Acessibilidade / Reportar erro

POR NARRATIVAS OUTRAS: EDUCAÇÃO E DESRACIALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA NEGRA NO BRASIL

Resumo

Neste artigo discutimos o processo histórico de construção de uma identidade nacional brasileira, que se fundamentou na racialização da experiência negra, algo ainda presente no processo formativo dos brasileiros. Apesar de todo o processo de desumanização sofrido, a população negra pode e deve ser retratada nos espaços educativos por meio de sua resistência e de suas lutas para escapar da “zona de não-ser” e do apagamento ontológico promovido na modernidade. Estruturamos o texto com base em três assuntos gerais, quais sejam: a) racismo, educação e a questão nacional no Brasil; b) os processos de racialização dos sujeitos negros; e c) resistência e agência negra enquanto caminho para a construção de novas narrativas na educação.

EDUCAÇÃO; RAÇA; NACIONALIDADE; BRASIL

Abstract

In this paper, we discuss the historical process involved in the construction of the Brazilian national identity, based on the racialization of the black experience, an element still present in the Brazilian identity formation process. Despite the processes of dehumanization endured by black people, they can and must be portrayed in educational spaces for their resistance and fight in order to escape from the zone of non-being and ontological erasure caused by modernity. The paper is organized in three general topics: a) racism, education and the national question in Brazil; b) the processes of racialization of black subjects; and c) black resistance and black agency as a way to construct new narratives in the field of education.

EDUCATION; RACE; NATIONALITY; BRAZIL

Résumé

Cet article examine le processus historique de construction d’une identité nationale brésilienne, basé sur la racialisation de l’expérience noire, qui reste encore présente dans le processus de formation des brésiliens. Malgré tout le processus de déshumanisation qu’elle a subi, la population noire peut et doit être décrite dans les espaces éducatifs par le biais de sa résistance et ses luttes pour échapper à la “zone du non-être” et à l’effacement ontologique issu de la modernité. Notre texte est axé sur trois thèmes d’ordre général: a) le racisme, l’éducation et la question nationale au Brésil ; b) les processus de racialisation des sujets noirs; et c) la résistance et agência negra, comme en tant que voie pour la construction de nouveaux récits pour l’éducation.

ÉDUCATION; RACE; NACIONALITÉ; BRÉSIL

Resumen

En este artículo discutimos el proceso histórico de construcción de una identidad nacional brasileña basada en la racialización de la experiencia negra, algo todavía presente en el proceso formativo de los brasileños. A pesar de todo el proceso de deshumanización sufrido, la población negra puede y debe retratarse en los espacios educativos a través de su resistencia y sus luchas para escapar de la “zona de no ser” y de la extinción ontológica promovida en la modernidad. Estructuramos el texto por medio de tres temas generales, es decir: a) racismo, educación y la cuestión nacional en Brasil; b) los procesos de racialización de los sujetos negros; y c) resistencia y agencia negra como camino para la construcción de nuevas narrativas en la educación.

EDUCACIÓN; RAZA; NACIONALIDAD; BRASIL

Ainda que o racismo seja um aspecto estruturante das relações sociais no Brasil, podemos dizer que há mudanças sinalizadas no horizonte, o que inclui importantes avanços no campo da Educação, por exemplo, a aprovação de diversos instrumentos legais para a implementação do ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena, além da educação escolar quilombola e indígena.

No Brasil, uma outra dinâmica cultural e societária, especialmente a partir da década de 1980, tem exigido uma nova reflexão entre desigualdades, diversidade cultural e conhecimento. E esse processo tem estreita relação com as demandas dos movimentos sociais, como pudemos perceber nas lutas por democratização e nas estratégias coletivas para sensibilizar o Estado para temas que historicamente foram deixados de lado. A importância de se pensar e de se reconhecer a diversidade cultural brasileira, inclusive nos currículos escolares, foi um dos temas exaustivamente debatidos na Assembleia Nacional Constituinte, em 1987 (SILVÉRIO; TRINIDAD, 2012SILVÉRIO, Valter Roberto; TRINIDAD, Cristina Teodoro. Há algo de novo a se dizer sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo? Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, p. 891-914, jul./set. 2012. ).

Tudo isso não acontece isoladamente: são demandas que estão na esteira das exigências sociais mundiais do pós-segunda guerra mundial, das quais destacamos: as lutas por libertação nos continentes africano e asiático; os movimentos por direitos civis nos Estados Unidos; os estudos mundiais sobre relações etnicorraciais, especialmente aqueles realizados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) (e que envolveram pesquisas no Brasil); o fortalecimento do movimento negro no Brasil a partir do surgimento do Movimento Negro Unificado, em 1978; e a crítica ao economicismo das políticas públicas, que se mostraram pouco eficientes no combate às desigualdades sociais.

E esse contexto complexo se reflete nas escolas e universidades, exigindo uma revisão dos debates sobre a produção do conhecimento e a formação de professores/as. A renovação necessária não mais se restringe à teoria, mas sim à relação que mantemos entre teoria e prática, e entre os sujeitos da educação. Nesse sentido, os currículos escolares se transformam em um território em disputa, especialmente de sujeitos que demandam por reconhecimento social, entre eles as populações negra e indígena (GOMES, 2012GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras, v. 12, n. 1, p. 98-109, jan./abr. 2012.).

Este texto pretende incentivar o debate, mesmo que sucintamente, sobre algumas teses desenvolvidas nas décadas iniciais do século XX: de que o Brasil seria um exemplo mundial de respeito à diversidade etnicorracial e às diferentes heranças culturais formadoras do país. Essas teses se pautavam na ideia de que seríamos uma democracia racial, sem preconceitos e de que a miscigenação seria uma prova desse espírito igualitário e fraterno. Veremos, ao longo do texto, que essas teses tiveram amparo nas ações do Estado, na legislação, na literatura e nas artes, nas políticas educacionais e na teoria social realizada no Brasil, que sustentaram a imagem de uma nação igualitária, apesar das gritantes desigualdades raciais e das denúncias realizadas pelos movimentos sociais.

Para tanto, estruturamos o texto da seguinte maneira: iniciamos apresentando o debate sobre a construção dos elementos nacionais no Brasil e como esse processo esteve fundamentado na defesa de uma identidade mestiça, igualando artificialmente os diversos grupos sociais. Posteriormente, relacionamos a construção da identidade mestiça com a legislação educacional dos séculos XIX e XX, discutindo a centralidade da educação na construção de discursos racializados. O debate sobre os processos de racialização continua no item seguinte do texto, com detalhes sobre como eles se refletem na construção do conhecimento. Finalizamos o texto discutindo que a desracialização da experiência dos sujeitos negros depende de uma mudança discursiva e epistemológica, focada: na atuação desses sujeitos em nossa história; nas relações que mantemos com a diáspora africana; e de uma nova compreensão histórica capaz de subverter a situação de “objeto” sob a qual os negros estiveram submetidos na ciência brasileira e, inclusive, nas teorias da Educação e da Sociologia.

RAÇA E A QUESTÃO NACIONAL NO BRASIL

Do ponto de vista da produção intelectual sobre as relações raciais no Brasil, o século XX poderia ser brevemente caracterizado em três grandes momentos, não homogêneos, mas com algumas características básicas: o primeiro momento se baseia primordialmente nas teorias racialistas provenientes do século XIX, como a Eugenia e o Darwinismo Social, mas que ainda têm destaque nas décadas iniciais do século seguinte; o segundo, que se desenvolve entre as décadas de 1930 e 1980 e que se apoia na ideologia da mestiçagem e no mito da democracia racial; e o terceiro, que reformula as perspectivas teóricas sobre as relações raciais e avançam sobre temas como identidade, etnicidade e políticas antirracistas. Essa divisão nos possibilita aproximar das principais formas de explicar as relações raciais e as presenças de brancos, indígenas e negros na sociedade brasileira.

