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O plano nacional de educação e a educação especial

The nacional plan of education and the special needs education

Le plan national d'éducation et l'éducation spéciale

O plan nacional de educación y la educación especial

Resumos

O objetivo é analisar aspectos do curso do jogo que delineou a versão final da meta quatro do novo Plano Nacional de Educação do Brasil. No cumprimento desse propósito, utilizamos a análise documental como procedimento metodológico. Sustentamos nossas análises no modelo de jogo, elaborado por Norbert Elias. Nossas reflexões evidenciam que a superação de uma cultura política, marcadamente personalista e clientelista, constitui elemento fundamental de um jogo do qual participamos, no processo de elaboração de políticas sociais. A articulação de indivíduos e grupos em torno de questões que desafiam a racionalidade econômica tensiona o jogo social, colaborando na produção de uma linguagem em que as promessas do Estado de Direito sejam colocadas em discussão de maneira mais recorrente.

Plano Nacional de Educação; Jogo; Políticas Educacionais; Educação Especial


Our goal is to analyze aspects of the course of the game that outlined the final version of the fourth goal of the new Plano Nacional de Educação [Nacional Plan of Education] of Brazil. For this purpose, we used documentary analysis as the methodological procedure. Our analyses were based on the game models of Norbert Elias. Our considerations provide evidence that overcoming a political culture, clearly personalist and mercantilist, is an important and fundamental part of a game in which we take part in the process of elaborating social policies. The involvement of people and groups around issues that defy economic rationality makes the social game tense and contributes to the production of a language in which the promises of the spirit of law are more frequently discussed.

Plano Nacional de Educação; Play; Educational Policies; Special Needs Education


Le but est d'analyser les aspects du cours du jeu qui a défini la version finale du quatrième objectif du nouveau Plano Nacional de Educação [Plan National d'Éducation] au Brésil. Afin d'atteindre cet objectif, nous avons emprunté l'analyse de documents comme procédure méthodologique. Nos analyses sont basées sur le modèle du jeu, élaboré par Norbert Elias. Nos réflexions soulignent que le fait de surmonter une culture politique, clairement personnaliste et clientéliste, constitue un élément fondamental d'un jeu duquel nous participons, dans le processos d'élaboration de politiques sociales. L'articulation d'individus et de groupes autour de questions qui défient la rationalité économique rend tendu le jeu social, en participant à la production d'un langage permettant de mettre en question les promesses de l'État de Droit de manière plus récurrente.

Plano Nacional de Educação; Jeu; Politique D'éducation; Éducation SpÉciale


Tenemos el objetivo de analizar aspectos del curso del juego que delineó la versión final de la meta cuatro del nuevo Plano Nacional de Educação [Plan Nacional de Educación] de Brasil. Para cumplir este propósito, utilizamos el análisis documental como procedimiento metodológico. Sustentamos nuestros análisis en el modelo de juego, elaborado por Norbert Elias. Nuestras reflexiones muestran que la superación de una cultura política marcadamente personalista y clientelista, constituye un elemento fundamental de un juego en el que participamos en el proceso de elaboración de políticas sociales. La articulación de individuos y grupos alrededor de temas que desafían la racionalidad económica tensiona el juego social y colabora con la producción de un lenguaje en el que las promesas del Estado de Derecho se discutan de manera más recurrente.

Plano Nacional de Educação; Juego; Políticas de Educación; Educación Especial


Em 25 de junho de 2014, pela Lei n. 13.005BRASIL. Congresso Nacional. Lei n. 13.005, de 25 Junho de 2014. Plano Nacional de Educação (2014- 2024). Brasília, Diário Oficial da União, 26 de junho de 2014b., o Congresso Nacional aprovou o novo Plano Nacional de Educação - PNE (BRASIL, 2014bBRASIL. Congresso Nacional. Lei n. 13.005, de 25 Junho de 2014. Plano Nacional de Educação (2014- 2024). Brasília, Diário Oficial da União, 26 de junho de 2014b.) com vigência por dez anos. Esse plano constituiu-se de catorze artigos, e é complementado, em seu anexo, por vinte metas que contemplam aspectos centrais das lutas empreendidas por diferentes organizações da sociedade civil. A meta quatro, particularmente, estabelece a universalização do acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado para a população de 4 a 17 anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, até o final da vigência do Plano Nacional de Educação. O processo de elaboração e de aprovação dessa meta constitui o objeto de análise deste texto.

O nosso interesse em sistematizar reflexões sobre a meta quatro do novo Plano Nacional de Educação decorre da pesquisa intitulada "Políticas de acesso e de permanência de pessoas com deficiência no ensino comum: um estudo comparado de sistemas educativos brasileiros e mexicanos", que vimos desenvolvendo. Trata-se de uma investigação que conjuga trabalhos de dois grupos de pesquisadores, um brasileiro e um mexicano, com o propósito de analisar a processualidade das políticas de acesso e de permanência de pessoas com deficiência no ensino comum em três municípios brasileiros e em um município mexicano.

A pertinência desse estudo comparado internacional no campo da Educação Especial vincula-se ao fato de que Brasil e México são países federalistas que experimentam uma oscilação histórica entre centralização e descentralização, marcada pela relação (ou contínuo) público e privado na organização dos seus sistemas de ensino. Nas últimas décadas, esses países vêm enfrentando o desafio de construir um sistema de educação federal de abrangência nacional que se articule e preserve as unidades locais (SAVIANI, 2011SAVIANI, Dermeval. A cumplicidade entre o público e o privado na história da política educacional brasileira. In: CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTORIA DA EDUCAÇÃO, 8, 2010, São Luiz. Anais... São Luiz: UFMA, 2010.; ROCHA, 2011ROCHA, Maria Zelia Borda. Gestão federativa da educação: desenho institucional. In: CUNHA, Célio da; SOUSA, José Vieira SILVA, Maria Abádia da (Org.). Políticas públicas na América Latina: lições aprendidas e desafios. Campinas, SP: Autores Associados, 2011.). No enfrentamento desse desafio, não podemos perder de vista que o processo de efetiva universalização da educação escolar implementado nas últimas décadas do século XX, em pleno movimento de redefinição do papel do Estado no âmbito da execução das políticas sociais, reverbera a necessidade, cada vez mais evidente, de equacionar a relação qualidade e quantidade da escola universalizada no Brasil e no México.

Vinculados a essa tensão e a essas questões, observamos que, a partir da década de 1990, em função da perspectiva inclusiva, especialmente na educação, os papéis e as funções das escolas comuns assumiram diferentes contornos nesses dois países. Por meio de planos, decretos, programas e diretrizes nacionais, Brasil e México passaram a implementar reformas educacionais que afetaram crescentemente a organização da trajetória escolar dos estudantes com alguma deficiência.

