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Apresentação - Mulheres em carreiras de prestigio: conquistas e desafios à feminização

É de conhecimento público que, nos últimos 40 anos, as escolhas profissionais das jovens se diversificaram e seu interesse por carreiras tradicionais e prestigiadas, que outrora foram reservadas aos homens, cresceu e se consolidou. Os trabalhos que compõem este dossiê tratam de carreiras em que a presença masculina já foi majoritária e informam que, na década de 2010, 54% dos empregos para jornalistas, 44% dos empregos para médicos, 51% dos empregos para profissões jurídicas, mas somente 18% dos postos de trabalho para engenheiros, eram ocupados por mulheres. A feminização nesta última profissão tem acontecido de forma menos intensa e mais lenta do que nas demais, continuando a ser um nicho masculino de trabalho.

O debate sobre a feminização não pode prescindir de uma perspectiva histórica, uma vez que essas conquistas são relativamente recentes, nem de levar em conta os diferenciais de intensidade e ritmo que esse processo assume nas mais variadas profissões. Não pode prescindir, igualmente, da constatação de que a feminização tem contribuído para um processo de polarização entre mulheres profissionais nas mais diversas áreas de atividade. Isto é, de um lado, cada vez mais mulheres assumem postos de trabalho como engenheiras, advogadas, médicas, jornalistas - para se referir apenas às profissões em análise neste dossiê, sendo que a maioria permanece acantonada nas bases das pirâmides hierárquicas de empresas públicas, privadas e de outras instituições. Por outro, ascender a postos de gerência e direção de alto escalão, bem como integrar nichos profissionais de poder e reconhecimento social, continua a ser um desafio que apenas poucas conseguem vencer. Boa parte dos artigos que compõem este dossiê incorpora essa perspectiva dual, seja analisando ambos ou enfatizando apenas um desses dois polos.

Aline Tereza Borghi Leite e Patrícia Tuma Bertolin assinalam a existência dessa polaridade entre as jornalistas e advogadas em seus artigos e identificam a feminização como um dos determinantes das mudanças que estão se dando nessas profissões. As duas estão se transformando internamente, com tendências à especialização, que acentua a divisão do trabalho, à inovação tecnológica, que simplifica, destrói e recria funções, alterando a organização da qualificação e as hierarquias, à alteração dos tipos de vínculo e das condições de trabalho, à perda de autonomia e da autoridade profissional, à alteração nos padrões de rendimento e à maior heterogeneidade do grupo em termos de sexo, classe social e qualidade da formação.

O texto de Patrícia Bertolin discute o amálgama de fenômenos e condições sociais e econômicas que vêm atuando na transformação do tradicional modelo de exercício da advocacia no país. O artigo traz resultados de investigação na cidade de São Paulo, em grandes escritórios de advocacia conhecidos como Sociedades de Advogados, em que a grande maioria das mulheres é Advogada Empregada ou Associada e está situada na base da pirâmide hierárquica dos escritórios. A autora focaliza as dificuldades das advogadas para ascender à mais alta categoria hierárquica, integrando o corpo jurídico do escritório na posição de Sócia Efetiva e identifica que esse “teto de vidro” tem sido justificado por concepções que imputam incompatibilidade entre o fato de ser mulher, ser mãe e o exercício da advocacia nesse segmento.

Aline Tereza Borghi Leite entrevista freelancers e empregados que trabalhavam para empresas e para assessorias de imprensa na cidade de São Paulo, e reitera que a profissão está em transformação. O novo perfil de jornalista é feminino, jovem, diplomado e pós-graduado. A feminização do jornalismo vem se dando juntamente com o aumento da profissionalização e da precarização das relações e condições de trabalho da categoria, aliados a um processo interno de segmentação da profissão. Como em outras profissões, contudo, um maior número de mulheres não significou incremento proporcional desse sexo nas altas posições das hierarquias profissionais, em que o acesso ao poder é estruturado pelo gênero. A autora ressalta ainda as diferenças entre mulheres jornalistas dos segmentos estudados, associando-as a diferentes perfis demográficos, de escolaridade e de classe social, percebidos por meio da análise dos seus discursos.