Nas noções mais tradicionais, defende-se que a formação e a estabilidade do Estado-nação dependem da realização integral da equação: um território, um povo e uma língua. Isso se daria a partir da assimilação cultural, transformando a pluralidade racial, cultural e de valores civilizatórios em um grupo coeso de cidadãos (PENA; BIRCHAL, 2006PENA, Sergio; BIRCHAL, Telma S. Inexistência biológica versus a existência social de raças humanas: pode a ciência instruir o ethos social? Revista da USP, São Paulo, n. 68, p. 10-21, 2006.; ANDERSON, 1999ANDERSON, Benedict. As promessas do Estado-nação para o início do século. In: HELLER, Agnes et al. (org.) A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999. ).

Do ponto de vista assimilacionista (do apagamento das diferenças), a figura do mestiço aparece de maneira central. Resultante de um discurso hierárquico e excludente, que se desdobrou em boa parte da produção intelectual do período, a mestiçagem ganha espaço na elaboração da produção intelectual acerca do nacional.

Richard Miskolci (2012MISKOLCI, Richard. O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX. São Paulo: Annablume, 2012. ) realiza uma análise que aponta as duas últimas décadas do século XIX como um período de gestão de ideais de progresso, embasados na defesa de uma “regeneração racial” através do embranquecimento da população, com o desejo de inaugurarem uma “civilização nos trópicos” (p. 21). De acordo com o autor, uma parcela considerável das interpretações históricas e sociológicas privilegiaram, ao descreverem esse momento, os temas da mudança do regime escravocrata para o trabalho livre e os reflexos políticos e econômicos desse processo. O que foi deixado em segundo plano nessas análises, de acordo com o autor, foi a formação de um novo imaginário social, pautado nos valores positivistas da ordem e do progresso.

O aspecto da ordem, de acordo com Miskolci (2012MISKOLCI, Richard. O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX. São Paulo: Annablume, 2012. ), já foi amplamente debatido através das análises sobre a Proclamação da República e da construção de um distanciamento com relação à instabilidade política e a “anarquia”, frequentemente associados aos países latino-americanos da época. O que não foi realizado a contento, e o que motiva os estudos do autor, seria o aspecto do progresso, no qual inegavelmente o discurso nacionalista e do povo brasileiro aparecem em primeiro plano. O progresso guarda em si o ideal de uma civilização construída no futuro, através de um processo político modernizante e de uma “evolução humana”, mas o grande obstáculo ao progresso no Brasil estaria justamente na composição etnicorracial da população (MISKOLCI, 2012MISKOLCI, Richard. O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX. São Paulo: Annablume, 2012. ).

O Brasil, assim como outros países de experiência colonial, colaboraria para a emergência da modernidade, especialmente através de medidas sanitaristas e de reforma urbana, como a que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro na primeira década do século XX. Se um dos aspectos centrais da modernidade é o “novo” enquanto valor, a “boa nova” como riqueza em comparação com o que se entende por estagnação dos períodos anteriores, esses elementos estavam todos revisitados no Brasil na passagem do século XIX para o XX. Isso se deu ancorado na desqualificação do povo brasileiro e em um cenário político de temores sobre uma possível revolta de escravizados. Não são raros os trabalhos que demonstram que a abolição foi resultado de mais de quarenta anos de sérias crises do sistema escravista e de que em maio de 1888 havia mais afrodescendentes nos quilombos do que nas senzalas (AZEVEDO, 2004AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. São Paulo: Annablume, 2004. ).

Muito antes de 1888, o sistema escravocrata já demonstrava sinais de falência, de perda de legitimidade perante o cenário econômico internacional e as revoltas negras no Brasil estavam saindo do controle do império. Entre os grandes produtores e políticos do século XIX havia medo de que acontecesse uma grande revolta negra no país, aos moldes da Revolução Haitiana, que poderia despejar na sociedade “uma horda de homens semibárbaros, sem direção, sem alvo social” (AZEVEDO, 2004AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. São Paulo: Annablume, 2004. , p. 68).

Um cenário de medos fica evidente nas palavras de Varnhagen (1850VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Memorial orgânico. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), 1850. , p. 22): “eles [escravizados africanos] não dormem tanto como se pensa e já têm feito seus ensaios em vários anos”. Assim, de acordo com o autor, seria fundamental, para não ver “os vossos netos reduzidos talvez à condição de servos dos netos africanos”, que “desde já nenhum navio possa levar um só a seu bordo” (VARNHAGEN, 1850VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Memorial orgânico. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), 1850. , p. 23). Também defendia o incentivo à vinda ao Brasil de imigrantes europeus brancos para ingressarem, como pequenos proprietários, na colonização agrícola do interior do país e também para difundir no país aspectos científicos, artísticos e estéticos, inaugurando um “bom grau de civilização e de gosto” (VARNHAGEN, 1850VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Memorial orgânico. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), 1850. , p. 39) no país. O autor conclui que:

Para civilizarmos o Brasil, e fazermos que haja povo brasileiro, necessitamos ir paulatinamente acabando com a escravidão dos africanos; necessitamos prender e avassalar (não escravizar) temporariamente os índios bravos; necessitamos, enfim, admitir no país gente branca voluntariamente arregimentada em grupos. Se adotamos já tal sistema [...], fiquemos descansados que havemos de vir a ter uma população compacta. (VARNHAGEN, 1850VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Memorial orgânico. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), 1850. , p. 39)

As teorias eugênicas, fortemente empregadas em toda a Europa para “combater a degeneração racial”, estavam colocadas textualmente na legislação brasileira, como, por exemplo, no artigo 20 do Decreto n. 528, de 28 de junho de 1890, assinado pelo então presidente Marechal Deodoro da Fonseca, que regulamentava a entrada de imigrantes no Brasil, determinando que:

É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal de seu país, excetuados os indígenas da Ásia ou da África, que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos de acordo com as condições que forem então estipuladas. (BRASIL, 1890BRASIL. Congresso Nacional. Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890. CN/PR, 1890. Regularisa o serviço da introducção e localisação de immigrantes na Republica dos Estados Unidos do Brazil.)1 1 O mecanismo de exclusão do decreto n. 528, de 28 de junho de 1890, assinado por Marechal Deodoro da Fonseca foi atualizado pelo decreto-lei n. 7967 de 1945, que vigorou até 1957, e que determinava que: “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia” (BRASIL, 1945).

EDUCAÇÃO, RACISMO E A QUESTÃO NACIONAL NO BRASIL

E qual foi a relação entre os processos educativos e a construção desse ideal de “civilização branca” no Brasil? Foram muitas as relações, pautadas em legislação que pressupunha uma educação eugênica e higienista. No caso das crianças negras, a elas foi negada a educação durante o século XIX e quando elas puderam finalmente estudar, sua formação foi sensivelmente diferente daquela dirigida às crianças brancas, sendo pautada principalmente no ensino do trabalho braçal, especialmente para o campo.

Ana Maria Gonçalves (2012GONÇALVES, Ana Maria. Políticas educacionais e racismo: Monteiro Lobato e o Plano Nacional Biblioteca da Escola. Revista Fórum, 10 set. 2012. Available in: https://www.revistaforum.com.br/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/. Access on: 25 Nov. 2018.
https://www.revistaforum.com.br/politica...
) descreve o desenho da educação pública no Brasil, a qual ela diz ser pensada “de brancos para brancos”. De acordo com a autora, desde 1834 as províncias brasileiras passaram a ter autonomia para legislarem sobre instrução escolar elementar, o que levou à homologação da Lei provincial n. 13, de 1835, que proibia os escravizados de Minas Gerais de receberem educação pública. A existência dessa legislação, no entanto, não trazia novidades para o contexto da época, em que os senhores raramente permitiam a escolarização dos escravizados.

