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UMA ANÁLISE GENERIFICADA SOBRE O PROJETO GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA

Resumo

A partir dos estudos feministas e em uma perspectiva pós-estruturalista, discutimos como gênero e diversidade são acionados conceitual e metodologicamente na agenda de uma política de formação de professores/as da educação básica pautada pela educação para a diversidade, intitulada Projeto Gênero e Diversidade na Escola (GDE). Analisamos quatro documentos norteadores do GDE entre os anos 2007 e 2011. Realizamos uma análise cultural para argumentar sobre as ininteligibilidades de uma educação em gênero e em diversidade proposta pela política organizada com base no trato com a diversidade sexual e a diversidade cultural, bem como o sexo e o binarismo de gênero. Tensionamos seus limites e potencialidades como agenda de Estado para o governamento a expensas da produção de corpos (in)viáveis.

DIVERSIDADE; POLÍTICAS PÚBLICAS; FORMAÇÃO DE PROFESSORES; PROJETO GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA

Abstract

This paper is based on feminist studies from a post-structuralist perspective and it aims to discuss how categories such as gender and diversity are conceptually and methodologically added in the agenda of basic education teacher training policy based on education for diversity, titled Projeto Gênero e Diversidade na Escola [Gender and Diversity in School Project] (GDE). Four GDE guiding documents between 2007 and 2011 were analyzed. A cultural analysis was carried out to argue about the unintelligibility of gender and diversity education proposed by organized politics based on how sexual and cultural diversity are treated, as well as sex and gender binarism. Its limits and potentialities were tested as a State-based agenda for a certain purpose and governance at the expense of the production of (un)viable bodies.

DIVERSITY; PUBLIC POLICY; TEACHER TRAINING; PROJETO GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA

Résumé

À partir des études féministes et dans une perspective poststructuraliste, cet article se penche sur la manière dont le genre et la diversité sont conceptuellement et méthodologiquement mis à l’agenda d’une politique pour la formation des professeurs. Il s’agit d’une politique prenant en compte l’éducation à la diversité, intitulée Projeto Gênero e Diversidade na Escola [Genre et Diversité à l’École] (GDE). Nous avons retenu quatre documents directeurs du GDE de la période 2007 à 2011 et effectué une analyse culturelle visant à discuter les manques d’intelligibilité d’une éducation au genre et à la diversité proposée par cette politique centrée su r les rapports entre diversité sexuelle et diversité culturelle, bien que sur sexe et binarisme de genre. Nous montrons à la fois les limites et les potentialités que représente cet agenda pour la maitrise des corps au détriment de la production des corps (non) viables.

DIVERSITÉ; POLITIQUES PUBLIQUES; FORMATION DES ENSEIGNANTS; PROJETO GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA

Resumen

A partir de los estudios feministas y en una perspectiva posestructuralista, discutimos cómo el género y la diversidad son impulsados conceptualmente y metodológicamente en la agenda de una política de formación de profesores/as de la educación básica regida por la educación para la diversidad, titulada Projeto Gênero e Diversidade na Escola [Proyecto Género y Diversidad en Escuela] (GDE). Analizamos cuatro documentos orientadores del GDE entre los años 2007 y 2011. Realizamos un análisis cultural para argumentar sobre las ininteligibilidades de una educación en género y en diversidad propuesta por la política basada en el trato con la diversidad sexual y la diversidad cultural, el sexo y el binarismo de género. Tensamos sus límites y potencialidades como agenda de Estado para el gobierno a expensas de la producción de cuerpos (in) viables.

DIVERSIDAD; POLÍTICAS PÚBLICAS; FORMACIÓN DE PROFESORES; PROJETO GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA

Este texto desdobra-se de uma pesquisa ‘guarda-chuva’1 1 Utilizaremos o recurso das aspas simples para destacar aquelas palavras que, intencionalmente, são utilizadas com um sentido diverso do tradicional. O uso das aspas duplas será realizado em citações apresentadas no corpo do texto. intitulada Políticas públicas de inclusão social e transversalidade de gênero: ênfases, tensões e desafios atuais.2 2 A pesquisa recebeu financiamento via Edital Universal/CNPq, n. 443423/2014-8 para o período de 2014 a 2017. Essa pesquisa maior multifocal e interinstitucional se posiciona no arcabouço das problematizações acerca das relações entre gênero e políticas públicas de inclusão social no Brasil.3 3 A equipe é constituída por um coletivo de pesquisadoras de universidades de diferentes regiões brasileiras, coordenada pela profa. Dra. Dagmar Estermann Meyer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Agrega pesquisadoras de cinco instituições universitárias brasileiras, a saber: na região sul, a UFRGS e a Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí); na região sudeste, a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes); e na região nordeste, a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). De modo geral, analisou a transversalização do gênero em programas e políticas governamentais aliadas pela proposição de promoção da inclusão social e tomando o gênero como categoria teórica e política importante para contemplar esse fim.

Dado esse panorama geral, este artigo se desdobra das análises realizadas em um dos subprojetos vinculados à pesquisa matricial citada acima. Apresenta como especificidade e objetivo problematizar como as categorias gênero e diversidade são acionadas em um plano conceitual, metodológico e político que compõe e constitui as proposições públicas do Projeto Gênero e Diversidade na Escola (GDE). De modo importante e como estratégia analítica, o artigo enfatiza os limites e as potencialidades dessa trama gênero-diversidade enquanto agenda proposta pelo Estado na modernidade. Assim, realizamos a análise de quatro documentos sistematizadores dessa política, produzidos entre os anos de 2007 e 2011.

Para dar conta desse propósito, organizamos o texto de modo a, primeiramente, apresentarmos uma breve descrição do GDE, dos documentos analisados e dos critérios de seleção desse material. Em seguida, circunscrevemos como gênero e diversidade são acionados no GDE e, assim, compõem caminhos epistêmico-políticos de proposição para as vidas e corpos (in)viáveis no campo da educação na contemporaneidade. Por fim, consideramos que propomos um texto atravessado por tramas de problematização da e ruptura com uma diversidade harmônica, multicultural e tolerante, bem como com um gênero binário, considerando o GDE enquanto política pública direcionada para a área da educação.

