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Precarização do trabalho docente numa escola de rede privada do subúrbio carioca

Job insecurity for teachers in a private school of suburbs of Rio de Janeiro

Precarización del trabajo docente en una escuela de la red privada del suburbio de Rio de Janeiro

Resumos

O artigo aborda o trabalho docente a partir do recorte de uma pesquisa de mestrado realizada numa escola da rede privada do subúrbio carioca, que atende à nova classe média. Entrevistas com oito professoras do primeiro segmento do ensino fundamental da instituição e a observação do espaço da sala de professores foram as principais estratégias metodológicas usadas. Investigaram-se, particularmente, as condições de trabalho das professoras e como se processa o desenvolvimento profissional. Evidenciou-se a precarização do trabalho docente em função dos baixos salários, da intensificação das tarefas, da ausência de uma política de formação e de uma lógica organizacional que não favorece o partilhar dos saberes entre os professores. Além disso, essa lógica organizacional, fundada em dispositivos de regulação no cumprimento de prazos, de controle da prática docente e orientada por manuais pedagógicos e softwares educativos, compromete a autonomia das professoras e o desenvolvimento de um clima colaborativo.

Professores; Condições de Trabalho; Profissionalização; Escola Privada.


This article addresses the work of teaching, based on a section of a Master's degree study performed in a school of a private network in suburban Rio de Janeiro, which serves the new middle class. Interviews with eight teachers from the first segment of elementary education of the institution, and the observation of the space in the teachers' room, were the main methodological strategies used. Specifically, the working conditions of the teachers and the way in which professional development proceeds were investigated. Evidence was seen of the precariousness of teaching as a function of the low salaries, the intensifying of tasks, the lack of a professional development policy, and an organizational logic that does not facilitate the sharing of knowledge among teachers. Additionally, that organizational logic, based on devices to control the meeting of deadlines and the practice of teaching, and guided by pedagogic manuals and educational software, compromises the autonomy of the teachers and the development of a climate of collaboration.

Teachers; Working Conditions; Employment; Private Schools


El artículo aborda el trabajo docente desde el punto de vista de una investigación de maestría realizada en una escuela de la red privada del suburbio de Rio de Janeiro, que atiende a la nueva clase media. Entrevistas con ocho maestras del primer segmento de educación básica de la institución y la observación del espacio de la sala de profesores fueron las principales estrategias metodológicas utilizadas. Se investigaron sobre todo las condiciones de trabajo de las profesoras y la forma en que se procesa el desarrollo profesional. Se puso de manifiesto la precarización del trabajo docente en función de los bajos salarios, de la intensificación de las tareas, de la ausencia de una política de formación y de una lógica organizativa que no favorece la puesta en común de los saberes entre los profesores. Además, esta lógica organizativa, que se basa en dispositivos de regulación en el cumplimiento de plazos, de control de la práctica docente y se orienta por manuales pedagógicos y softwares educativos, compromete la autonomía de las maestras y el desarrollo de un clima colaborativo.

Docentes; Condiciones de Trabajo; Profesionalización; Escuelas Privadas.


O objetivo deste estudo é discutir o trabalho docente a partir do recorte de uma pesquisa de mestrado realizada em uma escola da rede privada, que atende à nova classe média. 1 1 A chamada "nova classe média" estrutura-se pela ascensão econômica de estratos mais baixos das camadas médias e setores populares. São pessoas que estudaram em escolas públicas, algumas cursaram universidades privadas; são na maioria trabalhadores ou pequenos empresários, com jornadas de trabalho longas e pouco tempo para lazer. Objetivam melhores condições de vida, privilegiando a aquisição de bens de consumo, mas os capitais econômico e cultural são restritos e limitados. Podem ser nomeados como classe dos "batalhadores" não definida apenas por variáveis de renda, pois não se trata de uma classe homogênea. Esse estrato social é o grande responsável pelo extraordinário desenvolvimento econômico brasileiro dos últimos anos que se deu, fundamentalmente, pela perspectiva do mercado interno (SOUZA, 2010). A investigação incidiu, particularmente, sobre as condições de trabalho das professoras e em como se processava o desenvolvimento profissional.

A seleção da instituição obedeceu aos seguintes critérios: ser uma escola privada destinada às camadas médias baixas e camadas populares - nova classe média -; ter prestígio na comunidade; ser um estabelecimento de médio porte que ofereça infraestrutura básica aos professores, incluindo sala de professores; ser uma instituição cujos proprietários sejam pessoas "físicas" e não associação religiosa; e integrar uma rede privada de ensino que se distribua por diferentes bairros da cidade do Rio de Janeiro.

Assim, a escolha do campo foi delimitada por tais características e motivada por se tratar de uma realidade ainda silenciada pela literatura educacional.

O estudo é parte da investigação denominada "O trabalho docente em escolas privadas para setores populares: um objeto esquecido", que vem sendo realizada pelo Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o Professor e o Ensino - GEPPE -, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio -, coordenado pela professora Isabel Lelis desde 2011LELIS, Isabel Alice O. M.; IÓRIO, Angela C. Fortes; MESQUITA, Silvana S. de A. Escolas privadas de setores populares: quem são seus agentes? In: ENCONTRO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO DA REGIÃO SUDESTE, 10., 2011. Anais... Rio de Janeiro, 2011. ISBN 978-85-60316-16-8. Disponível em: <http://www.fe.ufrj.br/anpedinha2011>. Acesso em: 10 nov. 2011.
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.

Esse tipo de escola da rede privada vem se expandindo como uma possibilidade para as famílias da nova classe média, sendo encontrado em diversos bairros das zonas norte e oeste da cidade do Rio de Janeiro.

