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Ética, justiça e educação sob o enfoque da alteridade1 1 Este texto é fruto de pesquisa com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, sob a Chamada MCTI/CNPq/MEC/Capes n. 22/2014, Ciências Humanas e Sociais. Foi apresentado, inicialmente e em uma primeira versão, na XI Reunião Científica Regional da Anped – Anped Sul 2016.

Ethics, justice and education from the perspective of alterity

Éthique, justice et éducation du point de vue de l’altérité

Ética, justicia y educación bajo el enfoque de la alteridad

RESUMO:

Com o objetivo de fundamentar e justificar a alteridade como princípio ético, este texto filia-se à matriz teórica de Amartya Sen, a partir da teoria multicultural, e de Emmanuel Levinas, com a teoria da alteridade. Primeiramente é abordado o princípio alteridade, por meio do conceito de justiça em sua origem nos critérios de incomparabilidade, identidade dinâmica e terceiro incluído. Em segundo lugar, defende-se que a efetivação da justiça ocorre a partir dos sensos de proximidade e responsabilidade, postos como princípio e característica da relação interpessoal inicial. Finalizando o artigo, são pontuados alguns sentidos e desafios que o princípio alteridade representa para a educação, destacando a formação ética, a sensibilidade, a razoabilidade e a fecundidade.

Palavras chave:
Educação; Ética; Alteridade; Multiculturalismo

ABSTRACT:

In order to corroborate and justify alterity as an ethical principle, this article follows the theoretical matrix of Amartya Sen, regarding the multicultural theory and of Emmanuel Levinas, concerning the theory of alterity. First, it approaches the principle of alterity via the concept of justice in its origin based on the criteria of incomparability, dynamic identity and third party. Second, it argues that the concretization of justice occurs from the senses of proximity and responsibility, as a principle and characteristic of the initial interpersonal relationship. In the conclusion, the article discusses some directions and challenges that the principle of alterity represents for education, emphasizing ethical formation, sensitivity, reasonableness and fecundity.

Keywords:
Education; Ethics; Alterity; Multiculturalism

RÉSUMÉ:

Afin d´étayer et de justifier l’altérité comme principe éthique, ce texte adhere à la matrice théorique d’Amartya Sen, en ce qui concerne la théorie multiculturelle, et à celle d’Emmanuel Levinas, pour ce qui est de la théorie de l’altérité. Dans un premier temps le principe d’altérité sera abordé par le biais de la notion de Justice et de son origine dans les critères d’incomparabilité, d’identité dynamique et de tiers inclus. Ensuite, on soutiendra que l’exécution de la justice se fait à partir du sens de proximité et de celui de responsabilité, en tant que principe et caractéristique du rapport interpersonnel. Finalement, seront signalés certaines significations et certains défis que le principe d’altérité représente pour l’éducation, principalement la formation éthique, la sensibilité, la raison et la fécondité.

Mots-clés:
Éducation; Ethique; Altérité; Multiculturalisme

RESUMEN:

Con el objetivo de fundamentar y justificar la alteridad como principio ético, este texto se filia a la matriz teórica de Amartya Sen, a partir de la teoría multicultural, y de Emmanuel Levinas, con la teoría de la alteridad. En primer lugar se aborda el principio alteridad, por medio del concepto de justicia con su origen en los criterios de incomparabilidad, identidad dinámica y tercero incluido. En segundo lugar, se defiende que la efectividad de la justicia ocurre a partir de los sentidos de proximidad y responsabilidad, puestos como principio y característica de la relación interpersonal inicial. Al finalizar el artículo, se puntualizan algunos sentidos y desafíos que el principio alteridad representa para la educación, destacando la formación ética, la sensibilidad, la razonabilidad y la fecundidad.

Palabras clave:
Educación; Ética; Alteridad; Multiculturalismo

O tema da alteridade nos desafia radicalmente, em sentido tanto teórico quanto prático. Em sentido teórico, a alteridade faz referência imediata a uma realidade plural própria do termo latino alteritas. Contudo, esse sentido etimológico não contempla a amplitude da riqueza ética originada a partir das teorias filosóficas e suas derivações educacionais. Emmanuel Levinas, Theodor Adorno e Hans-Georg Gadamer são alguns exemplos próprios do cenário filosófico contemporâneo a partir do qual o tema da alteridade - ou do outro - se potencializa na relação com a linguagem, a interlocução, a sensibilidade, a proximidade, o concreto e o reconhecimento do outro em sua manifestação em modo diferente daquele definido pela estrutura metafísica do ser, ou outro modo que o do indivíduo que se sustenta de modo isolado, absoluto, fundador e atribuidor de sentido.

Ligado a isso, é importante situar, no debate filosófico-educacional contemporâneo, os estudos da filósofa e educadora Nadja Hermann (2010HERMANN, Nadja. Autocriação e horizonte comum: ensaios sobre educação ético-estética. Ijuí: Editora Unijuí, 2010., 2014HERMANN, Nadja. Ética e educação: outra sensibilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.), com destaque para a relação entre ética, estética e alteridade. Consideradas aqui somente em termos introdutórios, nas obras Ética e educação: outra sensibilidade e Autocriação e horizonte comum, ocorre a defesa de que o outro não nos afeta via conceito, via aquilo que nossa razão interpretativa concebe ou atribui como verdadeiro. É o outro em sua concretude que nos afeta, em sua (ou enquanto) presença sensível, e é via sensibilidade que nos sentimos tocados e impulsionados ao movimento de responsabilidade em fazer justiça à presença do outro. Aponto, também, para os estudos do filósofo Hans-Georg Flickinger e a postura ético-moral própria da pedagogia hermenêutica. Em linhas gerais, na obra A caminho de uma pedagogia hermenêutica, Flickinger (2011FLICKINGER, Hans-Georg. A caminho de uma pedagogia hermenêutica. Campinas: Autores Associados, 2011.) nos convida ao desafio dialógico frente ao outro em seu modo de ver o mundo, seu modo de pensar - é a concepção sobre as relações pedagógicas enquanto relação social.

Ainda em sentido teórico com o filósofo e economista indiano Amartya Sen, principalmente com as obras Identidade e violência e A ideia de justiça, mesmo não abordando o conceito de alteridade, o tema do outro emerge na perspectiva multicultural, enquanto diferentes vozes que, de fato, merecem ser ouvidas e como condição para evitarmos os reducionismos arbitrários, superando a ideia de que a diversidade humana é passível de ser miniaturizada a partir de um único e absoluto critério. A crítica de Sen está no fato de ocorrer a fixação, em termos avaliativos e de ajuizamentos, em sistemas singulares e que se querem abrangentes. Isso se efetiva pela tentativa de tornar uma característica específica de um ethos (enquanto determinado modo de agir, enquanto determinados princípios morais, por exemplo) o critério de normalidade ou aceitabilidade para o todo dos indivíduos que ali habitam, sendo qualificada como o único ou principal referencial a partir do qual atribuímos valor, como se, pela pertença a um local, ocorresse automaticamente a identificação.