Estudos voltados para o outro polo, a saber, mulheres que desafiaram a hegemonia masculina e se inseriram em nichos ou cargos prestigiados nas suas profissões, como a docência universitária, as funções de comando nos canteiros de obra, as diretorias e gerências de alto escalão, ou receberam prêmios científicos, comparecem nos artigos de Luzinete Simões Minella, Maria da Gloria Bonelli, Maria Rosa Lombardi e Catherine Marry e Sophie Pochic.

Luzinete Simões Minella se debruçou sobre as trajetórias das cinco cientistas pioneiras laureadas com o Prêmio Nobel em Medicina ou Fisiologia, entre 1947 e 1988. Nascidas entre o final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, os estudos dessas cientistas contribuíram para o avanço do tratamento de várias doenças e de distúrbios de origem genética e neurológica. Com base em suas autobiografias, nos discursos e palestras que proferiram durante as solenidades de premiação, a autora analisa e compara suas origens, sua formação, ressaltando as interferências de gênero que todas enfrentaram no decorrer das suas carreiras como pesquisadoras científicas, em áreas marcadas por fortes hierarquias de gênero e raça/etnia.

Maria da Gloria Bonelli reflete sobre professores universitários do Direito em sua diversidade atual e afirma a importância de considerar marcadores sociais de classe, sexo, raça e orientação sexual na análise dessa categoria, no contexto atual de estratificação do ensino do Direito e de proliferação de discursos como o profissionalismo e o gerencialismo no campo profissional. Sob a normatização e a padronização do ensino do Direito, vicejaria uma diversidade de perfis de sujeitos docentes (40% são do sexo feminino), que, por sua vez, contribuiria para deslocar a imagem e a identidade da profissão da sua tradicional posição fixa e central - homem branco de classe média alta -, nas experiências e identificações de parte de seus membros. A autora anuncia projeto de pesquisa para estudar transformações na área jurídica, considerando as mudanças na formação e no exercício da profissão, mas também o novo perfil dos docentes e suas repercussões sobre a construção da identidade profissional do/a advogado/a.

Maria Rosa Lombardi também se interessa pela identidade profissional do/a Engenheiro/a de Obras ou Engenheiro/a - residente no segmento Edificações habitacionais da construção civil, apontando fortes indícios da imbricação entre práticas de trabalho e de assédio moral e de gênero na construção daquela identidade. Para esses/as profissionais, em geral, o assédio moral não é visto como tal, sendo banalizado e naturalizado, entendido como parte integrante da formação prática, indispensável para a sua legitimação como engenheiro/a de obra. O artigo prioriza as trajetórias e os desafios enfrentados por várias gerações de mulheres que trabalham/ram como Engenheiras-residentes ou Coordenadoras de obras, cargos de autoridade e poder, masculinos por excelência. Além do assédio moral que atinge ambos os sexos, elas devem ainda lidar com as discriminações de gênero e com o assédio sexual dos seus superiores. Essa cultura masculina e machista forjada na construção de habitações e nos canteiros de obra pode ser considerada como um dos empecilhos à feminização da engenharia de obras.

