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EDUCAÇÃO INFANTIL, PRÁTICAS EDUCATIVAS E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A finalidade do presente dossiê é a de encadear narrativas de estudos e pesquisas sobre Educação Infantil e Formação de Professores - temas que atravessam diferentes perspectivas nas políticas e nas práticas educacionais brasileiras e internacionais - em torno dos direitos das crianças a uma educação de qualidade. Nos dias de hoje, em diversos países, já não se discute a importância da educação para crianças, desde bebês, campo que conquistou legitimidade e reconhecimento social. A problematização atual se insere em como garantir o acesso delas a instituições de qualidade, dotadas de docentes qualificados, espaços, materiais, livros e brinquedos adequados, mas, sobretudo, que sejam reconhecidas em suas especificidades. A palavra do filósofo Mikhail Bakhtin (2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 374p.), quando afirma:

[...] tudo o que me diz respeito, a começar pelo meu nome, chega do mundo exterior à minha consciência pela boca dos outros [...] A princípio eu tomo consciência de mim através dos outros: deles eu recebo as palavras, as formas e a tonalidade para a formação da primeira noção de mim mesmo,

nos traz a dimensão do desafio. De que modo as crianças tomarão conhecimento de si próprias? E como os professores têm relacionado a experiência da docência com os conhecimentos produzidos? Em que medida as diversas abordagens teórico-metodológicas, construídas em contextos éticos e republicanos, fazem parte do processo de formação? Os sentidos dados à educação são fruto de um tempo histórico, e articular a tríade políticas educacionais, formação e condições para o atendimento à criança é o esforço aqui empreendido - fruto de um refinamento teórico, mas também de interlocução com programas e experiências em curso.

Os estudos evidenciam que não é possível consolidar a concepção de criança como sujeito histórico, social, produtor de cultura, ativo e criativo e fazer valer que o direito é universal sem uma política de formação inicial e continuada. Entende-se que formação é processo e, por isso, os sujeitos (estudantes e professores) ocupam o lugar de autores de um diálogo constante entre teoria e prática. No deslocamento de fundamentos teóricos para propostas curriculares incide a cultura institucional e o contexto ideológico em que o cotidiano se produz. Assim, é consequência inexorável do exercício profissional o entendimento da incompletude do sujeito humano e da dinâmica do processo de conhecer. Pensar a formação significa considerar o sujeito-professor em sua constituição identitária, sua condição no mundo, na forma em que se insere na arena de disputa dos sentidos do conhecimento e nas relações que constrói com as crianças. Tal perspectiva aponta para a inesgotabilidade da formação.

No processo de escrita dessa apresentação, os argumentos de Jacques Loew, trazidos por Bosi (1994BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.) em Memória e sociedade, de que é preciso que se forme uma comunidade de destino para que se alcance a compreensão plena de uma dada condição humana, foi crucial. Formar essa comunidade significa assumir a irreversibilidade do estado anterior dos sujeitos, em que o retorno à antiga condição não se faz possível, nem para um nem para outro, e envolve um pressuposto a que Bakhtin se refere como alteridade. Ou seja, o processo constante de aproximação e distanciamento do pesquisador e do universo pesquisado, em que ambos, ocupando um lugar exterior, possam ver algo que o próprio sujeito nunca pode ver. Essa atitude comporta um olhar comprometido e ético. Nesse momento, no qual os compromissos sociais estão em risco e são expostas suas fragilidades, é preciso manter acesa a capacidade de pesquisar, monitorar e avaliar, a fim de que os seus resultados possam se configurar como o lugar do não esquecimento. Entendemos com Paulo Freire (1996FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura).) a educação como um ato político e um ato de conhecimento. Ato no qual a Ética significa um saber e uma postura, um testemunho rigoroso de decência e de pureza, cabendo ao pesquisador tomar ciência de que as palavras muito pouco ou nada valem quando falta a concretude do exemplo. Precisamos, nesse momento, de muita vigilância, pois a ética tem muito pouco ou quase nada valido para muitos dos que estão aí, tentando desmontar saberes construídos com tanto rigor!

Reunimos aqui um conjunto de problematizações no campo da educação infantil, em interface com a formação e atuação de professores para essa etapa da educação básica, tendo em vista a necessidade constante e recorrente de reflexão sobre a formação para atuar com crianças, desde bebês, em uma perspectiva de co-responsabilização, seja na definição de processos formativos, como de práticas educativas para e com as crianças, que permitam uma escuta e olhar atentos às potencialidades infantis.