Vale destacar ainda que, no curso dos últimos anos, a eleição de governos ligados a variadas perspectivas do pensamento de esquerda no Brasil e em outras sociedades latino-americanas contribuiu na proposição de políticas educacionais que evidenciaram rupturas tanto com as heranças coloniais quanto com as políticas liberais e neoliberais, que vinham ganhando centralidade em suas agendas políticas (FÁVERO SOBRINHO, 2011FAVERO SOBRINHO, Antonio. Direito à educação: financiamento e estado. In: CUNHA, Célio da; SOUSA, José Vieira; SILVA, Maria Abádia da (Org.). Políticas públicas na América Latina: lições aprendidas e desafios. Campinas, SP: Autores Associados, 2011., p. 432).

No caso brasileiro, embora nossos governos tenham assumido uma política de esquerda bastante questionável em alguns aspectos (MOTA JUNIOR; MAUÉS, 2014MOTA JUNIOR, William Pessoa da; MAUÉS, Olgaíses Cabral. O Banco Mundial e as políticas educacionais brasileiras. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 39, n. 4, p. 1137-1152, out./dez. 2014.), vale ressaltar a constituição de espaços propícios ao diálogo entre o governo e a sociedade civil, com destaque para a realização da Conferência Nacional de Educação - Conae -, em Brasília, entre os dias 28 de março e 1 de abril de 2010, incentivada e financiada pelo Ministério da Educação e Cultura. A Conae (2010BRASIL. Ministério da Educação. Conferência Nacional de Educação. Construindo o sistema nacional articulado de educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias de ação: documento final. Brasília, Conae, 2010b.) se constituiu num espaço de debate que possibilitou "uma ampla participação de setores ligados à educação brasileira nos seus distintos níveis, modalidades, interesses e finalidades, da educação infantil à pós-graduação" (GENTILI; OLIVEIRA, 2013GENTILI, Pablo; OLIVEIRA, Dalila Andrade. A procura da igualdade: dez anos de política educacional no Brasil. In: SADER, Emir (Org.). 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. Rio de Janeiro: Flacso Brasil, 2013., p. 262).

Organizada em torno do tema "Construindo um sistema nacional articulado de educação: Plano Nacional de Educação, suas diretrizes e estratégias de ação", a Conae (2010BRASIL. Ministério da Educação. Conferência Nacional de Educação. Construindo o sistema nacional articulado de educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias de ação: documento final. Brasília, Conae, 2010b.) foi precedida de conferências municipais, intermunicipais e estaduais que contaram com a ativa participação de profissionais da educação, estudantes e seus familiares, gestores públicos, pesquisadores, segmentos organizados da sociedade civil e entidades científicas e sindicais da área educacional, entre elas: a Associação Nacional de Pesquisa em Educação - ANPEd -, a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação - Anfope -, a Associação Nacional de Política e Administração da Educação - Anpae -, o Centro de Estudos Educação e Sociedade - Cedes -, o Fórum dos Diretores das Faculdades de Educação - Forumdir -, a Central Nacional dos Trabalhadores em Educação - CNTE -, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior - Andes-SN - e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação (OLIVEIRA et al., 2011OLIVEIRA, Dalila Andrade et. alPor um Plano Nacional de Educação (2011-2020) como política de Estado. Revista Brasileira de Educação, v. 16, n. 47, p. 483-492, maio/ago. 2011.).

Durante o tempo em que o novo plano foi debatido, diferentes questões atravessaram as disputas em torno dos propósitos da educação nacional que seriam sistematizados nesse documento. Dessas questões, indicamos que, primeiramente, no campo de estudos das políticas e da gestão educacional, destacava-se a defesa de que, pela via do novo Plano Nacional de Educação, as políticas educacionais se configurassem como política de Estado e não como política de governo (DOURADO, 2011DOURADO, Luiz FernandesPlano Nacional de Educação como política de Estado: antecedentes históricos, avaliação e perspectivas. In DOURADO, Luiz Fernandes Plano Nacional de Educação (2011-2020): avaliação e perspectivas. Goiânia: Editora UFG; 2011.; SAVIANI, 2011SAVIANI, Dermeval. Gestão federativa da Educação: desenho institucional do regime de colaboração o no Brasil. In CUNHA, Célio da; SOUSA, José Vieira SILVA, Maria Abádia da (Org.). Políticas públicas na América Latina: lições aprendidas e desafios. Campinas, SP: Autores Associados, 2011.). Outro aspecto a considerar foi a necessidade de construir indicadores que auxiliassem na avaliação do plano, contribuindo na gestão da consolidação e/ou na reorientação das políticas, dos programas e das ações implementadas pelo Estado (GOUVEIA; SOUZA, 2010GENTILI, Pablo; OLIVEIRA, Dalila Andrade. A procura da igualdade: dez anos de política educacional no Brasil. In: SADER, Emir (Org.). 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. Rio de Janeiro: Flacso Brasil, 2013.). Ainda foi evidente o debate em torno da pertinência de ampliar a destinação de recursos públicos para a educação nacional pública (AMARAL; DOURADO, 2011AMARAL, Nelson Cardoso; DOURADO, Luiz Fernandes. Financiamento e gestão da educação e o PNE 2011-2020: avaliação e perspectivas. In: DOURADO, Luiz Fernandes (Org.). Plano Nacional de Educação (2011-2020): avaliação e perspectivas. Goiânia: Editora UFG: 2011.; CASTRO; CARVALHO, 2013CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO. CNTE mantém acampamento pelo PNE em outubro. Brasília, CNTE, out. 2013. Disponível em: <http://www.cnte.org.br/index.php/comunicacao/noticias/12598-cnte-mantem-acampamento-pelo-pne-em-outubro.html>. Acesso em: 20/05/2015.
http://www.cnte.org.br/index.php/comunic...
) e da urgência de garantir qualidade social na educação ofertada (HORODYNSKI-MATSUSHIGUE; HELENE, 2011HORODYNSKI-MATSUSHIGUE, Lighia; HELENE, Otaviano. Novo PNE não define qualidade da educação e tem viés privatista. Revista Adusp, São Paulo, n. 50, p. 34-39, jun. 2011.; FLACH, 2012FLACH, Simone de Fátima. Contribuições para o debate sobre a qualidade social da educação na realidade brasileira. Contexto & Educação, ano 27, n. 87, p. 4-25, jan./jun. 2012.). Por outro lado, também fundamentadas em estudos sobre as demandas nacionais no campo da gestão e da política educacional, para as organizações sociais ligadas aos setores empresariais - entre elas, o Movimento Todos Pela Educação - MTPE -, a Federação Nacional das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais - Fenapaes -, o Instituto Unibanco - IU -, a Associação Nacional das Universidades Particulares - Anup -, o Instituto Ayrton Senna - IAS -, a Federação Nacional das Escolas Particulares - Fenep -, outras questões deveriam ganhar centralidade no novo documento nacional. No conjunto de defesas desse segundo grupo de organizações sociais, destacavam- se: a necessidade de não considerar a educação privada como concessão do Estado; a legitimidade da ampliação da intervenção dos setores privados na elaboração e na implementação das políticas públicas educacionais; o estabelecimento de políticas oficiais que acentuassem a integração entre os setores públicos e privados na educação; a restrição da concepção de gestão democrática às escolas públicas estatais; a garantia da liberdade do ensino exercida por meio da coexistência de instituições públicas e privadas.