A primeira vez que se tem notícias sobre o incentivo à escolarização da população africana e afro-brasileira no Brasil é no período de discussões em torno da Lei do Ventre Livre, em 1871, quando uma parcela dos proprietários rurais, temendo o fim da escravidão, achava indispensável a existência no Brasil de um sistema de educação capaz de integrar os filhos livres de mães escravizadas aos moldes de uma sociedade de trabalhadores livres. Ou seja, o modelo de educação pensado era absolutamente voltado para a formação de mão de obra, especialmente para a lavoura, garantindo dessa maneira a manutenção da hierarquia no trabalho, mesmo com o fim da escravidão. Chega a ser, inclusive, difícil de manter a descrição desse modelo como sendo o de um “sistema de educação”, pois ele não tinha qualquer potencial transformador da realidade das populações africana e afro-brasileira (GONÇALVES, 2012GONÇALVES, Ana Maria. Políticas educacionais e racismo: Monteiro Lobato e o Plano Nacional Biblioteca da Escola. Revista Fórum, 10 set. 2012. Available in: https://www.revistaforum.com.br/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/. Access on: 25 Nov. 2018.
https://www.revistaforum.com.br/politica...
).

De acordo com Gonçalves (2012GONÇALVES, Ana Maria. Políticas educacionais e racismo: Monteiro Lobato e o Plano Nacional Biblioteca da Escola. Revista Fórum, 10 set. 2012. Available in: https://www.revistaforum.com.br/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/. Access on: 25 Nov. 2018.
https://www.revistaforum.com.br/politica...
), as crianças nascidas sob a Lei do Ventre Livre ficariam sob a responsabilidade dos donos de suas mães até os oito anos de idade, quando então poderiam ser entregues ao Estado, mediante indenização de seiscentos mil reis, ou mantidos pelos senhores, trabalhando até a idade de 21 anos. Nesse período até os 21 anos de idade, os “senhores de escravos” deveriam “sempre que possível” proporcionar-lhes instrução elementar, e isso é importante, porque foi uma brecha na lei conseguida pelos agricultores (GONÇALVES, 2012GONÇALVES, Ana Maria. Políticas educacionais e racismo: Monteiro Lobato e o Plano Nacional Biblioteca da Escola. Revista Fórum, 10 set. 2012. Available in: https://www.revistaforum.com.br/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/. Access on: 25 Nov. 2018.
https://www.revistaforum.com.br/politica...
, p. 5-6).

Os órgãos do Estado, como o Ministério da Agricultura, fizeram cálculos para prever o número de crianças que ficaria sob sua responsabilidade para receber a referida “formação de trabalhadores braçais” (GONÇALVES, 2012GONÇALVES, Ana Maria. Políticas educacionais e racismo: Monteiro Lobato e o Plano Nacional Biblioteca da Escola. Revista Fórum, 10 set. 2012. Available in: https://www.revistaforum.com.br/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/. Access on: 25 Nov. 2018.
https://www.revistaforum.com.br/politica...
, p. 5). Foram firmados contratos com vários agrônomos, para que eles fundassem estabelecimentos que ensinariam essas crianças a trabalharem na terra, e com instituições religiosas que já atendiam órfãos. As previsões apontavam que cerca de 4000 crianças seriam entregues ao Estado, mas, qual foi a surpresa, apenas 113 crianças de todo o Brasil chegaram ao governo através dessa medida (GONÇALVES, 2012GONÇALVES, Ana Maria. Políticas educacionais e racismo: Monteiro Lobato e o Plano Nacional Biblioteca da Escola. Revista Fórum, 10 set. 2012. Available in: https://www.revistaforum.com.br/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/. Access on: 25 Nov. 2018.
https://www.revistaforum.com.br/politica...
, p. 5-6).

A realidade, portanto, mostrou o quão era difícil para os proprietários rurais abandonarem o tradicional modelo da escravidão. Esses proprietários escolheram ficar com as crianças, trabalhando até os 21 anos de idade, para as quais deveriam oferecer formação educacional “sempre que possível”, não pagando, dessa maneira, as taxas de matrícula cobradas no sistema proposto pelo Estado. Perceberam também que seria mais lucrativo ganhar dinheiro por meio da gravidez das escravizadas, pois, seu aluguel como amas de leite renderia “aos donos” cerca de seiscentos mil reis anuais, exatamente a mesma quantia que o governo pagaria de indenização caso ficasse com as crianças. Outro dado lamentável é que nenhuma criança no Brasil se beneficiou da Lei do Ventre Livre, pois nenhuma chegou a completar os 21 anos de idade antes da promulgação da Lei Áurea (GONÇALVES, 2012GONÇALVES, Ana Maria. Políticas educacionais e racismo: Monteiro Lobato e o Plano Nacional Biblioteca da Escola. Revista Fórum, 10 set. 2012. Available in: https://www.revistaforum.com.br/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/. Access on: 25 Nov. 2018.
https://www.revistaforum.com.br/politica...
, p. 6).

A educação, nas primeiras décadas do século XX, se transforma em uma ferramenta importante para o desenvolvimento e a divulgação dos ideais eugênicos, com o intuito de embranquecer a população brasileira e, portanto, de se apagar as referências físicas e culturais de indígenas e negros. A partir da educação, era possível identificar e classificar os diferentes grupos étnico-raciais, para os quais deveriam ser elaboradas medidas educativas específicas, sempre buscando a “seleção dos mais capazes”.2 2 Sobre o ideal de “seleção dos mais capazes”, ler o material produzido por intelectuais que formaram o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, de 1932 (AZEVEDO et al., 2006, p. 200).

Um dos exemplos dessas medidas que foram implementadas foi a Escola Normal de São Paulo, que em 1914 cria um laboratório de pedagogia experimental para realizar testes eugênicos em crianças, individualmente. Entre os elementos testados, estavam: compleição física; tipo racial; traços morais; ambiente familiar e traços de hereditariedade. Os resultados dos testes eram registrados na “Carteira Biográfica Escolar” e as crianças, ao final do processo, eram caracterizadas em um dos três tipos: normalidade, anormalidade ou degenerescência (CARVALHO, 1997CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Quando a história da educação é a história da disciplina e da higienização das pessoas. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997. p. 291-309.).

Jerry Dávila (2006DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil - 1917/1945. São Paulo: Edunesp, 2006.) realizou um minucioso estudo no qual analisou a interferência dos ideais eugênicos nas políticas educacionais brasileiras no período de 1917 a 1945. Sua pesquisa se pautou em documentos da época, depoimentos, fotografias, artigos de jornais e outros materiais tanto brasileiros quanto internacionais. Em seu trabalho, o autor mostra que a política educacional brasileira daquele período, executada sob o pressuposto de que algumas desigualdades sociais deveriam ser sanadas, principalmente as que acometiam pessoas pobres e não negras, era na verdade fundamentada na eugenia lamarckiana.3 3 De acordo com Tatiane Consentino Rodrigues (2011, p. 84), “um dos atrativos do lamarckismo deve-se ao fato de que, por focar na hereditariedade, esta perspectiva era considerada intrinsecamente antirracista, o que a colocava em harmonia com o ideal de unidade na diversidade postulado na concepção de democracia racial”.

A educação, logo no início da década de 1930, passa a ser percebida como o principal meio de desenvolvimento do país, e um dos objetivos colocados na época era o de levar a escolarização para os lugares mais remotos do Brasil. Vale destacar que nessa década o campo da educação era tratado sempre em relação com premissas biológicas e sanitaristas, o que pode ser observado pela união de Saúde e Educação em um mesmo ministério. Imbuídos de um discurso de democratização e universalização da educação, as medidas estatais desse período tinham como meta a aculturação de negros, indígenas e pobres. Essas são medidas em que inclusive aqueles indivíduos considerados “brancos” são extremamente racializados, explicados e resumidos biologicamente.

O marco do período foi um movimento intelectual, que acabou dando origem ao documento conhecido como o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, redigido em 1932 por vários artistas, jornalistas e intelectuais da época, tais como Anísio Teixeira, Júlio de Mesquita Filho, Cecília Meireles, Roquete Pinto, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho. O manifesto se difundiu como um levante pela educação pública, laica, para todas as classes sociais, e pela responsabilização do Estado para a expansão das instituições escolares e pela reforma do ensino. No entanto, esse documento buscava também uma uniformização das pessoas, através de uma educação que os fizesse aderir a princípios e modos de vida “culturalmente brancos”, “mediante a ação biológica e funcional [...] elevando ao máximo o desenvolvimento dos indivíduos dentro de suas aptidões naturais e selecionando os mais capazes” (AZEVEDO et al., 2006AZEVEDO, Fernando de et al. Revista HISTEDBR, Campinas, n. especial, p. 188-204, ago. 2006. , p. 200).