É diante dessa atmosfera teórica que se lança o tema deste artigo: ética, justiça e educação sob o enfoque da alteridade. E nos perguntamos sobre os sentidos e desafios que tal temática gera para a educação e seus processos formativos, uma vez que a sala de aula e os diversos ambientes onde somos postos em experiências formativas constituem momentos e espaços privilegiados de encontro entre diferentes, no desafio de um mundo comum. Sinalizou-se, anteriormente, que a alteridade nos desafia em termos teóricos e práticos. Pois bem, os desafios práticos são compreendidos como desafios éticos. E apresentar alguns desses desafios é o que pretendemos com este texto, ao mesmo tempo que o aspecto teórico vem como fundamento para o modo de comportamento ou ação orientado pelo princípio alteridade. Partindo do conceito de proximidade e responsabilidade, procura-se apontar algumas soluções ao problema da presença-ausente, que surge ao nos sentirmos indiferentes, ao substituirmos o outro pelo seu perfil virtual, ao tentarmos fazer do outro alguém semelhante a nós, ou, de modo ainda mais limite, ao não aceitarmos a perturbadora, mas inevitável, presença do outro. É nesse contexto que encontra sentido o conceito de alteridade, enquanto princípio ético, como atitude diante deste que se constitui como identidade própria.

É preciso compreender algumas caraterísticas disso que se denomina atitude de alteridade, e este texto assume, também, tal desafio. A base teórica é, ainda, uma proposta de diálogo a partir das teorias de Amartya Sen e Emmanuel Levinas, que ocorre, principalmente, por meio dos conceitos de justiça, identidade e relações interpessoais. A abordagem sobre o princípio alteridade é desenvolvida em três momentos, os quais compõem a estrutura deste texto: a) o princípio alteridade considerado a partir do conceito de justiça, o que se dá sob as características de incomparabilidade, identidade dinâmica e terceiro incluído, remetendo, assim, à origem da justiça diante da presença do outro; b) a efetivação da justiça concebida a partir do senso de proximidade e responsabilidade e, aqui, a alteridade é posta como princípio e característica da relação interpessoal inicial; c) e, finalizando este texto, são pontuados alguns sentidos e desafios para a educação.

JUSTIÇA E PRESENÇA DO OUTRO: A COLOCAÇÃO DO PRINCÍPIO ALTERIDADE

No texto Violência do rosto, é indicado o problema da justiça transformada ou confundida com o “cálculo meramente político”2 2 Algumas reflexões sobre o cálculo político aparecerão no decorrer deste artigo. (LEVINAS, 2014LEVINAS, Emmanuel. Violência do rosto. Tradução de Fernando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2014., p. 29). Isso não se torna problemático somente no campo conceitual, mas, principalmente, no campo das ações. A justiça, quando transformada em cálculo político, incorpora a lógica ou o sentido de aplicabilidade de doutrinas, de códigos ou normas institucionais, cujas preocupações estatísticas são postas como critério de eficácia, mas que, tanto no imediato quanto no médio e longo prazos, não repercutem necessariamente em mudança comportamental consciente e eficaz e em consequentes realizações justas. Castor Bartolomé Ruiz (2016RUIZ, Castor Bartolomé. Alteridade humana e potência do não para a violência - um diálogo com Emmanuel Levinas. Síntese: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 43, n. 136. p. 239-258, maio/ago. 2016. Disponível em: <Disponível em: http://file:///C:/Users/asus/Downloads/3558-11974-1-SM%20(2).pdf >. Acesso em: 28 ago. 2017.
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, p. 246), ao se referir à lógica utilitarista, a qual se aproxima da lógica ou sentido do cálculo político, denuncia a qualificação que ocorre da “vida humana em número, sua existência é valorada pelo rendimento e avaliada pela produtividade”. Essa lógica ou sentido é, também, apontada por Hans-Georg Flickinger (2015FLICKINGER, Hans-Georg. À contramão das atuais correntes pedagógicas. In: FLICKINGER, Hans-Georg; LAGO, Clenio; FARINON, Mauricio João. Articulações entre esclarecimento e educação. Campinas: Mercado de Letras , 2015. p. 133-158.), em seu texto A contramão das atuais correntes pedagógicas, agora com os termos juridificação dos conflitos e juridificação do espaço pedagógico. O que encontramos em Flickinger é o recurso à aplicação de uma norma de modo irrefletido e sem passar pela mudança ética que caracterizaria uma ação justa. O autor cita, como exemplo, que os conflitos acabam por não serem resolvidos pelo diálogo, o que remeteria para uma relação de alteridade, mas administrados pelo âmbito institucional próprio da hierarquia e da lei. Cabe questionarmos: qual conteúdo deve caracterizar as obrigações que assumimos uns com os outros a fim de constituirmos relações justas? De onde surge a necessidade de busca pela justiça? A primeira questão é própria da segunda seção deste artigo; assim, a segunda questão nos conduz nesta primeira parte, encontrando em Levinas e Sen os principais referenciais teóricos. No que se refere às duas questões, ambos os autores se aproximam, estabelecendo as discussões sobre a justiça no campo da prática, ou seja, concebendo-a como uma demanda diante do outro, como fundamento ético necessário às realizações que são desencadeadas no instante em que o eu se depara com o outro e com tantos outros.3 3 Alusão ao texto de Sílvio Galo, intitulado Eu, o outro e tantos outros: educação, alteridade e filosofia da diferença. Disponível em: <http:// gajop.org.br/justicacidada/ wp-content/uploads/Euo- outro-e-tantos-outros- S%C3%ADlvio-Gallo.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2017. Podem ser considerados três critérios como estando na origem da justiça ou na origem da necessidade da busca pela justiça: a incomparabilidade, a identidade dinâmica e a presença do terceiro. Embora em íntima relação, os três critérios contêm elementos próprios e que merecem ser debatidos em suas singularidades.

A incomparabilidade funda-se em uma relação de não equivalência e não comensurabilidade, desautorizando que um único e solitário critério se constitua como elemento uniformizador. Um problema a ser enfrentado quando se discute a justiça reside na “necessidade de comparar os incomparáveis, de conhecer os homens; daí seu aparecer como formas plásticas de figuras visíveis e, de certo modo, ‘des-figuradas’” (LEVINAS, 2014LEVINAS, Emmanuel. Violência do rosto. Tradução de Fernando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2014., p. 28). A arte parece constituir um âmbito de denúncia a tal desfiguração e às formas plásticas que ofuscam ou anulam a identidade própria do eu. E faz isso assumindo o desfigurado, o não harmônico, o dissonante, o sem forma definida. Encontramos isso, por exemplo, em Kafka, com a angústia diante do mundo e suas instituições que administram e desfiguram o humano e suas relações; também em Picasso, na fuga da representação ou reprodução da aparência imediata, buscando expressar a oculta exatidão da vida e do humano - a arte vem como provocadora de pensamento, convite à interpretação, desafio à razão. Não se quer, com essas observações, reduzir tais personagens do mundo das artes e suas obras a apenas esse aspecto interpretativo. A intenção foi ilustrar como a arte pode estar comprometida com a denúncia da desfiguração, da desarmonia da vida e do ser humano em meio àquilo que se denomina desenvolvimento.4 4 Sobre isso, fundamental a leitura de Adorno (2008). Sobre o tema do desenvolvimento em sua relação com a humanidade, ver Farinon (2015).

Na ausência da justiça, ou seja, colocado sob o critério da comparabilidade, o indivíduo é retirado de sua singularidade e revestido de identidade plástica, elevada como critério único de atribuição de valor e, nesse sentido, surge desfigurado. Utiliza-se o termo identidade plástica no sentido de características que são atribuídas a alguém e que contradizem, ocultam ou se sobrepõem às características dadas pela sua individualidade e subjetividade. Como exemplo de identidade plástica, pode ser citada a consideração de criminoso ou perigoso a todo aquele que habita determinado local geográfico, ou de incompetente e improdutivo a indivíduo de determinada etnia. É como se uma máscara encobrisse toda possível riqueza constitutiva de alguém e se tornasse critério de identidade, somente pelo fato pertencer a um local ou grupo. A incomparabilidade levanta a questão sobre como, por exemplo, a inclusão pode fazer justiça às especificidades de cada um. Como evitar que se comparem os incomparáveis? Como fazer da diferença a condição do humano?

