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Para a noção de transformação curricular

On the Notion of Curricular Transformation

Pour la notion de transformation du curriculum

Para la noción de transformación escolar

Resumos

Neste artigo é evidenciada a relação entre currículo e conhecimento, abordando-se o conhecimento escolar na sua seleção, organização e transformação, a partir de uma revisão do conceito de transposição didática e da proposição dos conceitos de transformação curricular e transformação didática. Qualquer debate sobre o currículo exige a dilucidação do conhecimento e uma reflexão sobre os seus diversos significados, sobretudo quando a educação se torna num projeto amplo de questionamento da realidade social. Para além de várias questões colocadas acerca do conhecimento escolar e do modo como a sua organização pode ser realizada, procura-se centrar o debate numa reflexão sobre as fronteiras entre conhecimentos e esclarecer que, sobre essa temática, jamais poderão existir respostas fechadas.

Currículo; Conhecimento; Transformação Curricular; Transformação Didática


This article highlights the link between curriculum and knowledge, the approach of school knowledge's selection, organization and transformation is based on a revision of the concept of didactic transposition and on the proposal of the concepts of curriculum and didactic transformation. Debates on curriculum demand an explanation and a reflection on the multiple meanings of knowledge mainly when education aims to be a broad project to contest social reality. It aims to focus the discussion on a reflection regarding the borders between knowledges and to show that in this subject there are never closed answers.

Curriculum; Knowledge; Curriculum Transformation; Didactic Transformation.


Dans cet article est mis en évidence le rapport entre le curriculum et la connaissance, en abordant la connaissance scolaire dans sa sélection, son organisation et sa transformation à partir d'une révision du concept de transposition didactique et de la proposition des concepts de transformation du curriculum et de transformation didactique. Toute discussion sur le curriculum exige la dilucidation de la connaissance et une réflexion sur ses plusieurs signifiés, surtout quand l'éducation devient un projet plus large de mise en question de la réalité sociale. Au delà des plusieurs questions posées autour de la connaissance scolaire et de la manière comme son organisation peut être réalisée, on cherche á fixer le débat dans une réflexion sur les frontières entre connaissances et éclaircir que, sur cette thématique jamais ne pourront exister des réponses absolues.

Curriculum; Connaissance; Transformation du Curriculum; Transformation Didactique


En este trabajo se pone en evidencia la relación entre el currículum y el conocimiento, abordándose el conocimiento escolar en su selección, organización y transformación desde una revisión del concepto de transposición didáctica y de la proposición de los conceptos de transformación curricular y transformación didáctica. Cualquier discusión sobre el currículum requiere la aclaración del conocimiento y una reflexión sobre sus diversos significados, especialmente cuando la educación se convierte en un proyecto más amplio de cuestionamiento de la realidad social. Además de varias preguntas sobre el conocimiento escolar y el modo en el que su organización puede tener lugar, se intenta centrar el debate en una reflexión sobre las fronteras entre conocimientos y aclarar que en esta temática jamás podrán existir respuestas cerradas.

Currículum; Conocimiento; Transformación Curricular; Transformación Didáctica


O conhecimento escolariza-se quando são selecionados conteúdos, pertencentes a determinadas áreas do saber, em detrimento de outros, e cuja institucionalização educacional lhe confere um significado histórico-social, pois cada sociedade estabelece parâmetros para a integração dos indivíduos nas organizações formais. Subsequentemente, a escola valoriza o conhecimento quando este se torna sinónimo de currículo, de ensino e de aprendizagem, dando origem a um conhecimento organizado em disciplinas, face a outros conhecimentos, ligados a contextos específicos e orientados para uma educação como projeto amplo de conscientização. Desse modo, o debate neste artigo é centrado em três pontos: currículo e conhecimento; conhecimento escolar: transformação curricular e transformação didática; conhecimento disciplinarizado.

Currículo e conhecimento

A questão canónica dos Estudos Curriculares prende-se com esta questão, colocada ao longo de sucessivas gerações, depois de ter sido formulada por Spencer em 1859SILVA, Tomaz Tadeu da. O que produz e o que reproduz em Educação: ensaios de sociologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.: Qual é o conhecimento valioso?

Se tal interrogação tem sido persistente (PINAR, 2007PARAÍSO, Marlucy (Org.). Pesquisa sobre currículos e culturas. Curitiba: CRV, 2010.; MOREIRA; SILVA, 1997MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa; CANDAU, Vera Maria (Org.). Currículos, disciplinas escolares e culturas. Petrópolis: Vozes, 2014.) no processo de construção do currículo em contextos formais, com ênfase na organização escolar, as respostas são necessariamente diferentes, sobretudo pela diversidade de abordagens teóricas em torno do conhecimento (PACHECO, 2014MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa; SILVA, Tomaz Tadeu da. Sociologia e teoria crítica do currículo: uma introdução. In:. MOREIRA, A. F. B; SILVA, T. T. da (Org.). Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 1997. p. 7-38.).