O GDE E OS DOCUMENTOS SELECIONADOS

O GDE se constituiu como política de governo direcionada para a formação de professores que atuam na educação básica, de modo a fortalecer uma educação para operar com gênero, sexualidade e raça-etnia.4 4 O GDE foi instituído em 2006, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, através de um projeto-piloto (ver CARRARA et al., 2011) e, em seguida, a partir de ofertas anuais. Essa política foi mantida durante o mandato da presidenta Dilma Rousseff. O GDE apresentou a sua primeira oferta na formação de professoras como curso de extensão entre os anos de 2006 e 2007, especificamente no mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A constituição do GDE desdobrou-se de uma articulação intersetorial, incluindo a parceria entre diferentes instituições brasileiras e estrangeiras, como a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do Paraná (SPM/PR), a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir/PR), a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação (MEC),5 5 Participou como auxiliar no processo educacional, disponibilizando recursos como a TV Escola, os objetos de aprendizagem e um ambiente colaborativo de aprendizagem que foi utilizado para inclusão digital e atividades de ensino a distância. Em 2011, foi renomeada como Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi). a Secretaria de Educação a Distância (Seed/MEC),6 6 Em 2005, foi assinado um Protocolo de Intenções entre a SPM/PR, a Seppir/PR e o MEC, por intermédio da Secadi e da Seed, junto com o British Council, com o objetivo de implementar políticas educacionais para a igualdade de gênero, raça/etnia e orientação sexual, por meio de ações de formação de professores/as. o British Council (financiador)7 7 O British Council é uma organização internacional do Reino Unido para assuntos de Educação e Cultura, como a promoção dos direitos humanos, que fortalece e compartilha experiências de políticas educacionais entre os países. O British Council foi responsável pelo subsídio financeiro e pelo incentivo de intercâmbio de experiências sobre políticas públicas educacionais da área de atuação do projeto GDE. e o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Clam/IMS/UERJ).8 8 O Clam tem como proposta institucional a produção, a organização e a difusão de conhecimentos sobre sexualidade na perspectiva dos direitos humanos, objetivando uma diminuição das desigualdades de gênero e sexuais. Especificamente no projeto GDE, o Clam foi selecionado para execução de algumas ações, como a coordenação da elaboração do material didático, a seleção dos/das cursistas, a seleção e a capacitação dos/das professores/as, a coordenação do curso até sua etapa final e a produção de relatórios avaliativos do desenvolvimento e dos impactos da política (sobre este último ver CARRARA et al., 2017), dentre outras ações. A política indicava como prioridade a formação continuada de professores/as da rede pública de ensino, através da oferta de cursos em nível de extensão e/ou de especialização,

[...] nos temas gênero, orientação sexual e relações étnico-raciais visando provê-los/as de ferramentas para refletirem criticamente sobre a prática pedagógica individual e coletiva e combaterem toda forma de discriminação no ambiente escolar. (CARRARA et al., 2011CARRARA, Sergio et al. (org.). Gênero e diversidade na escola: trajetórias e repercussões de uma política pública inovadora. Rio de Janeiro: Cepesc, 2011. Available at: http://www.e-lam.org/downloads/Trajet%C3%B3rias%20e%20repercuss%C3%B5es%20de%20uma%20pol%C3%ADtica%20p%C3%BAblica%20inovadora%20-%20Sistematiza%C3%A7%C3%A3o%20GDE.pdf. Access on: Dec. 8, 2013.
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, p. 54)

O projeto-piloto conduzido em 2006 foi ofertado em seis municípios brasileiros e, segundo informações da SPM,9 9 Disponível em: http://www.spm.gov.br/sobre/a-secretaria/subsecretaria-de-articulacao-institucional-e-acoes-tematicas/ coordenacao-geral-de-programas-e-acoes-de-educacao/genero-e-diversidade-na-escola/curso-genero-e-diversidade- na-escola-gde. Acesso em: 17 maio 2017. realizou a formação continuada de 865 professores/as. Após essa experiência inicial, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi)/MEC modifica e amplia os modos de realização do GDE, construindo a sua oferta pelo Sistema da Universidade Aberta do Brasil (UAB) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)/MEC e em parceria com as instituições públicas de ensino superior do país, incluindo também cursos em nível de especialização. De modo geral, o relatório Gênero e diversidade na escola: avaliação de processos, resultados, impactos e projeções (2017) aponta que “o GDE foi ofertado por 38 universidades públicas estaduais e federais, atingindo mais de 40 mil profissionais da educação” (CARRARA et al., 2017CARRARA, Sergio (org.). Gênero e diversidade na escola: avaliação de processos, resultados, impactos e projeções. Rio de Janeiro: Cepesc, 2017. Available at: http://www.clam.org.br/uploads/arquivo/GDE_Relatorio-10-02-2017.pdf. Access on: Jan. 10, 2017.
http://www.clam.org.br/uploads/arquivo/G...
, p. 15). As ofertas se constituíram em formato anual, se ampliaram no território nacional e foram garantidas na extensão do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e no governo da presidenta Dilma Roussef.10 10 O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se constituiu entre os anos de 2003 a 2011, e o governo da presidenta Dilma Rousseff entre os anos de 2011 a 2016.

Quanto à atualidade da política governamental analisada, importa dizer que a Secad participou como auxiliar na promoção do GDE e, em 2011, foi renomeada como Secadi, com destaque para a incorporação da Secretaria de Educação Especial. Em 2016, com o governo do presidente Michel Temer, a Secadi foi extinta, conforme pode ser conferido no portal da secretaria (BRASIL, 2017). O atual governo do presidente Jair Bolsonaro em 2019 manteve a extinção pactuada pelo governo Temer, o que evidencia a ausência de prioridade, no campo das políticas educacionais brasileiras, para as temáticas dos direitos humanos, das relações étnico-raciais, das relações de gênero e sexualidade, e para o debate sobre a diversidade.

Dentre os diferentes materiais disponíveis sobre o projeto GDE, desde documentos que norteiam a proposta até aqueles que investem na sua avaliação, o recorte da pesquisa apresentado neste texto priorizou um percurso metodológico. Inicialmente, investimos no reconhecimento desses documentos e, em seguida, na sua seleção interna para construir o trabalho analítico principal. Nessa trama, produzimos um percurso metodológico documental (FLICK, 2009FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Trad. Joice Elias Costa. Porto Alegre: Artmed, 2009.) e consideramos as contribuições de Costa e Porto Carvalho (2012COSTA, Marli M. M da; PORTO CARVALHO, Rosane T. A transversalidade das políticas públicas de gênero: um caminho para efetivação dos direitos sociais da mulher. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE DIREITO: dimensões materiais e eficácias dos direitos fundamentais. 2., Chapecó, 2012. Anais... Joaçaba: Unoesc, 2012.) sobre as várias fases de uma política, desde o processo de elaboração (percepção e elaboração do problema) e de formulação (como o problema será solucionado) até as etapas de implementação e avaliação, com o objetivo de categorizá-los nessa trama de fases de uma política, bem como de compreender suas contribuições para atender aos objetivos desta pesquisa.

Após esse movimento, selecionamos quatro documentos do GDE para análise, os quais foram definidos a partir de critérios, como: a) documentos iniciais norteadores da política; e b) documentos que apresentassem um quadro de registro e avaliação da experiência do projeto. Esses critérios permitiram a seleção de documentos que apontam para diferentes fases da política, compondo um escopo que versa sobre o processo de implementação, bem como sobre os primeiros movimentos de avaliação da política construída pelos atores/sujeitos da proposta.