Algumas luzes podem ser lançadas a partir da colocação do princípio alteridade, segundo o qual me é dado o direito de me constituir como outro e indica a obrigação ética de respeito a tal direito. Somos colocados diante de uma relação respeitosa frente àquilo que me torna outro, direito de individualidade em que, por mais que habitemos um mundo comum, marcado por determinados princípios necessários e coletivamente construídos, isso não autoriza ou não significa elegermos padrões de mensurabilidade como o único ou superior critério de totalidade na avaliação ou consideração dos indivíduos. Em um diálogo, Marcia Tiburi e Nadja Hermann (2014TIBURI, Marcia; HERMANN, Nadja. Diálogo/Educação. São Paulo: Editora Senac, 2014, p. 74) afirmam: “Tenho cautela com a totalidade e a diferencio de mundo comum, que pode ser construído por nós, a partir da radical consciência de nossa finitude”. O mundo comum salvaguarda a dignidade de seres individuais que se põem em jogo em um horizonte de relações a partir do qual podemos, inclusive, conceber um sentido de sociedade. Na obra Autocriação e horizonte comum, o conceito de mundo comum é posto por Hermann (2010HERMANN, Nadja. Autocriação e horizonte comum: ensaios sobre educação ético-estética. Ijuí: Editora Unijuí, 2010.) como algo criado em um horizonte histórico, no qual os envolvidos compartilham determinadas orientações, ideais, valores, características de vida e de modo de pensar. O problema está na patologização da individualidade quando, sob a luz da identidade, nos tornamos indiferentes ao outro, colocando a nós mesmos como critério absoluto de validade ou perdendo a conexão com os espaços e tempos históricos nos quais vivemos. Diante de tal patologia o mundo comum é desfeito e, em consequência, a comunicação e a expressão se transformam em inquestionável afirmação de si, uma conversação a qual, por ser conversação, é sem conteúdo.

A violência da tentativa de estabelecer padrões ou unidades comuns de medida e avaliação fica evidente quando nos concentramos no sentido que a comensurabilidade possui. Amartya Sen (2011SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. 1. reimp. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 274) esclarece:

O que é exatamente a comensurabilidade? Dois objetos distintos podem ser considerados comensuráveis se são mensuráveis em unidades comuns (como dois copos de leite). A incomensurabilidade está presente quando várias dimensões de valor são irredutíveis umas às outras.

Na comensurabilidade, pelo fato de que “os resultados são todos reduzidos a uma dimensão, só precisamos verificar o quanto de ‘uma única coisa boa’, à qual cada valor é reduzido, cada respectiva opção fornece”. Como é possível, então, comensurar seres humanos, indivíduos singulares e complexos que não podem ser reduzidos a uma dimensão? A comensurabilidade só pode ser posta a partir do fechamento causado pela racionalidade do igual, ou seja, pela tentativa de fixação das chamadas identidades plásticas que anulam aquilo que nos diferencia A racionalidade do igual significa o oposto ao mundo comum, pois, e retomando a expressão de Hermann, enquanto este último é constituído intersubjetivamente, na consciência da finitude e em um horizonte histórico a partir do qual nos relacionamos, a primeira é a imposição de um padrão ou modelo que tende a não gerar o processo de formação. Paralelo à ideia de um mundo comum, o qual pode ser compreendido enquanto unidade humana, podemos nos reportar para Levinas (2011LEVINAS, Emmanuel. De otro modo que ser o más allá de la esencia. Tradução de Antonio Pintor Ramos. 5. ed. Salamanca: Sígueme, 2011. (Hemeneia, 26).), quando aponta para a dimensão ética a partir da qual ocorre o sentido de humanidade. Principalmente em De otro modo que ser, isso é posto pelo elemento ético da responsabilidade, que nos vincula e nos dá um sentido comum.5 5 Na próxima seção deste artigo, será retomado e aprofundado o tema da responsabilidade e de como ela se constitui em critério de unidade humana.

A comensurabilidade é o risco presente no ambiente jurídico, que pode reduzir o sentido de pessoa à sua adequação à lei; é o risco no interior do sistema de mercado, que pode reduzir o sentido de pessoa ao aspecto de produtividade e ao alcance de metas empresariais lucrativas; é o risco no interior do sistema de educação, que pode miniaturizar os indivíduos e a própria educação sob a ótica estatística de aprovação e do alcance das metas estandardizadas. Sobre o risco no interior do sistema de educação, vale destacar que a própria formação pode ser miniaturizada sob os desafios da instrumentalização necessária para adentrar com eficiência no mercado de trabalho. Nas relações interpessoais amplas que ocorrem nos mais diversos âmbitos vivenciais, a comensurabilidade se traduz em racionalidade do igual de modo ainda mais direto, pautada pelo critério de que, não fazendo parte da mesma comunidade, não seguindo os mesmos costumes, não possuindo as mesmas características ou condições físicas e mentais, não são tão gente como nós. É diante desses problemas que a busca ou a origem da justiça deve considerar o fator incomparabilidade e incomensurabilidade, pois a possibilidade de fazer justiça frente à singularidade do outro equivale a não cometer violência diante de tal singularidade. Amartya Sen denuncia esse problema próprio das comunidades, seja comunidades em termos de Estado ou em termos micro, de uma pequena localidade com suas famílias em direta e permanente inter-relação. Na obra Identidade e violência (SEN, 2015SEN, Amartya. Identidade e violência: a ilusão do destino. Tradução de José Antonio Arantes. São Paulo: Iluminuras, 2015.), é apresentada a importância do sentimento de identidade própria da vida em comunidade, que enriquece os laços internos, em sentido endo-comunitário, mas pode levar a uma liquidez nas relações exo-comunitária, em suas relações com outras características de vida. A compreensão de identidade é importante,

[...] mas tem de ser complementada pelo reconhecimento mais extenso de que um sentimento de identidade pode excluir resolutamente muitas pessoas, mesmo enquanto generosamente inclui outras. A comunidade bem integrada na qual os residentes instintivamente fazem coisas absolutamente maravilhosas para uns e outros com grande proximidade e solidariedade pode ser a mesma comunidade na qual tijolos são atirados pelas janelas de imigrantes que chegam à região vindos de outra parte. A adversidade da exclusão pode acabar de mãos dadas com as dádivas da inclusão. ( SEN, 2015 SEN, Amartya. Identidade e violência: a ilusão do destino. Tradução de José Antonio Arantes. São Paulo: Iluminuras, 2015. , p. 22)

A violência é abordada por Sen a partir de duas vias. Principalmente nas obras As pessoas em primeiro lugar (SEN, 2010SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. Tradução de Bernardo Ajzemberg e Carlos Eduardo Lins da Silva. São Paulo: Companhia das Letras , 2010.) e Identidade e violência (SEN, 2015NUSSBAUM, Marta. Sin fines de lucro: por qué la democracia necesita de las humanidades. Traducido por María Victoria Rodil. Buenos Aires: Katz, 2010.), a violência não é concebida apenas como atos que atentam diretamente contra a vida, como a violência física, agressões, criminalidade, ausência ou fragilidade dos direitos políticos. A violência ocorre, também, no instante em que identidades únicas são impostas, o que acaba por erigir critérios de mensurabilidade a partir da efetiva ou suposta adesão a tal identidade. É a partir do instante em que são estabelecidas “divisões rígidas em torno de uma linha única e endurecida de divisão impenetrável” (SEN, 2013, p. 43; 2015SEN, Amartya. Identidade e violência: a ilusão do destino. Tradução de José Antonio Arantes. São Paulo: Iluminuras, 2015., p. 11 e 33), que se invalida toda a singularidade incomparável entre indivíduos, abrindo caminho para a violência sectária.

