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Conflitos, indisciplina e violência em escolas

O Tema em Destaque desta edição de Cadernos de Pesquisa - "Conflitos, indisciplina e violência em escolas" - apresenta estudos e pesquisas em torno de questões que incidem, cada vez mais, nas relações cotidianas no espaço escolar no que se refere a situações de conflito e violência envolvendo alunos,professores, equipes de direção e funcionários. Destaque deve ser dado ao fato de que esses problemas lograram centralidade como tema na literatura da área e na mídia, sendo ainda pauta de inúmeros programas e projetos de diferentes esferas de governo. Ressalte-se ainda que os estudos ora apresentados configuram missões e parcerias estabelecidas no escopo de investigação maior denominada Conflitos no espaço escolar: a gestão de escolas públicas em contextos vulneráveis, financiada pelo Edital Universal do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq - e pela Fundação Carlos Chagas, incluindo-se a realização de dois seminários com a participação de pesquisadores especialistas no tema em pauta.

Nessa direção, Angela Maria Martins, Cristiane Machado e Ecleide Cunico Furlanetto, no artigo "Mediação de conflitos em escolas: entre normas e percepções docentes", analisam dados obtidos em investigação que se propôs a estudar o programa de governo denominado Sistema de Proteção Escolar - SPE -, implantado pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo - SEE-SP - desde 2010. As autoras esclarecem que a investigação tomou como pressuposto, no campo da análise de políticas educacionais, a relevância de se analisarem programas de governo, levando em consideração o que pensam e/ou como agem os atores responsáveis por sua operacionalização. Assim, propõem compreender as percepções de Professores Mediadores Comunitários - PMECs -, profissionais responsáveis pela operacionalização do referido programa, sobre situações de conflito e violência, na perspectiva da microssociologia. Inicialmente, o artigo constrói um painel sobre a função social da escola, assinalando que, no cenário contemporâneo, não basta às escolas se preocuparem apenas com as relações de ensino e de aprendizagem, com foco na permanência em sala de aula de alunos e professores, pois precisam se preparar para enfrentar situações de indisciplina juvenil e de conflitos, que podem degenerar em violência. Na sequência, com base em dados obtidos por meio de questionário semiestruturado aplicado a 49 professores mediadores comunitários, identificam tendência de ampliação dos níveis de intolerância e de conflito no contexto escolar, o que pode ser creditado ao fato de que as lógicas manifestas por jovens no espaço escolar nem sempre se conjugam com as lógicas secularmente expressas nas escolas.

Destaquem-se duas contribuições relevantes oriundas de pesquisas realizadas em Portugal em torno da temática.

Uma rigorosa revisão de literatura sobre indisciplina, violência e bullying, elaborada por Mariana Gaio Alves, no artigo "Viver na escola: indisciplina, violência e bullying como desafio educacional", identifica os problemas que cercam a delimitação conceitual e a operacionalização empírica dessas noções, no escopo de estudos na área da educação realizados em Portugal. A autora apresenta e sistematiza resultados de investigações que tratam do tema e de seu rebatimento no cotidiano escolar, com foco nas questões de prevenção e regulação desse tipo de situação em contexto escolar. Trata-se de uma meta-análise com base em teses de doutoramento defendidas em universidades portuguesas, fontes documentais acessíveis por meio do Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal - RCAAP. O texto explicita os procedimentos utilizados na meta-análise e as características gerais dos trabalhos acadêmicos; na sequência, explora as opções metodológicas adotadas pelos estudantes portugueses e seus principais resultados. Mariana Gaio Alves examina a tensão entre discursos midiáticos com ampla exposição das situações de conflitos e violência em escolas, e resultados das investigações analisadas, pois estas revelam a construção de uma percepção social acerca desses fenômenos, considerando que essa visibilidade midiática integra um conjunto de debates e críticas sobre o sistema de educação português, cujos problemas são ampliados pela imprensa. O texto, além de ampliar e aprofundar o conhecimento e a reflexão sobre as questões de indisciplina, violência e bullying nas escolas, possibilita identificar tendências de investigação que poderão ser desenvolvidas a partir das constatações dos estudos doutorais que vêm sendo elaborados em universidades portuguesas.

Ainda com foco nas violências e indisciplinas, Daniel Abud Seabra Matos e Maria Eugénia Ferrão, no artigo "Repetência e indisciplina: evidências de Brasil e Portugal no Pisa 2012", apontam a preocupação com a persistente associação entre a repetência, as altas taxas de abandono escolar e o tempo necessário para a escolarização, o que se consubstancia a partir de fatores socioeconômicos. Esclarecem a associação existente entre repetência e indisciplina escolar, com base em pesquisa sobre repetência escolar no Brasil e em Portugal, a partir dos dados do Pisa 2012, bem como da aplicação de um modelo logístico multinível tendo a repetência como variável dependente. Relacionam características dos estudantes e das escolas que estejam associadas à probabilidade de repetência dos alunos. Destacam, dentre os dados coletados, indicadores associados ao ambiente de aprendizagem da sala de aula, o clima disciplinar e a relação professor-aluno. Ao final, concluem pela negação da hipótese levantada (quanto melhor a relação professor-aluno, menor a probabilidade de repetência), ao mesmo tempo em que confirmam que, quanto maior a indisciplina, maior será a probabilidade de repetência. Na comparação entre os dois países, constatam que, em ambos, o clima disciplinar funciona como um fator de proteção com relação à repetência: quanto menor a indisciplina na sala de aula, menor é a probabilidade de repetência, sendo que, no Brasil, o efeito do clima disciplinar ao nível do aluno é maior do que o efeito do nível socioeconômico do aluno.

