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Relações entre conhecimento escolar e liberdade

The relationship between school knowledge and freedom

Les rapports entre la connaissance scolaire et la liberté

Relaciones entre conocimiento escolar y libertad

Resumos

A proposta deste artigo é discutir algumas relações entre a liberdade e o conhecimento escolar na perspectiva da pedagogia histórico-crítica, que se fundamenta nas concepções marxistas de história, sociedade, ser humano e conhecimento. A liberdade inexiste na natureza, tendo surgido pela atividade especificamente humana, ou seja, o trabalho. A história social tem produzido o incremento das possibilidades de ação livre e, concomitantemente, os obstáculos à concretização dessas possibilidades. A educação escolar reflete, em seus conteúdos e suas formas, esse caráter contraditório da luta humana pela liberdade.

Conhecimentos; Liberdade; Pedagogia Histórico-Crítica; Educação


The purpose of this paper is to analyse some relationships between freedom and school knowledge from historical-critical pedagogic theory, which is based on the Marxist view of history, society, the human being and knowledge. Freedom does not exist in nature, having appeared through specifically human activity, that is, through work. Social history has increased the possibilities of free action and, simultaneously, obstacles to the achievement of these possibilities. School education reflects, in its content and form, that contradictory character of the human struggle for freedom.

Knowledge; Freedom; Historical-Critical Pedagogy; Education


Le propos de cet article est discuter certains rapports entre la liberté et la connaissance scolaire sous la perspective historico-critique appuyée sur les conceptions marxistes de l'histoire, de la société, de l'être humain et de la connaissance. La liberté n'existe pas dans la nature. Elle a été engendrée par l'activité spécifiquement humaine, c'est-à-dire, le travail. L'histoire sociale a produit l'augmentation des possibilités d'action libre et, en même temps, des obstacles à la concrétisation de ces possibilités. L'éducation scolaire reproduit, à travers ses contenus et ses formes, ce caractère contradictoire de la lutte humaine pour la liberté.

Connaissances; Liberté; Pédagogie Historico-Critique; Éducation


La propuesta de este artículo es discutir algunas relaciones entre la libertad y el conocimiento escolar desde la perspectiva de la pedagogía histórico-crítica, que se fundamenta en las concepciones marxistas de historia, sociedad, ser humano y conocimiento. La libertad inexiste en la naturaleza y surgió a través de la actividad específicamente humana, es decir, el trabajo. La historia social ha producido el incremento de las posibilidades de acción libre y, concomitantemente, los obstáculos a la concreción de tales posibilidades. La educación escolar refleja, en sus contenidos y formas, este carácter contradictorio de la lucha humana por la libertad.

Conocimiento; Libertad; Pedagogía Histórico-Crítico; Educación


Uma liberdade em sentido absoluto, portanto, não pode existir: tal liberdade é simplesmente uma ideia de professores e na realidade nunca existiu. A liberdade existe no sentido de que a vida dos homens coloca alternativas concretas. Creio, e parece-me já ter usado essa expressão, que o homem é um ser que dá respostas e que sua liberdade consiste no fato de que deve e pode fazer certa escolha no interior das possibilidades oferecidas dentro de certa margem. (LUKÁCS apud KOFLER; ABENDROTH; HOLZ, 1969, p. 129)

Os trabalhos efetivamente livres, p. ex., compor, são justamente trabalhos ao mesmo tempo da maior seriedade e do mais intenso esforço. (MARX, 2011, p. 509)

Os conhecimentos transmitidos pela escola contribuem para a formação e a transformação da visão que os alunos têm da natureza, da sociedade, da vida humana, de si mesmos como indivíduos e das relações entre os seres humanos (DUARTE, 2015DUARTE, Newton. A importância da concepção de mundo para a educação escolar: por que a pedagogia histórico-crítica não endossa o silêncio de Wittgenstein. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 7, n. 1, p. 8-25, jun. 2015.). Entre as principais ideias constitutivas de uma concepção de mundo encontra-se a de liberdade. Os conhecimentos escolares veiculam noções sobre a liberdade, mesmo quando não há plena clareza sobre essas noções por parte dos educadores. A proposta deste artigo é discutir algumas relações entre a categoria de liberdade e o conhecimento escolar na perspectiva da pedagogia histórico-crítica, que se fundamenta nas concepções marxistas de história, sociedade, ser humano e conhecimento. A liberdade não existe na natureza, tendo surgido pela atividade especificamente humana, ou seja, o trabalho. A história social tem produzido o incremento das possibilidades de ação livre e, concomitantemente, os obstáculos à concretização dessas possibilidades. A educação escolar reflete, em seus conteúdos e formas, esse caráter contraditório da luta humana pela liberdade.

Iniciarei o artigo tecendo algumas considerações sobre liberdade na perspectiva marxista e estabelecendo conexões com a questão da formação humana para, em seguida, analisar algumas relações entre conhecimento escolar e liberdade. Por fim, abordarei o caráter contraditório que essa relações assumem na sociedade contemporânea.

O tema da liberdade na tradição marxista

Lukács (2013LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 2., p. 137) situa a gênese social da liberdade nas características próprias ao trabalho, entendido como uma forma especificamente humana de relacionamento com a natureza: "O caráter fundamental do trabalho para o devir do homem também se revela no fato de que sua constituição ontológica é o ponto de partida genético de outra questão vital, que move profundamente os homens ao longo de toda a sua história: a liberdade".

À primeira vista essa assertiva, que conecta geneticamente a liberdade com o trabalho, pode causar estranheza pelo fato, tão reiteradamente assinalado pelos próprios marxistas, da alienação do trabalho na sociedade capitalista. Entretanto, Lukács não desconsidera, de forma alguma, a questão da alienação do trabalho, o que não o impede, tal como não impediu a Marx e a Engels, de analisar dialeticamente o papel histórico do trabalho na superação do determinismo biológico que condiciona as demais formas de vida em nosso planeta. Engels (1979ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. , p. 96), por exemplo, já havia assinalado que:

A liberdade, pois, é o domínio de nós próprios e da natureza exterior, baseado na consciência das necessidades naturais; como tal é, forçosamente, um produto da evolução histórica. Os primeiros homens que se levantaram do reino animal eram, em todos os pontos essenciais de suas vidas, tão pouco livres quanto os próprios animais; cada passo dado no caminho da cultura é um passo no caminho da liberdade

.

