentes de ingreso, así como su articulación con las demás instituciones de educación superior. En seguida, registra algunos de los problemas del sistema - al lado de la ampliación del acceso, los análisis han señalado la fragilidad del éxito, es decir, del desempeño de los estudiantes, así como de la equidad, o sea, la fuerte estratificación y jerarquización del sistema educativo norteamericano. De este modo, se argumenta que los dilemas y problemas no se localizan estrictamente en el sistema escolar, sino en una formación social en que la desigualdad es particularmente aguda.

Palabras clave: community college; educación superior; sistema de educación; Estados Unidos

Os community colleges - CCs - , faculdades norte-americanas de curta duração, são pouco conhecidos no Brasil, embora constituam parte decisiva do enorme e influente sistema de educação superior norte-americano. Os CCs são responsáveis por mais de 40% dos ingressantes, todo ano - e são especialmente importantes para segmentos tradicionalmente excluídos, como negros, latinos, mulheres e trabalhadores pobres. O Gráfico 1, abaixo, faz um resumo dessa distribuição.


Hoje, além das minorias étnicas e dos "brancos pobres", mesmo a classe média ou "remediada" percebeu que o CC pode ser um caminho para reduzir o custo de uma graduação. É bom lembrar que todo ensino superior nos Estados Unidos é pago, mesmo aquele oferecido por instituições públicas.

A estratégia de reduzir os custos através de CCs é um tanto óbvia e simples. Os estudantes começam pelo community college, bem mais barato (cf. Gráfico 2). Nele, cursam os dois primeiros anos fundamentais do ciclo de graduação e recebem um diploma, o Associate Degree. Depois completam seu curso em uma escola de quatro anos (um 4-year college ou uma universidade estadual, por exemplo), obtendo um bacharelado. Vários estados dispõem de planos diretores e de sistemas de articulação entre a rede de CCs e as universidades estaduais, que viabilizam as transferências e complementações de estudos - a política do transfer.


Essa tem sido uma estratégia cada vez mais usual para enfrentar a tremenda subida dos preços das faculdades, em contraste com a estagnação das rendas familiares. Veja-se o Gráfico 3, que compara a evolução das anuidades e da renda familiar média.


Essa situação tem estrangulado o orçamento das famílias. Há grandes programas públicos (federais, principalmente) de bolsas, integrais e parciais. Há, também, grandes programas federais de empréstimos estudantis. Mas, ainda assim, o cálculo do valor a ser pago pela família é decisivo - não por acaso, um dos sinais de alarme da sociedade americana, no momento, é o enorme volume da dívida estudantil. Alguns analistas estimam que se trata da segunda maior dívida de pessoas físicas nos Estados Unidos. A primeira é a tristemente famosa dívida com hipotecas imobiliárias. A terceira é a dos cartões de crédito. O Gráfico 4 mostra a evolução dos empréstimos estudantis, uma escalada visível sobretudo depois de 1990.


ORIGEM, CRESCIMENTO E RELEVÂNCIA DOS COMMUNITY COLLEGES

Os community colleges são descendentes de uma instituição nascida há mais de 100 anos, os junior colleges. Estes foram imaginados pelos líderes acadêmicos da época como uma espécie de ponte entre o ensino fundamental e a "verdadeira universidade", uma ponte que não viam na escola média, a high school. O junior college deveria ser o fornecedor da formação geral e propedêutica necessária para amadurecer os estudantes e prepará-los intelectualmente para a universidade. Esses líderes acadêmicos comparavam os dois primeiros anos de graduação com o lycée francês ou o Gymnasium alemão, uma comparação que ainda hoje faz sentido, do ponto de vista curricular.

O community college é saudado por seus historiadores e analistas como "uma invenção americana", o que tem grande margem de verdade. Contudo, o ensino superior de curta duração, massificado, está longe de ser exclusividade dos Estados Unidos. Não podemos desenvolver esse tema aqui, mas seria instrutivo comparar a expansão dos CCs com instituições similares, como, por exemplo, as Sections de Techniciens Supérieurs - STS - , que deslancharam depois de 1980, na França.

Desde logo, o junior college foi adquirindo uma outra dimensão, além da acadêmica, preparatória para a universidade - uma dimensão herdada pelos community colleges de hoje. Trata-se do ensino "vocacional" ou "profissionalizante", a preparação para o trabalho nas chamadas "semiprofissões", aqueles nichos de ocupação que exigem mais do que o treinamento técnico industrial, por exemplo, e menos do que, digamos, uma escola de economia, medicina ou engenharia, ou um bacharelado em biologia, química etc.

