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Apresentação: alteridade e educação

Os movimentos em defesa dos direitos humanos, em defesa de modos de vida alternativos, assim como a tênue frouxidão referente aos padrões postos como abrangentes, causaram uma reviravolta no modo de vida, no modo de pensar e de agir. Por mais que ainda soe estranho para muitos, desencadeou-se a intensificação da ideia de que existem muito mais modos de ser gente que o estabelecido pela racionalidade do igual.

Se, por um lado, estamos diante de um tema urgente para o pensamento atual, por outro, temos um enorme problema a ser resolvido, no sentido de saber se o senso de diversidade e pluralidade, com o consequente ideal de inclusão, são suficientes para a ocorrência de relações éticas. Com a diversidade e pluralidade estamos diante da ideia de realidades múltiplas que coexistem em um espaço e tempo comuns, mas isso não resolve o problema posto, o que nos lança a um desafio ainda maior, o da educação em sua responsabilidade de formação do humano para não simplesmente aceitar o diferente pela via jurídica, mas, juntamente com as estruturas externas, transformar as estruturas internas que o impedem de ver o diferente como não perigoso ou não tão humano. Isso se constitui em uma questão urgente para ética e educação, ou seja,

a ampliação da consideração ao outro, de forma a não percebê-lo só como objeto de dever, mas abrirmo-nos às diferenciações e peculiaridades da pessoa. A orientação normativa deve levar em consideração as particularidades dos indivíduos concretos. Tal postura exige uma abertura para vivências que não se estruturam apenas pela dimensão cognitiva dada por orientações normativas. ( HERMANN, 2014 HERMANN, N. Ética e educação: outra sensibilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2014 , p. 23)

Não é incomum que a inclusão caminhe de mãos dadas com a exclusão; não é incomum que o diverso gere o sentimento de adverso; não é incomum que o diferente desencadeie o movimento de indiferença. Inclusão e exclusão, diverso e adverso, diferente e indiferente são as tensões que os processos educativos devem colocar em sua agenda, uma vez conscientes dos desafios que envolvem a formação para além da instrumentalização ou de repasse de conteúdos. Assim, ansiamos por mais educação! No caminho de possíveis soluções ou minimizações dessas tensões, a alteridade é posta como o qualificativo ético fundamental para que a diversidade e a pluralidade não sejam reduzidas somente à percepção do múltiplo. Com a alteridade ocorre um compromisso com o humano que se constitui enquanto abertura, enquanto um-para-o-outro, ou enquanto um-com-o-outro. Com ela, a diferença se torna condição humana, fazendo surgir a esperança de que a violência seja superada por relações cujos meios sejam, em palavras benjaminianas, “atenção do coração, a simpatia, o amor pela paz, a confiança e outras qualidades a mais” (BENJAMIN, 1986BENJAMIN, W. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. Tradução de Celeste H. M. Ribeiro de Sousa et al. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1986., p. 168).

Em perspectiva filosófica, as discussões em torno do tema da alteridade se originam, principalmente, como resposta ética ao problema da totalização e universalização, uma vez que a realidade, e o humano presente em tal realidade, se mostram múltiplos, resistindo à reconciliação almejada por princípios de caracterizações ou classificações universais e abstratas. Assim, somos postos em um horizonte de sentido próprio da finitude e a consequente sustentação de que as diferenças são decisivas para a compreensão do humano, diante do império da igualdade que nos é dada ou imposta de modo violento. Como horizonte de sentido, ocorre um espaço de abertura a partir do qual nos constituímos, adquirimos novos sentidos, novas ampliações, e isso a partir do encontro com outrem. A resposta ética provinda da alteridade pode ser resumida, a partir dos escritos de Nadja Hermann (2014HERMANN, N. Ética e educação: outra sensibilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2014), a dinâmica produtiva existente entre mundo comum e a autocriação do indivíduo, apontando a relevância de dedicarmos um espaço de debate sobre o modo como esses temas surgem no interior de algumas matrizes teóricas, nos levando a refletir sobre desafios e atualizações dessa temática em contextos do século XXI.