Esse movimento desencadeou uma ampla discussão a respeito dos rumos da educação nacional, culminando na elaboração do novo Plano Nacional de Educação. Assim, considerando o propósito da pesquisa comparada internacional que empreendemos e o fato de que esse documento nacional tem potencialidade de alterar a flagrante desigualdade educativa vivida por uma parte significativa da população brasileira, neste texto, objetivamos analisar aspectos do curso do jogo que delineou a versão final da meta quatro do novo Plano Nacional de Educação do Brasil. Mais especificamente, discutimos o movimento contínuo das diferentes formas de organização dos indivíduos e dos grupos em distintos momentos dessa disputa que estabeleceu a garantia do direito de escolarização das pessoas com deficiência, mantendo investimentos de recursos públicos em instituições de natureza privada.

No cumprimento desse propósito, utilizamos a análise documental como procedimento principal de coleta e de sistematização de dados. No próximo item, evidenciamos esse procedimento metodológico e aspectos do modelo de jogo elaborado por Norbert Elias (2008ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008.), assumindo-o como perspectiva de análise dos dados coletados. Em seguida, apresentamos uma síntese da constituição do novo Plano Nacional de Educação e focalizamos a sociodinâmica de elaboração e de aprovação da meta quatro desse plano.

Procedimento metodológico e o modelo de jogo como perspectiva de análise

Em termos metodológicos, estudamos documentos oficiais (Projeto de Lei n. 8.035/2010BRASIL. Câmara dos deputados. Projeto de Lei n. 8.035, de 2010. Brasília, 2010a. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br>. Acesso em: 20/05/2015.
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, Lei n. 13.005BRASIL. Congresso Nacional. Lei n. 13.005, de 25 Junho de 2014. Plano Nacional de Educação (2014- 2024). Brasília, Diário Oficial da União, 26 de junho de 2014b.), os relatórios das Conae realizadas em 2010 e em 2014 (BRASIL, 2010bBRASIL. Ministério da Educação. Conferência Nacional de Educação. Construindo o sistema nacional articulado de educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias de ação: documento final. Brasília, Conae, 2010b., 2014aBRASIL. Ministério da Educação. Conferência Nacional de Educação. Construindo o sistema nacional articulado de educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias de ação: documento final. Brasília, 2014a.), bem como o documento-referência preparatório para a Conae de 2014 (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério da Educação. Conferência Nacional de Educação. Documento referência. Fórum Nacional de Educação. Brasília, Conae, 2013.). Também consultamos sites do Ministério da Educação e Cultura - MEC -, do Fórum Nacional de Educação - FNE -, da Anped, da CNTE, do Movimento Todos Pela Educação - MTPE -, da Fenapes, do Instituto Unibanco - IU -, da Associação Nacional das Universidades Particulares - Anup -, do Instituto Ayrton Senna - IAS - e da Federação Nacional das Escolas Particulares - Fenep. Nesses sites, encontramos links que apresentavam e estimulavam discussões sobre diferentes questões relacionadas ao plano nacional, à meta quatro e às estratégias de sua execução. Em alguns casos, as diferentes instituições desenvolviam campanhas objetivando mobilizar a população e os parceiros, como forma de pressionar as decisões e os encaminhamentos dos parlamentares envolvidos em comissões e/ou em grupos de trabalhos dedicados aos temas que constituíam as metas do novo Plano Nacional de Educação.

Estudamos esses materiais assumindo o modelo de jogo elaborado por Elias (2008ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008.) como perspectiva teórica de análise. Nessa empreitada, alguns aspectos e pressupostos elisianos devem ser considerados. Entre esses aspectos, as noções de regras e de interdependências funcionais assumem significativa relevância. Vejamos.

Elias (2008ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008.) considera que, assim como no jogo, as relações humanas - inclusive as tensões e os conflitos que nelas emergem - são orientadas por regras. Contudo, o movimento ambivalente das e nas inter-relações humanas implica considerar que essas regras não são propriedades invariáveis; elas se constituem e são constituídas no curso do jogo. Em outros termos, as regras são (re)construídas e/ou ressignificadas no fluxo das tensões que, no curso das interdependências, podem favorecer que um grupo específico passe a contestar o poder de coerção exercido pelo outro grupo com o qual mantém relação.

Essa perspectiva fundamenta outro aspecto que deve ser considerado quando aplicamos o modelo de jogo ao estudo das inter-relações humanas. Trata-se das funções recíprocas vividas pelos indivíduos e grupos interdependentes.

Na perspectiva de Elias, numa figuração social, assim como no jogo, é impossível compreender e/ou explicar as atitudes e as ações de um grupo a partir de si mesmo, desconsiderando os planos e os objetivos do outro grupo; afinal, "os movimentos de um grupo determinam os movimentos do outro grupo e vice-versa" (2008, p. 83).

Nesse sentido, em jogo, os adversários tornam-se cada vez mais interdependentes, desempenhando uma função recíproca. Ou seja, o antagonismo vivido nas inter-relações deve ser compreendido como uma vinculação estabelecida entre indivíduos e grupos que vai constituindo sentido e significado para o próprio jogo, impactando as escolhas pessoais, desenhando as possibilidades de jogadas, estabelecendo um processo contínuo de distribuição de chances de poder entre parceiros e também entre os adversários.

Aplicada aos estudos do campo dos direitos sociais, essa perspectiva corrobora a compreensão de que "a política não tem um fim estabelecido. Os fins da política são tantos quantas são as metas que um grupo organizado se propõe a construir e legitimar" (BOBBIO, 2007BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007., p. 957).

Nesse sentido, compreendemos que a lei é resultado e processo da correlação de forças. Os documentos normativos expressam um momento de síntese das disputas em curso. Por isso, eles devem ser compreendidos na sua historicidade, considerando suas ambiguidades e lacunas.

Vivemos recentemente um processo de democratização, cuja dinâmica social pode ser expressa no modelo de jogo de dois níveis do tipo democrático crescentemente simplificado (MARCHI JÚNIOR, 2003MARCHI JÚNIOR, Wanderley. O "Grande Jogo" da Sociedade ou a "Sociedade do Jogo"? In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL PROCESSO CIVILIZADOR: HISTÓRIA, CIVILIZAÇÃO E EDUCAÇÃO, 7, 2003, Piracicaba, SP. Anais... Piracicaba, SP: Universidade Metodista de Piracicaba, SP, 2003.; ELIAS, 2008ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008.). Nesse modelo, encontramos um jogo constituído de, pelo menos, dois níveis de jogadores, cujo equilíbrio de poder vai se tornando mais flexível, flutuando numa ou noutra direção, e entre os jogadores do primeiro e do segundo níveis. Quando os jogadores do primeiro nível alcançam grande margem de poder, não podem mais ser ignorados pelos jogadores do segundo nível. Assim, qualquer jogada executada pelos jogadores de um nível passa a ser vigiada incessantemente pelos jogadores do outro nível. Nesses termos, essa dinâmica de controle explícito pelos jogadores do segundo nível evidencia o aumento da força potencial dos

jogadores do primeiro nível.