O primeiro documento analisado, intitulado Caderno SECAD 4 - Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e superar preconceitos (HENRIQUES et al., 2007HENRIQUES, Ricardo et al. (org.). Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e superar preconceitos. Cadernos SECAD 4. Brasília: Secad/MEC, 2007. Available at: http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/bib_cad4_gen_div_prec.pdf. Acessado em: 25 nov. 2013.
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), é parte de uma série de cadernos que documentam as políticas públicas da Secadi/MEC, postas em ação a partir do ano de 2004, dentre as quais está o projeto GDE. O segundo documento analisado foi a publicação Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais (PEREIRA et al., 2007PEREIRA, Maria Elisabete et al. (org.). Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais. Brasília/Rio de Janeiro: SPM/CEPESC, 2007. Available at: http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes/2007/gde-2007.pdf. Access on: Nov. 15, 2013.
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),11 11 O caderno constitui o material didático e orientador para os/as professores/as (livro conteúdo). a qual foi selecionada visto que se constituiu como uma primeira tentativa de sistematização da experiência, explicando a sua implementação e apresentando as primeiras avaliações com base nas considerações de professores/as, alunos/as e tutores/as. O terceiro documento foi Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais - livro de conteúdos (BRASIL, 2009). E, finalmente, o quarto documento analisado foi Gênero e diversidade na escola: trajetórias e repercussões de uma política pública inovadora (CARRARA et al., 2011CARRARA, Sergio et al. (org.). Gênero e diversidade na escola: trajetórias e repercussões de uma política pública inovadora. Rio de Janeiro: Cepesc, 2011. Available at: http://www.e-lam.org/downloads/Trajet%C3%B3rias%20e%20repercuss%C3%B5es%20de%20uma%20pol%C3%ADtica%20p%C3%BAblica%20inovadora%20-%20Sistematiza%C3%A7%C3%A3o%20GDE.pdf. Access on: Dec. 8, 2013.
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).

Como procedimento de análise desses documentos que se constituíram como material empírico selecionado, operamos com a análise cultural. Nesse campo conceitual-operativo, o conceito de cultura é acionado como um campo de constantes lutas, contestações e resistências, no qual os sujeitos se conformam em grupos diferentes (MEYER, 2003MEYER, Dagmar E. E. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira L.; NECKEL, Jane; GOELLNER, Silvana V. (org.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 9-27.). Considera-se, nessa trama, a cultura como produtiva no âmbito das relações de saber-poder. Hall (1997HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais de nosso tempo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul./dez. 1997., p. 33) destaca que a cultura significa não apenas “partilhar significados”, mas também um campo de contínuas disputas, nas quais a linguagem constitui um modo privilegiado pelo qual os significados são produzidos, negociados e trocados. É através da linguagem que são produzidas formas de significação e de classificação social, gerando posições sobre raça, etnia, nacionalidade, geração e gênero, por exemplo.

Partindo dessa compreensão, cabe problematizar como alguns enunciados sobre gênero e diversidade podem ser acionados para explicar as tramas epistemológicas e os efeitos políticos da assunção desses conceitos, produzindo e perfazendo a trama cultural. Além disso, ao considerarmos as políticas públicas e, neste texto, especialmente, o projeto GDE como parte dos mecanismos culturais educativos na contemporaneidade, em diálogo com uma noção larga de educação (MEYER, 2003MEYER, Dagmar E. E. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira L.; NECKEL, Jane; GOELLNER, Silvana V. (org.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 9-27.), investimos em um movimento analítico e educativo dessa política, o que nos permite “descrever elementos constitutivos da racionalidade que produz e sustenta tais políticas” na qual “se articulam, explícita e intensamente, problemas sociais contemporâneos” (MEYER, 2012, p. 49). Desse modo, a análise cultural aqui empreendida investe em situar e problematizar como gênero e diversidade são postos de forma conceitual e operativa, com que efeitos, pelo projeto GDE.

MODOS DE OPERAÇÃO COM DIVERSIDADE NO GDE

O “virar e mexer” do processo de análise do GDE a partir dos documentos selecionados da política nos colocou uma provocação sobre o papel estratégico da categoria diversidade em suas (des)amarrações conceituais e políticas. Esse principal movimento analítico nos permite discutir e problematizar como esse conceito e seus usos (nas suas tramas de poder) compõem compromissos, tensões e limites para uma proposta de “educação para a diversidade”, bem como seus movimentos de estreitamento/alargamento políticos para uma agenda governamental comprometida com a transversalidade de gênero.

Nesses movimentos de organização/visibilidade analítica, primeiramente, afirmamos que a palavra diversidade é citada com muita frequência nos documentos analisados. Essa constatação tem relação direta com certa suposição de condição e/ou posição transversal que é atribuída à diversidade nos projetos e programas produzidos pela Secadi/MEC entre 2004 e 2007, incluindo aqui o projeto GDE. Sobre isso, o caderno Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e superar preconceitos (HENRIQUES et al., 2007HENRIQUES, Ricardo et al. (org.). Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e superar preconceitos. Cadernos SECAD 4. Brasília: Secad/MEC, 2007. Available at: http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/bib_cad4_gen_div_prec.pdf. Acessado em: 25 nov. 2013.
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, p. 5) orienta que “os temas abordados [na política da Secadi/MEC] compreendem questões da diversidade - étnico-raciais, de gênero e diversidade sexual, regionais e culturais, bem como os direitos humanos e a educação ambiental”.

Em acordo com a proposta da Secadi/MEC, o projeto GDE apresenta regularidade de enunciações do termo diversidade, as quais funcionam basicamente nas seguintes posições: a) pela sua posição na agenda de objetivos do projeto GDE - como produto social da eficácia da política; e b) pelo investimento conceitual e operativo com diversidade nos diferentes documentos e módulos do projeto GDE - como ferramenta operativa e estratégica da política. Como exemplo referente ao primeiro ponto, a seguir dispomos trechos que caracterizam o projeto GDE e indicam suas metas, tais como “políticas de formação de profissionais da educação para os direitos humanos, para a equidade de gênero e étnico-racial e para o respeito à diversidade de orientação sexual” (HENRIQUES et al., 2007HENRIQUES, Ricardo et al. (org.). Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e superar preconceitos. Cadernos SECAD 4. Brasília: Secad/MEC, 2007. Available at: http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/bib_cad4_gen_div_prec.pdf. Acessado em: 25 nov. 2013.
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, p. 16) ou “promover a articulação das políticas públicas de diversos setores [...] voltadas à promoção da educação para a igualdade de gênero e para o reconhecimento da diversidade de orientação sexual e identidade de gênero” (PEREIRA et al., 2007PEREIRA, Maria Elisabete et al. (org.). Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais. Brasília/Rio de Janeiro: SPM/CEPESC, 2007. Available at: http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes/2007/gde-2007.pdf. Access on: Nov. 15, 2013.
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, p. 39).