Desse modo, currículo é um itinerário de educação e formação, com uma identidade cultural, histórica e socialmente contextualizada, mesmo que as abordagens curriculares sejam muito diferentes no objeto que definem como conhecimento, mais ainda se forem tidas em conta quer as perspetivas estruturalistas e pós-estruturalistas, ou pós-modernas (DOSSE, 2007DOSSE, Françoise. História do estruturalismo. São Paulo: Edusc, 2007. ), quer as abordagens tradicionalistas e multiculturais (MOREIRA; CANDAU, 2008MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. A importância do conhecimento no currículo e os pontos de vista de Michael Young. In: FAVACHO, A. M.; PACHECO, J. A.; SALES, S. R. (Org.). Currículo: conhecimento e avaliação, divergências e tensões. Curitiba: CRV, 2013. p. 33-47.), intersetadas pela diferença (PARAÍSO, 2010PACHECO, José Augusto; OLIVEIRA, Maria Rita. Os campos do currículo e da didática. In: OLIVEIRA, M. R.; PACHECO, J. A. (Org.). Currículo, didática e formação de professores. Campinas: Papirus, 2013. p. 21-44.) e pelo género (SALIH, 2012PINAR, William. Educational experience as lived: knowledge, history, alterity. New York: Routledge, 2015.), entre outras noções.

Se na história da sua afirmação epistemológica, os Estudos Curriculares foram marcados pela racionalidade burocrática e técnica, em que "a instrução foi compreendida pelos primeiros teóricos do currículo e pelos que vieram posteriormente como Tyler e Taba, de uma forma altamente prescritiva" (YOUNG, 2013YOUNG, Michael. Conhecimento e currículo: do socioconstrutivismo ao realismo social na sociologia da educação. Porto: Porto, 2010., p. 14), com o movimento da Reconceptualização (PINAR, 2007PARAÍSO, Marlucy (Org.). Pesquisa sobre currículos e culturas. Curitiba: CRV, 2010.), ligado às teorias críticas e pós-críticas, o campo potencializou abordagens marcadas pelo social e pessoal, se bem que a pós-modernidade tenha contribuído para fazer do currículo um projeto de discussão inacabada e de uma contestação do conhecimento alicerçado em referenciais universais (BOGHOSSIAN, 2015BOGHOSSIAN, Paul. O medo do conhecimento: contra o relativismo e o construtivismo. Lisboa: Gradiva, 2015.). Por conseguinte, qualquer noção sobre currículo é sempre um modo concreto de referenciar uma dada abordagem do conhecimento, constituindo-se este numa asserção substantiva daquele, sendo a aprendizagem a face inclusa do conhecimento, como se observa na teorização de Bernstein (1996BERNSTEIN, Basil. A estruturação do discurso pedagógico: classe, códigos e controle. Petrópolis: Vozes, 1996.).

De um modo mais concreto, Young (2013YOUNG, Michael. Conhecimento e currículo: do socioconstrutivismo ao realismo social na sociologia da educação. Porto: Porto, 2010., p. 13) lança a seguinte pergunta: Qual é o conhecimento importante que os alunos deveriam ser capazes de adquirir na escola?

Partindo do pressuposto de que qualquer teoria curricular deve ter por base a questão do conhecimento, Young (2010YOUNG, Michael. An approach to the study of curricula as socially organized knowledge. In: YOUNG, M. (Ed.). Knowledge and control: new directions for the Sociology of Education. London: Collier Macmillan, 1971. p. 19-46.) estabelece linhas fortes de uma razoabilidade argumentativa em defesa de um conhecimento poderoso, isto é, especializado pelas fronteiras entre disciplinas e conteúdos que definem o objeto de construção do currículo em termos escolares. Respondendo à anterior questão, Young (2013YOUNG, Michael. A superação da crise em estudos curriculares: uma abordagem baseada no conhecimento. In:; FAVACHO, A. M.; PACHECO, J. A. SALES, S. R. (Org.). Currículo: conhecimento e avaliação, divergências e tensões. Curitiba: CRV, 2013. p. 11-31., p. 13) afirma: "Se, enquanto especialistas em currículo, não podemos responder a esta pergunta, fica indefinido quem pode e é mais provável que tal indagação seja deixada para as decisões pragmáticas e ideológicas de administradores e políticos".

Se a indefinição se mantiver, tal posição fica refém de uma abordagem essencialmente epistemológica e aparentemente neutra, pretendendo-se que o currículo seja construído na base da prescrição e do controlo, dando origem a uma linguagem da aprendizagem, e não a uma linguagem da educação, contrariamente ao que defende Biesta (2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 30), argumentando que "há uma necessidade de recuperar uma linguagem da educação para a educação", no contexto de uma era de aprendizagem individualista, cognitivista e tecnicista, e no seguimento do pensamento perfilhado por Adorno (2011ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011 .) sobre educação e conscientização.