Sem apontar para a inexistência ou fluidez da identidade, estamos diante da defesa da dinamicidade da identidade, a qual pode adquirir características ou elementos diferentes a partir de novas relações e novos espaços que passo a ocupar, os quais passam a me constituir e a partir dos quais passo a ser reconhecido. Não significa que somos simplesmente influenciáveis e maleáveis conforme o simples contexto; não significa ausência de convicções, o que conduziria para a fragilidade nas defesas ou nas críticas de tais convicções. Algo contradiz a tendência de estarmos fixos em uma única linha enrijecida de definição impenetrável. E tal contradição se estabelece a partir da necessidade de diálogo, o que pressupõe meu a priori enquanto parte de um contexto, mas, também, enquanto algo que, em mim e por mim, não está dado pela mensurabilidade contextual.

A afirmação de que eu posso ser conhecido a partir do meu contexto é verdadeira, mas, também, ilusória. Verdadeira pois, sim, “vivese num contexto e dele se recebe significação” (LEVINAS, 2004LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Tradução de Pergentino S. Pivatto. Petrópolis: Vozes, 2004., p. 15), mas falsa pois meu sentido pode transcender o contexto no qual estou inserido e, assim, não permanecer passivo diante das significações ou determinações provindas do contexto. Sou algo próprio que, na obra de Levinas, encontra o sentido de rosto, remetendo para algo que não se reduz ao resultado de uma mensurabilidade que me insere na matriz de um contexto que me define a priori. Sou singularidade, aquele que possui a possibilidade de transcender a lógica contextual, alguém que possui a possibilidade de não se enquadrar na definição de mais do mesmo ou enquanto simples

[...] personagem num contexto. Normalmente somos “personagem” [...] E toda a significação, no sentido habitual do termo, é relativo a um contexto: o sentido de alguma coisa está na sua relação com outra coisa ( LEVINAS, 1982 LEVINAS, Emmanuel. Ética e infinito (diálogos com Philippe Nemo). Tradução de João Gama. Revisão de Artur Morão. Lisboa: Edições 70 , 1982. (Biblioteca de Filosofia Contemporânea: 05). , p. 78),

daí o problema da identidade plástica, da mensurabilidade, da racionalidade do igual e da representação versus novidade. O estabelecimento do critério contextual como prioritário é um problema muito presente, por exemplo, nas escolas, o que não significa a defesa em, simplesmente, retirar o indivíduo do contexto, mas tal estabelecimento permite as classificações como rebelde, não ajustado, indisciplinado, a todo aquele que não age como personagem de um a priori estabelecedor de sentido e validade.

As discussões levinasianas sobre paternidade/maternidade e filiação ajudam a compreender melhor essa problemática. Levinas (1982LEVINAS, Emmanuel. Ética e infinito (diálogos com Philippe Nemo). Tradução de João Gama. Revisão de Artur Morão. Lisboa: Edições 70 , 1982. (Biblioteca de Filosofia Contemporânea: 05)., p. 62) afirma que, na fecundidade, os filhos ultrapassam as possibilidades inscritas na natureza dos pais. Atentemos ao conceito de fecundidade

[...] o filho não é simplesmente obra minha, como um poema ou como um objeto fabricado; nunca é minha propriedade. Nem as categorias do poder nem as do ter podem indicar a relação com o filho. Nem a noção de causa, nem a noção de propriedade permitem compreender o facto da fecundidade. ( LEVINAS, 1982 LEVINAS, Emmanuel. Ética e infinito (diálogos com Philippe Nemo). Tradução de João Gama. Revisão de Artur Morão. Lisboa: Edições 70 , 1982. (Biblioteca de Filosofia Contemporânea: 05). , p. 63)

A fecundidade não é reduzida ao sentido de fertilidade, mas como ato de constituir-se, formar-se como algo próprio. A fertilidade do pai e a da mãe abrem espaço para a fecundidade, e a partir de então cessa o controle sobre a constituição própria de cada indivíduo, ocorrendo um limite à representatividade, pois enquanto ser fecundo não é possível a relação de causa e efeito, como que um filho ser totalmente efeito dos pais ou uma pessoa ser totalmente efeito contextual. Na fecundidade abre-se o espaço para a novidade, o inesperado, a vida em sua manifestação própria.

Por isso, aquele que vem está carregado de surpresas, não como resposta à minha reivindicação, mas como outrem, um possível outro modo de ser. Obviamente que isso pode abrir espaço para a relativização, para o aceitar o diferente sem mais. Mas não é nesses termos que pomos tais reflexões! Por isso a insistência na dinâmica entre contexto e novidade, na percepção de que, com nosso nascimento, algo novo, algo inédito, pode se originar - e para além das características biológicas; mas na mesma percepção de que não podemos negar a história já feita, o que nos remete para uma dialética temporal, entre passado, presente e futuro. Eliot (1943ELIOT, Thomas Stearns. The four quartets. San Diego, CA: Harcourt, 1943. Disponível em: <Disponível em: http://www.coldbacon.com/poems/fq.html >. Acesso em: 12 set. 2017.
http://www.coldbacon.com/poems/fq.html...
), na abertura do primeiro de seus Quatro quartetos, nos dá a seguinte caracterização da dialética temporal:

Time present and time past

Are both perhaps present in time future,

And time future contained in time past

If all time is eternally present

All time is unredeemable.

What might have been is an abstraction

Remaining a perpetual possibility

Only in a world of speculation.

Temos a ideia de, no tempo futuro, estar o tempo passado e o tempo presente, assim como o futuro estar contido no passado; do mesmo modo, tem-se a crítica ao presente permanente, o que ocasionaria um tempo impassível de mudança ou enquanto permanência de uma eterna possibilidade, própria de um mundo de especulações. A dialética temporal, nos traços que já estou apresentando, é condição para a percepção de que não estamos, ora voltados para o passado, ora para o presente, ora para o futuro, mas, sim, em uma unidade de sentido que constitui o desenvolvimento histórico. Parece que é exatamente essa falsa percepção o ponto falho na formação, tornando o passado algo que não está mais disponível, tornando o presente um eterno descontínuo, tornando o futuro algo incerto e, portanto, também não disponível. A expressão empírica - ou expressão verbal - mais forte é ditada pelo imperativo: viva um dia de cada vez/ viva o momento.

Por último, cabe gerarmos debate a partir do terceiro critério posto anteriormente, no que se refere à origem ou busca da justiça. Nas próximas linhas, a justiça será apresentada como um modo de agir resultante da presença do terceiro. Importante recolocarmos a concepção adotada neste texto, a partir da qual a justiça é compreendida no horizonte das realizações, daquilo que somos capazes de fazer frente ao outro, frente ao mundo. Desse modo, a justiça centrada nas realizações somente ocorre no momento em que algo equilibra os privilégios postos a um eu ou a um segundo que está comigo.6 6 Os privilégios postos ao eu podem ser compreendidos como a consciência e o ato de um dever centrado sobre si mesmo (devo tudo e somente a mim) ou, ainda, ao fato de que o outro deve tudo a mim. Pode ser posto enquanto egoísmo ou egocentrismo A própria presença do segundo tem a tarefa de equilibrar os privilégios postos ao eu, contudo, é com o terceiro que nosso dever encontra a medida da justiça.