Educacionalmente, somos permeados por exigências de desenvolvimento de habilidades e competências próprias da racionalidade instrumental e das especialidades profissionais, a partir das quais as relações interpessoais, ou do próprio indivíduo consigo mesmo, assumem características comerciais, seja em termos de produtividade, crescimento econômico, seja em termos de exigência de reciprocidade ou ausência de gratuidade. Na base disso está uma concepção mecanicista de ser humano, em que as emoções, os sentimentos, a sensibilidade, as preocupações éticas e estéticas são renegadas a segundo plano. Cabe nos questionarmos sobre a possibilidade de outro modo de educar ou de conceber a educação, a partir da qual as pessoas sejam colocadas em primeiro lugar, capazes de relações aquecidas pelo respeito, responsabilidade e justiça diante do outro. O senso de alteridade perpassa e qualifica o senso de diversidade e pluralidade, pois com estas a multiplicidade ainda pode ser vista sob a ótica do uno. Sob esses aspectos, o tema da alteridade desafia os processos educativos e suas políticas, pois coloca a dinâmica entre mundo comum e autocriação do indivíduo como uma tarefa formativa.

Os debates que envolvem o ser humano se tornam problemáticos quando não consideram a alteridade em sua efetiva influência na construção da diversidade. O problema surge no instante em que não reconhecemos as diversas formas de ser, de pensar, de agir, as diversas manifestações do humano, em sua significativa riqueza, e passamos a tomar decisões e a agir conduzidos cegamente pelo senso de totalidade e universalidade elevado como critérios absolutos. Nesse instante nos tornamos insensíveis à multiplicidade e suas características particulares, ansiando por administrar o real, a vida, a partir de leis gerais e padronizadoras. Não estamos diante da negação do mundo comum, porém o desafio está em percebemos na alteridade a condição para o humano, não esquecendo o alerta grego clássico provindo de Aristóteles, a partir do qual o bem é algo que deve articular o individual e o coletivo, de donde deriva a concepção política e ética em tal filósofo. Emerge a necessidade de refletirmos sobre a presença do outro e os desafios da intersubjetividade que envolvem as questões humanas, em seus âmbitos educacionais e pedagógicos.

Na organização deste dossiê temático, somos orientados por algumas problemáticas: como a experiência de alteridade está presente na constituição do eu e do outro, na constituição do humano? Sob que critérios a alteridade fundamenta os processos educativos, a partir dos quais é possível fazer justiça às diferenças, às características de mundo comum e de autocriação do indivíduo? Como constituir e que características são necessárias à cultura ético-formativa no instante em que concebemos o humano não fixado em modelos ideais, em padrões absolutos, abrindo espaço para a alteridade como característica própria do humano?

São tais aspectos que justificam essa proposta investigativa e nos lançam ao desafio de constituirmos ações pedagógicas orientadas pela tolerância respeitosa e vigilante, pela aceitação dos modos de pensar e de ser, sem abstrair de valores comuns. A alteridade nos põe contundentemente diante da dimensão ética das ações, pois é abertura à presença que nos contradiz, que nos põe limites, que nos questiona em nossas convicções e nos projeta para o desafio do novo. Ou seja, a experiência de alteridade evidencia a condição humana enquanto temporalidade e, nisso, tem lugar a educação.

É importante destacar, também, que este dossiê se origina a partir de desafios teóricos e metodológicos emergidos com os estudos desenvolvidos na linha de Processos Educativos, no Mestrado em Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina, vinculado ao projeto de pesquisa intitulado “A abordagem das capacidades em sua articulação ético-formativa”, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq - sob a chamada MCTI/CNPq/MEC/Capes n. 22/2014 - Ciências Humanas e Sociais, e com a coordenação do professor Mauricio João Farinon. Motivado por tal pesquisa, buscou-se estabelecer diálogo com diversos pesquisadores, sobre o tema da Alteridade e Educação, com diferentes abordagens teóricas, mas com um mesmo propósito: fundamentar a educação sob a ótica da alteridade.