Catherine Marry e Sophie Pochic vão discutir a crença, largamente disseminada nos estudos feministas, segundo a qual o setor público beneficia as mulheres por tratar com mais igualdade ambos os sexos. Os resultados de diversos estudos realizados junto aos setores público e privado na França na década de 2010 vêm mostrando que não há maior igualdade entre os sexos no setor público, principalmente quando se trata do acesso aos altos níveis de gerência e direção das carreiras de estado e das empresas públicas e privadas. O “teto de vidro” é uma realidade e fatores semelhantes explicam sua existência nos dois setores, em seus mais diversos segmentos. Por exemplo, o maior prestígio dos diplomas iniciais masculinos, quando comparados aos femininos, permite a eles ascender mais rápido aos postos mais altos; quando marido e mulher são diretores, a gestão das carreiras no âmbito conjugal normalmente privilegia a carreira do homem; a responsabilidade pelas tarefas domésticas e pelo cuidado dos filhos e da família ainda é, quase exclusivamente, da mulher, prejudicando a sua carreira; as promoções costumam se basear nas redes de contatos, que são majoritariamente masculinas. Se há vantagens particulares para as mulheres no emprego público, elas residem na esfera do acesso ao emprego e à progressão regular nas carreiras até um determinado nível da hierarquia apenas.

Finalmente, dois artigos refletem sobre as razões de escolha das profissões e estabelecem comparações entre carreiras. O primeiro deles investiga por que os/as alunos/as de graduação em engenharia e nas licenciaturas continuam a fazer escolhas profissionais previsíveis para o seu sexo e o segundo procura conhecer os perfis dos trabalhadores que optam por diferentes ocupações e, em decorrência, por patamares de remuneração diferentes, analisando suas características pessoais e suas escolhas profissionais.

Lindamir Salete Casagrande e Ângela Maria Freire de Lima e Souza procuraram conhecer quais razões ainda levam alunos/as à escolha de carreiras “adequadas socialmente” para cada um dos sexos e também a transgredirem essas expectativas. Analisam as escolhas de alunos e alunas matriculados em cursos de Engenharia Mecânica e Civil e de Licenciatura em Letras e Matemática em duas universidades federais, uma situada na região Sul e outra no Nordeste, considerando sexo, raça/cor, renda familiar e região do país como variáveis de cruzamento para caracterizar os sujeitos pesquisados e suas escolhas de forma comparativa. Entre outros achados da pesquisa, está a percepção dos/as alunos/as a respeito de um maior nível de dificuldades enfrentado pelas mulheres nas universidades, meio permeado de violência simbólica, em que os obstáculos às vezes não são percebidos mas efetivamente interferem na trajetória acadêmica das jovens e na sua posterior inserção no mercado de trabalho.

Regina Madalozzo e Rinaldo Artes investigam as escolhas profissionais dos indivíduos, levando em conta algumas variáveis demográficas, sobre a situação conjugal, sobre o trabalho e a remuneração. Com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - Pnad -, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE -, submetidos a procedimentos estatísticos, os autores constroem uma classificação das ocupações, discriminando as ocupações de prevalência masculina, de prevalência feminina e integradas ou mais igualitárias em termos da participação dos sexos. Aprofundam a análise nas “profissões imperiais”, a Advocacia, a Engenharia e a Medicina. Os autores verificaram que, se, de modo geral, as mulheres ganham menos que os homens, nas profissões imperiais e no setor público, seus ganhos tendem a se aproximar daqueles do sexo masculino, exceção feita à Engenharia: nessa profissão, em que as jornadas de trabalho são mais extensas e não variam segundo o sexo, houve a maior diferença salarial entre homens e mulheres (67%).

Para finalizar esta Apresentação, é imperioso ressaltar que os autores dos artigos deste dossiê entenderam que a feminização é um processo complexo, heterogêneo e ambíguo, não fixo, sujeito a inúmeras influências e a avanços e retrocessos. A feminização numérica, também chamada de feminilização, indica apenas a diminuição da exclusão de um sexo em relação ao outro e não é sinônimo de igualdade, embora não deixe de significar as inegáveis conquistas das mulheres no mundo do trabalho e das profissões. Como todos os trabalhos demonstraram, porém, no processo de feminização de uma profissão outrora masculina, reproduz-se internamente a divisão sexual do trabalho e se reconfiguram as relações de poder, assim como persistem as concepções de gênero que geram discriminações e violências simbólicas e explícitas contra as mulheres, que desvalorizam as profissionais e obstaculizam as suas carreiras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017
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