Com a obra Ética e infinito, Levinas (1982LEVINAS, Emmanuel. Ética e infinito (diálogos com Philippe Nemo). Tradução de João Gama. Revisão de Artur Morão. Lisboa: Edições 70 , 1982. (Biblioteca de Filosofia Contemporânea: 05).) apresenta essa concepção do terceiro incluído como aquilo que estabelece a medida justa do dever de um para com o outro, na dinâmica entre institucionalismo e realizações. Por mais que as expressões institucionalismo e realizações remetam para a obra de Sen e sua perspectiva multicultural, com Levinas e a teoria da alteridade essa tematização indica o primordial da relação interpessoal. É na relação interpessoal que as realizações são visualizadas e, a partir da presença do outro e sua demanda, é que se estabelece a justiça:

A relação interpessoal que estabeleço com outrem, também a devo estabelecer com os outros homens; logo, há necessidade de moderar este privilégio de outrem; daí a justiça. Esta, exercida pelas instituições, que são inevitáveis, deve ser sempre controlada pela relação interpessoal inicial [...]. Como é possível fazer justiça? Respondo que é o facto da multiplicidade dos homens e a presença do terceiro ao lado de outrem que condicionam as leis e instauram a justiça. Se estou sozinho perante o outro, devo-lhe tudo; mas há o terceiro. Saberei eu o que é o meu próximo relativamente ao terceiro. ( LEVINAS, 1982 LEVINAS, Emmanuel. Ética e infinito (diálogos com Philippe Nemo). Tradução de João Gama. Revisão de Artur Morão. Lisboa: Edições 70 , 1982. (Biblioteca de Filosofia Contemporânea: 05). , p. 81)

Em termos de origem da justiça, temos a tensão entre o institucionalismo com seu cálculo político e a responsabilidade própria da relação interpessoal inicial. Esta é compreendida como as realizações que surgem de modo imediato no instante em que outrem ou um terceiro entra em relação comigo. Essa relação interpessoal inicial é um outro modo de ação que pode ser colocado não como obediência ingênua àquilo determinado pela instituição na qual estou inserido ou ao contexto no qual pertenço, mas sim com a ênfase naquilo que não se reduz ao institucional, ou seja, nos comportamentos reais das pessoas. Não se pode negar a importância instrumental das instituições na garantia da justiça, seja enquanto espaços de aproximação e debate onde as diferentes vozes são ouvidas, seja como instrumentos a partir dos quais examinamos valores, seja como espaços de conquista, defesa e garantia de direitos.

Contudo, a relação interpessoal inicial nos coloca diante de uma demanda anterior a toda instituição. Demanda essa que se estabelece em termos de preocupação ética e humana, critério para o estabelecimento adequado das instituições e critério necessário na relação inicial entre os seres humanos. Contudo, o institucionalismo pode gerar uma “inclusão injusta”, quando as realizações ocorrem a partir de “termos desfavoráveis de inclusão e de condições adversas de participação” (SEN, 2010SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. Tradução de Bernardo Ajzemberg e Carlos Eduardo Lins da Silva. São Paulo: Companhia das Letras , 2010., p. 35). É o caso, por exemplo, da inclusão escolar de portadores de deficiência, a qual pode estar caracterizada pela ausência da demanda ética e humana própria da relação interpessoal inicial, o que gera a simples obediência institucional em termos de juridificação e/ou indiferença.

Com a presença do terceiro, nessa multiplicidade humana, somos levados para mais além em termos éticos, para o desafio da alteridade, não apenas enquanto moderação de privilégios, mas enquanto uma ação da responsabilidade propriamente dita, o que instaura a característica de sociedade, ou de senso exo-comunitário. A relação entre eu e outrem é próprio do que se estabelece de modo endo-comunitário, entre iguais que coabitam o mesmo limite da comunidade. Essa abertura para o estranho, para a presença de um terceiro que vem e reivindica seu espaço, a partir de sua fecundidade e, também, de suas características próprias, remete para a efetivação da justiça: um senso de proximidade enquanto responsabilidade, para além dos regionalismos, em um senso de comunidade humana,7 7 A comunidade humana é concebida, aqui, em derivação do sentido anteriormente desenvolvido de mundo comum, em oposição à racionalidade do igual e ao senso de totalidade. Nas páginas a seguir, a partir dos conceitos de proximidade e responsabilidade, será considerado o sentido da comunidade ou unidade humana. ou, ainda mais amplamente, de comunidade de vida.

PROXIMIDADE E RESPONSABILIDADE: A EFETIVAÇÃO DA JUSTIÇA

Recoloquemos a indagação central desta seção: que conteúdo deve estar presente nas obrigações que assumimos uns com os outros a fim de constituirmos relações justas? Defendem-se, aqui, a proximidade e a responsabilidade como o horizonte a partir do qual podemos conceber o humano, ao mesmo tempo que constituem o conteúdo das obrigações de um para com o outro em termos de realizações e relações justas. Um ponto que ainda merece ser destacado nas relações interpessoais é o problema de as transformarmos em relações comerciais. Com traços diferentes de conteúdo, essa expressão surge tanto em Levinas (2014LEVINAS, Emmanuel. Violência do rosto. Tradução de Fernando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2014.), quanto em uma obra organizada por Nussbaum e Sen (2009NUSSBAUM, Martha; SEN, Amartya (Ed.). The quality of life. Oxford: Oxford University Press, 2009.) denominada The quality of life. No primeiro, a relação comercial surge quando as relações interpessoais assumem o critério de reciprocidade e, nesse sentido, somente ajo esperando um retorno equivalente ou superior em termos de benefícios. O que se exclui, na relação comercial caracterizada por Levinas (2014LEVINAS, Emmanuel. Violência do rosto. Tradução de Fernando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2014., p. 10), é a generosidade e a gratuidade. No segundo, as relações comerciais são estabelecidas quando não somos capacitados a imaginar, a querer saber, a sentir emoções como a gratidão (NUSSBAUM; SEN, 2009NUSSBAUM, Martha; SEN, Amartya (Ed.). The quality of life. Oxford: Oxford University Press, 2009., p. 1), a qual ocorre quando conseguirmos colocar a gratuidade como critério de ação e avaliação. Na ausência de tais capacidades, a vida e o desenvolvimento perdem suas características complexas, passando a ser considerados somente em termos de obtenção de lucro econômico. Em Sen (2010SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., 2011SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. 1. reimp. São Paulo: Companhia das Letras , 2011.) e Sen e Kliksberg (2010SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. Tradução de Bernardo Ajzemberg e Carlos Eduardo Lins da Silva. São Paulo: Companhia das Letras , 2010.), é levantada a dúvida sobre a possibilidade de transformar renda em bem viver, em qualidade de vida. Nesse sentido é que as relações humanas complexas não se resumem à demanda comercial, mas envolvem, além das capacidades anteriormente citadas, também as oportunidades e liberdades de escolha e decisão.