No que se refere ao acionamento da diversidade como operação conceitual, como citado no item b) acima, identificamos que o projeto GDE aciona dois modos principais de operação com a diversidade: as concepções de diversidade cultural e de diversidade sexual. Ambas aparecem de modo substancial nos documentos analisados e são posicionadas como conceitos epistêmicos e táticas políticas importantes para a promoção de uma educação para a diversidade. Nessa trama do projeto GDE, as operações teóricas com essas diversidades (cultural e sexual) funcionam como engrenagens fundamentais para a promoção de uma diversidade - produto da eficácia da política - e condição para a proposta de educação. Sobre isso, verificamos que a diversidade cultural é explicitada no módulo de conteúdos como “caráter arbitrário e coletivos de comportamentos e identidades sociais” (CARRARA et al., 2011CARRARA, Sergio et al. (org.). Gênero e diversidade na escola: trajetórias e repercussões de uma política pública inovadora. Rio de Janeiro: Cepesc, 2011. Available at: http://www.e-lam.org/downloads/Trajet%C3%B3rias%20e%20repercuss%C3%B5es%20de%20uma%20pol%C3%ADtica%20p%C3%BAblica%20inovadora%20-%20Sistematiza%C3%A7%C3%A3o%20GDE.pdf. Access on: Dec. 8, 2013.
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, p. 41) e ainda como “a diversidade de valores, comportamentos e identidades segundo diferentes culturas” (p. 42-43). Consideramos que essa diversidade amalgamada com o conceito de cultura é colocada como uma grande associação e/ou coletividade de sujeitos e significados, de comportamentos e identidades, de expressões fixadas de diferentes espaços culturais.

Parece-nos, então, que o projeto GDE aciona de modo mais confortável uma trama cultural diversa, um encontro, uma celebração das diferenças quando se refere a diversidade cultural. Proposição teórico-política que, a nosso ver, se constitui de modo distinto da compreensão de como a diferença é operacionalizada no âmbito da cultura. Sobre isso, o conceito de cultura que assumimos neste texto e já citado acima nos permite evidenciar como as relações de saber e poder estão entremeadas com os modos de classificação, de significação e hierarquização social dos sujeitos, das identidades, dos costumes, dos valores e dos comportamentos acionados por políticas públicas como o projeto GDE. Há um campo epistêmico-político-analítico da cultura não evidenciado quando assumimos a diversidade como diferentes, a diferença como produto, a cultura como estratificação. Assim, dialogando com Tomaz Tadeu da Silva (2000SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000., p. 76), consideramos que “seria preciso considerar a diferença não simplesmente como resultado de um processo, mas como o processo mesmo” de produção na/pela cultura dos referentes identitários e da diferença.

Além disso, nos questionamos: ao acionarmos o conceito de cultura como posto pelo projeto GDE, quais as (im)possibilidades de análise social quando, teórica e metodologicamente, acionamos gênero e sexualidade como marcadores distantes ou não classificados de modo direto/prioritário no que as políticas públicas nomeiam como diversidade cultural? Junto a isso, os documentos analisados destacam a necessária operação conceitual e política com a diversidade sexual e/ou orientação sexual na escola e no âmbito da educação como modo importante de operação com a diversidade.

Há, assim, um investimento específico que aponta para a visibilidade de minorias gênero-sexuais de modo a “levar em conta experiências e percepções juvenis sobre temas como diversidade sexual, direitos sexuais e reprodutivos, gravidez, desejo, prazer, afeto, Aids e drogas” (PEREIRA et al., 2007PEREIRA, Maria Elisabete et al. (org.). Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais. Brasília/Rio de Janeiro: SPM/CEPESC, 2007. Available at: http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes/2007/gde-2007.pdf. Access on: Nov. 15, 2013.
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, p. 44). Assim, a escola precisaria acionar a sexualidade e/ou a orientação sexual, pois “a escola silencia sobre o tema ou lida com a diversidade sexual pela ótica de ‘problema a ser enfrentado’” (PEREIRA et al., 2007, p. x).

Analisando os documentos, sugerimos que o projeto GDE assume a sexualidade e/ou orientação sexual como categorias importantes que perpassam de modo central, junto com as categorias gênero e raça/etnia, a sua ação principal, que é a formação de professores/as com foco na educação para a diversidade. Esses movimentos com a diversidade compõem a política analisada e se constituem como ferramentas operativas que garantem respostas à demanda de “ações e políticas educacionais que visem ao respeito e à valorização da diversidade e combatam a discriminação” (CARRARA et al., 2011CARRARA, Sergio et al. (org.). Gênero e diversidade na escola: trajetórias e repercussões de uma política pública inovadora. Rio de Janeiro: Cepesc, 2011. Available at: http://www.e-lam.org/downloads/Trajet%C3%B3rias%20e%20repercuss%C3%B5es%20de%20uma%20pol%C3%ADtica%20p%C3%BAblica%20inovadora%20-%20Sistematiza%C3%A7%C3%A3o%20GDE.pdf. Access on: Dec. 8, 2013.
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, p. 25).

Nestes caminhos que anunciamos aqui, a diversidade aparece de modo importante como estratégia e como efeito das ações da política pública analisada, especificamente a formação de professores/as. Desse modo, como estratégia de compreender os limites e as possibilidades teórico-políticas do projeto GDE, investimos agora em compreender como a diversidade é enunciada e quais desdobramentos são possíveis. Para isso, assumimos que a linguagem constitui os sentidos no âmbito da cultura (HALL, 1997HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais de nosso tempo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul./dez. 1997.). Essa compreensão aponta que a diversidade pode funcionar com diferentes efeitos, como nos provocam Cosentino e Abramowicz (2011COSENTINO, Tatiane, R.; ABRAMOWICZ, Anete. Diversidade e as políticas públicas de educação. Revista Contraponto, v. 11, n. 3, p. 244-254, set./dez. 2011.), ao analisarem as diversas conotações do enunciado diversidade nas políticas públicas brasileiras para a área da educação. Segundo essas autoras, é possível distinguir uma “ascensão da diversidade”, na qual diversos significados são atribuídos, mas na qual

[...] a imprecisão ou o uso irrestrito da mesma não se restrinja ao simples elogio às diferenças, às pluralidades e às diversidades, tornando-se uma armadilha conceitual e uma estratégia política de esvaziamento e/ou apaziguamento das diferenças. (COSENTINO; ABRAMOWICZ, 2011COSENTINO, Tatiane, R.; ABRAMOWICZ, Anete. Diversidade e as políticas públicas de educação. Revista Contraponto, v. 11, n. 3, p. 244-254, set./dez. 2011., p. 245)

Essa ascensão da diversidade constituiu-se de diferentes modos e em diferentes períodos. Primeiramente, a partir dos anos 1990, como resultado das demandas de diversos organismos internacionais, como, por exemplo, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), que passou a incluir o termo diversidade nos seus documentos e planos de ação, provocando essa assunção em países como o Brasil. Além desse momento, identifica-se um processo de institucionalização das políticas da diversidade no âmbito do MEC,12 12 Nesse contexto, identificamos diversos programas nos quais a diversidade é citada, como, por exemplo: a) os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que destacam entre seus temas transversais a “pluralidade cultural” e a “orientação sexual”; b) o Diversidade na Universidade e Educação para a cidadania e educação inclusiva: direito à diversidade da Secretaria da Educação Especial, embora o programa que efetivamente teve maiores recursos tenha sido o Diversidade na Universidade (COSENTINO; ABRAMOWICZ, 2011). Além desses, pode-se mencionar a criação da Secretaria de Educação e Alfabetização e Diversidade (Secadi/MEC). mesmo que os movimentos de apropriação e operacionalização pelas secretarias tenham se dado de modos distintos.