A eugenia se torna princípio constitucional ao ser incluída na Constituição Federal Brasileira de 1934, em seu artigo 138, com a seguinte redação: “Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios nos termos das leis respectivas [...] b) estimular a educação eugênica [...] g) cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais”.

Entre os constituintes havia muitos médicos, entre eles Antônio Carlos Pacheco e Silva, que argumentava pela “melhoria racial”, dizendo que:

Há um esforço continuado para se obterem melhores cavalos, suínos, caprinos, enquanto se recebem as correntes imigratórias sem uma seleção individual dos imigrantes, desprezando os mais elementares preceitos indispensáveis à defesa da raça. (VILLA, 2011VILLA, Marco Antônio. A história das constituições brasileiras: duzentos anos de luta contra o arbítrio. São Paulo: Leya, 2011., p. 55)

Um dos membros constituintes, Xavier Oliveira, defendeu a inclusão do assunto ao texto constitucional dizendo:

De orientais poucos assimiláveis, bastam no Brasil os cinco milhões que somos, os nordestinos e planaltinos de Minas, Mato Grosso e Goiás, sem falar dos autóctones da Amazônia, os quais quatro séculos de civilização passaram indiferentes à sua inferioridade patenteada numa decadência incontestável, que marcha para uma extinção talvez não remota. (VILLA, 2011VILLA, Marco Antônio. A história das constituições brasileiras: duzentos anos de luta contra o arbítrio. São Paulo: Leya, 2011., p. 54-55)

Em 1938, Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde, indagou a cientistas e intelectuais nacionalistas como seria o “homem brasileiro”. De acordo com Jerry Dávila (2006DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil - 1917/1945. São Paulo: Edunesp, 2006.), um impasse havia se instalado em função das concepções arquitetônicas do prédio do Ministério da Educação e Saúde e a escultura produzida por Celso Antônio sobre o “Homem Brasileiro”. Assim, é que, em Dávila, lê-se que:

A estátua do “Homem Brasileiro” deveria completar a alegoria mostrando que a educação pública tornaria os brasileiros brancos e fortes, dignos de seu trabalho futuro. Segundo Capanema, “o edifício e a estátua se completarão, de maneira exacta e necessária”. Entretanto, a figura do “Homem Brasileiro” que o escultor Celso Antônio extraiu da pedra representava tudo o que Capanema esperava que o Brasil deixasse para trás. A figura era um caboclo [...] de raça mestiça [...] Oliveira Viana, Roquette Pinto e Rocha Vaz, assim como a comunidade científica, científico-social e médica como um todo, confiavam no futuro branco do país e no papel da educação e da saúde pública em sua criação. (2006, p. 48-50)

O desejo de aperfeiçoamento eugênico da raça estava nesse período explicitado nas comissões e nos programas governamentais de saúde e educação, como, por exemplo, na Comissão de Ensino Primário do Ministério da Educação (instituída em 8 de novembro de 1939), que listou a prática eugênica entre seus quatro objetivos. As outras três metas eram: “disciplina social, defesa nacional e aumento da produtividade” (DÁVILA, 2006DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil - 1917/1945. São Paulo: Edunesp, 2006., p. 21).

De acordo com Dávila (2006DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil - 1917/1945. São Paulo: Edunesp, 2006.), o Estado Novo inaugurou um período de maior visibilidade, de expansão e de consolidação do nacionalismo eugênico iniciado em décadas anteriores. No caso do ensino público do estado do Rio de Janeiro, por exemplo, este se tornou mais paternalista e a categoria raça ganhou evidência, demonstrando com mais força suas relações com a educação e o nacionalismo (DÁVILA, 2006DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil - 1917/1945. São Paulo: Edunesp, 2006.). Na esteira da educação nacionalista, a música de Villa- -Lobos ocupou espaço importante. Após a proclamação do Estado Novo, os eventos comemorativos de culto à nação e à personalidade de Getúlio Vargas se tornaram mais frequentes. O programa musical de Villa-Lobos, voltado especialmente para a formação educacional de crianças e adolescentes, era considerado por ele mesmo como um instrumento de aculturação europeia de estudantes negros, mestiços e indígenas.

O maestro planejava criar uma nova estética nacional que fosse, entre outros aspectos, hostil aos aspectos culturais de origem africana e indígena e, quando os usava, fazia de maneira com que fossem retratados como folclore, vestígios do passado que seriam resgatados de forma romantizada. De acordo com Dávila (2006DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil - 1917/1945. São Paulo: Edunesp, 2006., p. 249), “seu programa musical [de Villa-Lobos] era uma alegoria educacional, disciplinar e nacionalista da jornada que se afastava da negritude, passava pela mistura de raças e chegava à brancura”.

A defesa da miscigenação e a busca pelo branqueamento do país significaram, segundo Guimarães (2001GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Nacionalidade e novas identidades raciais no Brasil: uma hipótese de trabalho. In: SOUZA, Jessé de (org.) Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da UnB, 2001. ), a institucionalização da desmemória das origens etnicorraciais, ou seja, de um lado, a imagem de Portugal deveria ser afastada, pois lembrava a “subordinação” do Brasil com relação a ele; de outro, a imagem “servil” da escravidão deveria ser apagada com o branqueamento da população; e a criação sobre o indígena “primitivo” e “selvagem” deveria ser substituída agora pela imagem romantizada dos guerreiros. Isso significa que afro-brasileiros e indígenas são aceitos, não como pessoas, mas como “marcos da brasilidade” (GUIMARÃES, 2001GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Nacionalidade e novas identidades raciais no Brasil: uma hipótese de trabalho. In: SOUZA, Jessé de (org.) Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da UnB, 2001. ).

Ronaldo Sales Jr. (2006SALES JR., Ronaldo. Democracia racial: o não-dito racista. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 229-258, 2006. ) também contribui com o debate trazendo uma importante análise sobre o mito da democracia racial, pautado na figura do mestiço. De acordo com o autor, a dita cordialidade, que em nada se parece com gentileza, se realiza no cotidiano de forma muito violenta, reproduzindo as relações de poder em ações e falas informais, utilizando-se de piadas, comparações que são anunciadas como “inocentes”, ou apelidos que subestimam indígenas e negros. Essa suposta cordialidade orienta tanto as vítimas do racismo quanto os racistas a se relacionarem a partir de um duplo pacto de silêncio: de um lado, os discriminadores limitam suas falas para não exporem a cor ou raça enquanto critério utilizado na organização de suas condutas; de outro lado, os discriminados que expuserem a dor sofrida pelo racismo são tachados como sendo eles próprios os discriminadores. Mais do que isso, salienta o autor, o discurso de que viveríamos em uma democracia racial é uma forma de deslegitimação das lutas por emancipação, que passam a ser chamadas de “conflitos sociais” (SALES JR., 2006SALES JR., Ronaldo. Democracia racial: o não-dito racista. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 229-258, 2006. ).

Nessa lógica, a população afro-brasileira rotineiramente é “lembrada” de que, se vive em piores condições de vida, isso seria resultado da falta de iniciativa individual. Ou seja, em determinados momentos é conveniente caracterizar os afro-brasileiros enquanto mestiços; em outros, eles são “levemente” retirados para fora das margens da mestiçagem, sendo diferenciados dos demais e responsabilizados pelas desigualdades sentidas dentro da nação, esta que teria dado todas as condições possíveis para seu desenvolvimento a partir dos seus méritos individuais.