O texto “Educação e alteridade em contexto de sociedade multicultural” põe em foco a perda da composição homogênea das populações nas sociedades contemporâneas, levando ao problema de estas se transformarem em conglomerados multiculturais. A tolerância mútua, o reconhecimento dos diversos costumes, ideais e convicções são princípios fundamentais para o convívio das culturas heterogêneas e, na ausência desses princípios, o medo assume a forma de atritos e conflitos abertos. O sistema educacional é o setor que mais deve estar envolvido no manejo desses problemas, no sentido de que as ações pedagógicas devem responder satisfatoriamente aos desafios de integrar as crianças e adolescentes nesse novo contexto cultural. Hans-Georg Flickinger aborda, nesse texto, três etapas da experiência multicultural: o exótico, o estranho e a alteridade. Em sua relação com o social, a alteridade aponta para preocupação de como estabelecer uma relação interpessoal aberta, marcada pela presença do outro, a qual demanda o ouvir e o dialogar. A defesa é que na lógica da alteridade reside uma atitude hermenêutica.

Nick Stevenson, em seu texto “Educação e a alteridade da democracia”, apresenta a ideia de que a sociedade democrática está a um longo caminho de ser efetivada. Em vez de um modelo, Stevenson defende a necessidade de, socialmente, construir alternativas democráticas, e é nesse contexto que pensa questões sobre educação democrática e escolas básicas, pois estas não podem ser somente consideradas locais de aprendizagem, mas locais onde a democracia poderia ser praticada diretamente. No mesmo caminho, uma democracia efetiva exigiria o desenvolvimento das capacidades imaginativas e criativas no ser humano e o desenvolvimento de uma sociedade mais ecológica. A democracia assumiria, então, não tanto o significado de voto, mas se constituiria como um modo de vida. O problema é que o domínio neoliberal converte essas formas mais significativas de democracia naquilo que Stevenson denomina de “alteridade ou um outro da democracia”. Em termos sociais, o esforço da democracia está em recusar a ideia de que existam outros externos e internos, e isso com base em um sentido compartilhado de dignidade humana. Em contexto escolar, a “obsessão por padrões, tabelas classificativas, resultados, a humilhação de professores e alunos que podem não atender a esses padrões, cria um novo Outro baseado no fracasso. Se a preocupação em relação aos efeitos de classe, gênero, raça e necessidades especiais está quase extinta da agenda da direita, tal preocupação está sendo marcada por uma falha quando representa uma tentativa democrática de construir uma sociedade que respeita a dignidade de todos”.

Com o texto “Alteridade, ação e educação em Hannah Arendt”, Angelo Vitório Cenci e Edison Alencar Casagranda indagam sobre o lugar do outro na educação, partindo do paradoxo entre o avanço da consciência em termos de alteridade e dignidade humana coexistindo com formas sofisticadas de sua negação ou aniquilação. Os autores defendem a ocorrência, na obra de Arendt, de “uma dimensão que possibilita pensar nas condições para o outro poder a vir a ser outro”, sendo esse o ponto de articulação entre alteridade e educação. A negação do outro significa negar nossa condição humana de ser plural, refletindo na negação da atitude de abertura em relação a si e ao outro. “Alteridade, ação e educação em Hannah Arendt” deve ser lido a partir de um duplo movimento: o “primeiro, com base em Eichmann em Jerusalém... (2003ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.), tematiza a negação do outro como incapacidade de se colocar no seu lugar e como sua supressão mediante a anulação de sua singularidade. O segundo, tomando por referências principais A condição humana (2016ARENDT, H. A condição humana. 12. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016.) e Qu’est-ce que la politique? (1995ARENDT, H. Qu’est-ce que la politique? Paris: Seuil, 1995.), explora as condições para a alteridade, e o faz focando nos pressupostos da ação - mundo e pluralidade - e nos seus poderes - initium, revelação e energeia. Tais condições remetem ao amor mundi e à responsabilidade vinculada a ele como condição educativa (formação) para o outro poder vir a ser efetivamente outro”.