No âmbito da análise teórico-política do trato com o conceito de diversidade nas políticas educacionais, parece-nos que o uso como sinônimo de multiplicidade se constituiu como uma concepção vinculada ao arcabouço do multiculturalismo ou interculturalismo. Silva (2000SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000., p. 73) argumenta que o problema dessa perspectiva recai sobre o efeito do tratamento dado para a diversidade, não parecendo possível que “uma perspectiva que se limita a proclamar a existência da diversidade possa servir de base para uma pedagogia que coloque no seu centro a crítica política da identidade e da diferença”. Em acordo com Silva e corroborando Michele Vasconcelos e Jeane Félix (2016VASCONCELOS, Michele; FÉLIX, Jeane. Gênero, sexualidade e direitos humanos na educação escolar: entre igualdades e diversidades, a diferença. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 24, n. 1, p. 255-272, jan./abr. 2016. Available at: http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index. Access on: May 10, 2017.
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), indicamos a importância tática, no âmbito dos efeitos das relações de saber-poder, das políticas públicas operarem com direito à educação como direito à igualdade e à diferença. Esse caminho conceitual e político colocaria o campo da educação e suas instituições, como a escola, mais distantes de um “cenário de confinamento identitário” e mais como um investimento na vida como espaço de política.

Ainda sobre (im)possibilidades e efeitos sociais para o trato com a diversidade, Larrosa e Skliar (2001LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Babilônios somos. A modo de apresentação. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (org.). Habitantes de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 7-30.) nos provocam a pensar os desafios da política da diferença, destacando para os perigosos efeitos de proposições que enunciam diversidade, democracia, tolerância e pluralidade como palavras de ordem e objetivos das suas práticas, entretanto, acionando as diferenças,

[...] representando-as, desativando-as, ordenando-as, fazendo-as produtivas, convertendo-as em problemas bem definidos ou em mercadorias bem rentáveis; teríamos de produzir e canalizar os fluxos e os intercâmbios […] teríamos de convocar toda alteridade possível, de permitir-se todas as comunicações. (LARROSA; SKLIAR, 2001LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Babilônios somos. A modo de apresentação. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (org.). Habitantes de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 7-30., p. 10)

Assumindo compromissos teórico-políticos e éticos com a rasura das estratificações identitárias (ou de suas reuniões no plano da diversidade), dos essencialismos culturais como produto desse modo de governo e, consequentemente, dos movimentos de definição/fixação dos corpos na modernidade, nos colocamos a problematizar o projeto GDE para afirmá-lo como modo para a produção de políticas de identificação e governo da diferença.

Nesse sentido, referimo-nos a uma diversidade que funciona no/pelo movimento da diferença, assumindo-a como processo produtivo, como uma operação-ação-movimento que não se faz pelo diverso. Um investimento de questionamento “não apenas à identidade [e à diferença], mas também ao poder ao qual ela está estritamente associada” (SILVA, 2000SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000., p. 101). Nessa linha de argumentação, o projeto GDE propõe o trato com a diversidade cultural e diversidade sexual como o encontro de produtos representativos, capturados por certa fixidez - como a identidade, a diferença e a diversidade. Além disso, na contramão de uma política da diferença, essas categorias são acionadas como referentes para as subjetividades contemporâneas, mesmo essa sendo uma política produzida na esteira das lutas inclusivas e minoritárias.

Acionamos a diversidade menos como uma celebração, encontro, junção ou reunião de ficções identitárias estratificadas, mesmo que essas possibilidades tenham funcionalidades políticas importantes no âmbito da cultura. Buscamos, aqui, pensar na diferença e no desejo como possibilidades de subverter a ideia de funcionalidades do corpo (e dos sujeitos) e suas posições fixas na contemporaneidade. Não extinguimos, com isso, a relação com o outro para a produção do sujeito. Apenas não fixamos a diferença e a identidade em binários - aquela sede de poder que se trama apenas pela distinção e estratificação de oposições. Nos interessa pensar na diferenciação como processo cultural.

MARCOS DE GÊNERO NO GDE: (IN)VIABILIDADES DOS CORPOS?

Como gênero poderia se operacionalizar no âmbito do projeto GDE funcionando para a produção “registros abertos à disposição dos corpos falantes” (PRECIADO, 2014PRECIADO, Paul Beatriz. Manifesto contrassexual. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014., p. 35)? Nesta seção, inspiradas em Vasconcelos e Félix (2016VASCONCELOS, Michele; FÉLIX, Jeane. Gênero, sexualidade e direitos humanos na educação escolar: entre igualdades e diversidades, a diferença. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 24, n. 1, p. 255-272, jan./abr. 2016. Available at: http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index. Access on: May 10, 2017.
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), buscamos analisar o gênero como ferramenta conceitual do projeto GDE, pensando os seus limites e tensões para uma educação para a diversidade. Nesse sentido, observamos que, nos documentos da política, o gênero pode ter diversos usos como, por exemplo: identidade e marcas de gênero; diferenças, discriminação, violência de gênero; participação feminina no mercado de trabalho ou equidade de gênero (HENRIQUES et al., 2007HENRIQUES, Ricardo et al. (org.). Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e superar preconceitos. Cadernos SECAD 4. Brasília: Secad/MEC, 2007. Available at: http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/bib_cad4_gen_div_prec.pdf. Acessado em: 25 nov. 2013.
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). Sua identificação ocorre como categoria analítica e política para contrastar os mecanismos históricos da dominação masculina no campo da saúde, educação e do trabalho (PEREIRA et al., 2007PEREIRA, Maria Elisabete et al. (org.). Gênero e diversidade na escola: formação de professoras/es em gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais. Brasília/Rio de Janeiro: SPM/CEPESC, 2007. Available at: http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes/2007/gde-2007.pdf. Access on: Nov. 15, 2013.
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). Também existe uma marcada contraposição a uma determinação biológica do gênero, destacando o histórico de sua concepção para explicar as diferenças e as desigualdades sociais e culturais entre homens e mulheres (masculinidades e feminilidades), destacando-se que foi um

[...] conceito formulado nos anos 1970 com profunda influência do pensamento feminista. Ele foi criado para distinguir a dimensão biológica da dimensão social [...] [e] significa que homens e mulheres são produtos da realidade social e não decorrência da anatomia de seus corpos. (BRASIL, 2009, p. 40)

Nos investimentos de análise que produzimos, é possível perceber que a política aciona uma distinção entre gênero e sexo e um questionamento da naturalidade da linearidade sexo-gênero-sexualidade (BRASIL, 2009, p. 16). Argumentos localizados como forma de se opor à heteronormatividade, ou seja, uma “contraposição ao modelo convencional, masculino, heteronormativo, branco e de classe média” (HENRIQUES et al., 2007HENRIQUES, Ricardo et al. (org.). Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e superar preconceitos. Cadernos SECAD 4. Brasília: Secad/MEC, 2007. Available at: http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/bib_cad4_gen_div_prec.pdf. Acessado em: 25 nov. 2013.
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, p. 35). Também identificamos fortemente uma discussão consistente sobre homofobia institucional na escola e sobre um diagnóstico relativo às mulheres (dados sobre o acesso em diferentes faixas etárias). Entretanto, contribuindo com as análises do projeto GDE já realizadas, identificamos simultaneamente dois movimentos contraditórios em relação ao conceito de gênero: a) uma menor quantidade de problematizações contundentes sobre a produção das masculinidades;13 13 As avaliações dos/das cursistas e professores/as destacaram “como lacuna nos textos o olhar sobre os homens e sobre a masculinidade, a partir da abordagem relacional potencializada pela categoria de gênero” (PEREIRA et al., 2007, p. 95). b) apenas algumas menções e discussões sobre heteronormatividade aliadas a uma invisibilidade das discussões sobre corpos cisgêneros e corpos transgêneros.