A violenta conquista colonial não se dá através de uma simples e total lealdade, união ou identificação simbólica (HALL, 2006HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: EdUFMG, 2006.). Antes disso, todo o processo de colonização se dá em meio a muita resistência, tais como revoltas, rebeliões, fugas, aquilombamento, criação de irmandades, associações, entidades e clubes negros. Portanto, a compreensão sobre a realidade racial brasileira precisa, antes de tudo, de uma inversão discursiva que permita enxergarmos e reconhecermos a “agência” do povo negro, conforme poderemos discutir na última seção deste texto. Mas, antes disso, ainda precisamos desenvolver um pouco mais o processo que denominamos de racialização.

A CONSTRUÇÃO DE DISCURSOS RACIALIZADOS

Os discursos racializados são aqueles que buscam “colar” representações sociais em indivíduos ou em grupos sociais, de tal maneira que essas criações quase se pareçam naturais, ou seja, nascidas com ela. São falas, imagens e ações que buscam naturalizar estigmas sociais. Quando falamos em racialização, estamos fazendo referência aos processos históricos e sociais que estabelecem significados a determinados indivíduos e grupos. O que ocorre é uma biologização de ideologias racistas, cristalizando-as no corpo e na história dessas pessoas e transformando-as em “verdades” corporificadas. Esses processos ocorrem no interior das instituições, nas interações cotidianas, nas ações e nos silêncios. E, ao criarem “verdades”, são estabelecidos também os respectivos “lugares sociais” para os grupos atingidos por esses processos; são criadas também as expectativas coletivas sobre como esses grupos devem agir, pensar e ser, ou melhor, nascem aí os “sujeitos típicos” para tais ideologias.

A racialização pode ser percebida em diversos momentos do nosso dia a dia: por meio de comerciais de cerveja, que sexualizam a mulher, diminuindo-a e explicando-a apenas pelo corpo; nos discursos clássicos de todo carnaval carioca sobre a pretensa “facilidade” dos negros para sambar, se comparada com a das pessoas brancas; nos programas de humor que satirizam a população negra a partir de alguns estereótipos, como a fala coloquial, a pobreza, as gírias, a dita “malandragem” nas relações, os “desvios de conduta”; nas salas de aula, quando crianças negras são tratadas como “menos capazes”, e muitas vezes esquecidas no fundo da sala de aula, como se não “valesse a pena” o esforço de ensiná-las; na pretensa limitação das possibilidades intelectuais e artísticas da população negra, entre outros aspectos.

Várias dessas falas, imagens e reproduções são adaptações bastante fiéis aos discursos do período colonial. E por que eles ainda ganham destaque nos dias atuais? Por que, de um modo geral, essas imagens não causam estranheza ou repulsa em parcelas da sociedade? Por que aderimos com tanta facilidade a esses discursos?

O debate sobre o racismo na história brasileira nos leva para uma discussão mais hermenêutica sobre como se dão as relações raciais nos dias atuais: se ainda muitas pessoas afirmam que vivemos em um país livre do racismo, a realidade não nos mostra isso.

Sobre esse assunto, João Feres Jr. (2004) faz um apontamento simples e revelador, lembrando-nos de que na linguagem cotidiana existem muitas expressões pejorativas sendo utilizadas contra pessoas negras, mas o mesmo não acontece contra as pessoas brancas. Ou seja, o racismo que vemos no dia a dia não é um elemento de um Brasil “brincalhão” e “extrovertido”, imagem essa muito difundida aqui e fora do país. Se assim fosse, haveria uma proporção entre as “piadas” contra ambos os grupos. Se isso não acontece, é porque no Brasil a brincadeira e a diversão são pautadas pelo racismo (FERES JR., 2004FERES JR., João. Ações afirmativas no Brasil: fundamentos e críticas. Econômica, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 291-312, dez. 2004.).

Ducrot (1987DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987., p. 20) nos informa que o não dito é uma forma de “dizer alguma coisa sem, contudo, aceitar a responsabilidade por tê-la dito, o que, em outras palavras, beneficiar-se da eficácia da fala e da inocência do silêncio”. Dessa maneira, a responsabilidade se transfere totalmente para o ouvinte: se ele está se sentindo ofendido com uma piada, o problema é que ele está procurando maldade na brincadeira. Então, se a piada sobre negros for vista por uma pessoa negra como mensagem racista, a sugestão que se segue é que ele não leve a sério, ou pior, que as mensagens foram “mal compreendidas”.

O esforço deve ser, portanto, o de diferenciar o mal-dito e o mal-entendido. Isso porque, sempre que alguém faz uma piada preconceituosa, logo de partida sabe que se trata de algo que pode humilhar ou ofender. Mas, no momento em que alguém aponta para o emissor a presença de preconceito em sua fala, uma das respostas mais comuns é: “Nossa, mas eu não tinha a intenção! Fui mal compreendido”. O resultado prático é que o assunto se dá por encerrado ali e, por consequência, crimes de preconceito e de injúria são facilmente transfigurados e passam a ser qualificados enquanto mal-entendidos ou brincadeiras.

As piadas são uma das piores ferramentas de perpetuação de preconceitos e discriminações, uma vez que são discursos travestidos de inocência, como se fossem lançados com a melhor das boas intenções: a de fazer rir, a de descontrair. E é dessa maneira que essa modalidade de discurso ganha terreno. Normalmente, o raciocínio de quem ri de uma piada machista, homofóbica ou racista é o seguinte: “Se está me fazendo rir, que mal tem? É divertido, então não quero perder a chance de rir, fazendo críticas chatas”. Ou então, mesmo se incomodando com as piadas contadas em um grupo de amigos, há a tendência de se manter na roda e rir junto, pois, do contrário, “seria o chato do grupo”.

Freud já discutiu esse assunto. De acordo com ele, tendemos a não criticar o que nos diverte, o que seria um desperdício e uma anulação da fonte de um prazer. Por isso, há uma transferência de valor: atribuímos benefício à mensagem inscrita na piada quando a forma com que ela foi exposta nos agrada. Freud chamou essa inversão de “princípio da confusão das fontes de prazer” (FREUD, 1996FREUD, Sigmund. A psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro: Imago, 1996., p. 132-133).

Uma característica fundamental de qualquer piada é que ela é enunciada como se fosse em “terceira pessoa”, fazendo com que o enunciador se retire de qualquer responsabilidade do que diz. Afinal, “alguém disse isso antes de mim, eu estou só reproduzindo”.

Estamos discutindo, portanto, que o racismo pode se apresentar de forma violenta, direta, mas também de maneira “abrandada”, escondida por de trás de figuras de linguagem. Enquanto educadores/as, esse debate é de especial importância, uma vez que essa apresentação do racismo é a mais presente no Brasil, em que algumas pessoas ainda acreditam no “mito da democracia racial”. Trata-se, portanto, de um racismo travestido de brincadeiras, piadas e trocadilhos.

Ronaldo Sales Jr. (2006SALES JR., Ronaldo. Democracia racial: o não-dito racista. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 229-258, 2006. ) nos auxilia muito ao exemplificar as várias figuras de linguagem racistas, que não se resumem em xingamentos, mas também se estendem a “afagos” e a comparações aparentemente elogiosas. De acordo com o autor, alguns exemplos de uso figurado de conteúdos raciais são: a) metáforas (“macaco”; “piche”; “cabelo Bombril”; “dia de branco”; ou, utilizando-se de um exemplo atual, o arremesso de banana contra jogadores negros em estágios de futebol); b) metonímias (“aquele escuro”; “aquele preto”, “aquele negro”, que são palavras que substituem os nomes originais das pessoas, sem descrever os sujeitos com precisão); c) eufemismos (“boa aparência”; “moreno”; “pessoa de cor”; que é a substituição de uma palavra por outra mais “cortês”); d) ironias (“Só podia ser...”; “Pra variar...”; “Mas como é bonitinho...”); e) Perguntas retóricas (“Desde quando negro é gente?”) (SALES JR., 2006SALES JR., Ronaldo. Democracia racial: o não-dito racista. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 229-258, 2006. , p. 238).