No artigo "Opressão nas escolas: o bullying entre estudantes do ensino básico", Cíntia Santana e Silva e Bruno Lazzarotti Diniz Costa discutem o caráter prejudicial das práticas de bullying em escolas, lançando mão de pesquisa exploratória realizada com alunos dos últimos anos do ensino fundamental e do ensino médio das escolas estaduais de Minas Gerais. Tomando como referência uma atual e vasta literatura da área, os autores assinalam diversas consequências no campo psicológico ou social nessas situações, o que ocasiona diminuição ou perda da autoestima, aumento do sentimento de insegurança, de ansiedade e depressão. A pesquisa aponta que esse contexto pode induzir alunos a diminuírem o interesse pela escola e para frequentar as aulas, o que provoca desdobramentos tais como o comprometimento na aprendizagem e no rendimento escolar, levando a situações de evasão, de nervosismo, de dificuldade de concentração e até mesmo possibilidades de automutilação e tendências suicidas. O texto conclui que os efeitos deletérios não incidem sobre os próprios alunos somente, pois envolvem os professores, outro segmento afetado por episódios de bullying no ambiente escolar. Em suma, essas práticas podem transformar a escola em ambiente violento, onde a impotência - de professores e alunos - compromete o processo educacional como um todo.

Em "Indisciplina escolar: um itinerário de um tema/problema de pesquisa", Julio Groppa Aquino realiza levantamento de artigos publicados em periódicos brasileiros no intervalo de 1998 a 2015, em que analisa o que vem sendo formulado como indisciplina escolar, acentuando duas grandes linhas: a primeira concentrada nas modalidades de apreensão dos atos indisciplinados operadas pelos estudos, e a segunda, com foco nas propostas de enfrentamento do problema, suscitadas pelos pesquisadores. O itinerário da discursividade acerca da indisciplina escolar é marcadamente compreendido como parte fundamental dos regimes de verdade correntes, e não como abordagem normatizadora. Em sua conclusão, alerta o autor para os cuidados que se deve ter em não cair na armadilha do que denomina convocação salvacionista da escola para abarcar toda a problemática social e, em seu lugar, considerar a diversidade de significados presentes no âmbito escolar a respeito da indisciplina, que deve ser esclarecida a fim de se efetivar uma escolarização democrática.

O artigo intitulado "Conflitos, violências, injustiças na escola? Caminhos possíveis para uma escola justa" demarca a contribuição de Flávia Schilling e Carla Biancha Angelucci, no sentido de nos fazerem ver como a experiência do justo se relaciona ao reconhecimento social das condições em que a vida se produz. Baseiam-se em Paul Ricoeur (2008), para quem "a justiça é uma força importante para dar conta da violência". As autoras buscam entender a escola em seus jogos complexos de reprodução e transformação, de liberdade e sujeição, com espaços e interstícios de autonomia, defendendo a ideia de que "o que define uma democracia ou uma instituição democrática não é necessariamente o consenso, mas sim a possibilidade de lidar com o dissenso de forma não violenta". Categorizam diferentes sentidos de injustiças, sempre relacionados à quebra de algum princípio de igualdade. Apresentam dados de pesquisa realizada com estudantes de ensino médio, educação de jovens e adultos e ensino superior e professores da rede pública estadual paulista de educação, a respeito das percepções sobre o justo e o injusto na escola. Descrevem situações de injustiça nas escolas para, ao final, delinear uma proposta de escola justa, suscitando novas possibilidades para o enfrentamento do desafio da violência.

Alice Miriam Happ Botler discute de que forma o sentimento de injustiça emerge no contexto escolar, relacionando-o a possíveis origens de conflitos e violências, com base em estudo de caso implementado no município de Recife (PE). O artigo intitulado "Injustiça, conflito e violência: um estudo de caso em escola pública de Recife" encerra período de licença capacitação realizada na Fundação Carlos Chagas, sob supervisão de Angela Maria Martins, no escopo da pesquisa Conflitos no espaço escolar: a gestão de escolas públicas em contextos vulneráveis, financiada pelo Edital Universal do CNPq e pela Fundação Carlos Chagas. O estudo apresentado tem como propósito analisar concepções que estudantes, professores e gestores têm de justiça, escola justa, práticas justas/injustas no interior da organização escolar. Inicialmente, discute concepções de justiça ancoradas na literatura da área e, na sequência, dá visibilidade às questões que permeiam práticas justas/injustas nas experiências vivenciadas no espaço escolar. Nessa direção, a autora parte do pressuposto de que a justiça, pautada por critérios de igualdade formal, se estabelece na relação entre as pessoas no escopo do direito e também no âmbito das práticas, quando entram em cena critérios distributivos. O artigo conclui que estudantes, professores e equipes de direção não têm clareza a respeito de práticas justas e injustas, o que pode limitar a capacidade das escolas de intervir para minimizar consequências advindas de injustiças ali praticadas.

Os artigos reunidos apontam questões norteadoras que afetam a gestão de sistemas, redes de ensino e unidades escolares, tendo em vista que o século XXI vem criando necessidades aos atores escolares, demandando urgência na redefinição do modelo de educação construído a partir da ascensão do estado moderno. Considerando que a escola se constitui como uma das principais bases estruturais na consolidação das democracias ocidentais, há que se viabilizarem e efetivarem processos políticos e pedagógicos para a renovação das práticas ali encetadas, tornando-a capaz de valorizar e integrar diferenças.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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