Como todo o ensino superior americano, esse segmento junior sofreu o impacto decisivo das políticas do pós-guerra. Quando comparamos a educação superior americana antes e depois da guerra temos a impressão de se tratar de duas coisas muito diferentes. Ela passa de predominantemente privada para predominantemente pública, sobretudo na graduação. E, nesta, o papel dos community colleges não parou de crescer. O Gráfico 5 mostra o crescimento do número de escolas, incluindo aquelas que têm mais de um campus.


Embora a gestão dos sistemas de educação nos Estados Unidos seja prioritariamente local e estadual, a influência do governo federal na modelagem e na expansão do sistema foi decisiva, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX. Logo depois da Guerra Civil, a Lei Morrill doava terras aos estados para que impulsionassem a criação ou expansão de escolas superiores de engenharia e agricultura. Essa política gerou a rede dos land-grant colleges and universities, uma rede que, em boa medida, deu origem às universidades estaduais. A iniciativa federal foi um forte estímulo aos estados. Uma outra onda expansionista ocorreu depois da Segunda Guerra, quando o GI-Bill, a lei de reinserção dos veteranos, distribuiu milhões de bolsas de estudo e revolucionou o sistema de ensino superior, inclusive os community colleges. Uma terceira onda relevante ocorreu nos anos 1960, quando uma série de políticas destinadas a incorporar minorias transformou os community colleges na porta de entrada para negros, latinos e brancos pobres. É bom lembrar que a década de 1960 foi decisiva para os chamados direitos civis e as políticas federais contra a segregação.

Em todos esses momentos, a política federal foi decisiva para expandir e modelar o sistema, como dissemos. Contudo, a gestão e mesmo a manutenção básica das escolas dependiam muito dos orçamentos estaduais. No caso dos CCs, as dotações estaduais foram e são marcantes, como se pode ver na Tabela 1.

Pode-se ver no Gráfico 6 uma outra representação dessa realidade.


A expansão da rede de CCs teve um papel decisivo na chamada democratização do acesso. Não apenas porque eram mais baratos - bem mais baratos até do que as universidades estaduais - , mas também porque eram descentralizados, tendo sido criados em praticamente todo o país. O site da associação nacional dos CCs registra hoje cerca de 1.100 dessas escolas. E várias delas têm mais de um campus, conforme dissemos. O crescimento pode ser medido ainda por outro indicador, o número de matrículas, conforme se vê no Gráfico 7.


Graças a essa rede - além dos campi auxiliares das universidades estaduais - ,1 1 O sistema educacional norte-americano, em todos os níveis, é largamente descentralizado, em âmbito local ou estadual. Não há universidade federal, por exemplo. As escolas superiores federais que existem são as academias militares. Prevaleceu a tendência de constituição de universidades estaduais, herdeiras de uma política do século XX, a Lei Morrill, que condicionava a doação de terras aos estados à criação de escolas de agricultura e engenharia. Não temos espaço aqui para narrar essa notável epopeia, pouco conhecida no Brasil. O leitor poderá encontrá-la em livro que devo publicar ainda este ano pela Editora Unesp, com o título Educação superior americana: história e estrutura. estima-se que nenhum candidato deixa de ter, a uns 40 quilômetros de sua casa, um ponto de acesso a um curso superior. Aliás, em alguns estados, a política de expansão seguiu um caminho alternativo, mas que, em certa medida, mimetizava os CCs: as universidades estaduais criavam campi especiais, fora de sua sede, onde eram oferecidos os dois primeiros anos de graduação.

A descentralização, além de tudo, reduz um custo não visível nas tabelas de anuidades - o custo da residência e manutenção do estudante (room and board). O estudante pode morar onde já morava e pode trabalhar. Um dos efeitos dessa expansão foi o peso cada vez maior do estudante commutter, ou em tempo parcial, comparativamente ao estudante residente, ou em tempo integral.

PROBLEMAS DO SISTEMA EDUCACIONAL AMERICANO E DOS COMMUNITY COLLEGES, EM ESPECIAL

O CC é parte de um sistema que cresceu sem ser previamente desenhado em detalhe. Como dizia um sábio do Iluminismo escocês, as instituições humanas são resultado da ação humana, mas não necessariamente de seu design. O CC é parte integrante de um sistema que se montou para responder a diversificados desafios: formar as elites, incorporar os imigrantes e americanizá-los, fornecer ao mercado força de trabalho qualificada, inventar e inovar, gerar uma cultura hegemônica para uma nação com inclinação imperial.