A liberdade é vista, dessa forma, como um processo social no qual se unem objetividade e subjetividade. Os seres humanos não se tornam livres pela negação da objetividade da natureza, mas por seu conhecimento e seu domínio. Para dominar a realidade externa, o ser humano precisa dominar sua atividade, que deve ser uma atividade consciente. Lukács desenvolve uma detalhada análise dessa dialética entre objetividade e subjetividade na atividade de trabalho, permitindo, dessa forma, a compreensão das origens da liberdade no fato de que o ser humano precisa escolher entre diferentes opções de ação para atingir seus objetivos:

Com efeito, é nessa alternativa que aparece, pela primeira vez, sob uma figura claramente delineada, o fenômeno da liberdade, que é completamente estranho à natureza: no momento em que a consciência decide, em termos alternativos, qual finalidade quer estabelecer e como se propõe a transformar as cadeias causais correntes em cadeias causais postas, como meios de sua realização, surge um complexo de realidade dinâmico que não encontra paralelo na natureza. O fenômeno da liberdade, pois, só pode ser rastreado aqui em sua gênese ontológica. Numa primeira aproximação, a liberdade é aquele ato de consciência que dá origem a um novo ser posto por ele. (LUKÁCS, 2013, p. 138)

Sendo o trabalho uma atividade teleológica, a relação entre os fins conscientes e os meios empregados para atingir esses fins é, sem dúvida, fundamental. Para que a escolha dos fins seja a mais adequada possível, é preciso conhecimento da dinâmica objetiva da realidade, ao menos no que se refere ao âmbito da realidade que se pretende modificar com uma determinada atividade. Lukács, na passagem citada, emprega a expressão "cadeias causais correntes" para referir-se a essa dinâmica objetiva da realidade. Quando o ser humano intervém nessas cadeias causais para obter determinados resultados, elas passam de "cadeias causais correntes" a "cadeias causais postas", ou seja, a dinâmica objetiva da realidade incorpora os objetivos e planos traçados pela consciência. O subjetivo se transforma em objetivo, mas só opera essa transformação se for capaz de compreender a objetividade. Essa análise remete à questão do desenvolvimento do psiquismo humano, pois a exploração, pela mente humana, das conexões existentes entre os fenômenos da realidade objetiva, exige a formação da capacidade de controle dos processos mentais. A gênese do domínio, pelos seres humanos, de seus próprios processos mentais foi estudada por Vigotski em sua teoria sobre os signos, ou instrumentos psicológicos, como recursos que os seres humanos criaram para o desenvolvimento do autocontrole de seu psiquismo e de suas ações (MARTINS, 2013MARTINS, Lígia M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar. Campinas: Autores Associados, 2013.).

Assim como Lukács buscou, na atividade de trabalho, as origens do fenômeno da liberdade, também Vigotski buscou, nas formas mais elementares da atividade psíquica humana, as origens da capacidade de realização de escolhas conscientes ou, nos termos da psicologia, a origem do ato volitivo. Para explicar a problemática do ato volitivo, Vigotski (1995VIGOTSKI, Liev Semionovich. Obras escogidas: problemas del desarrollo de la psique. Madrid: Visor, 1995. Tomo III., p. 70-71) recorre ao clássico exemplo do asno de Buridan, embora assinale que seja um equívoco a atribuição da autoria desse exemplo a esse pensador francês do século XIV. A situação relatada no exemplo seria a de um animal, no caso um asno, com fome e que teria diante de si dois feixes de feno dos quais estaria a uma distância idêntica, mas que estariam em posições opostas. Incapaz de se decidir por um dos dois montes de feno, o asno acaba morrendo de fome. Como explica Vigotski (1995VIGOTSKI, Liev Semionovich. Obras escogidas: problemas del desarrollo de la psique. Madrid: Visor, 1995. Tomo III., p. 71), trata-se de uma situação fictícia, "uma construção lógica exclusivamente artificial que permitia ilustrar em forma concreta e evidente as soluções para o problema do livre arbítrio".

Em realidade, nem os animais nem o ser humano reagem na forma da pura imobilidade perante situações similares a essa. Citando experimentos realizados por Pavlov, Vigotski (1995VIGOTSKI, Liev Semionovich. Obras escogidas: problemas del desarrollo de la psique. Madrid: Visor, 1995. Tomo III., p. 71) afirma que "um cão, na situação do asno de Buridan, cairá seguramente na neurose em lugar de neutralizar mecanicamente os processos nervosos contraditórios". Para o estudo desse tipo de situação com seres humanos, Vigotski inicia pelas funções psicológicas elementares e recorre à observação de situações cotidianas. É o caso, por exemplo, daquelas situações nas quais uma pessoa tem que tomar uma decisão sobre como agir, mas sua capacidade de análise objetiva da situação não lhe é suficiente para decidir-se por uma das alternativas. Vigotski apresenta um exemplo extraído da obra literária Guerra e Paz, de Tolstói, em que um personagem está em dúvida sobre ir para a guerra ou aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Para sair da indecisão, o personagem utiliza um recurso externo, um jogo de baralho, ou seja, delega ao acaso das cartas a decisão, que acaba sendo a de não ir para a guerra. Não se trata, é evidente, de um caso no qual o indivíduo tenha tomado uma decisão com pleno conhecimento de todos os aspectos da situação e das consequências de uma ou outra opção. Mas o elemento essencial que Vigotski destaca com esse exemplo é o da utilização pelo indivíduo de um recurso externo para controlar seus processos psíquicos, no caso, o processo psíquico de tomada de decisão. Vigotski (1995VIGOTSKI, Liev Semionovich. Obras escogidas: problemas del desarrollo de la psique. Madrid: Visor, 1995. Tomo III., p. 288-289) menciona também experimentos psicológicos realizados com crianças que são colocadas em situações em que devem se decidir entre duas alternativas e, diante da indecisão, lançam a sorte. Vigotski então analisa a contradição dialética contida na questão do livre-arbítrio. Por um lado, quando a pessoa delega a decisão entre duas alternativas igualmente possíveis ao ato de lançar a sorte, está subordinando-se a um elemento externo que decidirá por ela. Não é, portanto, uma decisão livre. Por outro lado, é o próprio sujeito que toma a iniciativa de delegar a escolha ao fator externo, o que se caracteriza como um ato consciente e voluntário, sendo, portanto, um ato livre.

Vigotski, porém, não dissocia a questão do autodomínio individual do processo coletivo de domínio dos rumos da sociedade:

Nossa ciência [a psicologia] não podia nem pode desenvolver-se na velha sociedade [a sociedade capitalista]. O domínio da verdade sobre a pessoa e o domínio de si mesma pela pessoa não será possível enquanto a humanidade não dominar a verdade sobre a sociedade e não dominar a própria sociedade. Pelo contrário, na nova sociedade, nossa ciência se encontrará no centro da vida. O "salto do reino da necessidade ao reino da liberdade" colocará inevitavelmente a questão do domínio de nosso próprio ser, de subordiná-lo a nós mesmos. (VIGOTSKI, 1991, p. 406)

Trata-se, portanto, da dialética entre indivíduo e sociedade que se traduz na questão da necessidade de atuação tanto no sentido das transformações internas à atividade do indivíduo, como no sentido da transformação, por meio de ações individuais e coletivas, das condições sociais limitadoras das possibilidades de liberdade das atividades humanas. Mas a transformação das condições sociais é feita pelas pessoas que se formaram nessas mesmas condições. Para que essa transformação ocorra, é preciso que os indivíduos desenvolvam a capacidade de desnaturalização dessas condições, o que requer o domínio de conhecimentos da realidade sócio-histórica para além dos fenômenos imediatamente perceptíveis na cotidianidade. Destaca-se aqui a dialética entre a determinação social das ações individuais e o papel da consciência na condução de ações transformadoras. É nesse sentido que Lukács, no prólogo de sua obra Estética, afirma que a prioridade ontológica do ser sobre a consciência não significa que a consciência se submeta inelutavelmente às determinações objetivas. A consciência tem um decisivo papel na transformação dessas determinações com a condição, porém, que os seres humanos desenvolvam formas de conhecer objetivamente os processos sociais e naturais e os coloquem a serviço das finalidades humanas:

o ser existe sem a consciência, mas a consciência não existe sem o ser. Mas disto não decorre de modo algum uma subordinação hierárquica da consciência ao ser. Ao contrário: essa precedência [do ser em relação à consciência] e seu reconhecimento concreto, teórico e prático, pela consciência, criam ao final a possibilidade que a consciência domine realmente o ser. (LUKÁCS, 1966a, p. 19)

Afirma ainda o autor que a possibilidade de a consciência dominar o ser, a partir do conhecimento da precedência objetiva desse ser, ocorre tanto em relação à natureza como em relação à sociedade, esclarecendo que isso não é negado pelo fato de que, na história social até aqui vivida, o domínio consciente da sociedade pelos seres humanos tenha se concretizado de maneira relativamente limitada: "nessa relação se manifesta, pois, uma dialética histórica, de modo nenhum uma estrutura hierárquica" (LUKÁCS, 1966LUKÁCS, György. Estética: la peculiaridad de lo estético. Problemas de la mímesis. Barcelona: Grijalbo, 1966b. v. 2.a, p. 20).