Como a definição sugere, esse modelo de jogo seria mais aplicável em sociedades que se organizam pela via da democracia representativa. Nesse caso, vislumbram-se dois grupos de jogadores. Um grupo mais numeroso, que atua em um primeiro nível do jogo, e um grupo menor, constituído de representantes do grupo mais numeroso, que atua em segundo nível. As demandas e as preocupações daqueles que atuam no primeiro nível são encaminhadas e discutidas pelo grupo mais restrito de jogadores. Conectados aos seus representados, esses jogadores do segundo nível estabelecem entre si uma correlação de força específica, objetivando alcançar determinados propósitos. É importante considerar que os jogadores que atuam nos dois níveis mantêm fortes vínculos entre si, afinal somente pode existir um segundo nível a partir da sociodinâmica de todo o jogo e, fundamentalmente, a partir das expectativas e carecimentos daqueles que atuam no primeiro nível.

Assim, em decorrência do aumento da força potencial dos jogadores do primeiro nível, qualquer jogada executada pelos jogadores do segundo nível pode ser vigiada incessantemente pelos jogadores de primeiro nível. Não sem razão, emerge a expectativa coletiva de que "os jogadores de nível mais alto estão no jogo para benefício dos jogadores de nível mais baixo" (ELIAS, 2008ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008., p. 96). Esses jogadores se constituem, então, em porta-vozes ou representantes do conjunto de jogadores do primeiro nível.

É importante considerar que, nessa dinâmica, um terceiro e até um quarto nível podem ser constituídos. A criação/produção desses outros níveis vai depender da dinâmica do jogo e da força relativa dos jogadores, seus (re)agrupamentos e suas metas.

Conforme expusemos inicialmente, assumimos essa perspectiva teórica no estudo da dinâmica que culminou com a aprovação da versão final da meta quatro do novo Plano Nacional de Educação. Nos próximos itens, discutimos melhor essas questões, imergindo no fluxo dos dados que sistematizamos.

Um novo Plano Nacional de Educação para o Brasil

Nas duas últimas décadas, a política educacional brasileira passou por significativas transformações no sentido de garantir a universalização da educação escolar. Recentemente, realizamos importantes movimentos que envolveram diferentes entidades e instituições (de natureza pública e privada), congregando esforços em torno de uma mobilização nacional que objetivou discutir amplamente a educação como um direito social que deve ser ofertado com qualidade para todos (BRASIL, 2010bBRASIL. Ministério da Educação. Conferência Nacional de Educação. Construindo o sistema nacional articulado de educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias de ação: documento final. Brasília, Conae, 2010b.).

Os debates que aconteceram em torno dessa questão constituíram um dos principais eixos balizadores no curso de um jogo cuja dinâmica possibilitou a elaboração e aprovação do novo Plano Nacional de Educação, com vigência entre 2014 e 2024.

Inicialmente, desde 2009, diversos grupos da sociedade se mobilizaram para a construção do novo plano para vigorar entre os anos de 2011 e 2020. Mas, no processo de negociações no Congresso Nacional, o documento final só foi aprovado em 2014 e, portanto, sua vigência se estendeu até 2024. Nas disputas que antecederam a aprovação do documento, a intenção era ampliar a participação da própria população para que ela expressasse suas expectativas com relação aos problemas e desafios a serem enfrentados pelas políticas públicas em educação. Esse indicativo foi consolidado na plenária de encerramento do II Congresso Nacional de Educação - Coned -, que aconteceu em Belo Horizonte (MG) no final de 1997.

Respondendo a esse indicativo, no processo de elaboração do novo Plano Nacional de Educação, foi organizada a primeira Conferência Nacional de Educação em 2010 (BRASIL, 2010bBRASIL. Ministério da Educação. Conferência Nacional de Educação. Construindo o sistema nacional articulado de educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias de ação: documento final. Brasília, Conae, 2010b.), precedida de conferências regionais, municipais, intermunicipais e estaduais. Naquela oportunidade, reiterou-se o indicativo de ampliação da participação popular, estabelecendo-se uma nova agenda de discussão no curso do ano seguinte, por meio de novos debates locais (conferências municipais, intermunicipais, estaduais e livres) e da realização da segunda Conferência Nacional de Educação.

Esse movimento empreendido pelas entidades acadêmicas e associações de profissionais do ensino não deixou de ser questionado em outros espaços de debate sobre os rumos da educação nacional. Por exemplo, durante o Congresso "Educação: agenda de todos, prioridade nacional", realizado pelo Movimento Todos pela Educação - MTPE -, o Sr. Mozart Neves, membro da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação - CNE - e assessor do MTPE, fez o seguinte destaque:

[...] o PNE não será capaz de cumprir seus objetivos se continuar tendo um caráter "endógeno". "A discussão na CONAE (Conferência Nacional de Educação) não basta. São os mesmos falando para os mesmos. É preciso criar uma tecnologia de comunicação permanente com a sociedade. É preciso transformar a educação em uma estratégia de sociedade, não de governo", completou. (INSTITUTO AYRTON SENNA, 2013)

Ocorre que, no curso do jogo, apenas as conferências municipais, intermunicipais, estaduais e livres aconteceram nos anos de 2012 e 2013, e o novo Plano Nacional de Educação foi aprovado pelo Congresso Nacional em 25 de junho de 2014, durante a tramitação do Projeto de Lei n. 8.035/2010BRASIL. Ministério da Educação. Conferência Nacional de Educação. Construindo o sistema nacional articulado de educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias de ação: documento final. Brasília, 2014a., antes da realização da segunda Conferência Nacional de Educação, que estava marcada para acontecer no início do ano, mas que foi reagendada para ocorrer somente em novembro de 2014.

Vale destacar que, ao lado de outras associações científicas, a ANPEd participou ativamente desse processo, no primeiro nível do jogo, fortalecendo a defesa de princípios que contribuíssem "para a garantia de educação pública, gratuita, laica, democrática, inclusiva e de qualidade social para todos/as" (ANPED, 2011ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPEd). Documento: Por um Plano Nacional de Educação (2011-2020). Rio de Janeiro: ANPEd, 2011., p. 9). Entre esses princípios, destacamos dois que dialogam diretamente com o objeto de discussão deste texto, quais sejam, "a) ampliação de recursos para educação, tendo como meta a aplicação de 10% do Produto Interno Bruto - PIB - em educação até 2020; b) destinação de recursos públicos exclusivamente para instituições públicas de ensino" (ANPED, 2011ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO (ANPEd). Documento: Por um Plano Nacional de Educação (2011-2020). Rio de Janeiro: ANPEd, 2011., p. 18).