Por mais lógicas que existam quanto à contestação da essência do campo curricular, o conhecimento especializado, para Moreira (2013MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. Por que ter medo dos conteúdos? In: PEREIRA, M. Z.; MOURA, A. (Org.). Políticas e práticas curriculares: impasses, tendências e perspectivas. João Pessoa: Ideia, 2005. p. 11-42., p. 41), é um conhecimento científico e sobre este pode-se afirmar que, sendo uma "fonte central do conhecimento poderoso, constitui uma forma privilegiada de conhecimento e que a sua importância para a vida nas sociedades contemporâneas não levanta contestações", devendo, no entanto, existir uma discussão quer sobre as fronteiras entre os conhecimentos, quer sobre os limites de um conhecimento poderoso, que não pode ficar confinado a uma lógica performativa.

Se o currículo é um espaço de cultura em torno do conhecimento, que contribui de forma decisiva para corporizar as finalidades da escolarização (LOPES; MACEDO, 2011LOPES, Alice Casimiro. Conhecimento escolar: ciência e cotidiano. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 1999.), qualquer abordagem baseada no conhecimento requer uma discussão sobre quem define esse conhecimento e qual o papel do professor nesse processo de construção, que jamais pode ficar dissociado das questões pessoais, como tem defendido Pinar (2015PINAR, William. O que é a teoria do currículo? Porto: Porto, 2007.) em muitos dos seus escritos acerca da subjetivação do currículo.

No processo de construção do currículo, e reconhecendo-se que há muitos e diferentes autores neste processo, há a questão central do conhecimento que Levin (2008KELLY, Albert. Currículo: teoria e prática. São Paulo: Harbra, 1981., p. 7) expressa numa interrogação - "O que deveria ser aprendido nas escolas?" - e que explora a partir não só da controvérsia que o conhecimento gera, mas também das suas implicações sociais. O conteúdo particular das disciplinas, do tal conhecimento especializado, ou poderoso, de Young (2010YOUNG, Michael. An approach to the study of curricula as socially organized knowledge. In: YOUNG, M. (Ed.). Knowledge and control: new directions for the Sociology of Education. London: Collier Macmillan, 1971. p. 19-46.) é um dos temas de debate nas questões curriculares, devendo discutir-se quem está realmente envolvido nesse processo de definição do conhecimento escolar.

De acordo com a perspetiva de Young (2013YOUNG, Michael. A superação da crise em estudos curriculares: uma abordagem baseada no conhecimento. In:; FAVACHO, A. M.; PACHECO, J. A. SALES, S. R. (Org.). Currículo: conhecimento e avaliação, divergências e tensões. Curitiba: CRV, 2013. p. 11-31.), o processo de conversão do conhecimento em conhecimento escolar é algo que fica circunscrito a administradores e políticos, atores que, para Westbury (2008VEIGA-NETO, Alfredo; NOGUEIRA; Carlos Ernesto. Conhecimento e saber: apontamentos para os Estudos de Currículo. In: DALBEN, A. et al. (Org.). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 49-66., p. 47), têm uma efetiva autoridade na construção do currículo formal como "uma resolução institucional de um problema".

Essa abordagem tem contribuído para uma prescrição formal do conhecimento a partir de decisões que expressam uma dada perspetiva curricular em torno do conhecimento, desde o racionalismo académico e eficiência social até ao humanismo e reconstrução social (EISNER; VALLANCE, 1974EISNER, Elliot W.; VALLANCE, Johan L. (Ed.). Conflicting conceptions of the curriculum. Berkeley, CA: McCutchan, 1974. (Contemporary Educational Issues).; PACHECO, 2014MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa; SILVA, Tomaz Tadeu da. Sociologia e teoria crítica do currículo: uma introdução. In:. MOREIRA, A. F. B; SILVA, T. T. da (Org.). Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 1997. p. 7-38.), acentuando consensos e divergências em torno das disciplinas, entendidas como estruturas de organização do conhecimento (SCHWAB, 1969SAVIANI, Nereide. Saber escolar, currículo e didática. 4. ed. Campinas: Autores Associados, 2003.), e do conhecimento escolar, com discussões que não são apenas epistemológicas, mas também políticas, económicas, ideológicas, estéticas e históricas (APPLE, 2013APPLE, Michael W. Can education change society? New York: Routledge, 2013.). Há, consequentemente, uma abrangência entre currículo, conhecimento e disciplinas escolares (MOREIRA; CANDAU, 2014MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa; CANDAU, Vera Maria (Org.). Currículos, disciplinas escolares e culturas. Petrópolis: Vozes, 2014.), no quadro de uma cultura-mundo, tal como propõem Lipovetsky e Serroy (2010LIBÂNEO, José Carlos; ALVES, Nilda (Org.). Temas de pedagogia: diálogos entre didática e currículo. São Paulo: Cortez, 2012., p. 23), "mas isso não significa de modo algum cultura-mundo una nem unificada".