A dialética entre determinismo e liberdade na relação entre o ser e a consciência remete à questão da formação da consciência e, portanto, à educação, especialmente considerando-se que o conhecimento é uma produção histórica e social que não se transmite aos indivíduos pela hereditariedade biológica. Se, por um lado, a educação não se reduz à transmissão de conhecimentos às novas gerações, por outro, sem essa transmissão, o ideal educativo torna-se algo vazio, desprovido de concretude histórica, limitando-se à afirmação de alguns princípios e atitudes descolados do enfrentamento efetivo dos grandes problemas que se colocam atualmente à humanidade.

Se a defesa da liberdade como um dos valores fundamentais da educação não for acompanhada da preocupação com a efetividade do ensino e da aprendizagem dos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos, ela pode acabar resultando, inadvertidamente, na difusão de uma concepção superficial de liberdade, reduzida ao plano imediato das relações interindividuais estabelecidas na escola. Parece-me ser cabível traçar aqui um paralelo entre o caráter não imediato das relações entre educação e liberdade e a análise que Saviani (2008SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. Ed. comemorativa. Campinas: Autores Associados, 2008., p. 59-60) faz do caráter também não imediato das relações entre educação e democracia social. Argumenta o autor que a educação desempenha a função de "mediação no seio da prática social global" e que, em consequência, a prática social deve ser o critério para se avaliar o quão democrático é efetivamente o trabalho realizado no interior das escolas. Sem as necessárias mediações na análise dos efeitos sociais da educação escolar, corre-se o risco de se julgar a realidade a partir das aparências. Seria o caso, por exemplo, de se considerar democrática (e livre) uma educação na qual fosse estabelecida, de partida, uma condição de igualdade entre professor e aluno:

Com efeito, se, como procurei esclarecer, a educação supõe a desigualdade no ponto de partida e a igualdade no ponto de chegada, agir como se as condições de igualdade estivessem instauradas desde o início não significa, então, assumir uma atitude de fato pseudodemocrática? Não resulta, em suma, num engodo? Acrescente-se, ainda, que essa maneira de encarar o problema educacional acaba por desnaturar o próprio sentido do projeto pedagógico. Isso porque se as condições de igualdade estão dadas desde o início, então já não se põe a questão da sua realização no ponto de chegada. Com isso o processo educativo fica sem sentido. (SAVIANI, 2008, p. 62)

Esse caráter mediador da educação é também analisado por Saviani (2003SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 8. ed. Campinas: Autores Associados, 2003. ) no que se refere às relações entre automatismo e liberdade no trabalho educativo. O autor diverge da ideia de que todo automatismo seria a negação da liberdade e defende, ao contrário, que "o automatismo é condição da liberdade" (SAVIANI, 2003SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 8. ed. Campinas: Autores Associados, 2003. , p. 18-19). Para explicar essa assertiva, emprega os exemplos da aprendizagem da atividade de dirigir um automóvel e da alfabetização, mostrando que a pessoa só se torna livre para a realização dessas atividades quando já automatizou os atos que as compõem, não sendo mais necessária a concentração em cada um deles individualmente. Conclui, então, que "é possível afirmar que o aprendiz, no exercício daquela atividade que é o objeto de aprendizagem, nunca é livre. Quando ele for capaz de exercê-la livremente, nesse exato momento ele deixou de ser um aprendiz" (SAVIANI, 2003SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 8. ed. Campinas: Autores Associados, 2003. , p. 19).

Nesse ponto, há um vasto terreno, que não foi ainda explorado em todas as suas dimensões. Trata-se da dialética entre o aumento da liberdade individual que se espera alcançar por meio do trabalho educativo e a momentânea restrição da liberdade, para que ocorra a aquisição das ferramentas mentais sem as quais não é possível o domínio dos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos. Essa momentânea restrição da liberdade ocorre, por exemplo, quando o indivíduo, para aprender a tocar um instrumento musical ou para aprender um idioma estrangeiro, precisa dedicar-se à atividade de estudo e exercitação quando seu impulso espontâneo seria, em contraposição, o de descansar ou realizar atividades que lhe trouxessem prazer imediato.

Mas não é somente na relação com a formação de automatismos que se coloca o tema da liberdade no interior dos processos educativos. Outro aspecto que ainda está por ser mais profundamente explorado pela teorização pedagógica é o das relações entre os conhecimentos adquiridos pela educação escolar e o processo de ultrapassagem, pela consciência, dos limites que a cotidianidade lhe impõe. Esse tema também pode ser formulado de outra maneira: os conhecimentos produzidos pela humanidade, por sintetizarem experiência social, transformam a atividade social acumulada em atividade individual, ampliando o leque de formas possíveis de relação entre a consciência individual e a prática social na sua totalidade. Trata-se, aqui, da dialética entre conhecimento da realidade externa e autoconhecimento.

Antônio Gramsci desenvolveu algumas reflexões muito valiosas acerca das relações entre as ideias sobre o mundo que as pessoas "herdam" do ambiente em que vivem e o desenvolvimento da autoconsciência. Um exemplo dessas reflexões reside na seguinte passagem:

Quando a concepção de mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção de mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. (GRAMSCI, 1999, p. 94)

Note-se que a elevação da concepção de mundo tem, para Gramsci, uma referência, que é a do "ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído". Torna-se aqui necessária a discussão sobre desenvolvimento, tanto no que se refere ao indivíduo como no que concerne à humanidade. Em outra oportunidade (DUARTE, 2013DUARTE, Newton. Vigotski e a pedagogia histórico-crítica: a questão do desenvolvimento psíquico. Nuances: Estudos sobre Educação, Presidente Prudente, v. 1, n. 25, p. 19-29, jan./abr. 2013., p. 21), afirmei que, "se não possuirmos um critério para identificarmos o que é mais desenvolvido e o que é menos desenvolvido, a primeira coisa que deveríamos fazer seria admitirmos que a atividade educativa é desprovida de sentido".

O tema da liberdade remete também à discussão sobre as relações entre conservar o que existe e criar o novo. Gramsci (1999GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedeto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. v. 1., p. 257) critica tanto a ideia de que "é inovador quem destruir todo o existente, sem se preocupar com o que virá depois" como a ideia de que "tudo o que existe é uma 'armadilha' dos fortes contra os fracos, dos espertos contra os pobres de espírito". Gramsci (1999GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedeto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. v. 1., p. 258) defende a seguinte tese: "que um modo de viver, de operar, de pensar se tenha introduzido em toda a sociedade porque próprio da classe dirigente não significa por si só que seja irracional e deva ser rejeitado". Apresenta como exemplo o ensino da leitura e da escrita: "ninguém (a menos que esteja louco) defenderá que não mais se ensine a ler e a escrever, porque ler e escrever certamente foram introduzidos pela classe dirigente" (GRAMSCI, 1999GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedeto Croce. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. v. 1., p. 259).