A essas descrições, o autor também acrescenta os muitos apelidos conferidos a pessoas negras: “Pelé”; “Djavan”; “Barack Obama”; raramente, o enunciador dessas palavras estará se referindo às qualidades artísticas ou políticas dessas celebridades; muito provavelmente não estará querendo dizer: “você é tão talentoso quanto o Djavan” (SALES JR., 2006SALES JR., Ronaldo. Democracia racial: o não-dito racista. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 229-258, 2006. , p. 242). São apelidos desrespeitosos, pois tratam de igualar as pessoas negras, sem levar em consideração suas particularidades, seus nomes próprios, suas individualidades e trajetórias específicas. Destacamos também aquelas frases muito comuns, em que o racista “pede licença” para proferir seu racismo, sem se considerar como tal. Algo parecido com: “Não sou preconceituoso, mas aquele ali fez trabalho de preto”; “Não sou racista, mas negro na minha família já é demais”.

Essa reflexão já foi realizada por Frantz Fanon (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008. 1st edition published in 1952.), na década de 1950, em suas análises sobre como o negro é transformado ora em caricatura, ora em perigoso, ora em nojo, ora em objeto de desejo. De acordo com o autor, a compreensão dos negros sobre si próprios é construída em terceira pessoa, ou seja, é o discurso colonial que informa o que é ser negro, quais as características do seu povo e quais os motivos pelos quais eles devem se convencer de que seriam semi-humanos, incompletos (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008. 1st edition published in 1952.). Os elementos utilizados pelos negros para compreenderem a si próprios e para formarem um esquema corporal histórico-social são fornecidos por um outro, um outro branco, que os tece por meio de muitos mecanismos discursivos. O autor diz que, na verdade, os discursos tentam resumir o negro a uma cor (antes de tudo sou um negro) ou ainda em alguém construído não só em terceira pessoa, mas também em tripla pessoa: “No trem, ao invés de um, deixavam-me dois, três lugares” (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008. 1st edition published in 1952., p. 105). O autor prossegue:

Sim, nós (os pretos) somos atrasados, simplórios, livres nas nossas manifestações. [...] Aliás, nossos homens de letras nos ajudam a vos convencer. Vossa civilização branca negligencia as riquezas finas, a sensibilidade [...] Eu me assumia como o poeta do mundo. O branco tinha descoberto uma poesia que nada tinha de poética [...]. O branco, por um instante baratinado, demonstrou-me que, geneticamente, eu representava um estágio. [...]. O branco estava enganado, eu não era um primitivo, nem tampouco um meio-homem, eu pertencia a uma raça que há dois mil anos já trabalhava o ouro e a prata [...] (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008. 1st edition published in 1952., p. 116-119)

A estigmatização da população negra é um exercício de vigilância das hierarquias, que ocorre por meio da violência física e também simbólica, repercutindo sobre o próprio corpo: mutilando-o (cabelo, nariz, lábios); esfolando-o (embranquecendo socialmente); codificando-o (através de um mapeamento científico e estatal sobre seu corpo e dos estigmas sexuais); intimidando-o (com a violência policial especialmente contra os rapazes afro-brasileiros, de 18 a 24 anos de idade); culpabilizando-o (por meio do discurso que o coloca como responsável por suas próprias tragédias); paralisando-o (politicamente); empobrecendo-o (economicamente); humilhando-o (por meio dos discursos de que o/a negro/a seria menos capaz); vigiando-o (“coloque-se no seu lugar”, “negro atrevido”); adoecendo-o (através do descaso médico, da assistência tardia ou mal realizada, do descaso contra a gestante negra e a falta de atenção às doenças que são mais frequentes em população negra, tais como a anemia falciforme, a hipertensão, o câncer de próstata e alguns tipos de miomas uterinos).4 4 Para maiores informações consultar: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doencas_etnicas.pdf e http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_negra.pdf. Acesso em: 10 nov. 2013.

Como vimos até agora, o campo educacional foi, no Brasil, uma arena estratégica de formulação do discurso nacional, pautado na racialização dos sujeitos, pois criou os significados do “ser negro”, assim como o de “ser branco” e do “ser indígena” em nossa sociedade. Os processos de racialização, longe de se concentrarem apenas no campo educacional, se espalham por todas as esferas sociais, por nossas instituições, nos discursos e nas práticas. Trata-se de um processo com impactos sobre as subjetividades e em como compreendemos e narramos nosso contexto social.

DESRACIALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA NEGRA

Reexaminando alguns dos grandes trabalhos da História, da Sociologia e da Educação brasileiras, que abordaram o tema da escravidão e do racismo, percebe-se que a interpretação das relações sociais no Brasil se deu primordialmente para dentro dos limites “do nacional”. Um exemplo disso é que as questões raciais no Brasil não foram discutidas tendo como base a compreensão sobre os grupos étnicos africanos, formadores da nossa história social. Ao invés disso, nossas ciências humanas se debruçaram em torno de uma criação nacional: o “negro”.

O negro, enquanto categoria, é uma espécie de filtro das diferenças étnicas, unificando-as em torno de um “novo sujeito”. E aqui utilizamos o termo “novo sujeito” entre aspas para destacar seu significado limitado, pois ele nasce ao mesmo tempo em que um lugar social específico é para ele estabelecido: um lugar de não-existência ou, nas palavras de Frantz Fanon, uma “zona de não-ser” (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008. 1st edition published in 1952., p. 26). Se é um novo sujeito, seu passado é nebuloso, pouco compreensível e “borrado” aos nossos olhos. E então, os descendentes de africanos no Brasil são retratados sociologicamente em dois momentos: o escravo e o negro. A primeira transformação simbólica é a do Bantu (por exemplo) em africano, genericamente. Em seguida, o africano passa a significar escravo. Por último, o escravo torna-se negro, uma categoria que constrange toda uma população a uma nova condição simbólica, desconectada de sua história com o continente africano. Cabe salientar que a demanda por uma história brasileira conectada com a África não significa um movimento essencialista ou de retorno a uma África mítica a-histórica. Significa, isso sim, uma leitura da realidade brasileira que leve em consideração as dinâmicas sociais que a conformam, no passado e no presente.

Para compreendermos a complexidade de nossa sociedade e dos significados compartilhados, é necessário nos atentarmos aos processos de racialização. Mais do que isso, precisamos de leituras transnacionais - ou “supranacionais”, nas palavras de Joel Rufino dos Santos (1985SANTOS, Joel Rufino dos. O Movimento Negro e a crise brasileira. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 2, p. 287-307, jul./set. 1985. , p. 301) - que ultrapassem as fronteiras do nacional e que, portanto, não se limitem às categorias que ignoram a presença da África em nossa história. Essa limitação é, no entanto, marcante na ciência brasileira como um todo, na Sociologia que aqui realizamos (no Brasil) e também no conhecimento produzido sobre educação.

Guerreiro Ramos, no texto “O problema do negro na Sociologia Brasileira” (1957RAMOS, Augusto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Andes, 1957.), nos apresenta uma discussão muito interessante sobre o que ele chamou de “alienação estética do negro” (p. 157). Para o autor, o cientista social que queira empreender o trabalho de superação definitiva do postulado teórico que coloca o negro enquanto um “problema”, deve passar pelo procedimento fenomenológico de se praticar “um ato de suspensão da brancura” (p. 156), a fim de se demonstrar a precariedade das concepções racistas (e patológicas) criadas numa sociedade europeizada como a brasileira. Guerreiro Ramos aprofunda o debate ao fazer uma provocação de fundamento filosófico - o “niger sum”, ou “negro sou”:

Sou negro, identifico como meu o corpo em que o meu eu está inserido, atribuo à sua cor a suscetibilidade de ser valorizada esteticamente e considero a minha condição étnica como um dos suportes do meu orgulho pessoal - eis aí toda uma propedêutica sociológica, todo um ponto de partida para a elaboração de uma hermenêutica da situação do negro no Brasil. (1957, p. 156, grifos nossos)

Há nessa concepção de Ramos uma evidente evocação da máxima Cogito ergo sum (“Penso logo existo”), do filósofo René Descartes. Mas a preocupação de Ramos é a seguinte: “A modernidade me diz que se eu penso, logo eu existo. Mas, ainda que eu (corpo negro) pense, eu não existo para essa sociedade”. O fundamento prático do “eu penso” é, de acordo com Enrique Dussel (1977DUSSEL, Enrique D. Filosofia da libertação na América Latina. 2. ed. Tradução de Luiz João Gaio. São Paulo: Loyola/Unimep, 1977., p. 10), o “eu conquisto”: “Penso, logo conquisto”. Ou seja, para conquistar é preciso antes de tudo ser. Na medida em que eu (corpo negro) não sou, não tenho existência para o outro, logo, estou passível de ser conquistado.