Conhecimento escolar: transformação curricular e transformação didática

Se o currículo for entendido como um projeto de educação em torno do conhecimento, no sentido de uma formação ampla, tal como é expresso pelo termo Bildung (PINAR, 2015; FREIRE, 2006FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 44. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.; SUAREZ, 2005SPENCER, Herbert. What knowledge is most worth? Westminster Review, v. 67, p. 445-485, 1859. 1 1 Citando Antoine Breman, Bildung et Bildungsroman: le temps de la réflexion, 1984, utiliza o conceito de Bildung para tratar do grau de "formação" de um indivíduo, um povo, uma língua, uma arte: e é a partir do horizonte da arte que se determina, no mais das vezes, Bildung. Sobretudo, a palavra alemã tem uma forte conotação pedagógica e designa a formação como processo. ; BIESTA, 2013BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.; ADORNO, 2011ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011 . [1971]), num processo que inclui a discussão da aprendizagem (BEDIN; FOURNIER, 2015BEDIN, Vèronique; FOURNIER, Martine. Aprender. Lisboa: Texto & Grafia, 2015.; MEIRIEU, 1998LUNDGREN, Ulf. Teoria del curriculum y escolarización. Madrid: Morata, 1997.; BRUNER, 1966BRUNER, Jerome. Towards a theory of instruction. Cambridge: Harvard University Press, 1966.), a sua relevância é traduzida por um código de seleção, organização e transformação do conhecimento (LUNDGREN, 1997LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elisabeth. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 2011.; BERNSTEIN, 1971BERNSTEIN, Basil. On the classification and framing of educational knowledge. In: YOUNG, M. (Ed.). Knowledge and control: new directions for the Sociology of Education. London: Collier Macmillan, 1971. p. 47-69.), estabelecendo a mediação entre as estruturas sociais e as estruturas educativas, como é o caso das escolas.

Assim, a relevância cultural do currículo é adquirida pelo modo como este se torna num projeto de conhecimento socialmente organizado, no quadro de uma problematização mais alargada de fatores que contribuem para a sua fundamentação, transformando-se qualquer proposta curricular numa representação específica de um universo do conhecimento, sendo impossível de cumprir a máxima de ensinar tudo a todos, como propôs Coménio (1985COMÉNIO, João. Didática magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985 [1657]). Por conseguinte, o currículo como código de seleção e organização do conhecimento exige um processo de transformação do conhecimento em conhecimento escolar, grosso modo, em disciplinas, que denominamos de processo de transformação curricular, em cuja caracterização situamos tanto as finalidades educativas, expressas nas políticas educativas, como as práticas de design curricular, assumidas no momento do planejamento.

É nesse processo que a adjetivação escolar adquire pleno sentido, tornando a escola num espaço geográfico de conhecimento e de produção de conflitos. Uma escola é como um mapa de diferentes espaços culturais determinados pelo peso curricular das disciplinas e seus conteúdos. Tal conceito tem recebido, na literatura educacional, o nome de transposição didática, ou seja, de mediação entre um conhecimento científico (erudito) e um conhecimento escolar (geralmente disciplinar), revelando sobretudo que o currículo é perspetivado numa dimensão instrucional, ligada ao processo de ensino/aprendizagem.

O conceito de transposição didática traduz, decerto, a divisão tradicional entre currículo e instrução - sendo a sua análise feita por diversos autores, por exemplo, Chevellard (1985CHEVELLARD, Yves. La transposition didactique. Paris: La Pensée Sauvage, 1985.), Forquin (1996FORQUIN, Jean- Claude. École et culture: le point de vue des sociologues britanniques. 2. ed. Belgium: De Boeck & Larcier, 1996.), Lopes (1999LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Lisboa: Edições 70, 2010.), Saviani (2003SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.) e Libâneo (2002LEVIN, Ben. Curriculum policy and the politics of what should be learned in schools. In: CONNELLY, F. M. (Ed.). The Sage handbook of curriculum and instruction. Los Angeles: Sage, 2008. p. 7-24.) -, que não traduz quer as diversas abordagens teóricas curriculares, quer a relação entre currículo e didática (LIBÂNEO; ALVES, 2012LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e pedagogos, para quê? São Paulo: Cortez, 2002. ; OLIVEIRA; PACHECO, 2013).