Com a democratização do ensino, tais escolas tornaram-se uma alternativa às escolas públicas ou privadas de alto prestígio. Para as famílias menos favorecidas do ponto de vista econômico, essas instituições são consideradas de qualidade, diante do descrédito2 2 Uma análise mais detalhada sobre o tema é realizada por Tiramonti (1997). da escola pública e da impossibilidade de arcar com as altas mensalidades das escolas de elite.

Essa nova configuração social alcançou um aumento do poder de compra e maior acesso aos bens de consumo (casa própria, carro, celular, etc.) - símbolos de status das camadas médias e altas -, podendo, dessa forma, almejar melhor educação para seus filhos (SOUZA; LAMOUNIEUR, 2010SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou classe trabalhadora? Belo Horizonte: UFMG, 2010.). Com o objetivo de oportunizar uma educação de qualidade aos filhos, tais famílias delegam a esse tipo de instituição uma melhor formação que lhes assegure maior ascensão social.

Esse tipo de estabelecimento cobra baixas mensalidades em relação às escolas privadas destinadas às camadas mais altas da sociedade. A mensalidade do 1° ao 5° ano do ensino fundamental do colégio pesquisado ficava na faixa de R$ 249,00. Deve-se considerar, no entanto, que esse valor ainda podia sofrer uma redução considerável, pelo fato de a escola ofertar bolsas de estudos às famílias de baixa renda e desconto para aquelas que tinham mais de um filho matriculado.

A rede privada de ensino da qual o colégio investigado faz parte utiliza sistema apostilado de ensino, que inclui cadernos pedagógicos para professores e alunos, próprios para cada série dos segmentos dos ensinos fundamental e médio. Os gestores justificam a escolha pela necessidade de unificar o trabalho da rede e manter a escola no topo das avaliações externas, preservando, dessa forma, a qualidade do ensino. Entretanto, a adesão a esse sistema traz sérios impactos sobre a autonomia do trabalho docente.

Mais do que uma instituição social, transmissora de valores e articulada em torno de fins político-pedagógicos, o colégio investigado e as demais escolas da rede pesquisadas pelo GEPPE apoiam-se em uma política de resultados tendo em vista a aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio - Enem3 3 O Enem é um tipo de avaliação criado em 1998 pelo Ministério da Educação - MEC -, empregado como ferramenta para avaliar a qualidade geral do ensino médio no Brasil. Posteriormente, o exame começou a ser utilizado para acesso ao ensino superior em universidades públicas brasileiras por meio do Sistema de Seleção Unificada - SiSU -, e atualmente também é utilizado por algumas instituições privadas. - e as tecnologias da comunicação e informação.

Segundo dados do Sindicato dos Professores do Município do Rio de Janeiro e Região - Sinpro-Rio4 4 De acordo com informação do presidente do Sinpro-Rio, Wanderley Quêdo, em entrevista ao GEPPE em novembro de 2010. -, são cerca de 2.500 escolas que apresentam tal perfil. Esse número demonstra que não se trata de estabelecimentos privados que podem permanecer silenciados por exercerem pouca relevância quanto à função social e educativa, principalmente quando o Sindicato dos Professores reconhece que uma parcela de profissionais tem nessas escolas sua única fonte de trabalho e renda. Além disso, cresce na população a certeza de que somente as escolas privadas podem garantir o acesso às universidades públicas do país. Passa-se a estabelecer uma dicotomia, já deflagrada por muitos pesquisadores, de que apenas as classes mais favorecidas têm acesso ao ensino superior gratuito.

Alguns autores serviram de interlocutores dessa pesquisa, entre os quais destacam-se: Telmo Caria (2000CARIA, Telmo H. A cultura profissional dos professores: o uso do conhecimento em contexto de trabalho na conjuntura da Reforma Educativa dos anos 90. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.), com a discussão acerca da cultura profissional dos professores em diferentes espaços de interação, entre eles a sala dos professores (Caria é o único autor que aborda alguns aspectos sobre esse espaço institucional); Van Zanten (2009), que discute a influência dos estabelecimentos escolares na socialização dos professores; Canário (1997CANÁRIO, Rui (Org.). Formação e situações de trabalho. Porto: Porto, 1997. ), Nóvoa (1999NÓVOA, António. Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 1999.) e Lessard (2009LESSARD, Claude (Org). O trabalho docente, a análise da actividade e o papel dos sujeitos. Sísifo: Revista de Ciências da Educação, n. 9, p. 119-128, maio/ago. 2009. Disponível em: <http://sisifo.fpce.ul.pt>.
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), com os estudos sobre a escola e a prática docente; Ada Assunção e Dalila Oliveira (2009OLIVEIRA, Romualdo Portela de. A transformação da educação em mercadoria no Brasil. Educação e Sociedade Campinas, v. 30, n. 108, p. 739-760, out. 2009. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 27 out. 2011.
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), que enfatizam a intensificação e precarização do trabalho docente; Stephen Ball (2001______. Performatividade, privatização e o pós-estado do bem-estar. Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 89, p. 1105-1126, set./dez. 2004. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 12 dez. 2011.
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; 2004), com a perspectiva da performatividade e regulação do trabalho; e Hargreaves (1998HARGREAVES, Andy. Os professores em tempos de mudança: o trabalho e a cultura dos professores na Idade Pós-moderna. Portugal: Mc Graw-Hill, 1998.) e Marcelo (2009MARCELO, Carlos. Desenvolvimento profissional docente: passado e futuro., Sísifo: Revista de Ciências da Educação n. 8, p. 07-22, jan./abr. 2009. Disponível em: <http://sisifo.fpce.ul.pt>.
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), no que se refere ao desenvolvimento profissional.

O Colégio Nómos5 5 Nome fictício utilizado pelas autoras.