Como resposta ao problema das relações comerciais, a demanda por relações éticas e humanas exige uma reconstrução de sentido sobre a aproximação e a responsabilidade. Os temas da alteridade em Levinas e do multiculturalismo em Sen se constituem a partir desses conceitos e, nas linhas que se seguem, apresentaremos alguns traços dessas teorias. Quem, exatamente, está em proximidade comigo? A resposta pode ser iniciada a partir de uma negativa:

La proximidad no se resuelve en la conciencia que un ser adquiere de otro ser al que estimaría próximo en tanto que éste se encontraría a su vista o a su alcance y en tanto que le sería posible captarlo, tenerlo o entretenerse con él en la reciprocidad del apretón de manos, de la caricia, de la lucha, de la colaboración, del comercio o de la conversación. ( LEVINAS, 2011 LEVINAS, Emmanuel. De otro modo que ser o más allá de la esencia. Tradução de Antonio Pintor Ramos. 5. ed. Salamanca: Sígueme, 2011. (Hemeneia, 26). , p. 143)

Contrariando a física, a proximidade ocorre não a partir da diminuição do intervalo entre dois pontos, mas é estabelecida pelo compromisso, pela responsabilidade. Em De otro modo que ser o más allá de la esencia, a proximidade “es donde se teje todo compromiso” (LEVINAS, 2011LEVINAS, Emmanuel. De otro modo que ser o más allá de la esencia. Tradução de Antonio Pintor Ramos. 5. ed. Salamanca: Sígueme, 2011. (Hemeneia, 26)., p. 147), ou seja, a proximidade se define a partir do compromisso e da responsabilidade por outrem. Em Ética e infinito, essa concepção é reafirmada de modo muito claro:

A proximidade de outrem está apresentada [...] como o facto de que outrem não está simplesmente próximo de mim no espaço, ou próximo como um parente, mas que se aproxima essencialmente de mim enquanto me sinto - enquanto sou - responsável por ele. É uma estrutura intencional que, de modo algum, se assemelha à relação intencional que nos liga, no conhecimento, ao objeto [...]. A proximidade não se reduz a esta intencionalidade; em particular não se reduz ao fato de eu conhecer o outro. ( LEVINAS, 1982 LEVINAS, Emmanuel. Ética e infinito (diálogos com Philippe Nemo). Tradução de João Gama. Revisão de Artur Morão. Lisboa: Edições 70 , 1982. (Biblioteca de Filosofia Contemporânea: 05). , p. 88-89)

Algo nos choca! O fato de estar imediatamente ao lado de alguém, e talvez permanentemente, não garante proximidade. As relações podem ser orientadas pelo critério da reciprocidade, da equivalência, da mensurabilidade, da indiferença, o que torna as relações comerciais, devido à ausência de compromissos éticos e humanos entre os envolvidos. Com isso não se retira a importância da corporeidade, do contato imediato, da percepção, mas abre o debate sobre o limite de seu significado ético em termos de compromisso frente ao outro, levando a refletir o quão distante ou indiferente podemos ser, mesmo em intervalo de poucos centímetros. Por outro lado, a dimensão sensível que nos faz perceber o outro e gerar diminuição de intervalo físico é qualificada a partir do elemento ético da responsabilidade.

A proximidade se define pela responsabilidade; somente sou próximo quando sinto que tenho e ajo com responsabilidade por alguém. Essa perspectiva orientada por Levinas indaga, também, sobre a possibilidade de existir justiça entre os indivíduos quando o critério de relação é o cálculo político. Ao mesmo tempo nos aponta uma concepção de ser humano ou de identidade humana. Se, por um lado, nossa identidade não se define a partir de uma única abordagem, de uma única posição ou de linhas de divisões, por outro, tem-se a concepção de que o humano encontra afirmada sua identidade sob o critério da responsabilidade - o eu humano como um eu responsável:

A minha responsabilidade não cessa, ninguém pode substituir-me. De facto, trata-se de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da responsabilidade, isto é, a partir da posição ou da deposição do eu soberano na consciência de si, deposição que é, precisamente, a sua responsabilidade por outrem. A responsabilidade é o que exclusivamente me incumbe e que, humanamente, não posso recusar. Este encargo é uma suprema dignidade do único. Eu, não intercambiável, sou eu apenas na medida em que sou responsável. (LEVINAS, 1982LEVINAS, Emmanuel. Ética e infinito (diálogos com Philippe Nemo). Tradução de João Gama. Revisão de Artur Morão. Lisboa: Edições 70 , 1982. (Biblioteca de Filosofia Contemporânea: 05)., p. 92-93, grifo nosso)

O nosso dever em relação ao outro é posto a partir da concepção de responsabilidade, sendo possível afirmar que as relações éticas e humanas são constituídas sob o signo do dever próprio da responsabilidade. O ato de fazer justiça à singularidade de cada indivíduo pressupõe esse movimento em sua direção, não orientado pela condição de soberania ou como consciência doadora de sentido. A demanda está exatamente em uma espécie de deposição do eu, no sentido de não estar em posição privilegiada, mas ser conduzido de modo desinteressado. Em De otro modo que ser o más allá de la esencia, Levinas defende tal deposição apontando seu problema contrário, a tentativa de transformar não só o humano, mas toda a natureza, em reflexo ou resultado de um eu soberano:

El espacio y la naturaleza no pueden ser planteados en una impasibilidade geométrica y física iniciales para recibir de la presencia del hombre, de sus deseos y pasiones un barniz cultural que los tornaría significantes y parlantes. Si al comienzo existiesen esta geometría y esta física, los atributos significantes jamás tendrían otra cosa que una existencia subjetiva en la cabeza de los hombres, en las costumbres y los escritos de los pueblos. Estaríamos ante un narcisismo que no encontraría en el granito de las cosas nada más que una superficie que remitiría a los hombres ecos y reflejos de su humanidad. ( LEVINAS, 2011 LEVINAS, Emmanuel. De otro modo que ser o más allá de la esencia. Tradução de Antonio Pintor Ramos. 5. ed. Salamanca: Sígueme, 2011. (Hemeneia, 26). , p. 141)

Essa deposição não é abandono ou esquecimento de si mesmo, mas destituição da soberania de um eu que se ergue imperioso acima de todos e coloca a si mesmo, seus desejos, suas necessidades, sua posição hierárquica, como elemento inicial de relações, como critério de mensurabilidade e avaliação - isso intensifica a compreensão anterior de que, na justiça, se limitam ou se anulam os privilégios postos no eu. Tal concepção indica um poder enquanto obrigação, ser capaz de algo, próprio da concepção seniana de capacidade, a qual pode ser compreendida, de modo resumido, como o poder de fazer algo.8 8 Sobre esse tema ver Farinon (2016, 2017) O que me obriga é a responsabilidade inicial de, se eu tiver condições de fazer algo em benefício de alguém, então essa razão deveria me obrigar à ação (cf. SEN, 2011SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. 1. reimp. São Paulo: Companhia das Letras , 2011.). Tal é a responsabilidade assimétrica, uma obrigação independente da reciprocidade ou equivalência, pois sabe-se que o outro poderá não ser capaz de retribuir.

É a colocação do humano na perspectiva da alteridade, da possibilidade de se constituir enquanto outro, habitando espaços comuns, mas na amplitude de suas identidades, o que demanda um senso forte de proximidade. Precisamos nos sentir responsáveis uns pelos outros, e aqui reside a relação interpessoal inicial, no sentido ético e humano. Com isso não estamos defendendo a destituição dos esforços conjuntos, no sentido de podermos cooperar uns com os outros. Sem dúvida, situações de injustiça são mais bem resolvidas a partir do congregar de esforços. Por isso, conceber a identidade humana e nossos vínculos a partir da responsabilidade coloca cada um no compromisso de avaliar, escolher, decidir e agir orientado por critérios que vão além dos interesses postos pelas relações comerciais ou pelas posições locais.