Também no primeiro nível do jogo, e assumindo esses mesmos princípios, destacamos a participação da União Nacional dos Estudantes (UNE, 2014UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES. São Paulo: UNE. Carta Aberta à Câmara dos Deputados. maio 2014. Disponível em: < http://www.une.org.br/2014/05/une-e-toda-a-sociedade-brasileira-exige-a-votacao-do-pne>. Acesso em: 20/05/2015.
http://www.une.org.br/2014/05/une-e-toda...
) e da CNTE, que, junto a outras representações sindicais, desencadearam uma série de ações, objetivando conquistar o apoio dos deputados e dos senadores na dinâmica de discussão e de aprovação do novo Plano Nacional de Educação. Em 01 de outubro de 2013, no site da CNTE, observamos o seguinte anúncio:

A CNTE vai permanecer com o acampamento em frente ao Senado Federal até que o Plano Nacional de Educação (PNE ) seja aprovado. Desde 30 de agosto, a Confederação realiza atividades nas tendas instaladas no gramado da Esplanada dos Ministérios, com representações dos sindicatos filiados, principalmente às terças, quartas e quintas-feiras. As lideranças também visitam os senadores de seus Estados para pedir apoio às emendas apresentadas pela CNTE . (CONFEDERAÇÃO NA CIONAL DOS TRABALHADO RES EM EDUCAÇÃO, 2013, s/p)

Evidenciando articulação com outras entidades e associações, alertava ainda:

A CNTE e seus parceiros do Fórum Nacional de Educação continuarão alertas e mobilizados na Câmara dos Deputados, a fim de garantir a aprovação do PNE com as alterações já consensuadas [...] à luz das deliberações da 1ª CONAE , em especial sobre a vinculação dos recursos públicos para a educação pública e sobre o devido tratamento às diversidades, como forma de preservar o caráter laico, progressista e emancipador da educação pública no país. (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADO RES EM EDUCAÇÃO, 2013, s/p)

Ainda participavam do primeiro nível do jogo, mas também com atuação no segundo nível, diferentes organizações que representavam o ideário dos empresários brasileiros, por exemplo, o Instituto Unibanco, a Associação Nacional das Universidades Particulares - Anup -, o Instituto Ayrton Senna, a Federação Nacional das Escolas Particulares - Fenep - e o Movimento Todos Pela Educação - MTPE -, que buscavam oportunidades de fazer prevalecer no documento nacional uma perspectiva de caráter mais eficientista. Essa perspectiva fica sinalizada na seguinte indicação: "além da ampliação dos recursos, precisamos de mecanismos de gestão e critérios de repartição que visem a combater a ineficiência e as desigualdades educacionais" (MOVIMENTO TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2013).

Desse modo, defendiam que a destinação de 10% do PIB para a educação somente será importante se os recursos forem bem geridos e corretamente aplicados, o que poderia ser avaliado a partir da relação custo/benefício (INSTITUTO AYRTON SENNA, 2014INSTITUTO AYRTON SENNA. Disponível em: <http://www.institutoayrtonsenna.org.br>. 2014. Acesso em: 20/05/2015.
http://www.institutoayrtonsenna.org.br...
). Essa percepção alinha-se, portanto, ao pressuposto de que o problema da educação no Brasil não é necessariamente a falta de recursos financeiros, mas ineficiência na gestão dos recursos destinados à educação pública.

Nesse debate, os representantes do ideário empresarial, articulados no segundo nível do jogo, justificavam a participação do setor privado na definição das políticas educacionais brasileiras com o argumento de que "não existe educação gratuita. Todos nós pagamos, por meio de impostos, pelos serviços educacionais que o Brasil oferece. O Estado não gera dinheiro, quem faz isso é o setor produtivo; o governo apenas arrecada" (ANUP, 2014ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS UNIVERSIDADES PARTICULARES (ANUP). UNE e universidades privadas discordam sobre destinação de verbas para educação. mar. 2014. Disponível em: <http://www.anup.com.br/portal/noticia/une-e-universidades-privadas-discordam-sobre-destinacao-de-verbas-para-educacao2>. Acesso em: 18/05/2015.
http://www.anup.com.br/portal/noticia/un...
).

A partir desse ideário, arregimentaram questões que fundamentavam a expectativa do empresariamento da gestão pública por meio de parcerias público-privadas, bem como do estabelecimento de contratos de gestão e descentralização administrativa, potencializando a terceirização de serviços educacionais (MOTA JUNIOR; MAUÉS, 2014MOTA JUNIOR, William Pessoa da; MAUÉS, Olgaíses Cabral. O Banco Mundial e as políticas educacionais brasileiras. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 39, n. 4, p. 1137-1152, out./dez. 2014.). Essas organizações também atuaram no Congresso Nacional, acompanhando a elaboração e a aprovação do novo Plano Nacional de Educação, e suas articulações se fortaleceram no segundo nível do jogo. Em seu site, a Federação Nacional das Escolas Particulares (FENEP, 2012FEDERAÇÃO NACIONAL DAS ESCOLAS PARTICULARES (FENEP). O Ensino Privado e o PNE. set. 2012. Disponível em: <http://www.fenep.org.br/artigos/o-ensino-privado-e-o-pne/>. Acesso em: 18/05/2015.
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, s/p) expressa preocupação com a tramitação do documento e agradece as parcerias encontradas nesse processo:

A FENE P se manterá firmemente empenhada em aprimorar o PL n. 8.035/2010 quando de sua remessa ao Senado Federal e ao mesmo tempo em que não descuidará do dever de vigilância quanto às tentativas de desvirtuamento das garantias constitucionais à liberdade de ensino, como aqui já referido. Para bem se fazer justiça é imperativo destacar que, em nossa avaliação, dificilmente se obteria tais resultados sem a participação e empenho do Deputado Izalci Lucas, a quem a FENE P rende as merecidas homenagens.

Ancorando-nos no modelo de jogo elaborado por Norbert Elias (2008ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008.), compreendemos que o processo de elaboração e de aprovação do novo Plano Nacional de Educação do Brasil assumiu uma figuração complexa, evidenciada num jogo constituído de um número amplo de indivíduos e grupos interdependentes, e que se desenvolvia inicialmente em dois níveis. Os jogadores do primeiro nível (associações e entidades da sociedade civil) exerciam pressão mais nítida e direta sobre a atuação daqueles que jogavam no segundo nível (os membros do Congresso Nacional, particularmente na Comissão Especial instalada na Câmara dos Deputados, mas também no Conselho Nacional de Educação e no Fórum Nacional de Educação), mobilizados por uma diversidade de interesses que se cruzavam e que se interpenetravam permanentemente.

Entretanto, a certa altura, o conjunto de indivíduos e grupos envolvidos mais diretamente nesse jogo precisou redimensionar seus esforços e atuar mais detidamente em torno de uma questão que assumia centralidade, conforme os debates aconteciam: a ampliação dos recursos públicos para a educação e, complementarmente, a destinação desses recursos para as instituições públicas de ensino.