A rede privada de ensino da qual a instituição pesquisada faz parte iniciou suas atividades com um colégio na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, na década de 1960. Desde então, se encontra em franca expansão e se mantém no mercado educacional brasileiro, atendendo a um público diferenciado com cerca de doze mil alunos distribuídos por toda a rede. A ampliação se deu com a compra, nas décadas de 1980 e 1990, de inúmeras escolas privadas familiares que decretaram falência e, assim, a rede construiu sua identidade prestando serviços à comunidade e oferecendo bolsas de estudos6 6 Ler mais sobre isenções fiscais e previdenciárias no Brasil em Velloso (1987). a alunos carentes.

Já a escola investigada foi fundada na década de 1990 e possui uma ampla área construída, com três grandes prédios, onde funciona a educação básica, e um prédio anexo de três andares, onde foi criado um centro de excelência para os alunos do ensino médio com bom rendimento escolar.

A rede conta com uma estrutura de apoio, pois nada é terceirizado, tendo sido criados diversos setores responsáveis pela qualidade e manutenção de bens e serviços, tais como diretoria de ensino, central de manutenção para instalações e equipamentos, departamento de compras, centro administrativo, departamento de comunicação e marketing, superintendência, serviço de atendimento aos responsáveis e centro de desenvolvimento tecnológico.

A vida e a voz dos sujeitos: quem são essas professoras?

A seleção dos sujeitos da pesquisa, oito professoras do primeiro segmento do ensino fundamental - EF1 -, atendeu a alguns critérios, tais como lecionar no turno da tarde, frequentar a sala de professores e ter disponibilidade para participar da pesquisa.

Por se tratar de uma pesquisa de inspiração etnográfica, utilizamos como estratégia metodológica observações do contexto educacional e relatos orais (entrevista com o diretor geral da rede privada de ensino e com as professoras, sujeitos da pesquisa).

As observações foram feitas, principalmente, na sala de professores, especialmente antes do início das aulas, ocasião em que as professoras se reuniam para almoçar, e no horário do recreio. O intuito das observações foi verificar a dinâmica e a qualidade da relação entre pares, bem como o impacto dessas relações no processo de socialização docente e no desenvolvimento profissional das professoras. Alguns elementos que nortearam as análises do campo surgiram nos momentos de descontração vivenciados na sala de professores, durante as observações.

As entrevistas, realizadas após dois meses de imersão no campo, partiram de um roteiro semiestruturado, abordando os seguintes aspectos: caracterização da entrevistada (nome, idade, tempo de experiência profissional, tempo de trabalho na escola); formação (inicial, continuada e em serviço); trabalho docente (motivo de escolha pela profissão, facilidades e dificuldades cotidianas, sentimento em relação ao trabalho, etc.); atividades em grupo; relações com os pares, a gestão e os alunos; e interações entre os agentes (apoio dos pares, clima escolar, integração entre os professores, projetos futuros).

Os sujeitos da pesquisa - professoras que lecionavam no turno da tarde - se disponibilizaram a participar da pesquisa. As oito professoras encontravam-se na faixa etária entre 27 e 39 anos; quatro se autodeclararam brancas e quatro pardas.

Todas as professoras possuíam formação superior, sendo sete delas concluídas em instituições privadas de ensino e apenas uma professora concluiu o curso de licenciatura em uma universidade pública. Seis professoras eram formadas em Pedagogia e também tinham o curso de formação de professores. Todas concluíram a educação básica em instituições públicas.

No que se refere ao perfil socioeconômico, as oito professoras se inserem na nova classe média, ou seja, têm a mesma origem social de seus alunos. A maioria dos pais dessas professoras possui a educação básica e ocupa cargos de nível médio: rodoviário, bancário, garçom, corretor de imóveis, escriturário, funcionário público, zelador e pedreiro. As mães exercem atividade como professora dos anos iniciais do ensino fundamental, doméstica, bancária, boleira, costureira, e três são do lar.

Segundo Gatti e Barretto (2009GATTI, Bernardete A.; BARRETTO, Elba S. de S. Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília, DF: Unesco, 2009., p. 167),

Pais e mães dos estudantes de Pedagogia são sistematicamente menos escolarizados que os dos estudantes dos demais cursos. Se as diferenças de renda familiar são apenas ligeiramente maiores para os demais licenciandos, elas se mostram bem mais acentuadas a favor destes últimos anos no que tange à bagagem cultural da família de origem.

A adesão à profissão docente mostra uma ligeira elevação no nível socioeconômico das professoras em relação aos pais, tanto na perspectiva da formação escolar, como no tipo de atividade profissional que desenvolvem. O ingresso na docência, como apontam alguns autores (MELLO, 2003MELLO, Guiomar Namo de. Magistério de 1° grau: da competência técnica ao compromisso político. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2003.; GATTI; BARRETTO, 2009GATTI, Bernardete A.; BARRETTO, Elba S. de S. Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília, DF: Unesco, 2009.; SILVA; DAVIS; ESPOSITO, 1998SILVA, Rose Neubauer da; DAVIS, Claudia; ESPOSITO, Yara Lúcia. O ciclo básico do estado de São Paulo: um estudo sobre os professores que atuam nas séries iniciais. In: SERBINO, Raquel V. et al. (Org.). Formação de professores. São Paulo: Editora da Unesp, 1998. p. 265-297.), é uma possibilidade de mobilidade social dos sujeitos.

Como analisa Souza (2010SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou classe trabalhadora? Belo Horizonte: UFMG, 2010.), a facilidade de aprovação nos cursos de educação e licenciaturas, somada ao acesso a um diploma superior que habilita o exercício do ofício docente, tem se tornado um incentivo para os filhos da nova classe média, normalmente dotados de um menor volume de capital econômico e cultural, o que vem contribuindo para a desvalorização da profissão docente.

No que se refere ao tempo de experiência docente, seis professoras possuíam mais de dez anos de magistério. Sete professoras trabalhavam apenas nessa rede privada de ensino - duas em dois turnos nessa mesma unidade e uma, em dois turnos, pela manhã em outro colégio dessa mesma rede, na zona oeste da cidade - e uma professora lecionava, também, em uma escola estadual.