Todo esse debate nos lembra muito a discussão de Frantz Fanon (2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008. 1st edition published in 1952.) sobre o que ele chamou de “zona de não-ser” (p. 26), que citamos há pouco. A existência para o outro, de acordo com Fanon, passa também pela possibilidade da fala: “Falar é existir absolutamente para o outro” (p. 33). A suposição de que Guerreiro Ramos teria sido influenciado pelas ideias de Fanon ainda carece de investigação (FAUSTINO, 2015FAUSTINO, Deivison Mendes. Por que Fanon? Por que agora?: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. 2015. 260 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015.). Mas é possível encontrarmos semelhanças nas preocupações com a subjetividade do ser negro, como vimos no debate em torno da ideia de niger sum, que, antes de tudo, passa pela problematização da experiência negra num contexto racializado.

A fala, condição mínima de convivência respeitosa numa sociedade, depende, antes de tudo, do reconhecimento do corpo enquanto legítimo. Por isso que, na luta contra o racismo, é muito importante compreendermos a força política da linguagem, do corpo e da estética, e aqui recorremos a bell hooks5 5 A autora Glória Jean Watkins adotou o nome bell hooks em homenagem à sua bisavó materna, chamada Bell Blair Hooks. A grafia do nome em letras minúsculas é, de acordo com a intelectual, uma maneira de dar mais destaque ao que ela está escrevendo do que à pessoa em si. Mais informações podem ser conferidas na entrevista que ela concedeu a Helen Twokov em 1992, disponível em https://tricycle.org/magazine/agent-change-an-interview-with-bell-hooks/. Acesso em: 25 nov. 2018. (1995). De acordo com a autora (1995), no discurso colonial, o corpo colonizado foi sempre visto como um corpo destituído de subjetividade, de voz, vontade e afirmação, estando sempre pronto para servir. Seria um corpo destituído de alma. E é exatamente por isso que muitos autores, incluindo a própria bell hooks, estabelecem a estética e o corpo como “lugares” contestatórios. O corpo negro é, por si só, um ato político, na medida em que sua existência desestabiliza os discursos predominantes. É o que hooks vem chamar de “Aesthetic of blackness” (1995, p. 72).

Na medida em que o corpo é negado, a própria existência com afirmação estética é um ato político, porque desestabiliza os discursos estabelecidos. Dito em outras palavras, a discussão sobre elementos culturais vernaculares de origem africana (estéticos, artísticos, refletidos na corporeidade) tem significado político.

A reivindicação da experiência negra, da estética e da corporeidade como campos políticos tem raízes teóricas mais profundas, já nos escritos de Du Bois. Logo na abertura do livro The Souls of Black Folk, o autor chama de “estranha experiência” o fato de o negro habitar um corpo cingido pelo discurso colonial, que estabelece a esse sujeito o status de “problema” social (DU BOIS, 1903/1999, p. 52). Para o autor, o deslocamento do negro da situação de problema depende, muitas vezes, mais da compreensão das práticas culturais do que do conhecimento profundo das práticas formalmente políticas, que acabam por ofuscar a visão dos observadores. Nesse sentido, The Souls of Black Folk é um texto particularmente interessante por trazer um esforço de compreensão das culturas vernaculares que surgiram para mediar os efeitos do terror modernizante.

A preocupação em não estabelecer uma cisão entre campo político e campo cultural está presente também em Joel Rufino dos Santos (1985SANTOS, Joel Rufino dos. O Movimento Negro e a crise brasileira. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 2, p. 287-307, jul./set. 1985. , p. 300), quando ele afirma que essa distinção é, no mínimo, evolucionista e autoritária, na medida em que estabelece o “cultural” como desprovido de crítica e o “político” como lócus da ilustração, último estágio de amadurecimento intelectual. Santos, ao afirmar o caráter político do cultural, orienta os estudiosos da temática etnicorracial, e o próprio movimento negro, a estabelecer uma leitura da realidade brasileira com caráter supranacional, ou seja, liberta das ciladas impostas pelos limites nacionais (1985, p. 301). Nesse sentido, consideramos o historiador e literato Joel Rufino dos Santos um autor fundamental para se realizar uma crítica construtiva para dentro da Sociologia Brasileira e das Ciências Sociais aqui realizadas.

Nesse mesmo sentido de crítica à dicotomia “cultura versus política”, o intelectual Clóvis Moura (2000MOURA, Clóvis. Sociologia política da guerra camponesa de Canudos. São Paulo: Expressão Popular, 2000., p. 24) discorda do que Eric Hobsbawn chamou de “pré-político”. Para Moura, o “descaso” com relação às manifestações culturais e às formas históricas de resistência negra, como o aquilombamento, é uma concepção elitista, eurocêntrica e que exclui os movimentos do Terceiro Mundo (2000, p. 24). Ao propor o conceito de “Quilombagem”, Clóvis Moura pôs foco sobre as ações de resistência movidas pela população negra na história do Brasil. Em Rebeliões da Senzala (1959), Clóvis Moura segue um percurso similar a estudos de outros intelectuais marxistas, também negros, como Cyril Lionel Robert James, em The black Jacobins (1934/2000), e o próprio Frantz Fanon, em Pele Negra, máscaras brancas (1952/2008): Moura via na violência negra, e não apenas nas compensações subjetivas de uma identidade afro-centrada, uma forma de integração política do negro na sociedade ocidental.

Guardadas as devidas particularidades teóricas e políticas entre Clóvis Moura, Guerreiro Ramos e Joel Rufino dos Santos,6 6 Por exemplo, enquanto Clóvis Moura tinha forte atuação no Partido Comunista Brasileiro, realizando uma aproximação com o Movimento Negro apenas a partir na década de 1970, Guerreiro Ramos estava muito mais ligado ao Trabalhismo e ao legado varguista, princípios que nortearam os intelectuais do Teatro Experimental do Negro, entre os quais Abdias do Nascimento. Joel Rufino dos Santos, assim como Guerreiro Ramos, participou do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), onde produziu seis números da coleção Nova História do Brasil, que o rendeu o exílio político, no contexto da ditadura militar. Seu ativismo no movimento negro foi marcante em suas obras de história e de literatura. compreendemos que cada um deles nos oferece leituras alternativas àquelas que tendiam a enclausurar o negro à situação de “objeto de estudo”. Mais do que isso, são autores que nos possibilitam visualizar a agência do negro - entendida como ação, resistência e movimento - no contexto de um longo processo diaspórico que une Brasil e África.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi descrito e analisado, o que significa “desracializar a experiência negra”, tal como anunciado no título deste trabalho? Adotamos os termos “racialização” e “experiência” nos sentidos dados por Frantz Fanon (1952/2008). Racialização, como já foi dito anteriormente, é o processo no qual uma série de significados desumanizadores são projetados sobre determinado grupo social, reduzindo-o a uma “zona de não-ser”, ou seja, a um lugar social de fragilidade ontológica, de sujeição. Essa é a experiência social vivida por negros da diáspora, dispersos pelo mundo e pelo Brasil, e que têm em comum a história da escravidão e os reflexos atuais (simbólicos, econômicos, políticos e culturais) do processo colonial. Eles também têm em comum uma longa história de resistências por meio de lutas diretas e também por outras estratégias políticas, como a estética e as artes.