Assim, diferentemente do que vinha ocorrendo durante as últimas décadas em grande parte dos países em desenvolvimento, o financiamento da educação pública saiu do lugar secundário e ocupou a agenda de debates nas instâncias de elaboração do novo Plano Nacional de Educação brasileiro.

Esse movimento de disputas, rico em tensões e conflitos, evidencia um contínuo ordem e desordem no curso de elaboração do novo Plano Nacional de Educação. Adversários e parceiros tornavam-se cada vez mais interdependentes e dependentes do fluxo do jogo. Por exemplo, as entidades e associações de trabalhadores e cientistas ligados à Unes, à CNTE e à ANPEd editaram manifestos e cartas públicas como estratégia de organizar melhor os debates sobre o financiamento da educação pública. Também realizaram reuniões e grupos de trabalho que objetivavam esclarecer e fundamentar o movimento contra a crescente inserção de dispositivos privatistas na educação pública.

Em outra direção, nos dois níveis do jogo, entidades e grupos organizados ligados a uma perspectiva mais economicista traziam, para a arena dos debates, a defesa de que a extensão territorial e as enormes desigualdades educativas do Brasil demandariam o compartilhamento de responsabilidades e de ações entre Estado e sociedade civil. Esse compartilhamento se daria por meio de parcerias do Estado com o setor privado, sem descartar a parceria entre as próprias instituições privadas, o fortalecimento e a ampliação da filantropia e a organização mais sistemática de ações de caráter solidário.

Em seus discursos, recorrentemente, as ações governamentais eram colocadas em xeque quando comparadas às políticas implementadas em outros países e mesmo às ações e campanhas, inclusive nacionais, organizadas por instituições do setor privado, como, por exemplo, a Fundação Itaú Social, a Rede Globo, o Instituto Airton Senna, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a Fundação Telefônica, que compartilham os objetivos do Movimento Todos pela Educação. Essas instituições e associações organizaram ou participaram de seminários, palestras e eventos que reuniram a população e gestores dos setores públicos e privados em debates relacionados às questões que ganhavam centralidade no curso da elaboração do novo Plano Nacional de Educação.

O curso do jogo se tornava mais tenso se considerarmos outro aspecto: o de que o acesso de um contingente cada vez maior da população ao conhecimento produzido socialmente vem redimensionando a participação social das populações na definição das políticas estatais. De fato, à medida que a existência social de um número crescente de indivíduos se vincula cada vez mais à especialização do conhecimento, torna-se mais densa a dependência e a interdependência entre administradores públicos, gestores de empresas privadas, movimentos sociais e a população.

Na perspectiva de Elias (2008ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008.), esse processo evidencia que cada jogador, seja ele um líder/gestor público ou mesmo um representante de determinados grupos de elite empresarial, fica muito mais refreado e constrangido ao efetuar suas jogadas, principalmente considerando os jogos simultâneos e interdependentes dos quais passa a ter que participar.

Em decorrência do acesso ao conhecimento produzido socialmente, é possível dizer que, em território brasileiro, temos avançado bastante na compreensão de que:

[...] a democratização e a liberalização não foram suficientes para superar os obstáculos que firmemente se opõem à implementação do Estado de Direito no Brasil. [...] o Estado brasileiro é comumente cortês com os poderosos, insensível com os excluídos e cruel com aqueles que desafiam a estabilidade social baseada na hierarquia e na desigualdade. (VIEIRA, 2007, p. 42)

Mas, não sem tensões, essa percepção também tem fortalecido o debate em torno da participação popular na definição da política educacional, redirecionando a atuação daqueles que, até então, tinham maiores chances de conduzir o curso do jogo na definição das políticas educacionais. No que se refere à escolarização de estudantes público-alvo da Educação Especial, essa agenda também se fez evidente.

Focalizemos, então, mais atentamente, a processualidade de elaboração e aprovação da meta quatro que integra o novo Plano Nacional de Educação do Brasil, cujo conteúdo versa sobre esse campo específico da educação.

Aspectos da sociodinâmica de elaboração e de aprovação da meta quatro do novo Plano Nacional de Educação

O texto da meta quatro apresentado originalmente no Projeto de Lei n. 8.035/2010BRASIL. Câmara dos deputados. Projeto de Lei n. 8.035, de 2010. Brasília, 2010a. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br>. Acesso em: 20/05/2015.
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provocou inúmeros debates no percurso de sua tramitação no Congresso Nacional. Em torno desses debates, muitas correlações de forças foram estabelecidas tanto no âmbito do próprio Congresso quanto nas conferências realizadas e em espaços similares.

Conforme destacamos, gradativamente, os debates estiveram organizados em torno do investimento público na educação escolar e, no caso da meta quatro, as discussões vinculavam esse aspecto mais geral às preocupações relativas ao financiamento dos espaços e dos serviços de apoio à escolarização dos estudantes público-alvo da Educação Especial.

Após os primeiros momentos de debate, em 2010, essa meta apresentava o seguinte teor: "Universalizar, para a população de 4 a 17 anos, o atendimento escolar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino" (BRASIL, 2010aBRASIL. Ministério da Educação. Conferência Nacional de Educação. Construindo o sistema nacional articulado de educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias de ação: documento final. Brasília, Conae, 2010b., p. 35, grifos nossos).

Cumpre destacar que esse texto expressava imediatamente um alargamento de poder daqueles que representavam setores da população brasileira que assumiam uma perspectiva crítica e emancipatória relativa à educabilidade das pessoas com deficiência, em consonância com a Política Nacional de Educação Especial (PNEE, 2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Brasília, MEC, 2008.).

Embora não seja exclusividade desses setores, num aspecto mais amplo, é possível afirmar que a defesa da escolarização dos estudantes público-alvo da Educação Especial nas redes regulares de ensino colocava em xeque a perspectiva de que a face assistencialista do Estado Moderno fosse capaz de minimizar a profunda e persistente exclusão social e econômica vivida por uma parcela cada vez maior da população nas sociedades recentes.

Observamos que essa percepção vem mobilizando um número crescente de pais, profissionais da área clínica e da área educacional, ampliando seus espaços de atuação e, portanto, contribuindo para o redimensionamento de sua influência nas ações efetuadas por aqueles que os representavam nas diferentes instâncias - conferências e similares, bem como no próprio Congresso Nacional. É nesse sentido que o modelo de jogo de dois níveis do tipo democrático crescentemente simplificado, apresentado por Elias (2008ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008.), instiga o estudo desse processo.

Considerando as indicações de Elias (2008ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008.), observamos que, na dinâmica desse jogo, um grupo específico de indivíduos que atuava no segundo nível redirecionou suas ações, organizando-se em torno de um ou de alguns jogadores como forma de alcançar suas metas. Mais especificamente, integrantes da Comissão Especial de Educação, do Conselho Nacional de Educação, do Congresso Nacional e da equipe de governo redimensionaram sua atuação no jogo, apoiando e atribuindo centralidade às demandas e expectativas de entidades e de instituições especializadas em Educação Especial, que, desde a década de 1950, sustentadas majoritariamente por recursos públicos, vêm prestando serviços à população com deficiência e/ou transtornos globais do desenvolvimento, por meio da filantropia.