O magistério ocupa a vida dessas professoras, que, majoritariamente, aderiram à docência como seu único meio de trabalho.

Quanto à renda salarial bruta, das oito professoras, sete exercem seu ofício apenas nessa rede de ensino e quatro trabalham em dois turnos (manhã e tarde), o que garante uma renda mensal em torno de quatro a cinco salários mínimos, e lecionam, em média, de 20 a 40 horas semanais.

O salário bruto das professoras nessa rede privada é de R$ 918,00, um pouco acima do piso salarial para a carga horária de 4 horas e 30 minutos de trabalho diário, como mostra a Tabela 1, com dados do Sinpro-Rio.

Tabela 1
Piso salarial dos professores da educação infantil até o 5º ano do ensino fundamental - Município do Rio de Janeiro - 2011

Apesar do reconhecimento de que os rendimentos recebidos estão na média do mercado, é notória a insatisfação com o salário recebido. Em vários momentos, as professoras verbalizavam a impotência de realizar alguns de seus projetos em função do baixo salário docente. Geralmente, nas conversas sobre a nova temporada de shows na cidade, ou sobre um novo tratamento estético, ou ainda no planejamento da viagem de férias, eram frequentes os argumentos "não posso porque não ganho para isso" ou "professora não pode!".

A afirmação da professora Leandra expressa sua insatisfação com o salário e com o desprestígio da profissão:

O que nos assusta é a falta de valorização que a profissão vem recebendo por parte da sociedade caótica que temos vivido, os baixos salários, a falta de prestígio [...]. Creio que muita coisa deve ser repensada, mudada, para que a instituição escolar saia dessa passividade.

O ingresso das professoras na profissão se deu em pequenas escolas familiares do subúrbio carioca, logo após sua formação. A mudança de escola ocorreu em função dos baixos salários e da aspiração por condições melhores de trabalho.

Por trabalharem unicamente nessa rede privada de ensino, destinada prioritariamente à nova classe média, e não terem conseguido aprovação em nenhum concurso público para o magistério, as professoras têm um campo de possibilidades muito restrito, o que lhes obriga a compor com a lógica da instituição e incorporar as regras do estabelecimento de ensino, na tentativa de minimizar a insegurança de trabalhar numa escola privada, que não lhes garante nenhuma estabilidade profissional, nem a possibilidade de construir uma carreira docente.

A pesquisa realizada por Lelis, Iório e Mesquita (2011LELIS, Isabel Alice O. M.; IÓRIO, Angela C. Fortes; MESQUITA, Silvana S. de A. Escolas privadas de setores populares: quem são seus agentes? In: ENCONTRO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO DA REGIÃO SUDESTE, 10., 2011. Anais... Rio de Janeiro, 2011. ISBN 978-85-60316-16-8. Disponível em: <http://www.fe.ufrj.br/anpedinha2011>. Acesso em: 10 nov. 2011.
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), em instituições privadas destinadas aos setores populares da sociedade, evidenciou o distanciamento entre os professores que trabalham nesse tipo de instituição e aqueles da rede pública, que prestaram concurso para a entrada na carreira, e os docentes inseridos nas escolas destinadas às camadas mais privilegiadas da sociedade. Em comparação a esses docentes, as professoras do colégio pesquisado representariam a precarização e intensificação do trabalho docente se pensarmos na falta de condições favoráveis de trabalho - baixos salários, dispositivos de regulação e controle, programas prescritos, métodos de instrução minuciosamente programados, ausência de formação continuada.

Essa mesma lógica organizacional fundada em dispositivos de regulação no cumprimento de prazos, de controle da prática docente e orientada por manuais pedagógicos (sistema apostilado de ensino) e softwares educativos acaba por comprometer a autonomia das professoras e, por conseguinte, o desenvolvimento de um clima mais colaborativo.

Nenhuma das professoras investigadas possui pós-graduação e nem curso de atualização ou especialização. Elas alegavam não ter tempo para a realização de cursos de formação continuada fora da instituição em que trabalham. O colégio oferecia, em média semestralmente, alguns cursos com a finalidade de viabilizar a melhor aplicação do manual pedagógico fornecido pela rede privada de ensino, na sede central da instituição. As professoras consideravam esses cursos como atividades de formação.

Na pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco - sobre o desafio da profissionalização docente no Brasil e na América Latina, a pesquisadora equatoriana Magali Campos (2007CAMPOS, Magaly Robalino. Profissão docente: novas perspectivas e desafios no contexto do século XXI. In: UNESCO. O desafio da profissionalização docente no Brasil e na América Latina. Brasília: Consed, Unesco, 2007. , p. 17) afirmou que:

A profissão docente deve ser vista numa perspectiva integral. Para tanto, é preciso recuperar o prestígio da carreira e o valor que os bons docentes têm para o país e seu desenvolvimento. É preciso colocar a profissão docente como tema central de política pública e educacional e como prioridade na agenda dos governos. Por fim, há que investir e investir bem no fortalecimento da profissão docente. Por outro lado, ver a profissão docente numa perspectiva integral significa reconhecer os múltiplos fatores que influenciam no desempenho profissional docente, tais como: formação inicial, formação continuada em serviço, avaliação de desempenho, condições de trabalho, salários, cultura organizacional, reconhecimento social, saúde etc. Portanto, o fortalecimento e o desenvolvimento da profissão numa perspectiva integral, devem envolver igualmente múltiplos atores e setores: educação, finanças, saúde, parlamento, meios de comunicação, organização e movimentos sociais.

Em relação à escolha das professoras por esse tipo de rede privada, todas relataram que a opção se deu pela proximidade com a residência, visto que todas moram em bairros próximos à escola, na zona norte da cidade, o que lhes permitia um fácil acesso ao local de trabalho. Isso evidencia, mais uma vez, o restrito campo de possibilidades que elas vivenciam em suas trajetórias como docentes.