Ainda nesse movimento analítico do projeto GDE e reconhecendo as (im)possibilidades dessa política, é importante indicarmos que acionamos o conceito de gênero buscando romper com qualquer origem biológica do gênero. Acordamos com a política de gênero como um campo normativo que estabiliza o gênero binário como modo de inteligibilidade dos corpos e, para isso, naturaliza o sexo (BUTLER, 2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.). Nessa trama, gênero se constitui como uma operação sintética, maleável, variável e suscetível de ser transformada ou imitada, conforme Preciado (2008PRECIADO, Paul Beatriz. Testo Yonqui. Madrid: Espasa Calpe, 2008.). Isso significa uma análise de gênero distinta daquelas que operam com a categoria sexo, sem denunciá-la como um produto/produtor normativo que funciona para gerar/gerir o gênero.

Nesse sentido, compreende-se que gênero é “o efeito do cruzamento de representações discursivas e visuais que emanam dos diferentes dispositivos institucionais” (PRECIADO, 2008PRECIADO, Paul Beatriz. Testo Yonqui. Madrid: Espasa Calpe, 2008., p. 83), dentre os quais podemos destacar a família, a religião e o Estado e seu aparato de políticas institucionais e sociais. Essa compreensão nos permite problematizar não apenas as tecnologias de gênero como um conjunto de técnicas que acionam modos performativos de produzir os corpos vinculados a, e originários de, uma materialidade do sexo (PRECIADO, 2008), mas também a própria noção binária de homens e mulheres, fruto do funcionamento dessa categoria/tecnologia normativa (BUTLER, 2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.; PRECIADO, 2014). Essa assunção nos permite questionar e problematizar modos de inteligibilidade binários constituidores das pedagogias do gênero e da sexualidade, dentre as quais podemos incluir as políticas públicas. Possibilita-nos, assim, questionar o que fica no lugar do ininteligível e, consequentemente, impossível e não objetificável no campo das políticas públicas ditas voltadas para o campo da diversidade e da educação.

Vasconcelos e Félix (2016VASCONCELOS, Michele; FÉLIX, Jeane. Gênero, sexualidade e direitos humanos na educação escolar: entre igualdades e diversidades, a diferença. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 24, n. 1, p. 255-272, jan./abr. 2016. Available at: http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index. Access on: May 10, 2017.
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) nos provocam a pensar como a noção de humanidade e de direitos humanos das políticas é disputada. Para as autoras, em geral, falamos de “uma humanidade generificada e sexualizada (ou se existe como homem ou como mulher; como hétero ou como homossexual, os primeiros termos guardando sempre uma relação ‘superior’ de hierarquia [...])” (VASCONCELOS; FÉLIX, 2016VASCONCELOS, Michele; FÉLIX, Jeane. Gênero, sexualidade e direitos humanos na educação escolar: entre igualdades e diversidades, a diferença. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 24, n. 1, p. 255-272, jan./abr. 2016. Available at: http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index. Access on: May 10, 2017.
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, p. 256). Isso significa assumir um corpo como uma dada materialidade nomeada como biológica e tornada elegível, inteligível e viável a partir de uma base normativa constritiva, que o explica em uma determinada cultura. Pode-se dizer que esses processos normativos de significação/constituição do corpo (e do sexo) são disputados - de um lado, estão os processos que tentam fixar sentidos, nomeando e inscrevendo determinadas marcas nos corpos; de outro, as possibilidades inerentes à própria repetição normativa que, no seu ritual, podem subverter aqueles significados constituídos como “a” referência - possibilidades e caminhos de potência e resistência.

Desse modo, as análises que realizamos do projeto GDE acionam essa política como produtora de significados e alicerçada em um campo epistemológico de compreensão do gênero e da sexualidade. As análises apontam para premissas generificadas importantes acionadas pela política e, ao mesmo tempo, suas fissuras e contradições. Primeiramente, destacamos certa oscilação conceitual-política do projeto GDE com relação às bases das disputas de gênero, visto que, ao mesmo tempo em que o documento anuncia como objetivo

[...] a construção de uma política de educação para a diversidade que questione estereótipos, preconceitos, desigualdades de gênero, étnico-raciais, a discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero (CARRARA et al., 2011CARRARA, Sergio et al. (org.). Gênero e diversidade na escola: trajetórias e repercussões de uma política pública inovadora. Rio de Janeiro: Cepesc, 2011. Available at: http://www.e-lam.org/downloads/Trajet%C3%B3rias%20e%20repercuss%C3%B5es%20de%20uma%20pol%C3%ADtica%20p%C3%BAblica%20inovadora%20-%20Sistematiza%C3%A7%C3%A3o%20GDE.pdf. Access on: Dec. 8, 2013.
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, p. 35),

percebe-se uma reiteração do foco em uma educação não sexista, não racista e não homofóbica. O que essas expressões nos colocam de alinhavos e tensionamentos no campo epistemológico e político do gênero?

Parece-nos que a ênfase sobre a ideia de sexista/não sexista junto ao acionamento das identidades de gênero funciona planificando o trato com gênero com base no sexo como referente epistemológico e político de definição dos corpos. Além disso, a trama com as identidades de gênero evidencia um educar para a diversidade que se dá a partir da operação com o conceito de identidade, ou melhor, com esses “esboços grosseiros de formações identitárias” (HALBERSTAM, 2012bHALBERSTAM, Judith Jack. A homofobia faz parte do estado teocrático. A Tarde, Salvador, nov. 2012b. (Seção Muito). Available at: http://www.atarde.uol.com.br/muito/materias/1447525-%22a-homofobia-faz-parte-do-estado-teocratico%22. Access on: Dec. 11, 2012.
http://www.atarde.uol.com.br/muito/mater...
, p. 2).