No prólogo à sua Estética, Lukács aborda as relações entre continuidade e descontinuidade no desenrolar histórico tanto da realidade objetiva como da sua imagem mental:

A realidade - e, portanto, também seu reflexo e reprodução mental - é uma unidade dialética de continuidade e descontinuidade, de tradição e revolução, de transições paulatinas e saltos. [...] A acentuação unilateral do novo e do que separa suscita o perigo de estreitar e empobrecer aquilo que o novo contém de concreto e ricamente determinado, ao reduzi-lo a uma abstrata diversidade. (LUKÁCS, 1966a, p. 17-18)

Vigotski também enfoca essa questão em vários momentos da sua obra e a partir de diversos temas de discussão. Uma dos ocasiões em que a relação entre preservação do existente e criação do novo é abordada em seu trabalho é quando analisa o papel da imitação no desenvolvimento psíquico humano. Para Vigotski (1995VIGOTSKI, Liev Semionovich. Obras escogidas: problemas del desarrollo de la psique. Madrid: Visor, 1995. Tomo III., p. 138), a imitação é "um fator essencial no desenvolvimento das formas superiores do comportamento humano". Tal importância do processo de imitação era explicada por Vigotski justamente por meio da relação entre o que a criança já sabe e o que é novo para ela a cada momento do seu desenvolvimento psíquico:

o desenvolvimento que parte da colaboração mediante a imitação é fonte de todas as propriedades especificamente humanas da consciência da criança. O fator principal é constituído pelo desenvolvimento com base no ensino. Por conseguinte, o aspecto central para toda a psicologia do ensino reside na possibilidade de elevar-se, mediante a colaboração, a um grau intelectualmente superior, a possibilidade de passar, com ajuda da imitação, do que a criança é capaz de fazer ao que não é capaz. Nisto se baseia toda a importância do ensino no desenvolvimento e isso é o que constitui, na realidade, o conteúdo do conceito de zona de desenvolvimento próximo. A imitação, se a interpretamos no sentido amplo, é a forma principal pela qual se leva a cabo a influência do ensino sobre o desenvolvimento. O ensino da linguagem, o ensino escolar se baseia em alto grau na imitação. Porque na escola a criança não aprende a fazer o que é capaz de realizar por si mesma, mas sim a fazer o que é, entretanto, incapaz de realizar, mas que está ao seu alcance em colaboração com o professor e sob sua direção. O fundamental no ensino é precisamente o novo que a criança aprende. (VIGOTSKI, 1995, p. 241)

Por um lado, a imitação é reprodução do existente, mas por outro é o meio para a produção do novo no desenvolvimento psíquico da criança. Os estudos nesse terreno poderão oferecer muitas contribuições à compreensão das relações entre educação e liberdade.

Relações entre conhecimento escolar e liberdade na perspectiva da pedagogia histórico-crítica

Como é amplamente conhecido, a questão do conhecimento escolar está no centro das discussões feitas pela pedagogia histórico-crítica há mais de três décadas. Em 1984, no seu clássico texto "Sobre a natureza e a especificidade da educação", Dermeval Saviani formula essa questão de maneira inequívoca:

o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se formem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo.; a escola é uma instituição cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado. Vejam bem: eu disse saber sistematizado; não se trata, pois, de qualquer tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular. (SAVIANI, 1984, p. 2)

No contexto dessa discussão, Saviani propõe que a noção de clássico poderia ser tomada como critério para a definição dos conteúdos escolares, esclarecendo, porém, que não basta a existência do "saber sistematizado", sendo necessário que as instituições educacionais realizem o trabalho de transformação desse conhecimento em currículo escolar:

Vê-se, assim, que para existir a escola não basta a existência do saber sistematizado. É necessário viabilizar as condições de sua transmissão e assimilação, isso implica dosá-lo e sequenciá-lo de modo que a criança passe gradativamente do seu não domínio ao seu domínio. Ora, o saber dosado e sequenciado para efeitos de sua transmissão-assimilação no espaço escolar, ao longo de um tempo determinado, é o que nós convencionamos chamar de "saber escolar". (SAVIANI, 1984, p. 4)

Não é este o espaço para a recuperação dos vários debates que ocorreram na década de 1980 em torno das proposições da pedagogia histórico-crítica sobre a especificidade da educação escolar, de seus conteúdos e das formas de ensiná-los. Mas é preciso assinalar que não faltaram críticas a essas proposições e que tais críticas, na sua maioria, inspiraram-se tanto nos princípios valorativos defendidos pelas "pedagogias do aprender a aprender" (DUARTE, 2001DUARTE, Newton. As pedagogias do aprender a aprender e algumas ilusões da assim chamada sociedade do conhecimento. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 18, p. 35-40, set./dez. 2001.) como no "ceticismo epistemológico" tão largamente difundido pelo pós-modernismo (WOOD, 1996WOOD, Ellen M. Em defesa da história: o marxismo e a agenda pós-moderna. Crítica Marxista, Campinas, n. 3, p. 118-128, 1996.).

Alguns anos depois, baseando-me nos estudos de György Lukács (1966LUKÁCS, György. Estética: la peculiaridad de lo estético. Problemas de la mímesis. Barcelona: Grijalbo, 1966b. v. 2.a, 1966b) e Ágnes Heller (1977HELLER, Ágnes. Everyday life. London: Routledge & Kegan Paul, 1984.; 1984) sobre as relações entre a vida cotidiana e outras esferas de objetivação do gênero humano como a ciência e a arte, defendi a tese de que "cabe à educação escolar, no processo de formação do indivíduo, o papel de atividade mediadora entre a esfera da vida cotidiana e as esferas não cotidianas de objetivação do gênero humano" (DUARTE, 1993DUARTE, Newton. A educação escolar e a teoria das esferas de objetivação do gênero humano. Perspectiva, Florianópolis, UFSC/CED, n. 19, p. 67-80, 1993., p. 69).1 1 Embora esse número da revista Perspectiva tenha data de 1993, na realidade ele foi publicado em 1995, tendo esse texto sido apresentado no GT de Filosofia da Educação, na reunião anual da ANPED de 1994.

Ao longo das duas últimas décadas, tenho realizado estudos voltados, por um lado, à crítica às concepções pedagógicas que subordinam os conteúdos escolares às demandas do cotidiano e do meio sociocultural imediato no qual vivem os alunos e, por outro, à elaboração de contribuições na linha da pedagogia histórico-crítica que fortaleçam as iniciativas em prol de um sistema educacional de educação pública no Brasil (SAVIANI, 2013) que efetivamente socialize o conhecimento científico, artístico e filosófico nas suas formas mais desenvolvidas.

Como, porém, justificar o ensino desses conhecimentos na escola? Partindo-se das considerações apresentadas no item anterior sobre a importância do trabalho no desenvolvimento do ser humano, justifica-se o ensino escolar das ciências da natureza e da sociedade como produção, na consciência dos alunos, da compreensão, em níveis cada vez mais aprofundados, da saga humana de obtenção do conhecimento objetivo sobre o ser natural, o ser social e as suas inter-relações.