Trata-se de um processo de distanciação entre o conhecimento (savoir savant) e o conhecimento escolar (savoir enseigné), que estabelece a ligação entre um código científico (próprio de um campo epistemológico) e um código disciplinar (incluído num plano curricular em função de um percurso de escolarização). Porém, o savoir enseigné não é linear num processo de transformação curricular, dado que o conhecimento escolar é, numa primeira fase, "transformado" em disciplinas e programas e, numa segunda, é didaticamente planificado e "transformado" num currículo em ação, isto é, a transformação didática. É nesse sentido que o conhecimento tem uma dimensão curricular, sendo pensada tanto na sua organização formal, quanto nos aspetos processuais ligados ao ensino e à aprendizagem.

Independentemente dos termos a utilizar, a escola torna-se no centro de diversos conhecimentos e culturas escolares: de um lado, a cultura ligada aos campos epistemológicos e disciplinares e aos contextos sociais; do outro, a cultura referente às organizações educativas, aos professores e aos alunos. Desse modo, a transformação curricular é uma noção mais ampla que a de transposição didática, geralmente utilizada para designar o espaço de conversão da transformação curricular num processo de ensino/aprendizagem, capaz de tornar o currículo prescrito, ou escrito, (pela administração) e o currículo programado (pela escola) num projeto-em-ação.

A centralidade do currículo é o conhecimento. Um quadro concetual, dentro de parâmetros sociológicos, para a seleção, a organização e a avaliação do conhecimento nas instituições escolares é apresentado por Young (1971WESTBURY, Ian. Making curricula. Why do States make curricula, and how? In: CONNELLY, F. M. (Ed.). The sage handbook of curriculum and instruction. Los Angeles: Sage, 2008. p. 45-65.) no âmbito de uma metateoria ou de uma doutrina do controlo.

Tendo a sua origem num processo de seleção, fortemente controlado, o conhecimento escolar faz parte da cultura social ampla, sendo o resultado de diversas escolhas, já que "aquilo que é definido como sendo conhecimento escolar constitui uma seleção particular e arbitrária de um universo muito mais amplo de possibilidades" (SILVA, 1999SILVA, Tomaz Tadeu da. O que produz e o que reproduz em Educação: ensaios de sociologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999., p. 79).

A esse propósito, Young (1971WESTBURY, Ian. Making curricula. Why do States make curricula, and how? In: CONNELLY, F. M. (Ed.). The sage handbook of curriculum and instruction. Los Angeles: Sage, 2008. p. 45-65., p. 24) adverte que os sociólogos, e seria de acrescentar outros, incluindo os conceptualizadores de políticas educativas, "esqueceram-se, parafraseando-se Raymond Williams (1921-1988), que a educação não é um produto tal como carros e pão, mas uma seleção e organização de um conhecimento válido num tempo particular que envolve escolhas conscientes ou inconscientes".

Por isso, o que conta como conhecimento escolar é problemático, pois, no âmbito da estrutura chamada escola, todo o processo de transformação curricular é socialmente construído, inerente a questões de poder e formas de discutir os critérios de verdade epistemológicos, como é reconhecido por Kelly (1981HUEBNER, Dwayne. Knowledge and the curriculum. In: HILLIS, V. (Ed.). The Lure of Transcendent. Collected by Dwayne Huebner. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1999 . p. 44-65., p. 41):

Tem havido muito desacordo, porém, sobre a questão do que se deva incluir no currículo sem precisar justificação. Na verdade, essa questão tem sido o ponto focal do debate educacional desde o início. Continua sendo questão altamente controversa pois não é, de modo algum, coisa simples identificar as áreas de conhecimento que têm valor intrínseco próprio, nem demonstrar que haja áreas de conhecimento desse tipo.

Porque as respostas não são convergentes sobre Qual é o conhecimento mais valioso? e porque "o currículo escolar é um dos diversos mecanismos pelos quais o conhecimento é socialmente distribuído" (YOUNG, 1971WESTBURY, Ian. Making curricula. Why do States make curricula, and how? In: CONNELLY, F. M. (Ed.). The sage handbook of curriculum and instruction. Los Angeles: Sage, 2008. p. 45-65., p. 27), tais questionamentos, inscritos desde há muito nas agendas de discussão educacional, são essenciais para compreender que no processo de transformação curricular há diversos critérios a adotar, já que traduzir uma área de conhecimento numa disciplina escolar exige a ponderação de fatores de diversa ordem, relacionados com os contextos escolares, com a estrutura dos campos epistemológicos e com a estrutura psicológica dos aprendentes, sublinhando Bernstein (1971BERNSTEIN, Basil. On the classification and framing of educational knowledge. In: YOUNG, M. (Ed.). Knowledge and control: new directions for the Sociology of Education. London: Collier Macmillan, 1971. p. 47-69., p. 47):

O modo como uma sociedade seleciona, classifica, distribui, transmite e avalia o conhecimento educacional que considera ser público, reflete, simultaneamente, a distribuição do poder e os princípios do controlo social. Deste ponto de vista, as diferenças na organização, transmissão e avaliação do conhecimento educacional e as mudanças verificadas a estes níveis deveriam ser uma área de interesse sociológico fundamental.