Provocamo-nos a pensar se a política analisada atuaria a partir das “miopias de gênero” (VASCONCELOS; SEFFNER, 2015VASCONCELOS, Michele; SEFFNER, Fernando. A pedagogia das políticas públicas de saúde: norma e fricções de gênero na feitura de corpos. Cadernos Pagu, n. 44, p. 261-297, jan./jun. 2015.), isto é, se as proposições do projeto GDE funcionariam compondo inviabilidades epistêmico-políticas para os rumos ambíguos, do deslocamento pelas fronteiras e dos campos de abjeção/resistência definindo os corpos/sujeitos alvos das políticas sociais. As “miopias de gênero” funcionariam constituindo as políticas públicas e concebendo os sujeitos alvos das propostas governamentais como aqueles inteligíveis ontologicamente a partir da linearidade sexo-gênero-desejo-identidade sexual. Um plano de viabilidade e dizibilidade constituidor do que é um corpo e de quais corpos são possíveis de serem pensados como objeto das políticas públicas brasileiras.

Considerando que as “identificações nunca se materializam plena e finalmente”14 14 No original: “identifications are never fully and finally made”. (BUTLER, 1993BUTLER, Judith. Bodies that matter, on the discursive limits of “sex”. New York: Routledge, 1993., p. 105, tradução nossa), o projeto GDE, mesmo disputando concepções essencialistas de gênero, aciona o que é humano, viável e digno de ser considerado um corpo que importa socialmente ao operar com essa trama identitária de gênero, de modo mais consistente nos textos analisados dessa política:

A articulação entre o binarismo de gênero (homem-mulher) e o binarismo presente no plano da sexualidade (heterossexualidade-homossexualidade) também é abordada em uma perspectiva transversal, bem como as relações entre a discriminação social por gênero e por orientação sexual na sociedade brasileira. (CARRARA et al., 2011CARRARA, Sergio et al. (org.). Gênero e diversidade na escola: trajetórias e repercussões de uma política pública inovadora. Rio de Janeiro: Cepesc, 2011. Available at: http://www.e-lam.org/downloads/Trajet%C3%B3rias%20e%20repercuss%C3%B5es%20de%20uma%20pol%C3%ADtica%20p%C3%BAblica%20inovadora%20-%20Sistematiza%C3%A7%C3%A3o%20GDE.pdf. Access on: Dec. 8, 2013.
http://www.e-lam.org/downloads/Trajet%C3...
, p. 42)

Investe-se, assim, em uma agenda para a promoção e a garantia dos direitos daqueles corpos reconhecidos como mulheres ou homens, daqueles corpos marcados pelo referente da cisgeneridade. Consideramos que o projeto GDE aciona um repertório intersecional potente para a formação de professores/as, articulando gênero, sexualidade e raça/etnia; contudo, consideramos o plano da heteronormatividade como possibilidade que deve ser ampliada na trama proposta pelo projeto GDE, e propomos que se rompam caminhos que acionam os corpos possíveis das políticas públicas com base no sexo, já que

[...] naturalizando o gênero [...] não se desenvolverá, a partir de tal categoria, um trabalho de análise, intervenção e (trans)formação nas políticas e nos serviços de saúde, junto a gestor*s, trabalhador*s e usuári*s, junto a tod*s e cada um* de nós. (VASCONCELOS; SEFFNER, 2015VASCONCELOS, Michele; SEFFNER, Fernando. A pedagogia das políticas públicas de saúde: norma e fricções de gênero na feitura de corpos. Cadernos Pagu, n. 44, p. 261-297, jan./jun. 2015., p. 264-265)

Trata-se de tensões e limites das políticas e, no caso do projeto GDE, de uma educação para a diversidade que pode funcionar produzindo aquilo que é concebido como humano, digno de ações do Estado na modernidade e de dolo. Aqui, elege-se, de forma prioritária, “o questionamento das agendas de Estado reificadoras de um modelo de vida heterossexual como padrão definidor do que ‘entra na conta’ em certas noções de humanidade” (DORNELLES, 2013DORNELLES, Priscila Gomes. A (hetero)normalização dos corpos em práticas pedagógicas da educação física escolar. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013., p. 38-39).

Apesar dos seus investimentos no rompimento com uma das principais expressões resultantes da heteronormatividade - a heterossexualidade -, o GDE aciona um campo epistemológico que, ainda assim, produz sujeitos/corpos não humanos e/ou impossíveis como foco da política ao acionar o conceito de orientação sexual e de sexualidade nas proposições para o rompimento com uma sociedade homofóbica. A partir de diálogos com Jack Halberstam (2012aHALBERSTAM, Judith Jack. Repensando o sexo e o gênero. In: MISKOLCI, Richard; PELÚCIO, Larissa (org.). Discursos fora da ordem: sexualidades, saberes e direitos. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2012a. p. 125-138.), isso se dá quando não assumimos que a relação do desejo e das possibilidades dos corpos desejantes, no campo da experiência, é mais ampla do que a expressão de uma identidade através de uma sigla (LGBTTI,15 15 Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e intersexos. por exemplo) e/ou do que as decorrentes indicações de orientação/identidade sexual podem expressar. Desse modo, há corpos não categorizáveis pelas expressões identitárias que a política propõe ao tratar do campo da sexualidade e que, consequentemente, não são acionados como foco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apontamos, neste texto, algumas problematizações sobre como a diversidade e o gênero podem ser acionados nas políticas públicas, indicando suas tensões e desafios para as disputas pelos modos de (re)conhecimento dos corpos pelo Estado na modernidade. Inicialmente, importa-nos considerar que o projeto GDE ampliou a política de formação de professores/as no território brasileiro com foco na educação para a diversidade. Uma política que se sustenta na trama entre gênero, sexualidade e relações étnico-raciais. Caminhos teórico-sociais importantes e extremamente relevantes para visibilizar as relações de poder-saber gênero-raça sexualizadas que produzem desigualdades sociais no Brasil, bem como para complexificar as análises sociais no campo da educação e da educação escolar. Além disso, é fundamental considerarmos a atuação do GDE no cenário nacional na última década ao considerarmos que, nesse mesmo período ou na parte mais recente dele, temos uma crescente de investimentos e de ataques conservadores no campo da cultura, da educação, das artes, da política para definir os corpos que são dignos de políticas educativas e sociais, de respeito em espaços públicos - inclusive a escola -, de efetivo exercício de direitos constitucionais.

Entretanto, desde uma analítica cultural, problematizamos as tramas epistemológicas e os efeitos políticos da assunção dos conceitos de diversidade e de gênero pelo projeto GDE, de modo a questionar quem conta como corpo (im)possível na promoção dessa política pública. De modo inicial, pactuamos como fundamental rompermos com as lógicas fixas e amistosas da diversidade, como a reunião dos múltiplos e dos diferentes, para pensarmos na potência do trabalho com a diferença como processo. Proposições analíticas e culturais nos permitem investir nesta trama entre diferença e cultura para evidenciar a produção contínua dos sujeitos marcados como da diferença, bem como para resistirmos aos modos de marcação-fixação tramados nas relações de saber-poder. Nesse mesmo tom, observamos como a lógica binária e identitária perfazem e estruturam a concepção e as discussões analíticas propostas pelo projeto GDE, tomando como referente, de modo mais contundente e consistente, os documentos analisados.