A natureza já existia antes que o ser humano existisse e já passava por transformações, como a origem do sistema solar, a origem do planeta Terra, as eras geológicas, a origem da vida no nosso planeta e a evolução da vida. Com a evolução da vida em geral e do ser humano, desde os Australopitecos até o Homo sapiens, ocorreu a grande transformação caracterizada pelo desenvolvimento da atividade, vindo a constituir-se o trabalho, como atividade teleológica (dirigida por finalidades conscientes), que produz e emprega meios (ferramentas e linguagem), além de se efetivar de maneira fundamentalmente social. Teve início, assim, o desenvolvimento propriamente histórico-social da humanidade. Essa história, por sua vez, desenvolveu-se por meio das formas de organização social da produção dos bens que satisfizessem as necessidades humanas.

Mas os avanços da humanidade no sentido da liberdade têm sido movidos por contradições fundamentais geradas pela luta de classes. Quem negará a importância da Antiguidade grega para as artes, para a filosofia e para a política? Mas toda essa inestimável riqueza que se incorporou ao patrimônio da humanidade foi produzida numa sociedade construída sobre a base da escravidão. O gigantesco desenvolvimento das forças produtivas pela sociedade capitalista não encontra precedentes na história da humanidade, mas tal desenvolvimento foi obtido à custa da exploração e da alienação do trabalho, da produção de abissais desigualdades sociais e da destruição ambiental.

Toda essa saga da humanidade, com as suas remotas origens na evolução espontânea da natureza, precisa ser compreendida pelas novas gerações para que elas se situem na história e se posicionem perante as alternativas existentes no presente. Esse tipo de atitude perante a realidade social e natural exige a formação, nas novas gerações, de um tipo de relacionamento com o mundo que não se limite ao imediatismo e ao pragmatismo da cotidianidade. Como explica Kosik (1976KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., p. 10):

Os homens usam o dinheiro e com ele fazem as transações mais complicadas, sem ao menos saber, nem ser obrigados a saber, o que é o dinheiro. Por isso, a práxis utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporciona a compreensão das coisas e da realidade. Por este motivo Marx pode escrever que aqueles que efetivamente determinam as condições sociais se sentem à vontade, qual peixe n'água, no mundo das formas fenomênicas desligadas da sua conexão interna e absolutamente incompreensíveis em tal isolamento. Naquilo que é intimamente contraditório, nada veem de misterioso; e seu julgamento não se escandaliza nem um pouco diante da inversão do racional e do irracional. (Grifos do autor)

Várias pedagogias hegemônicas na atualidade preconizam que a melhor educação escolar é a que atenda às demandas espontâneas dessa cotidianidade assumida de forma naturalizada. A pedagogia histórico-crítica entende, ao contrário, que "a passagem do senso comum à consciência filosófica é condição necessária para situar a educação numa perspectiva revolucionária" (SAVIANI, 1982SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez, 1982., p. 13). Não se trata, porém, de qualquer consciência filosófica, mas sim daquela que seja capaz de responder de maneira dialética, materialista e histórica a perguntas como: o que é o ser humano? O que é a natureza? O que é a sociedade? O que é o conhecimento? O que é a vida humana e como é possível dar sentido a ela? Como os seres humanos se humanizam? Como eles se alienam perante a realidade criada pela sua própria atividade? Como se criam e se desenvolvem os valores? Como se desenvolve historicamente a liberdade? Em que consiste a natureza essencialmente sociocultural do ser humano? Quais as possibilidades de unificação dos seres humanos em direção à constituição de uma humanidade verdadeiramente universal e livre? Como se forma e se desenvolve cada indivíduo? Como promover esse desenvolvimento de maneira que cada ser humano seja único e, ao mesmo tempo, representativo da universalidade da humanidade?

Essas questões não esgotam, é claro, o universo da consciência filosófica, mas são indicativas da importância que a filosofia pode ter na transformação permanente da concepção de mundo das novas gerações, em direção à superação das visões de mundo idealistas, místico-religiosas, naturalizantes da sociedade de classes e que difundem a ideia da insuperabilidade da alienação. Procurar responder a essas perguntas é, ao mesmo tempo, aprender a desenvolver a reflexão filosófica a partir da experiência humana acumulada nesse terreno. Talvez possa ser argumentado que isso é algo inconcebível para a educação escolar de crianças. Mas o fato é que o próprio senso comum, que as crianças assimilam de forma mais ou menos espontânea do ambiente em que vivem, já carrega uma série de noções, muitas vezes conflitantes entre si, sobre algumas das questões anteriormente formuladas. Por que deveríamos renunciar à formação de uma reflexão filosófica sobre essas questões e deixar a resposta à mercê do senso comum, dos preconceitos e das explicações místico-religiosas?

As ciências e a filosofia, nessa tarefa de impulsionar a consciência humana para além do imediatismo e do pragmatismo da vida cotidiana, têm nas artes grandes aliadas. Melhor dizendo: as grandes obras de arte são indispensáveis ao processo educativo que vise a contribuir para o aumento das possibilidades de liberdade na vida dos indivíduos:

Na grande arte a realidade se revela ao homem. A arte, no sentido próprio da palavra, é ao mesmo tempo desmistificadora e revolucionária, pois conduz o homem desde as representações e os preconceitos sobre a realidade, até à própria realidade e à sua verdade. Na arte autêntica e na autêntica filosofia revela-se a verdade da história: aqui a humanidade se defronta com sua própria realidade. Qual é a realidade que na arte se revela ao homem? [...] a realidade não é um caos de eventos ou de situações fixadas; é unidade dos eventos com os sujeitos dos eventos, é unidade das situações e, portanto, é capacidade prático-espiritual de transcender a situação. A capacidade de transcender a situação - na qual se fundamenta a possibilidade de passar da opinião à ciência, da doxa à episteme, do mito à verdade, do casual ao necessário, do relativo ao absoluto - não significa sair da história, é a expressão da especificidade do homem como ser capaz de ação e de história: o homem não é prisioneiro da animalidade e da barbárie da espécie, dos preconceitos, das circunstâncias, mas com o seu caráter ontocriador (como práxis) possui a capacidade de transcendê-los para se elevar à verdade e à universalidade. (KOSIK, 1976, p. 117, 134)

Para evitar possíveis mal-entendidos em relação aos termos empregados nessa citação, não é demais salientar que "a capacidade prático-espiritual de transcender a situação" nada tem a ver com a ideia religiosa de existência de um mundo transcendente. Ao contrário, trata-se da capacidade humana de transformar objetivamente a realidade a partir de uma compreensão que não se limite a como ela se apresenta em sua superficialidade momentânea, mas veja nela as possibilidades efetivas de se tornar algo diferente do que é atualmente. É esse o significado do caráter "ontocriador" do ser humano.

As artes educam a subjetividade tornando-nos capazes de nos posicionarmos perante os fenômenos humanos de uma forma que ultrapasse o pragmatismo cotidiano. As artes trazem para a vida de cada pessoa a riqueza resultante da vida de muitas gerações de seres humanos, em formas condensadas, possibilitando que o indivíduo vivencie, de maneira artística, aquilo que não seria possível viver com tal riqueza na sua cotidianidade individual.