A partir dos contributos teóricos de Chervel (1990CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, n. 2, p. 177-229, 1990.), a validade do conhecimento escolar depende, acima de tudo, de uma matriz interativamente dinâmica entre o pessoal (quem aprende), o social (onde se situa a escola) e a cultura (a seiva que corre no interior da escola), ou seja, de uma matriz que é construída ao nível das fontes do conhecimento, tal como preconizou Tyler (1949SUAREZ, Rosana. Nota sobre o conceito de Bildung (formação cultural). Kriterion: Revista de Filosofia, v. 46, n. 112, 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0100-512X2005000200005>. Acesso em: jul. 2015.
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) na escrita de uma das obras fundacionais do campo curricular. Porque "as escolas sempre têm estado relacionadas com o conhecimento" (HUEBNER, 1999GRUMET, Madeleine. Worlds: the literary reference for curriculum criticism. In: PINAR, W. (Ed.). Contemporary curriculum discourses. New York: Peter Lang, 1999. p. 233-245. [1962], p. 44), a sua valorização exige a clarificação das fontes que o legitimam e que tornam possível tanto o processo de transformação curricular quanto o processo de transformação didática.

Sendo a escola uma instituição de socialização, o conhecimento pode ser visto como formação que enriquece a vida de um educando, fornecendo-lhe poder na exploração do mundo. Por isso, tem constituído preocupação dos investigadores analisar as diversas maneiras pelas quais o conhecimento e o poder estão associados, procurando-se "entender como a escola recebe, legitima ou rejeita as experiências e os saberes dos alunos/as e como estes/as se submetem ou resistem às determinações e normas escolares" (MOREIRA, 1999MEIRIEU, Philippe. Aprender... sim, mas como? 7. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998., p. 10).

Como todo e qualquer conhecimento, o conhecimento escolar é intersetado pela noção de cultura, querendo, então, significar não só a legitimação de "verdades" social e historicamente construídas, mas também a institucionalização, pela escola, de uma cultura letrada, dinamizada pelo Estado como um valor universal. Nesse caso, "o currículo é tanto um produtor quanto um produto de cultura" (GRUMET, 1999GRUMET, Madeleine. Worlds: the literary reference for curriculum criticism. In: PINAR, W. (Ed.). Contemporary curriculum discourses. New York: Peter Lang, 1999. p. 233-245., p. 233), contribuindo para o debate em torno do conhecimento oficial veiculado pela escola, debate este que assume inevitavelmente contornos políticos e ideológicos.

Mas o currículo não representa unicamente a perspetiva oficial do conhecimento, sobretudo no lado mais substantivo da sua politização, estando também associado a um processo de interpretação, pois se compreendemos a cultura como sendo um sistema de significados, viável para atores situados num mesmo espaço e tempo, então é razoável que se pense no desenvolvimento do currículo como uma atividade hermenêutica (PINAR, 2015PINAR, William. Educational experience as lived: knowledge, history, alterity. New York: Routledge, 2015.). Por isso, há posições divergentes sobre o que é o conhecimento escolar e sobre quais são os seus significados sociais, políticos e culturais, independentemente das estruturas escolares que o configuram, reconhecendo-se a existência de continuidades e ruturas entre a cultura dos alunos e a cultura escolar (FABRE, 2003FABRE, Michel. L'école peut-elle encore former l'esprit? Revue Française de Pédagogie, n. 143, p. 7-15, 2003. ) e questionando-se as disciplinas como estruturas para a sua organização.

Conhecimento disciplinarizado

Apesar da sua identidade própria, o Currículo e a Didática são campos de conhecimento que se intersetam (PACHECO; OLIVEIRA, 2013PACHECO, José Augusto; OLIVEIRA, Maria Rita. Os campos do currículo e da didática. In: OLIVEIRA, M. R.; PACHECO, J. A. (Org.). Currículo, didática e formação de professores. Campinas: Papirus, 2013. p. 21-44.) e uma das suas relações mais fortes é precisamente com o conhecimento escolar, mais concretamente com os conteúdos. Nesse caso, o estudo predominante do Currículo tem sido a seleção, a organização e a transformação do conhecimento, ao passo que a Didática tem uma ligação específica com a organização do processo de ensino e aprendizagem. Citando-se a pergunta de Antonio Flavio Moreira (2005MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. O currículo como política cultural e a formação docente. In: SILVA, T. T. da; MOREIRA, A. F. B. (Org.). Territórios contestados: o currículo e os novos mapas políticos e culturais. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 7-20.): Por que ter medo dos conteúdos?