Em termos de projetos de futuro, as pretensões são distintas: três professoras pretendiam lecionar até a aposentadoria; duas desejavam conseguir outro tipo de trabalho fora da docência; e três intencionavam lecionar mesmo após a aposentadoria.

São professoras que abraçaram a docência por vocação. A maioria planejava continuar lecionando enquanto tivesse vitalidade; outras até a aposentadoria. A escolha pelo magistério foi a única opção dessas professoras, que, em sua maioria, não pretendiam mudar de profissão. O magistério assim se mantinha como projeto futuro.

Segundo Mello (2003MELLO, Guiomar Namo de. Magistério de 1° grau: da competência técnica ao compromisso político. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2003.), a identificação do magistério com "doação" e "vocação" está relacionada à predominância feminina na profissão, provocando um esvaziamento do sentido profissional do magistério e perpetuando a concepção do senso comum de que o professor precisa trabalhar por amor à profissão.

Escola, mercado educacional? A imagem da rede para as professoras

Esse tipo de rede de ensino pesquisado tem sua prática pedagógica orientada por grandes grupos educacionais,7 7 Esses grupos educacionais surgiram no início do século XXI, inicialmente como instituições de ensino superior, e alavancam sua estrutura com a compra de diversas instituições de ensino que decretavam falência, ampliando assim sua atuação no mercado educacional e vendendo seu sistema de ensino para diversas instituições privadas (OLIVEIRA, 2009). que oferecem todo tipo de materiais instrucionais, na forma de apostilas e softwares, além de consultorias empresariais na área. Como afirma Oliveira (2009OLIVEIRA, Romualdo Portela de. A transformação da educação em mercadoria no Brasil. Educação e Sociedade Campinas, v. 30, n. 108, p. 739-760, out. 2009. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 27 out. 2011.
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), essas são as facetas da mercantilização da educação, fruto da acentuada transformação no panorama educacional em escala mundial. A escola não é mais a única responsável pela produção do seu material didático-pedagógico, contando com o apoio de empresas para produzir o seu conteúdo pedagógico e orientar a forma como este deve ser ensinado ao aluno. Cabe ao professor executar o programa e seguir as orientações dos "manuais pedagógicos".

Nesse tipo de rede privada de ensino, a educação é balizada por indicadores de desempenho, em termos de produção tanto docente como discente, de acordo com os rankings de desempenho no Enem. À dinâmica desse processo subjaz um currículo oculto em que a natureza das relações sociais, em especial a relação entre pares, é desafiada pelas forças e micropráticas do mercado.

Uma das razões destacadas por Van Zanten (2009) que impacta a prática profissional é a reduzida autonomia de que dispõe o professor nas organizações escolares. Esse aspecto ficou bastante evidenciado neste trabalho, em função dos dispositivos de regulação no cumprimento de prazos e de controle da prática docente.

Por outro lado, foi possível perceber os efeitos perversos da mercantilização da educação. Essa rede privada de ensino tem sua estrutura pautada em dispositivos de controle e regulação, que subjugam o professor a um conjunto de instrumentos, técnicas e procedimentos que inibem a criatividade e a autonomia e obscurecem a individualidade e a singularidade do docente.

Para Stephen Ball (2001BALL, Stephen J. Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo sem fronteiras, v. 1, n. 2, p. 99-116, jul./dez. 2001. Disponível em: <http://curriculosemfronteiras.org>. Acesso em: 12 nov. 2011.
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, p. 107-108):

O mercado educacional tanto des-socializa, quanto re-socializa; cria novas identidades e destrói a sociabilidade, encorajando o individualismo competitivo e o instrumentalismo. Os espaços nos quais são possíveis a reflexão e o diálogo sobre os valores são eliminados.

O ambiente de trabalho nesse colégio se assemelhava mais a um estabelecimento empresarial, que precisava dar lucro, com estratégias operacionais muito bem demarcadas, que atendiam às exigências do mercado. No próprio discurso do seu criador, diretor geral da rede, a terminologia utilizada era específica do mercado empresarial:

Nós somos o maior grupo com o maior segmento da educação infantil até o ensino médio. Prá você ter uma ideia da minha ousadia, eu chamo de ousadia porque eu ganhei ... na escola. (Grifos das autoras) Nós temos um departamento comercial, ou seja, todas as cantinas, malharia pertencem ao grupo, não a escola porque a escola não pode ser comércio. Então nós criamos várias empresas pequenas com a participação do meu filho e meus sobrinhos. Eu tenho vários parentes trabalhando na minha empresa. Então resolvemos criar o departamento comercial e nós vendemos tudo, tudo que o aluno utiliza a gente fornece e com facilidades. Por exemplo, o pai não precisa andar de papelaria em papelaria buscando a lista. Eu tenho uma listagem recebe a lista paga em dez vezes é uma facilidade. (Grifos das autoras)

Pelos relatos acima, fica evidente o caráter empresarial da instituição, embora o diretor insistisse, em diversos momentos da entrevista, no fato de a escola não ser um estabelecimento comercial.

Como afirma Fridman (2000FRIDMAN, Luis Carlos Vertigens pós-modernas: configurações institucionais contemporâneas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.), as transformações trazidas pela pós-modernidade não são percebidas somente na esfera da cultura e da economia, afetando também outros campos, como os da educação, filosofia, artes, política, etc.

Esse modelo empresarial de estabelecimento de ensino, nos moldes do neoliberalismo, põe fim ao plano de carreira, à estabilidade, à organização sindical e ao trabalho coletivo, colocando em evidência a competitividade, a fragmentação das relações pessoais, a organicidade da produção e o estímulo ao individualismo e ao mérito pessoal.