É o caso, por exemplo, dos personagens das grandes obras literárias, com os quais o leitor acaba se relacionando quase como se fossem pessoas de carne e osso, mas que, na realidade, constituem-se em sínteses de muitas individualidades e vivem histórias individuais que são sínteses de muitas histórias humanas. Lukács (2010, p. 195-196) assim explica esse processo pelo qual a literatura leva o leitor para além dos limites da sua vida cotidiana:

Quanto mais profundamente um escritor compreender uma época e seus grandes problemas, tão menos cotidiano será o nível de sua figuração. E isto porque, na vida cotidiana, os grandes contrastes são atenuados, aparecem ofuscados pela intromissão de acasos indiferentes e desconexos, jamais assumindo uma forma verdadeiramente plena e completa; esta só se pode manifestar quando todo contraste for levado às suas últimas e extremas consequências, e tudo o que nele existir de implícito se tornar patente e tangível. A capacidade, própria dos grandes escritores, de criar personagens e situações típicos, portanto, vai muito além da observação, ainda que exata, da realidade cotidiana. O profundo conhecimento da vida jamais se limita à observação da realidade cotidiana, mas consiste, ao contrário, na capacidade de captar os elementos essenciais, bem como de inventar, sobre tal fundamento, personagens e situações que sejam absolutamente impossíveis na vida cotidiana, mas que estejam em condições de revelar, à luz da suprema dialética das contradições, as tendências e forças operantes, cuja ação é dificilmente perceptível na penumbra da vida de todos os dias

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O leitor é confrontado com as maneiras pelas quais cada personagem se posiciona perante o mundo, a sua vida e as demais pessoas. A individualidade do grande personagem está sempre em relação com as de outros personagens. E essas relações movem o leitor a uma tomada de consciência sobre aspectos da vida humana que passam desapercebidos à consciência imersa na cotidianidade. Em outras palavras, pode-se dizer que a grande obra literária contribui na direção da autoconsciência, como também nos explica Lukács (2010, p. 197):

O alto nível espiritual do herói, que se eleva à lúcida consciência do seu próprio destino, é necessário sobretudo para retirar às situações a sua excepcionalidade, expressando assim o elemento universal sobre o qual elas se apoiam, o qual é a manifestação dos contrastes em seu estágio mais alto e mais puro. De fato, é verdade que a situação excepcional implica em si estes contrastes, mas para passar do "em si" ao "para nós" é absolutamente indispensável que os personagens reflitam sobre suas próprias ações. As formas de reflexão normais, cotidianas, são insuficientes. É preciso atingir a altitude da qual falamos, seja - objetivamente - na elevação do pensamento, seja - subjetivamente - na ligação das reflexões com a situação, com o caráter e com as experiências do personagem

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Algumas observações se fazem necessárias. A primeira é a de que o trabalho educativo realizado pelo professor se faz indispensável para formar intencionalmente nos alunos a capacidade de se apropriarem da riqueza da obra artística, seja no campo da literatura ou nos das demais artes. A segunda observação é a de que a escolha das obras também deve ser resultado do trabalho coletivo dos educadores, pois se deixada essa escolha ao sabor das circunstâncias e dos modismos, diminuirão as chances de relacionamento com obras verdadeiramente ricas. A terceira observação é a de que o fato de empregar neste texto exemplos de obras literárias não significa privilegiar essa forma de arte em detrimento de outras. Cada forma de arte - literatura, pintura, escultura, música, dança, teatro, cinema, arquitetura etc. - atua de maneira específica sobre os sentidos humanos e o objetivo da educação escolar deve ser o desenvolvimento de todos os sentidos, o que implica igual valorização desses vários campos artísticos. Segundo Kosik (1976KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., p. 120-121):

um homem com sentidos desenvolvidos possui um sentido também para tudo quanto é humano, ao passo que o homem com sentidos não desenvolvidos é fechado diante do mundo e o "percebe" não universal e totalmente, com sensibilidade e intensidade, mas de modo unilateral e superficial, apenas do ponto de vista do seu "próprio mundo", que é uma fatia unilateral e fetichizada da realidade.

Neste ponto da análise, torna-se possível abordar uma categoria empregada pela pedagogia histórico-crítica na qual se conectam questões de conteúdo e de forma. Trata-se da categoria de catarse. Em Gramsci, a catarse apresenta-se como um conceito ético-político referente a um processo de transformação objetiva e subjetiva:

Pode-se empregar a expressão "catarse" para indicar a passagem do momento meramente econômico (ou egoísta-passional) ao momento ético-político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isso significa, também, a passagem do "objetivo ao subjetivo" e da "necessidade à liberdade". A estrutura da força exterior que esmaga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em fonte de novas iniciativas. A fixação do momento "catártico" torna-se assim, parece-me, o ponto de partida de toda a filosofia da práxis; o processo catártico coincide com a cadeia de sínteses que resultam do desenvolvimento dialético. (GRAMSCI, 1999, p. 214-215)

Note-se que se trata da passagem da condição de seres humanos subjugados às forças externas à condição de seres humanos que colocam essas forças a serviço da libertação, num processo de transformação social em direção a uma "nova forma ético-política", ou seja, na superação da sociedade capitalista, o que se expressa, na linguagem cifrada que Gramsci empregou para burlar a censura carcereira fascista, como "passagem do momento meramente econômico (egoísta-passional) ao momento ético-político". A elaboração da infraestrutura em superestrutura pode ser entendida em dois sentidos. O primeiro é o de que a superação do capitalismo colocaria as forças econômicas a serviço de uma vontade coletiva organizada, invertendo-se a situação na qual o capital, como força econômica, domina todo o arcabouço político institucional. Outro sentido seria o de que os seres humanos, para se desenvolverem em direção à liberdade, precisam incorporar à sua individualidade as forças sociais objetivamente existentes e resultantes do acúmulo de experiência histórica. Esses dois sentidos do processo de elaboração da infraestrutura em superestrutura não se excluem, sendo, pelo contrário, aspectos inseparáveis de uma mesma dinâmica simultaneamente coletiva e individual.

O conceito ético-político de catarse em Gramsci foi incorporado à pedagogia por Dermeval Saviani, que, ao contrapor o método de uma pedagogia marxista ao método da escola tradicional e ao da escola nova, considerou a catarse como o "momento da expressão elaborada da nova forma de entendimento da prática social a que se ascendeu" (SAVIANI, 2008, p. 57). A catarse é, portanto, entendida por Saviani como um momento no qual ocorre uma ascensão da consciência a um nível superior de compreensão da prática social. O conhecimento que é transmitido sistematicamente ao aluno pelo processo de ensino escolar não se agrega mecanicamente à sua consciência, mas a transforma, produzindo uma mudança. O aluno passa então a ser capaz de compreender o mundo de forma relativamente mais elaborada, superando, ainda que parcialmente, o nível do pensamento cotidiano ou, em termos gramscianos, o nível do senso comum. Para Saviani (2008, p. 57), "trata-se da efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados agora em elementos ativos de transformação social".

Gramsci e Saviani não dão sustentação nem à redução da educação ao ensino nem à contraposição entre ambos. Em outras palavras, a aquisição de conhecimentos na educação escolar é vista por esses dois pensadores como uma importante parte do processo de formação humana, mas tal aquisição não é um fim em si mesmo. Sua justificativa encontra-se, em última instância, na prática social. Também esses dois autores não separam a formação ética do indivíduo do desenvolvimento da sua concepção de mundo, ou seja, da formação do seu posicionamento político em relação à sociedade na qual vive.