SENTIDOS E DESAFIOS EDUCACIONAIS

Dizer que é possível uma relação orientada pelo princípio alteridade, conforme aqui defendido, constitui uma utopia extremamente ambiciosa. A dúvida em sermos eticamente capazes de, por exemplo e em termos de razoabilidade, considerarmos perspectivas oriundas de outros lugares, em uma abertura que elimina o reducionismo a uma única linha rígida de avaliação, levanta a questão em torno do caminho a ser construído e percorrido em termos formativos, a fim de que a utopia possa ser mais do que uma crítica ao estado atual, permitindo condições para formarmos indivíduos que levem a realizações plausíveis.

Isso encontra ressonância no desenvolvimento de capacidades em Amartya Sen. Para o autor de A ideia de justiça, capacidade é o poder de fazer algo que temos razão para valorizar, se relacionando diretamente com as “oportunidades ‘abrangentes’, e não apenas se concentrando no que acontece na ‘culminação’” (SEN, 2011SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. 1. reimp. São Paulo: Companhia das Letras , 2011., p. 266). A fim de ilustrar, tomemos como exemplo, e em termos de Brasil, a meta 4 do atual Plano Nacional de Educação,9 9 O que se propõe, aqui, não é uma crítica à meta 4, a qual tem extremo valor e necessidade urgente, mas, tão somente, fazer uso de seu importante conteúdo para mostrar o problema das possíveis realizações sob o critério do cálculo político, ou seja, somente como cumprimento da norma, em sentido de juridificação, sem o reconhecimento do valor ou da condição humana de cada indivíduo, ou, ainda, sem o reconhecimento do critério de responsabilidade posto como condição para a comunidade humana. a qual apresenta o desafio de universalização do acesso à educação básica “para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação” (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino. Planejando a próxima década: conhecendo as 20 metas do Plano Nacional de Educação. Brasília: MEC/Sase, 2014. Disponível em: <Disponível em: http://pne.mec.gov.br/images/pdf/pne_conhecendo_20_metas.pdf >. Acesso em: 15 fev. 2016.
http://pne.mec.gov.br/images/pdf/pne_con...
, p. 11). Em termos culminantes, uma vez atingido tal resultado, a meta estaria realizada, contudo, a abordagem das capacidades indica a necessidade de uma pergunta pelo abrangente: tal inclusão é algo justo ou tal culminação não estaria significando o risco de estarmos diante de uma “inclusão injusta”, que ocorre quando as condições da inclusão não estão coerentes com o senso de fazer justiça à singularidade do outro, gerando situações de indiferença, tolerância descomprometida, simples cumprimento legal em um cálculo político que pode significar o outro lado da face da exclusão?

A inclusão somente será uma expressão do princípio alteridade quando permitir a possibilidade de constituir experiências formativas no encontro com os diferentes. Ou seja, quando for possível, a partir das relações, gerar conteúdo permanente e capaz de modificar os envolvidos em um sentido ético de respeito por aquele que se constitui como diferente. Isso exige concebermos a educação não como escolarização, no sentido de repasse de conteúdos estruturados em uma grade curricular ou, em agravante, conceber a ética somente como uma disciplina (por mais que defendamos a importância da disciplina de Ética). A educação é posta aqui como experiência que acontece no encontro entre pessoas ao compartilharem suas existências e constituírem sentido por estarem em encontro. Recorrendo à Nadja Hermann (2010HERMANN, Nadja. Autocriação e horizonte comum: ensaios sobre educação ético-estética. Ijuí: Editora Unijuí, 2010.), a educação tem conexão direta com a ética, sendo responsável por desenvolver um modo de vida ou a arte de viver, cuja orientação não reside somente na base da razão teórico-epistemológica, mas com base na razão sensível-corpórea.

O resgate da chamada razão sensível ou razão corpórea encontra um sentido profundo no debate aqui proposto. Hermann (2010HERMANN, Nadja. Autocriação e horizonte comum: ensaios sobre educação ético-estética. Ijuí: Editora Unijuí, 2010., p. 61) defende que as “forças da imaginação, da sensibilidade e das emoções teriam maior efetividade para o agir do que a formulação de princípios abstratos, do que qualquer fundamentação teórica da moral”. Para além da construção dos princípios teóricos para o agir, as forças da imaginação, da sensibilidade e das emoções demandam uma intensa orientação ética a partir dos canais da sensibilidade. O adoecimento do contato compromete uma característica básica dos processos educativos, a dimensão do encontro, no qual entram em jogo aquelas forças citadas por Hermann, mediante as quais seria possível admitir características diferentes nas relações interpessoais. A dimensão sensível-corpórea pode ter relação com o contato físico, mas não se resume a isso, significando a capacidade de gerar sentido ou consequências não fixados aos critérios puramente ditados pela razão teórica.

Na redução da educação a um fenômeno marcado por características comerciais, a ausência desses elementos pode encontrar legitimidade, mas na defesa da educação, conforme exposto anteriormente, o adoecimento do contato revela nada menos que o fracasso da formação. Como permitir experiências de proximidade, de responsabilidade, quando não conseguirmos estabelecer contato sensível? Poderemos obter excelentes máquinas utilitárias aptas ao cumprimento de suas funções na geração de renda e no desenvolvimento científico-tecnológico, mas poderemos estar distantes de seres humanos completos e complexos, concebidos a partir das

[...] facultades del pensamiento y la imaginación, que nos hacen humanos y que fundan nuestras relaciones como relaciones humanas complejas en lugar de meros vínculos de manipulación y utilización. ( NUSSBAUM, 2010 NUSSBAUM, Marta. Sin fines de lucro: por qué la democracia necesita de las humanidades. Traducido por María Victoria Rodil. Buenos Aires: Katz, 2010. , p. 25)

A educação paga um tributo muito elevado ao modelo de relações comerciais denunciado por Sen, à transformação do humano em máquinas utilitárias a partir da concepção de Nussbaum (2010SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. Tradução de Bernardo Ajzemberg e Carlos Eduardo Lins da Silva. São Paulo: Companhia das Letras , 2010., p. 20) e ao cálculo político denunciado por Levinas como problema da justiça. Isso repercute na educação quando nos deparamos com a ênfase estatística em dissonância com a ênfase formativa. E a cultura mercadológica na qual as instituições de ensino estão envolvidas agrava ainda mais a transformação da educação em processos de relações comerciais, cujo objetivo é reduzir o humano a máquinas utilitárias incapazes de imaginação, criatividade e rigorosidade no pensamento crítico. O adoecimento do contato, as relações comerciais, a justiça como cálculo político, tudo isso acaba por tornar a presença do outro a expressão de uma inclusão injusta, sendo extremamente negativa para a educação, pois o espaço da alteridade se transforma em espaço da simples diferença e/ou indiferença. Com isso se desfaz a possibilidade do mundo comum, entrando em jogo os critérios de totalidade e universalização. A consequência pode ser vista na tentativa escolar de padronização de comportamentos sob critérios impostos (o diferente me causa medo), nas avaliações fixadas em critérios culminantes em detrimento dos abrangentes (colocação da nota como critério final e absoluto para definir méritos), a comparabilidade estabelecida pelos professores em relação aos estudantes a partir de critérios de mensurabilidade que reduzem a riqueza constitutiva individual ao padrão imposto como válido (somos incapazes de tratar os diferentes como diferentes).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O princípio alteridade foi posto como o grande desafio neste texto, a partir do qual estabelecemos um diálogo entre Sen e Levinas com o objetivo de fundamentar e justificar a alteridade como sendo, ela mesma, um princípio ético, caracterizado pela justiça que se realiza a partir dos critérios de incomensurabilidade, identidade dinâmica, terceiro incluído, proximidade e responsabilidade. A partir desse objetivo e da caracterização do princípio alteridade desenvolvida no texto, apontamos algumas consequências que mereceriam estar na pauta das reflexões sobre educação e formação. Por mais que tenhamos consciência de que a educação não é tarefa exclusiva das instituições de ensino, lançamos um olhar mais direcionado a elas.