Hoje, além da presença decisiva na recepção e formação de grande parte dos calouros, os CCs respondem por um enorme contingente de estudantes non degree, isto é, estudantes que frequentam cursos de menor duração, de foco mais prático e imediatista. Eles não vão ao CC para obter um diploma de assoaciate degree, mas para fazer um ou outro curso, geralmente vocacional ou de idioma (estrangeiros tentando melhorar seu inglês). Visitei um CC da City University de New York - CUNY - , no distrito pobre do Bronx, que é um retrato reduzido dessa realidade. Mas a CUNY é, ela própria, esse retrato, em escala um pouco maior. Além de seus senior colleges e escolas de pós-graduação, ela tem sete CCs, acolhendo mais de 200 mil estudantes. E recebe outros 200 mil estudantes non degree, sobretudo no seu sistema próprio de community colleges.

Essa área, a de cursos "livres", em geral profissionalizantes, tem crescido nos CCs, que dedicam cada vez mais esforços para a formação de força de trabalho intermediária - por exemplo, aquela que fica entre o engenheiro e o operário especializado. Assim, há uma expansão dos departamentos de workforce development, bem como de cursos negociados com empresas e governos locais - o contract training.

Consideremos as condições dos estudantes - tudo aquilo que relacionamos com expressões como capital social e cultural, mais a herança de uma high school genérica e frágil. Em sua maioria, os ingressantes nos CCs têm enormes carências e dificuldades para suportar o desafio do ensino superior. Isso provocou a multiplicação de programas prévios, preparatórios, de inglês, matemática e ciências, programas que são chamados de remedial education ou developmental education. Esse é um dos impasses do sistema - a necessidade e, ao mesmo tempo, a relativa incapacidade desses programas de romper essa barreira.

O debate sobre a "educação remedial" já tem umas duas décadas. Mas é bem mais antigo o lamento sobre o despreparo dos estudantes secundários para o ensino superior. Aliás, foi exatamente por reconhecer esse problema que os líderes acadêmicos pensaram na criação do junior college, no início do século XX. Muitas vezes atribuído à baixa qualidade da high school, o "despreparo" parece ter, porém, raízes mais profundas - e marcadas pela forte desigualdade que cinde a sociedade norte-americana.

Os CCs não conseguem se livrar desse problema, ou, antes, eles são o segmento de ensino superior mais atingido por ele. Dentre os países desenvolvidos, a nação norte-americana é uma das mais desiguais, senão a mais desigual - desigualdade de renda, mas também de status, prestígio e poder. E essa desigualdade disparou nos últimos trinta anos.

Quando tomou posse, Barak Obama pretendia destinar algo como 8 bilhões de dólares para recuperar a infraestrutura dos community colleges. O Congresso cortou a maior parte desse gasto. Mas não foi apenas esse segmento da educação superior que sentiu o impacto dos tempos duros. E não foram apenas os tempos duros de ampliação de desigualdades que marcaram a desigualdade profunda e resiliente da sociedade norte-americana, com reflexos no seu sistema educativo. Talvez o CC seja uma ponta saliente da escalada.

WHAT NO SCHOOL CAN DO...

Faz alguns anos, Robert Reich (1994) comentava que naquele país algo como 15% ou 20% das crianças e jovens eram educados em um bom ensino médio, oferecido, em geral, por algumas dezenas de escolas privadas e pelas escolas públicas de subúrbios afluentes. Além disso, esses jovens, a fina flor da sociedade americana, frequentariam ambientes intelectualmente ricos e instigantes, com acesso a recursos que lhes permitem seguir sendo essa "nata". De outro lado, estão os 80% ou 85% que saem das high-school menos "ricas" e, em sua maioria, ingressam em cursos de dois anos em community colleges. De fato, reciclam seu ensino médio deficiente e, assim, aparelham-se para a vida moderna. Uma parte, talvez um terço, desses estudantes dos two-year colleges consegue entrar nos programas de transfer, isto é, conseguem ingressar em programas de bacharelado ou escolas profissionais (direito, medicina, engenharia, economia). É pouco e é bastante, se pensarmos no volume absoluto. Mais interessante ainda é prestar atenção na forma de organização dessa fantástica rede de oportunidades e de captura de talentos. Como dissemos, ela é extremamente descentralizada, capilarizada: é quase certo que um desses jovens encontrará, a uns 50 ou 60 km de sua casa, pelo menos um ponto de acesso a tal ensino pós-secundário, o que, repetimos, lhe permite "tentar". Muitos serão chamados, não necessariamente escolhidos. Talvez isso mostre alguma vitalidade no sistema, apesar de suas falhas e aparências enganosas. Talvez, também, indique um canal de legitimação da "terra de oportunidades" que a América ainda figura ser. Uma situação para lá de contraditória. Dramaticamente contraditória.