Sem o pensamento conceitual, que se desenvolve a partir das relações recíprocas entre atividade, pensamento e linguagem, o ser humano não seria capaz de dominar os processos mais complexos e profundos da realidade. É bastante conhecida a afirmação de Marx (1985MARX, Karl. O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1985. Livro III, tomo II., p. 271) de que "toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente". Na vida cotidiana dificilmente conseguimos, na nossa apreensão da realidade, ir além da aparência das coisas e, no mais das vezes, a partir dessas aparências, interpretamos a realidade de maneira fetichista, como se os fenômenos sociais existissem em si e por si mesmos, independentemente da atividade humana. Entretanto, os seres humanos desenvolveram historicamente dois caminhos que permitem ir além da aparência fetichista cotidiana das coisas.

Um deles é o caminho do pensamento teórico, na ciência e na filosofia. Como explicou Marx (2011), o concreto não é dado ao pensamento no ponto de chegada, mas deve ser alcançado pela atividade pensante por meio das abstrações. Essa elaboração teórica permite ao pensamento chegar à síntese de múltiplas relações e determinações que constitui a totalidade concreta. Trata-se, entretanto, de um processo nunca concluído, pois a realidade está sempre em transformação e o pensamento está sempre dela se aproximando.

O outro caminho para a superação da aparência fetichista que as coisas têm na vida cotidiana é o da arte. Diferentemente, porém, da ciência e da filosofia, o caminho da arte não é o do afastamento em relação à aparência, em busca das leis essenciais explicadas por meio dos conceitos abstratos. O que a arte faz é mostrar a aparência de outra forma, numa fusão com a essência, num processo que revela ao sujeito a realidade com suas contradições intensificadas, com a acentuação da sua dramaticidade ou da sua comicidade. O realismo da arte, que Lukács tanto procurou esclarecer e que, entretanto, foi na maior parte das vezes mal compreendido, não significa reprodução fotográfica e plana do que as pessoas já veem no seu cotidiano, mas sim uma forma de pôr em evidência certos aspectos da realidade que tornam a obra de arte ao mesmo tempo um reflexo da vida e uma crítica à vida, um reflexo da individualidade e um questionamento da autenticidade de tal individualidade.

Se a ciência e a filosofia trabalham com as abstrações, com os conceitos, a arte trabalha com imagens da realidade, usando-se aqui o termo "imagem" num sentido ampliado, que não se limita ao sentido da visão. Mas o aspecto que precisa ser destacado é que a relação do indivíduo receptor com essas imagens artísticas da realidade é "imediata", no sentido de que ela não exige a mediação das abstrações científicas e filosóficas. Ocorre que a imediatez da arte tem resultados e objetivos distintos da imediatez da vida cotidiana. Esta visa a resultados práticos, à satisfação de necessidades imediatas. Ao passo que no caso da imediatez da arte, a prática é suspensa, as necessidades imediatas ficam para outro momento e prevalece a entrega ao "mundo" da obra de arte.2 2 A palavra "mundo" foi colocada entre aspas porque Lukács a usa para referir-se ao fato de que cada obra de arte constitui-se numa totalidade que dá sentido a cada um de seus elementos e à relação entre eles. Isso não tem qualquer proximidade com a ideia de que a arte criaria uma realidade à parte.

Momentaneamente, o indivíduo age não para atingir resultados práticos, mas para viver a relação imediata com a obra de arte. Uma relação que se dirige ao conteúdo da obra, mas é dirigida por sua forma, num processo em que o indivíduo está em contato com a aparência, mas esta o conduz a questões essenciais da história humana.

Segundo Lukács, a contribuição específica da arte a esse processo de desenvolvimento do gênero humano seria a de elevação da subjetividade a um nível superior, no qual a personalidade objetiva-se como uma síntese entre o singular e o universal e entre o subjetivo e o objetivo. Todo artista é um indivíduo cuja vida transcorre em condições ao mesmo tempo singulares e universais. Toda obra de arte é uma totalidade que reflete, na sua particularidade, a dialética entre singularidade e universalidade. Todo indivíduo receptor de uma obra de arte realiza a recepção em circunstâncias específicas, tanto do ponto de vista objetivo quanto do ponto de vista subjetivo. Como uma obra de arte produzida em outra época, em outro contexto, por alguém muito diferente do sujeito receptor, pode nele produzir efeitos muito profundos, emoções mais fortes do que aquelas que esse indivíduo experimenta na maior parte dos momentos da sua vida cotidiana? A resposta de Lukács é que a arte liga o percurso da vida individual ao percurso histórico da humanidade.

Mas de onde deriva a força evocativa desses dramas? Acreditamos que resida no fato de que neles é revivido e feito presente precisamente o próprio passado, e este passado não como sendo a vida anterior pessoal de cada indivíduo, mas como a sua vida anterior como pertencente à humanidade. (LUKÁCS, 1970, p. 268)

Essa força evocativa atinge o espectador independentemente de serem obras contemporâneas, que abordem temas do presente, ou obras do passado ou de outra realidade social, outro país, outra classe social.

nas grandes obras de arte, os homens revivem o presente e o passado da humanidade, as perspectivas de seu desenvolvimento futuro, mas os revivem não como fatos exteriores cujo conhecimento pode ser mais ou menos importante e sim como algo essencial para a própria vida, como momento importante também para a própria existência individual. (LUKÁCS, 1970, p. 268)

A obra de arte não é apenas um meio para o indivíduo adquirir conhecimento sobre a existência presente ou passada de fatos, eventos, dramas, mas sim de reviver tudo isso de uma maneira condensada e intensa, incorporando à sua própria subjetividade a experiência humana artisticamente sintetizada.

Essa conexão da obra de arte com os grandes problemas do desenvolvimento da humanidade é que faz a diferença entre obras que conservam o seu valor ao longo do tempo, ou seja, obras que se tornam clássicas e aquelas que envelhecem, que perdem a sua importância. Lukács esclarece o que se constitui em fator definidor do valor de uma obra de arte para a humanidade. Segundo ele, para que uma obra de arte mantenha o seu valor ao longo da história, é preciso que esta consiga estabelecer relações entre o seu mundo interno e as questões fundamentais do desenvolvimento da humanidade.

As obras de arte (ou consideradas como tais) que, embora reajam de maneira viva a certos problemas cotidianos, não estão, por outro lado, em condições de desenvolvê-los até tocar nos problemas decisivos da humanidade; são obras que envelhecem num tempo relativamente breve. (KOFLER; ABENDROTH; HOLZ, 1969, p. 33)

As relações entre os efeitos da vivência artística sobre o indivíduo e a sua vida cotidiana ocorrem de maneira não imediata, passam por complexas mediações, razão pela qual Lukács discorda de dois extremos no campo da estética: por um lado, as visões idealistas que separam a arte inteiramente da vida real e a colocam como um mundo à parte e, por outro, as visões instrumentalistas para as quais a obra de arte teria funções práticas imediatas pela via da propaganda direta, centrada no conteúdo, cabendo à forma um papel quase nulo.

Apresenta-se aqui um tema que não poderei explorar neste artigo: tanto as obras artísticas como as científicas e as filosóficas constituem-se por meio da relação entre os conteúdos do conhecimento e as suas formas. Por sua vez, o trabalho educativo também é uma unidade entre conteúdo e forma. Compreender essas duas dimensões da dialética conteúdo-forma na educação escolar é importante para uma adequada articulação dos estudos no campo do currículo e no da cultura.

Contradições nas relações entre conhecimento e liberdade na sociedade e na educação contemporâneas

A temática das contradições que perpassam as relações entre conhecimento e liberdade na sociedade capitalista contemporânea é de grande complexidade e as considerações que aqui farei limitam-se ao necessário registro de que a pedagogia histórico-crítica não adota uma atitude ideologicamente neutra quando defende que a especificidade da educação escolar reside na socialização do saber sistematizado.