“O que chama hoje a pensar quando se trata das Humanidades”? Essa é a problemática de abertura do texto de Luís António Umbelino, intitulado “O fim das humanidades: ensino e aprendizagem em época de crise”. A utilidade e rentabilidade econômicas é uma narrativa que põe na vitalidade econômica a condição para a vitalidade de um país, estando “ligada à capacidade de ‘moldar’ o respetivo sistema de ensino às necessidades técnicas de um supermercado laboral global” vinculado ao saber fazer próprio da proficiência técnico-científica. Para Umbelino, essa narrativa, no contexto das Humanidades, é teoricamente frágil e politicamente insensata. Frágil, pois a condição de empregabilidade exige “formação da capacidade para analisar a própria vida, para tomar decisões inovadoras e criativas, para responder criativamente aos desafios, para um ajustamento crítico à mudança”. Tal condição cria um perfil com base na paciência de reflexão, de leitura, de problematização, da diferença, do inesperado, da novidade e da autenticidade. E essa é uma formação que cabe apenas às Humanidades. Insensata por não se questionar sobre limites de uma concessão posta exclusivamente na vitalidade econômica e por não medir os desafios que lança a si própria. Nosso convidado de Coimbra nos alerta que “pagaremos, sem dar conta, um preço cívico, democrático e cultural elevado sempre que se ensaie mitigar o espaço das Humanidades. E esse preço pode ser ainda maior, pois importa reconhecer também que a formação garantida pelo espaço das Humanidades é também aquela que torna qualquer vida humana uma vida examinada e não irreflectida, uma vida capaz de se relacionar consigo mesma e com os outros, uma vida capaz de se orientar e fortalecer no tempo de uma historicidade incontornável”.

Como último texto, Mauricio João Farinon nos traz reflexões sobre “Ética, justiça e educação sob o enfoque da alteridade”. A proposta é de um diálogo entre Amartya Sen e Emmanuel Levinas, apontando o problema de que a diversidade humana pode ser miniaturizada quando os indivíduos são considerados à luz de um único e absoluto critério que se quer abrangente. A problemática gira em torno dos sentidos e desafios para a educação e seus processos formativos, uma vez que a sala de aula e os diversos ambientes onde somos postos em experiências formativas se constituem como momentos e espaços privilegiados de encontro entre diferentes, no desafio de um mundo comum. Farinon desenvolve seu argumento em três atos, a partir dos quais pretende fundamentar o que compreende como atitude de alteridade: a alteridade fundada no conceito de justiça, sob as características de incomparabilidade, identidade dinâmica e terceiro incluído, remetendo, assim, à origem da justiça diante da presença do outro; o senso de proximidade e responsabilidade como possibilidade de efetivação da justiça e, nesse sentido, a alteridade é posta como princípio e característica da relação interpessoal inicial; por último, tem-se a pergunta pelos sentidos e desafios que tal abordagem gera para a educação, destacando a formação ética, a sensibilidade, a razoabilidade e a fecundidade.

Que as leituras dos textos que compõem este dossiê sejam profícuas em reflexões, em significações metodológicas e práticas, abrindo espaço para que os processos educativos sejam mais humanos e partam de uma concepção complexa de humano, cujo pressuposto ético está no princípio alteridade.

REFERÊNCIAS

  • ARENDT, H. Qu’est-ce que la politique? Paris: Seuil, 1995.
  • ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • ARENDT, H. A condição humana 12. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016.
  • BENJAMIN, W. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos escolhidos. Tradução de Celeste H. M. Ribeiro de Sousa et al. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1986.
  • HERMANN, N. Ética e educação: outra sensibilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2014

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018
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