Como era de esperar, "tempos duros" exacerbam os dramas latentes. Um documento da American Association of Community Colleges (2012) exibe um desses exemplos de tom dramático:

O sonho norte-americano está em risco. Como uma população altamente educada é fundamental para o crescimento econômico e uma democracia revigorada, os community colleges podem ajudar a recuperar esse sonho. Mas enfrentar esse desafio exigirá a reforma dramática dessas instituições, sua missão e, mais criticamente, as experiências educacionais de seus estudantes.

[...]

Os community colleges têm um papel crucial a desempenhar no aproveitamento dessa oportunidade. Se esta nação puder adicionar 20 milhões de trabalhadores formados por escolas pós-secundárias à sua força de trabalho nos próximos 15 anos, a desigualdade de renda declinará substancialmente, revertendo o declínio da classe média.

[...]

Os community colleges, historicamente subfinanciados, também foram financiados de formas que encorajam o crescimentos das matrículas, embora frequentemente sem apoiar esse crescimento adequadamente, e, preponderantemente, sem incentivos para promover o sucesso dos estudantes. Essas condições atrasam os estudantes de classe média e têm um efeito devastador nos estudantes de baixa renda e dos negros, estes, frequentemente, com a maior necessidade de tudo o que o community college pode oferecer. [p. vii-viii. Tradução minha]

Nas entrelinhas desse texto - ou, talvez fosse melhor dizer, no seu subconsciente - é possível que esteja a razão das razões do problema: o próprio sonho. Pelo menos é isso o que tem sugerido uma rica literatura crítica sobre os sistemas educativos norte-americanos, focada no tema da desigualdade estrutural e singular daquela sociedade, desigualdade ímpar entre os países desenvolvidos. Em especial, os estudos de David C. Berliner (2005), Jean Anyon (2005), Norton Grubb e Marvin Lazerson (2004) entre outros, parecem centrais nessa temática.2 2 No que diz respeito a exames desse problema no nível das escolas elementares e médias também há uma farta e rica literatura, que inclui Tyack (1974); Powell, Farar e Cohen (1985); Cremin (1964); Conant (1961), Oakes (1985); e Kozol (1992). Em seu The education gospel..., Norton Grubb e Marvin Lazerson (2004) apontavam para o risco de subestimar os efeitos educacionais de um fator não educacional: o impotente Welfare State americano. Mais do que isso, apontavam para a litania cíclica de queixas, lamentos e denúncias sobre a "falência da escola" como canal, por excelência, da mobilidade social.3 3 Um importante estudo sobre essas críticas "demolidoras" das escolas está em Berliner e Biddle (1995). O problema, talvez se possa dizer, não está no mau funcionamento do canal. Está na suposição da mobilidade como elemento definidor dessa ordem social.

Esse tema - ainda que fundamental - está além dos objetivos deste artigo. O máximo que podemos fazer é destacá-lo e recomendar o seu estudo. Um artigo de Traub (e, mais ainda, seu título) talvez antecipe a dedução: "What no school can do" (2000).

O autor lembra um paradoxo:

É difícil classificar como espantosa a ideia de que a escola, por si só, não pode curar a pobreza, mas é surpreendente quanto do nosso discurso político está baseado na noção de que ela pode. (TRAUB, 2000)

E faz uma constatação incômoda para os progressistas "entusiastas da escola":

Em anos recentes, os conservadores vieram a ter um papel crítico no debate sobre as escolas das áreas centrais das cidades; na verdade, a reforma escolar é o tipo de engenharia social com a qual os conservadores se sentem confortáveis. (TRAUB, 2000)

Ora, por que os conservadores se sentem tão confortáveis nesse tema e nessa "solução para os males"? Uma frase talvez sugira o caminho:

Ninguém acredita na escola como os norte-americanos, e ninguém é mais atormentado pelos seus poderes transformativos. (TRAUB, 2000)

Essa crença - quase hipnótica - tem uma força nada desprezível.