O primeiro ponto a ser considerado é o de que a aquisição de conhecimentos, por si só, não supera as enormes barreiras que o capital apõe à efetiva liberdade humana. Essas barreiras só podem ser derrubadas por meio da luta coletiva pela superação da sociedade capitalista. Por outro lado, tal luta só pode ter chances de algum êxito se estiver orientada por um conhecimento das contradições essenciais que movem a vida social contemporânea, o que demanda o domínio de teorias que cheguem o mais próximo possível da verdade sobre a realidade social. Busca da objetividade e luta ideológica unem-se num mesmo processo.

O segundo ponto é o de que as ciências, as artes e as teorias filosóficas fazem parte tanto dos processos de desenvolvimento histórico da humanidade quanto das variadas e por vezes sutis formas de alienação dos seres humanos em relação à realidade social produzida e reproduzida por eles mesmos. Sendo a alienação um fenômeno social gerado pela luta de classes, não há qualquer esfera de produção do conhecimento que esteja imune a esse problema. Isso, porém, não significa que não seja possível reconhecer os avanços e as conquistas realizados nesses campos do conhecimento ao longo da história. O conhecimento escolar deve ser organizado como uma síntese desses avanços e conquistas, com o propósito de produzir nos alunos o aumento das possibilidades de posicionamento livre e consciente diante das alternativas de futuro existentes na prática social.

O terceiro ponto refere-se ao fato de que a luta pela superação da alienação é feita sempre por sujeitos que foram formados no interior da sociedade geradora de alienação. Isso tem impactos de diversas ordens sobre o trabalho educativo como, por exemplo, o da precariedade no domínio do conhecimento pelos professores e a nefasta influência das correntes pedagógicas que negam a importância da transmissão, pela escola, dos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos nas suas mais desenvolvidas formas. Acrescente-se a esse quadro o fato de que os encaminhamentos no campo da política educacional e da gestão das redes escolares têm se caracterizado, na realidade brasileira, pela predominância de diretrizes opostas à perspectiva de efetiva constituição de um sistema nacional de ensino (SAVIANI, 2013) que assegure a todos os indivíduos das novas gerações a apropriação do saber sistematizado.

Para concluir, explicito que não desconheço que pode causar alguma estranheza o fato de não ter abordado neste artigo a importância das chamadas novas tecnologias para a apropriação do conhecimento. Considerando-se a tão difundida ideia de que essas tecnologias possibilitam, por si mesmas, acesso livre e pleno a todas as formas de conhecimento - desde aqueles imediatamente ligados a questões do cotidiano até os mais abstratos e teóricos -, parece no mínimo anacrônica uma reflexão que sequer faça menção a essa questão. Não desconsidero o impacto dessas tecnologias sobre a vida social contemporânea, a começar pelo simples fato de que qualquer recurso tecnológico que seja disseminado pela sociedade exerce impactos sobre a maneira como as pessoas pensam o mundo. Mas continuo a afirmar o que defendi há anos (DUARTE, 2001), ou seja, que o uso dessas tecnologias não gera, por si mesmo, o acesso livre e pleno ao conhecimento. Em primeiro lugar, é importante não se esquecer a distinção entre informações e conhecimento. Aquelas fazem parte deste, mas este não se reduz a elas. O conhecimento organiza-se em sistemas cujo domínio é adquirido por meio de processos que só raramente ocorrem na vida cotidiana. Cabe à escola a produção deliberada desses processos e a condução dos alunos pelas sendas do saber sistematizado. Somente assim as pessoas estarão em condições de se apropriar constantemente do conhecimento, disponível em qualquer tipo de fonte. Caso contrário seria como se, no início d'A divina comédia, o poeta Virgílio não aparecesse para guiar Dante e este ficasse para sempre na situação inicial, num local desconhecido, sem saber como havia chegado àquele lugar e cercado por animais ferozes. Mas, nesse clássico poema, Virgílio, o poeta romano que era o modelo máximo para Dante, também poeta, aparece e o guia de forma serena e segura pelos mais tenebrosos caminhos do inferno e do purgatório, fazendo com que o leitor muito aprenda sobre o ser humano. Preconizar que as novas gerações devam aprender sozinhas, por meio das novas tecnologias, é como escrever uma versão pós-moderna d'A divina comédia, fazendo um "recorta e cola" com Dom Quixote, substituindo o poeta Virgílio por Sancho Pança, que, além de não ter a pretensão de ser guia de alguém, desfazia-se até mesmo do seu senso prático de realidade quando se tratava de se deixar iludir por alguma possibilidade de vida fácil:

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Valha a verdade - respondeu Sancho -, eu nunca li histórias, porque não sei ler nem escrever; mas o que me atrevo a apostar é que mais atrevido amo do que Vossa Mercê, nunca o eu servi em dias de minha vida; e queira Deus que esses atrevimentos se não venham a pagar onde já disse. O que a Vossa Mercê peço é que se cure dessa orelha, que se lhe vai esvaindo em sangue; eu aqui trago nos alforjes fios, e um pouco de unguento branco

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Bem escusado fora tudo isso - respondeu Dom Quixote - se eu me tivesse lembrado de preparar uma redoma de bálsamo de Ferrabrás, que uma só gota dele nos pouparia mais tempo e curativos

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Que redoma e que bálsamo vem a ser esse? - disse Sancho Pança

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É um bálsamo - respondeu D. Quixote - de que eu tenho a receita na memória, com a qual ninguém pode ter medo da morte, nem se morre de ferida alguma; e assim, quando eu o tiver feito e to entregar, não tens mais nada que fazer: em vendo que nalguma batalha me partem por meio corpo, como muitas vezes acontece, a parte do corpo que tiver caído no chão tomá-la-ás com muito jeito e muita sutileza, e, antes que o sangue se gele, a porás sobre a outra metade que tiver ficado na sela, por modo que acerte bem à justa; e dar-me-ás a beber apenas dois tragos do dito bálsamo, e ver-me-ás ficar mais são que um perro

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Sendo isso verdadeiro - disse Pança -, já aqui dispenso o governo da prometida ilha, e nada mais quero em paga dos meus muitos e bons serviços, senão que Vossa Mercê me dê a receita dessa milagrosa bebida, que tenho para mim se poderá vender a olhos fechados cada onça dela por mais de quatro vinténs. Não preciso mais para passar o resto da vida honradamente e com todo o descanso. O que falta saber é se não será muito custoso arranjá-la. (CERVANTES SAAVEDRA, 1981, p. 63)

Em termos de educação, as novas gerações precisam de uma escola que não substitua Virgílio por Sancho Pança e que ensine a ler A divina comédia, Dom Quixote e tantos outros clássicos da literatura, das artes, das ciências e da filosofia.

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  • 1
    Embora esse número da revista Perspectiva tenha data de 1993, na realidade ele foi publicado em 1995, tendo esse texto sido apresentado no GT de Filosofia da Educação, na reunião anual da ANPED de 1994.
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    A palavra "mundo" foi colocada entre aspas porque Lukács a usa para referir-se ao fato de que cada obra de arte constitui-se numa totalidade que dá sentido a cada um de seus elementos e à relação entre eles. Isso não tem qualquer proximidade com a ideia de que a arte criaria uma realidade à parte.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    Set 2015
  • Aceito
    Dez 2015
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