A temática aqui em destaque coloca em articulação a colaboração de nove pesquisadoras, atuando na coordenação e na produção dos cinco artigos apresentados. Nossa intenção é a de colaborar com o aprofundamento do debate nacional sobre perspectivas para o trabalho pedagógico com crianças de até 6 anos em instituições educativas e sobre a formação docente para atuar nessa etapa. Dentre questões que requerem debates reiterados e processos permanentes de discussão, destacamos na presente proposição a brincadeira, a participação das crianças, as práticas e relações com a cultura escrita, dinâmicas formativas que interconectam a universidade e a instituição de educação básica, os processos de trabalho contextuais, a investigação sobre a qualidade das práticas e saberes docentes implicados. Inúmeros são os desafios de articulação entre essas instituições e ambiências educativas, na perspectiva de construção de uma formação nos contextos reais. O diálogo entre essas instituições permite ampliar o entrelaçamento entre formação inicial e continuada, ao envolver os responsáveis pela educação infantil nas secretarias de educação, nas instituições de educação infantil.

A Seção se descortina com a contribuição das pesquisadoras Silvia Helena Vieira Cruz e Sandra Maria de Oliveira Schramm, de universidades cearenses. Em seu artigo “Escuta da criança em pesquisa e qualidade da educação infantil”, as autoras desvelam pesquisas brasileiras, realizadas num intervalo de dez anos e que ouviram crianças no que se refere à qualidade da educação e dos cuidados que elas recebem nas instituições de educação infantil. Nesse sentido, são trazidas as muitas vozes das crianças, que, diferentemente de ruído, balbúrdia, desordem, agitação, gritaria, vozaria, expressam opiniões, desejos, reclamações, temores, violações sobre temas plurais, como a brincadeira, as relações étnico-raciais, as expectativas dos adultos com a disciplinarização e transição para o ensino fundamental. Vozes que têm o que dizer e devem, para além de serem ouvidas, serem consideradas na construção da qualidade da educação infantil.

O segundo artigo - “Definindo uma estrutura para 0 a 6 anos de idade” -, da professora e pesquisadora Agnese Infantino, da Universidade Milano Biccoca, traz em discussão a nova definição política quanto à promoção de um currículo em continuidade entre creche e pré-escola no cenário italiano. Naquele país, historicamente, os serviços educativos para cada etapa (0 a 3 anos e 3 a 6 anos) foram originados e se mantiveram em setores diferentes. Propor uma continuidade e estreitamento pedagógico entre creche e pré-escola demanda pensar sobre diversas questões, na sua complexidade, como: a formação profissional de educadores e professores (seja inicial ou continuada); o importante papel das coordenações locais nos diferentes municípios e regiões do país; as formas de financiamento diante das demandas por novos prédios e equipamentos, por formação continuada; o estabelecimento de uma nova cultura social e pedagógica acerca das crianças pequenas. Mesmo diante de tão grande desafio, Agnese Infantino realça o significado político e o valor educacional positivos dessa alteração legislativa. Desde 2015, tal feito requer um debruçar-se sobre ações efetivas para uma implementação cuidadosa e que preze por boas vivências educativas para as crianças e suas famílias e por um tratamento ético no que diz respeito às mudanças na profissionalidade docente, decorrentes da Lei.

Ângela Maria Scalabrin Coutinho, Catarina Moro e Daniele Marques Vieira, no terceiro artigo, intitulado “A avaliação da qualidade da brincadeira na educação infantil”, discutem a proposição de um instrumento ad hoc sobre a qualidade das oportunidades de brincadeiras oferecidas às crianças em seus cotidianos educativos. O processo formativo, reflexivo e autoavaliativo teve início com o estudo e debate junto à equipe pedagógica e docente de uma instituição de educação infantil do instrumento da “boa creche lúdica”, proposto por Savio (2011). A pesquisa intervenção empreendida permitiu às autoras realçar a potencialidade formativa da abordagem metodológica utilizada. O instrumento foi percebido pelas participantes como mediador das reflexões oportunizadas nos grupos de discussão e da ampliação da consciência sobre a intencionalidade do seu trabalho implicada na brincadeira das crianças.

O quarto artigo - “Formação de professores de educação infantil e o Pibid”, de autoria de Daniela Oliveira Guimarães, apresenta reflexões acerca do trabalho formativo do Pibid Pedagogia/Educação Infantil, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, entre 2016 e 2017, a partir da análise dos registros individuais e coletivos produzidos no processo, tendo em vista discutir as aprendizagens da docência nesse contexto. As peculiaridades da educação infantil, como o currículo centrado nas crianças, as interações com brincadeiras como eixos do trabalho pedagógico, são tematizadas e problematizadas nesse cenário. Dentre as considerações feitas pela autora a partir da experiência formativa compartilhada, destacamos a consonância com as ideias de André (2016) quanto à necessidade de conceber um professor pesquisador, que reflita, compreenda, revise e reconstrua as teorias implicadas na prática; trabalhe em colaboração, com vistas a um novo desenvolvimento profissional.