O cotidiano das professoras, submetido aos dispositivos de regulação no cumprimento de prazos e de controle da prática docente, subordina-se a uma metodologia prescritiva, orientada pelos manuais pedagógicos, em virtude da adesão da rede ao sistema apostilado de ensino, como já afirmado anteriormente.

Luiz Antônio Cunha (2011CUNHA, Luiz Antônio. Contribuição para a análise das interferências mercadológicas nos currículos escolares. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 48, set./dez. 2011.), na sua análise sobre as interferências mercadológicas na educação, constata que a compra de "pacotes" educacionais de grandes empresas é uma realidade presente no ensino brasileiro.

As professoras precisavam cumprir rigorosamente todas as datas determinadas pelo colégio para a realização das atividades presenciais e on-line; seguir os manuais pedagógicos utilizados em toda a rede; corrigir atividades dos alunos on-line e presenciais; e utilizar o portal de acesso aos projetos educativos produzidos em parcerias com grandes grupos educacionais, sendo premiadas algumas docentes e não outras pelo grau de adesão ao projeto institucional.

As anotações do diário de campo registram:

A premiação pelo número de acessos ao portal8 é descriminada num pôster, preso no quadro de avisos da sala de professores, com a foto da professora e um número que indica a quantidade de vezes que ela acessou o portal naquele mês, onde se lê a frase "Campeã de acessos ao Portal no mês de setembro - 3.000 acessos". Logo abaixo, o ranking com a classificação das demais professoras, em ordem decrescente, certamente, vistas como menos competentes e compromissadas. (Diário de Campo: 01 ago. 2011)

Segundo Canário (2007, p. 145):

... a existência de uma intensificação da regulação de controlo, como manifestação de uma perda de confiança das autoridades escolares na capacidade auto-reguladora dos professores, enquanto grupo profissional, e, por extensão, nas suas preocupações éticas e na sua capacidade técnica para melhorar de forma autônoma a qualidade dos seus níveis de desempenho. Registra-se a existência de um sério risco de "desprofissionalização", e "de perda de autonomia individual e coletiva do pessoal docente".

Esse processo de regulação do trabalho, que se expressa sob a forma de julgamentos, comparações e controle, é denominado por Ball (2004; 2005) de tecnologia da performatividade. Esse método de medição de desempenho profissional - individual ou coletivo - serve como um parâmetro para medir a produtividade e a qualidade do trabalho, além de ser uma forma de concessão de promoção por mérito, pois avalia, de forma comparativa, o desempenho profissional e o valor de cada indivíduo na instituição.

Segundo Ball (2004), a performatividade afeta profundamente a percepção que o indivíduo tem de si mesmo e do próprio valor. O efeito dessa cultura produz um sentimento de competitividade, classificando os indivíduos de acordo com o desempenho, o que gera sentimentos de orgulho, culpa, vergonha, inveja. Além disso, é alterada a forma como as relações se estabelecem no interior das instituições, estimulando o individualismo e a competitividade.

Por meio da unificação da proposta para toda a rede de ensino, todos os alunos de determinado ano, em todas as unidades, são apresentados ao mesmo conteúdo no mesmo período. Essa unidade da metodologia de ensino é necessária, pois as provas também são igualmente aplicadas a todos os alunos no mesmo dia e hora, utilizando o mesmo sistema de avaliação de um concurso público.

Existe uma fiscalização constante da supervisora educacional no sentido de acompanhar o plano de trabalho oferecido pala Direção de Ensino junto às professoras.

A necessidade de dar conta de inúmeras tarefas, presenciais e on-line, além das correções de cadernos de aula e de casa, dos manuais de exercícios, dos projetos on-line, torna o cotidiano dessas professoras extremamente tenso e com reduzida possibilidade de um trabalho mais autoral.

Assunção e Oliveira (2009OLIVEIRA, Romualdo Portela de. A transformação da educação em mercadoria no Brasil. Educação e Sociedade Campinas, v. 30, n. 108, p. 739-760, out. 2009. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 27 out. 2011.
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) preconizam que o modelo de gestão adotado pelos estabelecimentos escolares pode resultar em práticas que bloqueiam a criatividade dos professores e interferem até mesmo na aprendizagem do aluno.

A intensificação do trabalho docente (HARGREAVES, 1998HARGREAVES, Andy. Os professores em tempos de mudança: o trabalho e a cultura dos professores na Idade Pós-moderna. Portugal: Mc Graw-Hill, 1998.; MAROY, 2006MAROY, Christian. Note de synthèse - Les évolutions du travail enseignant em France et en Europe: facteurs de changement, incidances et résistances dans l'enseignement secondaire. Revue Française de Pédagogie, n. 155, p. 111-142, avril-mai-juin 2006.; ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2009OLIVEIRA, Romualdo Portela de. A transformação da educação em mercadoria no Brasil. Educação e Sociedade Campinas, v. 30, n. 108, p. 739-760, out. 2009. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 27 out. 2011.
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), fruto do rigor e das constantes cobranças da gestão, provoca a degradação do trabalho não só em termos da qualidade da atividade docente, mas também em relação à qualidade do serviço produzido. "Confrontados com a falta de tempo, os trabalhadores limitam a atividade em suas dimensões centrais, que seriam manter o controle da turma e responder aos dispositivos regulatórios" (ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2009OLIVEIRA, Romualdo Portela de. A transformação da educação em mercadoria no Brasil. Educação e Sociedade Campinas, v. 30, n. 108, p. 739-760, out. 2009. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 27 out. 2011.
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, p. 366).

Na perspectiva de Ball (2004, p. 1117), na intensificação do trabalho:

As interações humanas envolvidas no ensino e na aprendizagem são apagadas. A prática do ensino é reelaborada e reduzida a seguir regras geradas de modo exógeno e a atingir metas. Isso gera a lógica que permite substituir uma mão-de-obra e culturas institucionais especializadas por culturas e sistemas de gestão genéricos que visam a "obter" desempenho, melhoria da qualidade e eficácia.