Logo, um trabalho de revisão crítica da produção de conhecimento no Brasil, no sentido de uma busca desses debates sobre a experiência de racialização, nos faz emergir para fora do caudaloso discurso nacional homogeneizante. Esse discurso, absorvido e amplamente trabalhado pela Sociologia brasileira e por outras ciências, acabou por limitar a caracterização de negros a “descendentes de escravos” ou a eternos aspirantes à condição de sujeitos modernos na sociedade de classes. Eternamente aspirantes pois se caracterizariam, enquanto um problema social, um desencaixe.

Revisitar as teorias sociais do ponto de vista da crítica colonial é uma oportunidade de se perceberem elementos que inserem a história da população negra dentro de um processo colonial mais amplo que, se, de um lado a desumanizou, por outro, e contraditoriamente, fez emergir infinitas formas de resistência e de ressignificação. Nesse sentido, a releitura da Educação brasileira e da teoria social como um todo, buscando nelas as caracterizações desse processo, nos coloca a possibilidade de encararmos outras narrativas, agora diaspóricas e desracializadoras.

REFERENCES

  • ANDERSON, Benedict. As promessas do Estado-nação para o início do século. In: HELLER, Agnes et al. (org.) A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
  • AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX. São Paulo: Annablume, 2004.
  • AZEVEDO, Fernando de et al. Revista HISTEDBR, Campinas, n. especial, p. 188-204, ago. 2006.
  • BRASIL. Congresso Nacional. Decreto-Lei nº 7967, de 1945. Dispõe sôbre a Imigração e Colonização, e dá outras providências. Rio de Janeiro: Congresso Nacional, 1945.
  • BRASIL. Congresso Nacional. Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890. CN/PR, 1890. Regularisa o serviço da introducção e localisação de immigrantes na Republica dos Estados Unidos do Brazil.
  • BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934. Rio de Janeiro: Assembléia Nacional Constituinte, 1934.
  • CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Quando a história da educação é a história da disciplina e da higienização das pessoas. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997. p. 291-309.
  • DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil - 1917/1945. São Paulo: Edunesp, 2006.
  • DU BOIS, William Edward B. As almas da gente negra. Tradução de Heloísa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. 1st edition published in 1903.
  • DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.
  • DUSSEL, Enrique D. Filosofia da libertação na América Latina. 2. ed. Tradução de Luiz João Gaio. São Paulo: Loyola/Unimep, 1977.
  • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008. 1st edition published in 1952.
  • FAUSTINO, Deivison Mendes. Por que Fanon? Por que agora?: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. 2015. 260 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015.
  • FERES JR., João. Ações afirmativas no Brasil: fundamentos e críticas. Econômica, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 291-312, dez. 2004.
  • FREUD, Sigmund. A psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
  • GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras, v. 12, n. 1, p. 98-109, jan./abr. 2012.
  • GONÇALVES, Ana Maria. Políticas educacionais e racismo: Monteiro Lobato e o Plano Nacional Biblioteca da Escola. Revista Fórum, 10 set. 2012. Available in: https://www.revistaforum.com.br/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/ Access on: 25 Nov. 2018.
    » https://www.revistaforum.com.br/politicas-educacionais-e-racismo-monteiro-lobato-e-o-plano-nacional-biblioteca-da-escola-por-ana-maria-goncalves/
  • GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Nacionalidade e novas identidades raciais no Brasil: uma hipótese de trabalho. In: SOUZA, Jessé de (org.) Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: Editora da UnB, 2001.
  • HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: EdUFMG, 2006.
  • HOOKS, bell. An aesthetic of blackness: strange and oppositional. Lenox Avenue: A Journal of Inter-arts Inquiry, Chicago, v. 1, p. 65-72, 1995.
  • JAMES, Cyril Lionel Robert. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2000. 1st edition published in 1934.
  • MISKOLCI, Richard. O desejo da nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do XIX. São Paulo: Annablume, 2012.
  • MOURA, Clóvis. Sociologia política da guerra camponesa de Canudos. São Paulo: Expressão Popular, 2000.
  • MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo: Zumbi, 1959.
  • PENA, Sergio; BIRCHAL, Telma S. Inexistência biológica versus a existência social de raças humanas: pode a ciência instruir o ethos social? Revista da USP, São Paulo, n. 68, p. 10-21, 2006.
  • RAMOS, Augusto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Andes, 1957.
  • RODRIGUES, Tatiane Consentino. A ascensão da diversidade nas políticas educacionais contemporâneas. 2011. 235 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2011.
  • SALES JR., Ronaldo. Democracia racial: o não-dito racista. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 229-258, 2006.
  • SANTOS, Joel Rufino dos. O Movimento Negro e a crise brasileira. Política e Administração, Rio de Janeiro, v. 2, p. 287-307, jul./set. 1985.
  • SILVÉRIO, Valter Roberto; TRINIDAD, Cristina Teodoro. Há algo de novo a se dizer sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo? Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, p. 891-914, jul./set. 2012.
  • VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Memorial orgânico. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), 1850.
  • VILLA, Marco Antônio. A história das constituições brasileiras: duzentos anos de luta contra o arbítrio. São Paulo: Leya, 2011.
  • 1
    O mecanismo de exclusão do decreto n. 528, de 28 de junho de 1890, assinado por Marechal Deodoro da Fonseca foi atualizado pelo decreto-lei n. 7967 de 1945, que vigorou até 1957, e que determinava que: “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia” (BRASIL, 1945BRASIL. Congresso Nacional. Decreto-Lei nº 7967, de 1945. Dispõe sôbre a Imigração e Colonização, e dá outras providências. Rio de Janeiro: Congresso Nacional, 1945.).
  • 2
    Sobre o ideal de “seleção dos mais capazes”, ler o material produzido por intelectuais que formaram o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, de 1932 (AZEVEDO et al., 2006AZEVEDO, Fernando de et al. Revista HISTEDBR, Campinas, n. especial, p. 188-204, ago. 2006. , p. 200).
  • 3
    De acordo com Tatiane Consentino Rodrigues (2011RODRIGUES, Tatiane Consentino. A ascensão da diversidade nas políticas educacionais contemporâneas. 2011. 235 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2011. , p. 84), “um dos atrativos do lamarckismo deve-se ao fato de que, por focar na hereditariedade, esta perspectiva era considerada intrinsecamente antirracista, o que a colocava em harmonia com o ideal de unidade na diversidade postulado na concepção de democracia racial”.
  • 4
    Para maiores informações consultar: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doencas_etnicas.pdf e http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_negra.pdf. Acesso em: 10 nov. 2013.
  • 5
    A autora Glória Jean Watkins adotou o nome bell hooks em homenagem à sua bisavó materna, chamada Bell Blair Hooks. A grafia do nome em letras minúsculas é, de acordo com a intelectual, uma maneira de dar mais destaque ao que ela está escrevendo do que à pessoa em si. Mais informações podem ser conferidas na entrevista que ela concedeu a Helen Twokov em 1992, disponível em https://tricycle.org/magazine/agent-change-an-interview-with-bell-hooks/. Acesso em: 25 nov. 2018.
  • 6
    Por exemplo, enquanto Clóvis Moura tinha forte atuação no Partido Comunista Brasileiro, realizando uma aproximação com o Movimento Negro apenas a partir na década de 1970, Guerreiro Ramos estava muito mais ligado ao Trabalhismo e ao legado varguista, princípios que nortearam os intelectuais do Teatro Experimental do Negro, entre os quais Abdias do Nascimento. Joel Rufino dos Santos, assim como Guerreiro Ramos, participou do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), onde produziu seis números da coleção Nova História do Brasil, que o rendeu o exílio político, no contexto da ditadura militar. Seu ativismo no movimento negro foi marcante em suas obras de história e de literatura.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2018
  • Aceito
    20 Ago 2018
Fundação Carlos Chagas Av. Prof. Francisco Morato, 1565, 05513-900 São Paulo SP Brasil, Tel.: +55 11 3723-3000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadpesq@fcc.org.br