Em carta pública direcionada às Apaes, a presidente nacional da Fenapaes, convocou uma mobilização institucional para os dias 7 e 14 de agosto de 2013 (FENAPAES, 2013FEDERAÇÃO NACIONAL DAS APAES (FENAPAES). Mobilização Meta 4 PNE - Participem APAEs e FEAPAEs!. ago. 2013. Disponível em: <http://castanhal.apaebrasil.org.br/noticia.phtml/53521>. Acesso em: 18/05/2015.
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), anunciando as seguintes atividades:

Dia 7 de agosto - mobilização estadual em frente à Assembleia Legislativa convocando todos os segmentos de pessoas com deficiência, com a presença de todas as APAE S de cada Estado; Dia 14 de agosto - uma grande mobilização nacional em Brasília com presença das APAE S de todo o Brasil. Concentração às 9 horas em frente ao Museu da República - Esplanada dos Ministérios.1

Por meio desse convite, a presidente vislumbrava o fortalecimento do movimento Apaeano e sua visibilidade em todo o Brasil. Também destacava que:

[...] o Presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, Senador Vital do Rêgo (PMDB -PB), é o relator do PNE na CCJ, ele assumiu compromisso de ouvir representantes do Fórum Nacional de Entidades de Pessoas com Deficiência. (FENA PAE S, 2013)

Em outro comunicado, a presidente da Fenapaes informava que o movimento Apaeano contava "com o apoio da Ministra da Casa Civil Gleisi Hoffmann e dos Senadores e relatores das comissões de Constituição e Justiça". E enfatizava a importância de cada Apae, juntamente com seus parceiros, "enviarem correspondência para os Senadores dos seus Estados reafirmando nosso propósito do texto original da Meta 4. [...] Desta forma, este 'lob' reforçará o desejo do movimento Apaeano" (FENAPAES, 2013FEDERAÇÃO NACIONAL DAS APAES (FENAPAES). Mobilização Meta 4 PNE - Participem APAEs e FEAPAEs!. ago. 2013. Disponível em: <http://castanhal.apaebrasil.org.br/noticia.phtml/53521>. Acesso em: 18/05/2015.
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).

Considerando o equilíbrio de poder vivido entre esses jogadores e, concomitantemente, com os demais jogadores de segundo nível, o estabelecimento desses laços e acordos constituiu uma nova configuração, que reservou a um pequeno grupo de jogadores um terceiro nível do jogo, envolvendo ministros, senadores e deputados, e ampliou a margem de poder de alguns jogadores do primeiro e do segundo níveis no processo de decisão sobre o que deveria constar no texto da meta quatro do PNE.

A consolidação de um jogo de três níveis provocou "uma difusão geral de oportunidades de poder entre os jogadores e os grupos de jogadores" (ELIAS, 2008ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008., p. 97). Esse movimento fez emergir, no processo de tramitação do Projeto de Lei n. 8.035/2010BRASIL. Câmara dos deputados. Projeto de Lei n. 8.035, de 2010. Brasília, 2010a. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br>. Acesso em: 20/05/2015.
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, uma redação consensuada para a meta quatro. Vejamos.

De fato, no processo de tramitação do Projeto de Lei n. 8.035/2010BRASIL. Câmara dos deputados. Projeto de Lei n. 8.035, de 2010. Brasília, 2010a. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br>. Acesso em: 20/05/2015.
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no Congresso Nacional, uma forte mobilização liderada pelas instituições não governamentais e de cunho privado, que prestam serviços aos estudantes com deficiência, produziu uma redação alternativa àquela em vias de aprovação. Diante das correlações de forças, tensões e negociações, a tramitação do projeto culminou no que foi denominado, à época, de redação consensuada para a meta quatro.

As negociações e os acordos foram feitos em reunião no Ministério da Educação e Cultura - MEC -, no dia 10 de setembro de 2013, com a participação do Ministro da Educação, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - Secadi -, da Diretora de Políticas de Educação Especial do MEC, de representantes de entidades ligadas à educação, como da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo - Abraça -, da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, do Centro de Apoio a Mães de Portadores de Eficiência - Campe -, da Fenapaes, do Fórum Nacional de Educação Inclusiva, da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação - Undime - e do Conselho Nacional dos Secretários de Educação - Consed. Nessa reunião, esses grupos acordaram uma primeira redação para a meta quatro e suas estratégias, alterando o projeto original. Entretanto, novas articulações continuaram ocorrendo no Congresso Nacional, culminando na redação final da meta, cujo conteúdo passou a ser expresso nos seguintes termos:

Universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados. (BRASIL, 2014b, p. 55, grifos nossos)

Retomando o teor dos indicativos para essa meta a partir da Conae de 2010, compreendemos que o termo atendimento escolar, que aparecia na proposta do texto inicial da meta quatro, pode ser entendido como sinônimo de escolarização, uma prerrogativa das escolas comuns. A escolarização é um processo que deve contemplar o acesso, a permanência e a aprendizagem de todos os alunos. Essa perspectiva, conforme mencionamos, reforça o cumprimento do que já havia sido estabelecido em outros documentos legais, como o documento Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva (BRASIL, 2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Brasília, MEC, 2008.). Além disso, na primeira versão da redação dessa meta, o reconhecimento dos sujeitos público-alvo da Educação Especial como estudantes indica que esses sujeitos devem estar matriculados e frequentando a rede regular de ensino comum.

Focalizando o texto final da meta quatro, observamos que o termo acesso à educação básica não supõe, necessariamente, a garantia de acesso, de permanência e de aprendizagem com qualidade social, nem considera a escola comum como único lócus de aprendizado desses sujeitos. Além disso, utilizando o termo preferencialmente, anunciado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN n. 9.394/96BRASIL. Congresso Nacional. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB. Diário Oficial da União, Brasília, 23/12/1996.), reitera-se um sentido dúbio sobre o espaço social de aprendizagens sistematizadas onde devem estar esses estudantes. Entendemos que esse termo fazia algum sentido na década de 1980, quando o modelo da inclusão era apenas uma possibilidade, até mesmo pelo investimento restrito e insuficiente da administração pública na garantia dos direitos sociais, entre eles a educação escolar. Ocorre que, com essa nova redação, parece ter havido um recuo, por parte do Estado, em termos de investimento público em instituições públicas para a operacionalização de um sistema educacional inclusivo.

Considerando esse movimento em relação à teoria do jogo, destaca-se que um grupo de jogadores acabou saindo fortalecido desse processo, a partir das articulações e interdependências estabelecidas no segundo nível do jogo, o que produziu, consequentemente, um terceiro nível, onde as decisões foram delineadas.