O constante sentimento de degradação profissional e o desprestígio que sentem como profissionais acabam desenvolvendo nas professoras mudanças na percepção acerca de si mesmas e no seu valor profissional, que impactam, segundo Goffman (2010GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.), na sua carreira moral.

Esse mesmo processo é vivenciado por alguns indivíduos que ingressam em instituições totais,9 9 "Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada" (GOFFMAN, 2010, p. 11). sofrendo um processo de progressivas mudanças nas crenças que têm a respeito de si mesmos e dos outros que são significativos para eles, em função das sucessivas humilhações e degradações impostas pelo ambiente fechado da instituição.

Essas professoras, em função dos dispositivos de controle e regulação da prática docente, pareciam manifestar um sentimento de submissão e incapacidade diante dos processos de regulação.

Durante a realização do trabalho de campo, não se observou nenhum movimento dessas professoras em busca de melhores condições de trabalho. Elas pareciam permanecer nesse estabelecimento de ensino anos a fio sem apresentar qualquer iniciativa de resistência, sem conseguirem se deslocar para outros ambientes profissionais, tampouco procurando estabelecer relações com outros membros do grupo profissional fora do ambiente de trabalho, para além dos muros da escola. Elas pareciam atadas a essa realidade, tal qual Alice, no País das Maravilhas.10 10 Alice no País das Maravilhas é a obra mais conhecida de Lewis Carroll, publicada em 1865. O livro conta a história de uma menina chamada Alice, que cai numa toca de coelho que a transporta para um lugar fantástico povoado por inúmeras criaturas comuns às histórias infantis.

Em pesquisas anteriores realizadas por Lelis, Iório e Mesquita (2011LELIS, Isabel Alice O. M.; IÓRIO, Angela C. Fortes; MESQUITA, Silvana S. de A. Escolas privadas de setores populares: quem são seus agentes? In: ENCONTRO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO DA REGIÃO SUDESTE, 10., 2011. Anais... Rio de Janeiro, 2011. ISBN 978-85-60316-16-8. Disponível em: <http://www.fe.ufrj.br/anpedinha2011>. Acesso em: 10 nov. 2011.
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) em estabelecimentos privados destinados aos setores populares da sociedade, também evidenciaram-se a falta de estímulo e o desinteresse das professoras de interagirem com outros membros do grupo profissional em distintos espaços coletivos, como universidades, sindicatos, etc., bem como a desmotivação para dar continuidade à sua formação. Certamente, o confronto com novas ideias, aprendizados e saberes poderia induzi-las ao questionamento acerca da situação que vivenciam, desestabilizando a zona de conforto 11 11 Na psicologia, a zona de conforto é um estado comportamental que não causa nenhum tipo de medo ou risco, sendo que a pessoa opera em um nível neutro de ansiedade. Nessa condição, as pessoas permanecem nas situações por acomodação, sem nenhum impulso de mudança, e se mantêm sempre no mesmo ciclo pessoal. Ler mais em Bardwick (1998). na qual se encontravam.

A adesão dessas professoras a esse sistema institucional parecia ocorrer por meio da inculcação dos valores e das normas institucionais.

De acordo com Caria (2000CARIA, Telmo H. A cultura profissional dos professores: o uso do conhecimento em contexto de trabalho na conjuntura da Reforma Educativa dos anos 90. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000., p. 218-219):

Estaremos perante um processo de subordinação, por via simbólico-ideológica, se tendencionalmente o grupo não tiver controlo sobre o modo como se pensa e como avalia os resultados e os fins do seu trabalho [...]. Se o grupo tendencialmente não tem controlo sobre o contexto organizacional que envolve o trabalho, então poderemos dizer que estamos em presença de um processo de subordinação, por via burocrática-política.

Semanalmente, a equipe técnica acompanhava a aplicação do conteúdo do manual e cobrava a correção de cadernos, apostilas e das atividades on-line; tudo era fiscalizado, inclusive o uso adequado do uniforme.

A falta de autonomia e de liberdade de criação era evidenciada não apenas no uso do manual pedagógico, mas também nos instrumentos de avaliação, que eram construídos sem que houvesse participação das professoras. Todas as provas eram elaboradas na sede central da rede de ensino e enviadas às professoras em um envelope lacrado para que fossem aplicadas em dia e hora determinados pela instituição.

Se considerarmos que o desenvolvimento profissional deve agregar uma prática reflexiva e dialógica entre pares, na busca de uma atitude permanente de indagação, de "um processo que se vai construindo à medida que os docentes ganham experiência, sabedoria e consciência profissional" (MARCELO, 2009MARCELO, Carlos. Desenvolvimento profissional docente: passado e futuro., Sísifo: Revista de Ciências da Educação n. 8, p. 07-22, jan./abr. 2009. Disponível em: <http://sisifo.fpce.ul.pt>.
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, p. 11), essa escola, ao desapropriar as professoras da capacidade de inovação e minimizar o poder de decisão, de autonomia e de criação, tende a impossibilitar um ambiente institucional mais colaborativo (NÓVOA, 1999NÓVOA, António. Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa, 1999.) e menos coercitivo e prescritivo. Nesse sentido, a instituição está reduzindo a possibilidade de desenvolvimento profissional de seus professores.

À guisa da conclusão

As professoras integrantes da presente pesquisa não estão construindo uma carreira e o colégio não parece oferecer um projeto em termos de desenvolvimento profissional. Elas se limitam a exercer o ofício, um trabalho que responda às exigências e imposições contratuais.

A trajetória, marcada por um processo de permanente submissão a todo tipo de constrangimento, parece impedir que esse grupo desenvolva qualquer reflexão crítica, o que é um custo muito alto que as docentes arcam diante da necessidade de sobrevivência material e do restrito campo de possibilidades profissionais a elas oferecido.