Se o campo do Currículo é mais amplo do que o da Didática, a discussão em torno dos conteúdos, que são decididos no processo de transformação didática, aproxima-os de forma evidente, permitindo abordagens conjuntas que contribuem para a clarificação das aprendizagens em contextos que são sempre referenciados pelo tempo e pelo espaço, pois nenhum projeto de formação pode ser entendido fora das perspetivas diacrónica e sincrónica.

Constituindo a essência do conhecimento escolar, os conteúdos estabelecem fronteiras de aprendizagem e delimitam formas de conhecimento, tal como tem argumentado Young (2010YOUNG, Michael. Conhecimento e currículo: do socioconstrutivismo ao realismo social na sociologia da educação. Porto: Porto, 2010., 2013YOUNG, Michael. A superação da crise em estudos curriculares: uma abordagem baseada no conhecimento. In:; FAVACHO, A. M.; PACHECO, J. A. SALES, S. R. (Org.). Currículo: conhecimento e avaliação, divergências e tensões. Curitiba: CRV, 2013. p. 11-31., 2014YOUNG, Michael. Teoria do currículo: o que é e por que é importante. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 44, n. 151, p. 190-202, jan./mar. 2014. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/198053142851>. Acesso em: jul. 2015.
https://doi.org/10.1590/198053142851...
). Se a escola tem espaço para o conhecimento poderoso, que é especializado e organizado em disciplinas, o que fazer com o conhecimento do quotidiano, circunscrito a contextos locais e a vozes e discursos quase sempre silenciados?

Em qualquer debate sobre o conhecimento escolar, e sobretudo sobre a pluralidade de conhecimentos que a escola tem de integrar no seu projeto de formação ampla, surge o conflito entre conhecimento orientado para a formação social e pessoal dos alunos, com ênfase na dimensão da educação para a cidadania, e conhecimento instrucional, circunscrito a uma dimensão cognitiva, de domínio de saberes específicos, organizados em disciplinas.

Em possíveis respostas, Veiga-Neto e Nogueira (2010VEIGA-NETO, Alfredo; NOGUEIRA; Carlos Ernesto. Conhecimento e saber: apontamentos para os Estudos de Currículo. In: DALBEN, A. et al. (Org.). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 49-66., p. 82) perfilham um deslocamento dos conhecimentos para os saberes, explorando o conceito de sujeito da experiência, isto é, "um sujeito que faz do acontecimento uma experiência para si mesmo". Outra resposta é dada por Moreira (2013MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. A importância do conhecimento no currículo e os pontos de vista de Michael Young. In: FAVACHO, A. M.; PACHECO, J. A.; SALES, S. R. (Org.). Currículo: conhecimento e avaliação, divergências e tensões. Curitiba: CRV, 2013. p. 33-47.). Recuperando os conceitos de currículo tipo coleção e currículo integrado, propostos por Bernstein (1996), Moreira (2013MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. A importância do conhecimento no currículo e os pontos de vista de Michael Young. In: FAVACHO, A. M.; PACHECO, J. A.; SALES, S. R. (Org.). Currículo: conhecimento e avaliação, divergências e tensões. Curitiba: CRV, 2013. p. 33-47., p. 43-44) sustenta:

Na escola, a opção por currículo do tipo coleção ou por currículo integrado envolve tensões referentes não apenas a decisões concernentes ao conhecimento a ser ensinado, mas também a questões de ordem e controle. A adoção de um currículo integrado demanda uma nova modalidade de ordem, que precisa, então, ser concebida, planejada e aceita. O status e o âmbito dos diferentes conhecimentos também se alteram, assim como se modificam as relações entre professores e alunos. Nesse panorama, conflitos mostram-se passíveis de eclodir.

E porque qualquer forma de exploração de conteúdos em contexto escolar exige um processo de seleção, organização e transformação do conhecimento, Gabriel e Ferreira (2012GABRIEL, Carmen Teresa; FERREIRA, Márcia Serra. Disciplina escolar e conhecimento escolar. In: LIBÂNEO, J. C.; ALVES, N. (Org.). Temas de pedagogia: diálogos entre currículo e didática. São Paulo: Cortez, 2012. p. 227-241.) respondem com o conceito de conhecimento disciplinarizado. Partindo da premissa de que os conceitos de conhecimento escolar e de disciplina escolar ainda são bons para pensar politicamente o campo académico e a democratização da escola brasileira, revelando por isso uma elevada potencialidade analítica, as autoras esclarecem:

Nesse movimento, as críticas a uma pretensa representação universal do conhecimento científico e ao papel da escola como transmissora desse conhecimento têm sido transferidas para os conceitos de disciplina escolar e de conhecimento escolar, que passam a ser identificados como momentos de discursos universalistas. Não é por acaso que, nesses discursos, o conhecimento disciplinarizado tende a se situar no exterior da fronteira que fixa os sentidos de outros conhecimentos - tais como "conhecimento popular", "conhecimento comunitário", "conhecimento do aluno", "conhecimento contextualizado" - como componentes dos currículos de uma escola democrática. (GABRIEL; FERREIRA, 2012, p. 235-236)