Merece especial destaque o desafio ético-educacional de garantir a fecundidade: que as escolas, os professores, os conteúdos, os processos educativos, as relações interpessoais sejam espaços férteis para a fecundação qualificada do ser humano. Isso não significa recusa do mundo preexistente e tampouco defesa do individualismo, mas encontra o sentido de que tal mundo não é absolutamente determinante, caso contrário a escolarização seria suficiente, pois bastaria a apropriação do que a tradição nos apresenta. Se defendemos a educação como formação em uma perspectiva ética e humana, é porque acreditamos que o mundo não está pronto e tampouco os indivíduos que nele vivem, os quais precisam assumir sua potência crítica, criativa e criadora ao levar adiante a tarefa de constituir-se como indivíduos e constituir o mundo comum.

A fecundidade provoca em termos de docência, pois rompe com a tendência de repetição irrefletida de práticas pedagógicas, com a tendência de padronização moral ou cultural à qual os estudantes são submetidos, com a tendência de inserir as disciplinas e seus conteúdos em uma arena de gladiadores em duelo uns contra os outros, com a tendência de transformar a capacidade linguística em conversação, no sentido de palavreado vazio de senso crítico e utópico, ou, ainda, na transformação da linguagem em doutrinação. Fecundidade docente implica um constante autocriar-se, autoformar-se, permitindo o surgimento de uma novidade constitutiva dentro do contexto de relações. Ao mesmo tempo, os professores devem representar fertilidade, enquanto possibilitadores de espaços que permitam a fecundidade dos alunos, em que eles possam fazer a experiência da autocriação, da autoformação, a partir do encontro ou da aproximação responsável consigo mesmo e com o diferente. Na colocação do critério fecundidade surge o movimento de individuação, mas, também, o movimento de mundo comum, pois individuação não significa critério de isolamento ou de sobreposição de valor. Talvez seja necessário intensificarmos a relação dialética entre individuação e mundo comum, e as instituições de ensino podem assumir responsabilidade formativa nessa tarefa.

A alteridade, enquanto princípio ético, aponta para a razoabilidade como base no uso da razão. Propomos duas alternativas de compreensão derivadas do conceito seniano de razoabilidade. Primeiro, ela permite que ocorra a interdisciplinaridade, pois provoca as disciplinas para uma abertura de perspectivas, em uma aproximação e diálogo que tendem a nos modificar (pois mantenho a especificidade por mais que elementos diferentes sejam aceitos e passem a nortear meu modo de pensar, avaliar e agir) em termos de conteúdos e capacidade de abordar problemas; ou, até mesmo, tendem a reconfigurar metodologias e processos desenvolvidos a fim de gerar ensino, aprendizagem, formação. A interdisciplinaridade provoca uma mudança razoada no modo como se concebe as disciplinas, seus conteúdos e suas funções nos processos formativos, rompendo com o reducionismo às perspectivas próprias, provindas dos locais próprios denominados disciplinas. Podemos defender a necessidade de disciplinas razoadas, abertas às perspectivas que venham de locais distintos. Segundo, ela permite desenvolver a boa argumentação, o que pode ser percebido quando uma sala de aula se torna espaço fértil para o diálogo fecundo, aquele que permite a ampliação das opiniões, a construção de sentidos e conhecimentos.

Oportunizar situações propícias ao intercâmbio de ideias, as quais permitem questionar concepções, valores tidos como certos e inabaláveis, e, também, ampliar as compreensões mediante a investigação e o debate produtivo constituem algumas condições para que seja possível desenvolver a capacidade de ver o mundo em perspectiva mais ampla, com critérios construídos de modo não arbitrário. A abordagem das capacidades em Sen indaga sobre o tipo de vida que podemos levar, ou o que podemos realizar pelo fato de estarmos inseridos em determinada instituição ou em determinada organização social. Mas as realizações que se esperam devem ser algo valorado, e para isso faz-se necessário dar lugar à razão a partir do debate e do contato com os diferentes. A característica de abertura linguística, dando espaço às diferentes vozes provindas de diferentes lugares, contribui para a tentativa de ver o mundo a partir do olhar do outro e formar uma valoração não arbitrária e subjetivista.

Finalizando, é indispensável modificarmos nosso modo de pensar as relações que se estabelecem no interior das instituições de ensino. E isso é abordado enquanto crítica à ideia de distanciamento, de não vínculos entre professor e aluno. Precisamos nos sentir e nos fazer próximos, assumirmos nosso compromisso diante do outro, nos fazer responsável por ele, independente da esperada reciprocidade, pois as ações verdadeiramente pedagógicas não são caracterizadas por relações comerciais e de reciprocidade - isso caracterizar-se-ia como ato de amor? Sobre isso precisaríamos aprofundar o debate, mas o fato certo é que isso lança um novo modo de pensar os processos educativos, o que provém da colocação do princípio alteridade.

REFERÊNCIAS

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  • TIBURI, Marcia; HERMANN, Nadja. Diálogo/Educação São Paulo: Editora Senac, 2014
  • 1
    Este texto é fruto de pesquisa com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, sob a Chamada MCTI/CNPq/MEC/Capes n. 22/2014, Ciências Humanas e Sociais. Foi apresentado, inicialmente e em uma primeira versão, na XI Reunião Científica Regional da Anped – Anped Sul 2016.
  • 2
    Algumas reflexões sobre o cálculo político aparecerão no decorrer deste artigo.
  • 3
    Alusão ao texto de Sílvio Galo, intitulado Eu, o outro e tantos outros: educação, alteridade e filosofia da diferença. Disponível em: <http:// gajop.org.br/justicacidada/ wp-content/uploads/Euo- outro-e-tantos-outros- S%C3%ADlvio-Gallo.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2017.
  • 4
    Sobre isso, fundamental a leitura de Adorno (2008). Sobre o tema do desenvolvimento em sua relação com a humanidade, ver Farinon (2015).
  • 5
    Na próxima seção deste artigo, será retomado e aprofundado o tema da responsabilidade e de como ela se constitui em critério de unidade humana.
  • 6
    Os privilégios postos ao eu podem ser compreendidos como a consciência e o ato de um dever centrado sobre si mesmo (devo tudo e somente a mim) ou, ainda, ao fato de que o outro deve tudo a mim. Pode ser posto enquanto egoísmo ou egocentrismo
  • 7
    A comunidade humana é concebida, aqui, em derivação do sentido anteriormente desenvolvido de mundo comum, em oposição à racionalidade do igual e ao senso de totalidade. Nas páginas a seguir, a partir dos conceitos de proximidade e responsabilidade, será considerado o sentido da comunidade ou unidade humana.
  • 8
    Sobre esse tema ver Farinon (2016, 2017)
  • 9
    O que se propõe, aqui, não é uma crítica à meta 4, a qual tem extremo valor e necessidade urgente, mas, tão somente, fazer uso de seu importante conteúdo para mostrar o problema das possíveis realizações sob o critério do cálculo político, ou seja, somente como cumprimento da norma, em sentido de juridificação, sem o reconhecimento do valor ou da condição humana de cada indivíduo, ou, ainda, sem o reconhecimento do critério de responsabilidade posto como condição para a comunidade humana.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2018

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2017
  • Aceito
    24 Nov 2017
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