Maria Fernanda Rezende Nunes e Patrícia Corsino, com seu artigo “Práticas de leitura e escrita na Educação Infantil: potencialidades e indagações”, fecham essa seção temática com a proposição de trazer para o debate da área questões prementes relativas à interlocução das crianças até os 6 anos, com a cultura escrita. A partir dos resultados da pesquisa “Boas práticas de leitura e escrita na Educação Infantil”, desenvolvida em creches e pré-escolas públicas, nos municípios de Recife, Natal, Campo Grande, Belo Horizonte, Lagoa Santa e Porto Alegre, nas quais foram entrevistadas 27 professoras e analisados os relatórios de observação de suas turmas, as autoras encontraram um contraste sensível entre as práticas educativas de creche e pré-escola e, na pré-escola, uma grande interferência do ensino fundamental e uma profusão de estratégias sistemáticas de alfabetização ou preparo para tal.

Também compõem a seção temática três resenhas de dois livros nacionais e um estrangeiro, de autoras italianas, da Universidade de Pavia. Gioconda Ghiggi apresenta o livro Educare l’infanzia: temi chiave per i servizi 0-6, escrito por Anna Bondioli e Donatella Savio, em 2018. Na resenha, a autora enfatiza como questões principais na obra o debate sobre o “novo” currículo para a etapa 0-6 e centralidade da organização dos espaços (ambientes), das relações e da brincadeira. Cabe destaque a referência a uma necessária perspectiva holística quanto à proposição pedagógica para a faixa de 0 a 6 anos, realçada também na discussão de Agnese Infantino (integrante desta seção) e à indissociabilidade entre educar e cuidar tão fortemente demarcada no percurso brasileiro e, assinalada nos nossos dispositivos legais, orientativos e normativos, e que precisa ser, assim como outros princípios e valores construídos nos últimos vinte e poucos anos, constantemente reafirmados nas ações, reflexões e teorizações da área. No livro resenhado por Gioconda Ghiggi fica demarcada a referência a uma pedagogia participativa, que tem a criança como centro do processo educativo; a relevância do espaço-tempo na promoção de vivências significativas e do brincar como sendo a voz das crianças, mediante o desafio de repensar um currículo para o 0/6.

Natália Francine Costa Cançado disserta sobre o livro Formação da rede em Educação Infantil: avaliação de contexto, de 2015, fruto da pesquisa no Brasil acerca da potencialidade e da interlocução de dois instrumentos de avaliação de contexto italianos - ISQUEN (Indicatori e Scala della Qualità Educativa del Nido - Indicadores e Escala da Qualidade Educativa da Creche), para instituições educativas para até três anos (creche), e AVSI (Autovalutazione della Scuola dell’Infanzia - Autoavaliação da Pré-Escola), para avaliação das instituições educativas dos 3 aos 6 anos (pré-escola) - com a realidade plúrima do nosso país. Natália destaca os princípios da avaliação de contexto e da conceituação de qualidade educativa para essa abordagem. Diferentemente de importar modelos e/ou instrumentos de outra realidade, essa abordagem preza pela definição local, negociada e contextual de qualidade e que preserve e realce a identidade cultural e pedagógica da instituição. A autora, ao expor sobre o conteúdo do livro em seus oito capítulos, revela o movimento de pesquisa realizado pelas equipes locais de cada uma das quatro universidade brasileiras - as federais do Paraná, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e a estadual de Santa Catarina -, na relação com a equipe da Università Degli Studi di Pavia e com as instituições de educação infantil municipais envolvidas. Cabe realçar a potencialidade formativa do processo e a importância de se ter (construir) instrumentos de avaliação que permitam uma reflexão dialógica acerca da qualidade das instituições de educação infantil.

Artur Oriel Pereira discorre sobre a coletânea em forma de livro, intitulada Pedagogias descolonizadoras e infâncias: por uma educação emancipatória desde o nascimento. Aponta para a importância da compreensão dos marcadores de diferença de raça, gênero, classe e idade que afetam as relações sociais produzidas principalmente num contexto de desigualdade. Em oito capítulos, expõe resultados de pesquisas que investem nos estudos pós-coloniais trazendo para o debate educacional contribuições para a elaboração de uma educação emancipatória para a educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental.

Mais uma vez com Paulo Freire (2000FREIRE, P. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora Unesp, 2000.), reafirmamos a necessidade de investir na unidade entre nosso discurso, nossa ação e na utopia que nos move por uma educação infantil que dialogue com as crianças, reconheça o valor das suas famílias e dos profissionais - pesquisadores e pesquisadoras, professoras e professores, educadoras e educadores - que buscam cotidianamente um agir ético, plural e que lhe recupere vez e voz no desafio contínuo de educar.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 374p.
  • BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  • FREIRE, P. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
  • FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019
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