Evidenciamos uma análise dos documentos, porque reconhecemos que a estratégia de expansão e funcionalidade do projeto ao longo dos anos se sustentou em articulação com algumas instituições de ensino superior, constituindo-se assim como um projeto que, certamente, se efetivou atravessado pelas especificidades de cada instituição e região ofertantes. Assim, esse caminho do projeto GDE permitiu apropriações, negociações e reconfigurações diversas pelas instituições, mesmo que tenhamos um quadro conceitual e analítico da política apresentado pelos seus documentos, registrando aqui os limites de uma análise documental.

Outro ponto relevante é destacarmos esse projeto como muito potente e fundamental para a formação de professores/as que atuam na educação básica agora, em 2019, mesmo após 13 anos do seu início no formato de projeto piloto em 2006. É importante percebermos como a esteira de disputas em torno das temáticas de gênero e sexualidade no campo da educação e, principalmente, na escola “engrossam o caldo” das ações de grupos conservadores organizados, construindo a falácia de que o trato com essas temáticas se constituiria no exercício de uma ideologia de gênero nas escolas. Essas posições conservadoras desconsideram a importância de uma educação não racista, não sexista e não homofóbica, pautada pela promoção da igualdade e do respeito à diferença.

Grupos políticos conservadores e com atravessamentos religiosos (em geral, a partir de vertentes católicas e/ou evangélicas) investem no campo da educação também para modificar documentos e/ou censurar atividades docentes e suas proposições pedagógicas no trato do gênero e da sexualidade, acionando também a criminalização do efetivo exercício docente. Com essa finalidade, utilizam-se do termo “ideologia de gênero” para argumentar que problematizar ditas temáticas implica subverter os valores da família, promovendo o Projeto de Lei n. 867/2015, o qual estabelece um “Programa de Escola Sem Partido”, no qual serão “vedadas, [...] a prática de doutrinação política e ideológica [...] que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes” (BRASIL, 2015, art. 3, p. 2). Essas tramas e estratégias afirmativas de “ideologia de gênero” nas escolas repercutiram na retirada do termo gênero dos planos estaduais e municipais de educação de alguns estados e municípios nos últimos anos. Junto a isso, o anúncio de pactuação com uma escola sem “ideologia de gênero” foi acionado como marco de projetos de governo nas eleições de 2018 para a Presidência da República.

Com isso, em uma análise contemporânea do cenário brasileiro, fica evidente que o GDE se constituiu/constitui como um projeto ainda potente e necessário para o campo da educação e para o país como um todo, visto o seu trato com pilares conceituais e políticos fundamental para uma sociedade que efetivamente atue para a ampliação das possibilidades dos corpos em regime democrático. Nessa direção, afirmamos a necessidade de continuarmos investindo na implementação de políticas públicas que acionem gênero e diversidade como proposições epistêmico-políticas, considerando, de modo principal, as disputas com as tramas heteronormativas, bem como a suspeição às estratégias de fixação dos sujeitos da diferença como caminhos táticos para produzirmos uma arena social de efetivo exercício da cidadania pelos corpos/sujeitos em um contexto democrático.

REFERENCES

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  • 1
    Utilizaremos o recurso das aspas simples para destacar aquelas palavras que, intencionalmente, são utilizadas com um sentido diverso do tradicional. O uso das aspas duplas será realizado em citações apresentadas no corpo do texto.
  • 2
    A pesquisa recebeu financiamento via Edital Universal/CNPq, n. 443423/2014-8 para o período de 2014 a 2017.
  • 3
    A equipe é constituída por um coletivo de pesquisadoras de universidades de diferentes regiões brasileiras, coordenada pela profa. Dra. Dagmar Estermann Meyer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Agrega pesquisadoras de cinco instituições universitárias brasileiras, a saber: na região sul, a UFRGS e a Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí); na região sudeste, a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes); e na região nordeste, a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
  • 4
    O GDE foi instituído em 2006, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, através de um projeto-piloto (ver CARRARA et al., 2011) e, em seguida, a partir de ofertas anuais. Essa política foi mantida durante o mandato da presidenta Dilma Rousseff.
  • 5
    Participou como auxiliar no processo educacional, disponibilizando recursos como a TV Escola, os objetos de aprendizagem e um ambiente colaborativo de aprendizagem que foi utilizado para inclusão digital e atividades de ensino a distância. Em 2011, foi renomeada como Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi).
  • 6
    Em 2005, foi assinado um Protocolo de Intenções entre a SPM/PR, a Seppir/PR e o MEC, por intermédio da Secadi e da Seed, junto com o British Council, com o objetivo de implementar políticas educacionais para a igualdade de gênero, raça/etnia e orientação sexual, por meio de ações de formação de professores/as.
  • 7
    O British Council é uma organização internacional do Reino Unido para assuntos de Educação e Cultura, como a promoção dos direitos humanos, que fortalece e compartilha experiências de políticas educacionais entre os países. O British Council foi responsável pelo subsídio financeiro e pelo incentivo de intercâmbio de experiências sobre políticas públicas educacionais da área de atuação do projeto GDE.
  • 8
    O Clam tem como proposta institucional a produção, a organização e a difusão de conhecimentos sobre sexualidade na perspectiva dos direitos humanos, objetivando uma diminuição das desigualdades de gênero e sexuais. Especificamente no projeto GDE, o Clam foi selecionado para execução de algumas ações, como a coordenação da elaboração do material didático, a seleção dos/das cursistas, a seleção e a capacitação dos/das professores/as, a coordenação do curso até sua etapa final e a produção de relatórios avaliativos do desenvolvimento e dos impactos da política (sobre este último ver CARRARA et al., 2017), dentre outras ações.
  • 9
    Disponível em: http://www.spm.gov.br/sobre/a-secretaria/subsecretaria-de-articulacao-institucional-e-acoes-tematicas/ coordenacao-geral-de-programas-e-acoes-de-educacao/genero-e-diversidade-na-escola/curso-genero-e-diversidade- na-escola-gde. Acesso em: 17 maio 2017.
  • 10
    O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se constituiu entre os anos de 2003 a 2011, e o governo da presidenta Dilma Rousseff entre os anos de 2011 a 2016.
  • 11
    O caderno constitui o material didático e orientador para os/as professores/as (livro conteúdo).
  • 12
    Nesse contexto, identificamos diversos programas nos quais a diversidade é citada, como, por exemplo: a) os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que destacam entre seus temas transversais a “pluralidade cultural” e a “orientação sexual”; b) o Diversidade na Universidade e Educação para a cidadania e educação inclusiva: direito à diversidade da Secretaria da Educação Especial, embora o programa que efetivamente teve maiores recursos tenha sido o Diversidade na Universidade (COSENTINO; ABRAMOWICZ, 2011). Além desses, pode-se mencionar a criação da Secretaria de Educação e Alfabetização e Diversidade (Secadi/MEC).
  • 13
    As avaliações dos/das cursistas e professores/as destacaram “como lacuna nos textos o olhar sobre os homens e sobre a masculinidade, a partir da abordagem relacional potencializada pela categoria de gênero” (PEREIRA et al., 2007, p. 95).
  • 14
    No original: “identifications are never fully and finally made”.
  • 15
    Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e intersexos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    04 Out 2018
  • Aceito
    15 Mar 2019
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