Elas jogam o jogo pela introjeção de um código de conduta sem qualquer reação aos dispositivos impostos. Para Pérez-Gómez (2001, p. 165), "aprendemos logo que reproduzir papéis, métodos e estilos habituais é a melhor estratégia para evitar problemas e conflitos com os colegas e os agentes externos: família e administração".

Nessa perspectiva, as professoras perpetuam e mantêm a cultura institucional do estabelecimento de ensino. Talvez essa adaptação oculte um dispositivo de defesa, na tentativa de minimizar conflitos e indisposições coletivas.

Ficaram evidenciados, nesse processo, o desprestígio e desvalorização institucional do professor. Tem-se um profissional desconectado dos saberes da profissão, de suas crenças, excluído das decisões sobre seu trabalho e destituído da possibilidade de análise das próprias práticas.

Um profissional, certamente, fragmentado. Essa cultura institucional performática afeta profundamente a percepção que o indivíduo tem de si mesmo e do próprio valor e altera a forma como as relações se estabelecem no interior da instituição, estimulando o individualismo e a competitividade.

Essas professoras estavam tão imbricadas nessa engrenagem que não conseguiam se distanciar do contexto para ter uma visão da situação, de uma forma mais complexa e abrangente, nem dispunham de outros elementos para traçar novas linhas de ação para transformar a cultura escolar da instituição na qual estavam submetidas.

Acreditando que a transformação do mundo social exige, inicialmente, uma mudança interna, subjetiva, fruto do conhecimento e de saudáveis interações sociais, como seres relacionais que somos, encerramos este trabalho concordando com a afirmação de Canário (1997CANÁRIO, Rui (Org.). Formação e situações de trabalho. Porto: Porto, 1997. , p. 18, grifo nosso):

... a minha defesa da revalorização da experiência na formação profissional dos professores não pode ser confundida com a defesa da aprendizagem como um mero processo de continuidade, em relação à experiência anterior. Valorizar a experiência significa, sobretudo, aprender a aprender com a experiência o que, frequentemente só é possível a partir da crítica e da ruptura com essa experiência. Aprender com a experiência não pode então ser sinónimo de imitação, mas sim de uma acção em que o prático se torna um investigador no contexto da prática

  • ASSUNÇÃO, Ada Ávila; OLIVEIRA, Dalila Andrade. Intensificação do trabalho e saúde dos professores. Educação e Sociedade, Campinas, v. 30, n. 107, p. 349-372, maio/ago. 2009. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: 20 nov. 2011.
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  • VELLOSO, Jacques. Política educacional e recursos para o ensino: o salário-educação e a Universidade Federal. Cadernos de Pesquisa São Paulo, n. 61, p. 3-39, maio 1987.
  • 1
    A chamada "nova classe média" estrutura-se pela ascensão econômica de estratos mais baixos das camadas médias e setores populares. São pessoas que estudaram em escolas públicas, algumas cursaram universidades privadas; são na maioria trabalhadores ou pequenos empresários, com jornadas de trabalho longas e pouco tempo para lazer. Objetivam melhores condições de vida, privilegiando a aquisição de bens de consumo, mas os capitais econômico e cultural são restritos e limitados. Podem ser nomeados como classe dos "batalhadores" não definida apenas por variáveis de renda, pois não se trata de uma classe homogênea. Esse estrato social é o grande responsável pelo extraordinário desenvolvimento econômico brasileiro dos últimos anos que se deu, fundamentalmente, pela perspectiva do mercado interno (SOUZA, 2010).
  • 2
    Uma análise mais detalhada sobre o tema é realizada por Tiramonti (1997).
  • 3
    O Enem é um tipo de avaliação criado em 1998 pelo Ministério da Educação - MEC -, empregado como ferramenta para avaliar a qualidade geral do ensino médio no Brasil. Posteriormente, o exame começou a ser utilizado para acesso ao ensino superior em universidades públicas brasileiras por meio do Sistema de Seleção Unificada - SiSU -, e atualmente também é utilizado por algumas instituições privadas.
  • 4
    De acordo com informação do presidente do Sinpro-Rio, Wanderley Quêdo, em entrevista ao GEPPE em novembro de 2010.
  • 5
    Nome fictício utilizado pelas autoras.
  • 6
    Ler mais sobre isenções fiscais e previdenciárias no Brasil em Velloso (1987).
  • 7
    Esses grupos educacionais surgiram no início do século XXI, inicialmente como instituições de ensino superior, e alavancam sua estrutura com a compra de diversas instituições de ensino que decretavam falência, ampliando assim sua atuação no mercado educacional e vendendo seu sistema de ensino para diversas instituições privadas (OLIVEIRA, 2009).
  • 8
    Nesse portal, na internet, a professora acessa todos os projetos que deverão ser desenvolvidos pelos alunos durante o mês. A professora precisa acompanhar e avaliar a participação dos alunos diariamente. O número de acessos ao portal define o comprometimento da professora com o projeto.
  • 9
    "Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada" (GOFFMAN, 2010, p. 11).
  • 10
    Alice no País das Maravilhas é a obra mais conhecida de Lewis Carroll, publicada em 1865. O livro conta a história de uma menina chamada Alice, que cai numa toca de coelho que a transporta para um lugar fantástico povoado por inúmeras criaturas comuns às histórias infantis.
  • 11
    Na psicologia, a zona de conforto é um estado comportamental que não causa nenhum tipo de medo ou risco, sendo que a pessoa opera em um nível neutro de ansiedade. Nessa condição, as pessoas permanecem nas situações por acomodação, sem nenhum impulso de mudança, e se mantêm sempre no mesmo ciclo pessoal. Ler mais em Bardwick (1998).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    Jun 2014
  • Aceito
    Mar 2015
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