Disso decorre que a meta quatro, que contava originalmente com seis estratégias relativas à execução do financiamento, no texto final, passou a ter dezenove estratégias. Entre elas, algumas favoreceram o grupo que reivindicava a ampliação e a consolidação de parcerias e convênios entre o poder público e instituições privadas. Outras, porém, atenderam aos anseios da comunidade acadêmica, que comungava com o grupo defensor das ações que privilegiam as articulações dos setores públicos no atendimento e na garantia do direito à educação pública de qualidade social para as pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades ou superdotação.

Entre as conquistas dos jogadores que atuaram de forma mais evidente no primeiro e no segundo níveis, podemos destacar a promoção e o fortalecimento de pesquisas na área da Educação Especial, da formação inicial e continuada dos profissionais da educação, bem como a pertinência de articulações intersetoriais do poder público na oferta e na garantia de serviços e de acesso aos espaços públicos.

As conquistas daqueles que atuaram mais intensiva, embora não exclusivamente, no terceiro nível de jogo podem ser evidenciadas principalmente nas estratégias que legitimam a promoção de convênios e parcerias do poder público com instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos, para a oferta de serviços que apoiem o atendimento aos estudantes público-alvo da Educação Especial, bem como para a formação continuada dos profissionais da educação e para a produção de material didático.

Embora o jogo ilustrado neste texto possa ser configurado em três níveis, é importante ter em vista que o fato de alguns jogadores atuarem principalmente no terceiro nível não anula a necessidade de suas jogadas e ações considerarem, de alguma forma, a pressão exercida pelos que jogam principalmente no primeiro ou no segundo níveis. Aliás, como já expusemos anteriormente, vale destacar que somente pode existir um segundo ou um terceiro nível de jogo a partir da existência e das tensões vividas num primeiro nível do jogo.

Nesse aspecto, observamos que a população assumiu uma margem de poder significativa no curso do jogo que narra a elaboração e a aprovação da meta quatro do novo Plano Nacional de Educação, provocando um redimensionamento de forças e, então, a constituição do terceiro nível do jogo.

Aqui, retomamos a tese elisiana de que o jogo e os jogadores seguem uma direção não planejada, referenciados pelo fundo social do conhecimento. Essa consideração nos coloca imediatamente diante do fato de que o texto final da meta quatro evidencia inúmeros aspectos de interdependência funcional entre o público e o privado que ainda marca tão profundamente a percepção de direito social em território brasileiro.

Vale ainda considerar as indicações de Saviani (2010SAVIANI, Dermeval. A cumplicidade entre o público e o privado na história da política educacional brasileira. In: CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTORIA DA EDUCAÇÃO, 8, 2010, São Luiz. Anais... São Luiz: UFMA, 2010., s/p) a esse respeito, sobretudo quando destaca que "público e privado são categorias originárias e específicas da época moderna", e, nesse sentido, "a cumplicidade entre o público e o privado é própria da sociedade capitalista na qual o público tende a estar a serviço de interesses privados". Entre avanços e recuos, a meta quatro do novo Plano Nacional de Educação evidencia que o caminho para a superação e/ou a minimização das desigualdades educativas em território brasileiro demanda conhecer mais profundamente a dinâmica do jogo que anuncia a inclusão social como ponto de chegada.

Atentos, porém, à noção de que esse processo acaba revelando uma ordem própria, "com estruturas, relações e regularidades de diferentes tipos, nenhuma das quais existe acima dos indivíduos e para além deles, sendo, antes, o resultado da sua combinação e entrecruzamento constantes" (ELIAS, 2008ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008., p. 100), no curso desse jogo, precisaremos cada vez mais, e com maior incidência, participar dos espaços de elaboração de políticas educacionais.

Considerações finais

No curso da nossa investigação, observamos que no Brasil vivenciamos "um profundo descompasso entre as intenções políticas de universalização da educação para todos e as ações políticas concretas que visam a superar os péssimos indicadores de qualidade na educação" (FÁVERO SOBRINHO, 2011FAVERO SOBRINHO, Antonio. Direito à educação: financiamento e estado. In: CUNHA, Célio da; SOUSA, José Vieira; SILVA, Maria Abádia da (Org.). Políticas públicas na América Latina: lições aprendidas e desafios. Campinas, SP: Autores Associados, 2011., p. 434).

Nesse contexto é que, no processo de elaboração do novo Plano Nacional de Educação brasileiro, o financiamento educacional assumiu destacada relevância. Diferentes indivíduos, instituições e movimentos organizados envolvidos com questões afetas aos diretos sociais dos estudantes público-alvo da Educação Especial participaram ativamente desse debate, constituindo um jogo, cujas regras e estrutura foram (re)criadas em diferentes momentos ao longo de cinco anos de intensas disputas. Concordamos com Marchi Junior (2003, s/p) quando destaca que, atualmente, "o jogar, sociologicamente falando, é muito mais perceptível do que nos séculos passados"; afinal, vivemos um processo de evidente ampliação da participação popular na definição das políticas sociais.

A eleição de governos ligados ao pensamento de esquerda no Brasil vem potencializando a participação de variados setores da sociedade civil nas discussões sobre os rumos da educação nacional. Esse fato redimensiona a dinâmica do jogo social e o papel dos indivíduos nesse processo.

No que se refere à temática que abordamos neste texto, observamos que essa participação referiu-se às fortes pressões exercidas por um contingente crescente de pessoas e de movimentos sociais para que a administração pública venha a assumir efetivamente a oferta de espaços e de serviços estatais integrados à escolarização dos estudantes público-alvo da Educação Especial.

Nesse sentido, acentuamos nossa percepção de que o curso do jogo que culminou no texto final da meta quatro do novo Plano Nacional de Educação evidencia a importância do envolvimento da população e de seus representantes nas instâncias formais de elaboração de projetos, leis e programas que direcionam as políticas de garantia dos direitos sociais, sobretudo em países marcados por extremas desigualdades sociais e econômicas, como no caso brasileiro.

Acreditamos que as articulações desses grupos em torno de questões que desafiam a racionalidade econômica que privilegia um grupo bastante restrito de indivíduos e de instituições vêm provocando um redimensionamento de sentidos e de forças no campo social, colaborando significativamente para a produção e a legitimação de uma linguagem em que as promessas do Estado de Direito sejam colocadas em discussão de maneira mais recorrente.

Assim, o aprofundamento e o compartilhamento dessa percepção entre diferentes grupos de indivíduos podem contribuir para o redimensionamento do equilíbrio de poder entre setores e instituições em futuros debates relacionados à implementação, à avaliação e à execução das metas expressas no novo Plano Nacional de Educação, que, nos próximos anos, certamente ganharão novos contornos.

Nessa perspectiva, a sistematização de discussões como as apresentadas neste texto pode auxiliar na compreensão de que a luta pela superação de uma cultura política, marcadamente personalista e clientelista, que ainda orienta nossas representações de mundo, constitui elemento fundamental de um jogo, do qual participamos. O jogo continua!

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    Jun 2015
  • Aceito
    Nov 2015
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