Berliner (2005) radicaliza o argumento, de modo a sugerir uma espécie de "impensado" e "impensável" da sociedade norte-americana, algo que barra a possibilidade de identificar a natureza do trauma e, portanto, de sua superação:

Talvez não estejamos nos saindo bem o suficiente porque a nossa visão da reforma da escola é pobre. É pobre por causa das nossas visões coletivas sobre os papéis adequados e inadequados do governo na melhoria dos problemas com que somos confrontados nas nossas escolas; nossas crenças sobre como uma economia de mercado deve funcionar; nossas preocupações sobre o que constituem taxas apropriadas de impostos para a nação; nossas visões religiosas sobre os eleitos e os condenados; nosso éthos norte-americano peculiar de individualismo; e nossa crença quase absurda de que a educação é a cura para o que quer que moleste a sociedade. Estas visões tão entranhadas que temos como povo faz com que a ajuda aos pobres pareça uma trama comunista ou ateísta, e transforma em apóstata aquele que se refere ao mito do poder das escolas públicas de produzir mudanças.

[...]

Por outro lado, a ideia de que a escola, por si só, não pode curar a pobreza soa como um voto de desconfiança na nossa grande capacidade norte-americana para a autotransformação, um elemento importante nas estórias que contamos à nossa nação. [2005, p. 7]

O comentário é duro. Se for verdadeira a dedução, o "evangelho pedagógico" e a crença na reforma da escola e pela escola se transformariam em um novo "ópio do povo", ou como dizia o conhecido texto onde surgiu tal expressão: um grito do espírito em um mundo sem espírito, mas, ao mesmo tempo, um instrumento de consolo geral que torna suportável o vale de lágrimas. Como a condição para abandonar as ilusões sobre sua condição é abandonar uma condição que necessita de ilusões, o círculo parece fechado, sem possibilidade de ruptura. Não é essa a conclusão dos autores dessa vertente, como sugere o livro de Jean Anyon (2005), desde seu título: Radical possibilities. Mas o caminho da superação - ainda que não prescinda da reforma da escola - é muito mais difícil e muito mais amplo. Em outros termos, as possibilities são radicais ou exigem algum tipo de radicalidade.

Bom, lembre-se, leitor, estamos falando da experiência americana... O resto é por sua conta.

Recebido em: maio 2014

Aprovado para publicação em: junho 2014

Este artigo resulta de pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp - sobre o papel dos community colleges no sistema de educação superior americano e o papel dessa educação no processo de desenvolvimento daquele país. A pesquisa teve como subproduto um livro já publicado (MORAES; SILVA, 2014).

  • AMERICAN ASSOCIATION OF COMMUNITY COLLEGES. AACC. April 2012. Disponível em: <http://www.aacc.nche.edu/AboutCC/history/Pages/pasttopresent.aspx>. Acesso em: 7 jun. 2014.
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  • Ensino superior de curta duração: a experiência norte-americana dos community colleges

    Educación superior de corta duración: la experiencia norteamericana de los community colleges
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    O sistema educacional norte-americano, em todos os níveis, é largamente descentralizado, em âmbito local ou estadual. Não há universidade federal, por exemplo. As escolas superiores federais que existem são as academias militares. Prevaleceu a tendência de constituição de universidades estaduais, herdeiras de uma política do século XX, a Lei Morrill, que condicionava a doação de terras aos estados à criação de escolas de agricultura e engenharia. Não temos espaço aqui para narrar essa notável epopeia, pouco conhecida no Brasil. O leitor poderá encontrá-la em livro que devo publicar ainda este ano pela Editora Unesp, com o título
    Educação superior americana: história e estrutura.
  • 2
    No que diz respeito a exames desse problema no nível das escolas elementares e médias também há uma farta e rica literatura, que inclui Tyack (1974); Powell, Farar e Cohen (1985); Cremin (1964); Conant (1961), Oakes (1985); e Kozol (1992).
  • 3
    Um importante estudo sobre essas críticas "demolidoras" das escolas está em Berliner e Biddle (1995).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Set 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Aceito
      Jun 2014
    • Recebido
      Maio 2014
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