O significado curricular do conhecimento disciplinarizado não está na rejeição da disciplina e dos conteúdos, mas na valorização dos diferentes sentidos políticos e sociais que configuram a construção do conhecimento escolar. A propósito das disciplinas na configuração do conhecimento escolar, Charlot (2013CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber às práticas educativas. São Paulo: Cortez, 2013., p. 110) escreve que "é rotulado como tradicional o professor que confere uma grande importância à disciplina" e que o debate entre o universal e o particular é algo ultrapassado, uma vez que "não há universal fora da diversidade, mas sim através da diversidade" (CHARLOT, 2013CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber às práticas educativas. São Paulo: Cortez, 2013., p. 174).

Sendo a educação um processo de socialização, humanização e subjetivação, "o essencial é pensar a sociedade e a educação em seu devir" (ADORNO, 2011ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011 . , p. 12), seguindo de igual modo o potencial subversivo da educação crítica, como alerta o filósofo da Escola de Frankfurt: "É preciso romper com a educação enquanto mera apropriação do instrumental técnico e receituário para a eficiência, insistindo no aprendizado aberto à elaboração da história e ao contacto com o outro não-idêntico, o diferenciado" (ADORNO, 2011ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011 .[1971], p. 27).

A formação cultural (bildung), ainda para Adorno (2011ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011 ., p. 141), é necessária para a reelaboração do passado, sobretudo pela autorreflexão e pelo esforço crítico, para que a barbárie jamais se volte a repetir, sendo a educação "a produção de uma consciência verdadeira".

Para que tal se verifique, é fundamental não só que o currículo valorize um conhecimento que é produzido em contextos diferenciados, respondendo a situações específicas e preparando os alunos para situações complexas que requerem a discussão acerca do modo como os referenciais universais são produzidos na seleção, organização e transformação do conhecimento, mas também que se produza uma mudança substantiva em quem representa a autoridade do conhecimento, pois os professores são "exageradamente professores de respostas e pouco professores de questionamentos" (CHARLOT, 2013CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber às práticas educativas. São Paulo: Cortez, 2013., p. 178).

Conclusão

É através das diversas áreas ou disciplinas em que se encontra organizado que o conhecimento se torna num instrumento poderoso de experiência humana. Apesar das diferentes fontes ou lógicas que o fundamentam, o conhecimento escolar é um conhecimento educativo e a sua fundamentação é uma questão que se mantém permanentemente aberta. Partindo-se de uma relação forte entre currículo e conhecimento, este último, sobretudo na pluralidade de conhecimentos que a escola tem de integrar no seu projeto de formação ampla, é questionado como conhecimento orientado para a formação social e pessoal dos alunos, com ênfase na dimensão da educação para a cidadania, e conhecimento instrucional, circunscrito a uma dimensão cognitiva, de domínio de saberes específicos, organizados em disciplinas.

Se a questão Qual é o conhecimento mais valioso? não pode ter uma resposta definitiva, mais ainda quando o conhecimento é assumido como uma produção social, histórica e temporalmente contextualizada, a seleção, a organização e a transformação do conhecimento em conhecimento escolar são perspetivadas como um processo de transformação curricular e de transformação didática. Isso é algo que tem sido adotado na estruturação dos sistemas educativos, dando sentido às formas curriculares, ou seja, aos processos e práticas de inclusão do conhecimento em disciplinas e a sua materialização em programas que especificam conteúdos. É sobre esses conteúdos que têm recaído análises muito diferentes, não sendo consensual a determinação dos conteúdos a partir de um conhecimento poderoso, tornando-se útil, entre outros, a noção de conhecimento disciplinarizado.

No entanto, nos debates sobre conhecimento escolar, a responsabilidade é quase exclusivamente colocada nos especialistas e nos decisores administrativos, ignorando-se o papel crucial que o professor tem no contexto da sala de aula. E como na questão do conhecimento não há respostas fechadas, será interessante discuti-la a partir desta interrogação: O que poderia ser o currículo se o professor tivesse o poder da sua definição?

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  • 1
    Citando Antoine Breman, Bildung et Bildungsroman: le temps de la réflexion, 1984, utiliza o conceito de Bildung para tratar do grau de "formação" de um indivíduo, um povo, uma língua, uma arte: e é a partir do horizonte da arte que se determina, no mais das vezes, Bildung. Sobretudo, a palavra alemã tem uma forte conotação pedagógica e designa a formação como processo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    Set 2015
  • Aceito
    Out 2015
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