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DIREITO À EDUCAÇÃO, POLÍTICAS EDUCACIONAIS E PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA

Discussões sobre quais são os bens sociais valorizados que precisam de critérios consensuados para sua distribuição, para que haja justiça social, datam de milênios, segundo Fleischacker (2006FLEISCHACKER, S. Uma breve história da justiça distributiva. Tradução Á. Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2006.). Para Fraser (2007FRASER, Nancy. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 291-308, ago. 2007., 2014), o grande debate da justiça social hoje centra-se na tensão entre compreendê-la como decorrente da distribuição de bens sociais econômicos e materiais ou concebê-la como fruto do reconhecimento, do enfrentamento à subordinação de grupos sociais, construída no terreno cultural e da “pessoalidade”. Infere-se dos estudos dessa autora que há duas relevantes noções de princípios de justiça que governam as políticas públicas no mundo contemporâneo: uma que diz respeito à visão redistributiva de bens e outra que se reporta à necessidade de valorizar grupos sociais que foram historicamente hierarquizados como inferiores, situação que também contribui para estruturar a distribuição dos bens materiais.

Essas noções de justiça têm certamente impacto sobre a educação escolar. A perspectiva de inserção de todos no sistema escolar, segundo Dubet (2009DUBET, F. Les dilemmes de la justice. In: DEROUET, J. C.; DEROUET-BESSON, M. C. Repenser la justice dans le domaine de l’éducation et de la formation. Lyon: Peter Lang, 2009. p. 29-46.), se realiza sob tensões, pois a inclusão traz para dentro dos muros escolares os conflitos sociais e as diferenças de acesso aos distintos bens que a sociedade produz e valoriza. Para o autor, esse processo influencia sobremaneira as percepções a respeito de como constituir uma escola justa, gerando discussões tanto sobre o que pode ser considerada uma diretriz governamental justa, quanto no que concerne ao que seria justo em termos de práticas educacionais concretizadas nas ações escolares e nas relações que se estabelecem entre os sujeitos que compõem esses espaços institucionais.

Desde os anos 1960, encontra-se evidenciada a existência de interconexões entre bens sociais das dimensões econômica, social, política e da educação escolar. Acessar a educação básica ou não, aprender ou não e ser reconhecido e valorizado no âmbito da escola são bens por vezes intangíveis, que incidem nas possibilidades de inserção social das pessoas, na sua formação como sujeitos autônomos e partícipes dos processos sociais, fazendo sentido em diferentes contextos. No Brasil, a Constituição de 1988, juntamente com a Emenda Constitucional n. 59, apresenta a definição do ensino de educação básica, de 4 a 17 anos, como sendo direito público obrigatório e subjetivo (BRASIL, 1988, 2009). Para Cury (2008CURY, C. R. J. A educação básica como direito. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 134, p. 293-303, maio/ago. 2008., p. 294), o conceito de educação básica da Constituição de 1988 é “inovador” no país, tendo em vista a história brasileira de negação aos seus cidadãos do “direito ao conhecimento pela ação sistemática da organização escolar”. Coerente com essa legislação, houve forte expansão de vagas, com concentração de escassez na etapa de 0 a 3 anos, o que tem instigado a luta pela garantia desse direito. Em 2005, o Supremo Tribunal Federal (STF) qualificou o direito à creche e à pré-escola como exigível coletiva e individualmente.

O legislador trouxe para a cena das políticas educacionais um novo desafio: a inclusão, pelo Estado e pela família, de todas as crianças de 4 a 17 anos no sistema escolar, sob a égide de um padrão de qualidade. Além disso, legitimou a busca pelo direito à educação na etapa de 0 a 3 anos, dentre outros, por meio da judicialização. Afirma-se, assim, que a educação básica, na etapa de 4 a 17 anos, é tão fundamental para a sociedade que a ela estão obrigados o Estado, na oferta, e o indivíduo, no acesso, e que a creche é direito fundamental de toda criança, fazendo com que sua oferta deva ser considerada obrigatória pelo Estado, diante de demanda. Outras legislações, como o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, seguiram-se à Constituição de 88 e especificaram obrigações e deveres do Estado e do cidadão ante o novo direito à educação básica.

O presente Tema em Destaque de Cadernos de Pesquisa procura discorrer, por meio de reflexões teóricas e análises de dados de pesquisas empíricas, sobre consequências, tensões e avanços do direito à educação básica, discutindo políticas e práticas educacionais e elucidando suas consequências em termos de justiça social, bem como os princípios de justiça que lhes dão sustentação. O conjunto de artigos que o compõem enfoca, portanto, a interface entre o direito à educação, políticas educacionais e princípios de justiça, no Brasil e em outros contextos, ora a partir de abordagens das concepções presentes em legislações e na política educacional, ora a partir de análises das reverberações das políticas educacionais no microcampo escolar, em que as interações e o debate entre os sujeitos escolares na relação com distintas concepções de justiça ganham relevo.

Na primeira parte, encontram-se dois artigos que investigam a relação entre princípios de justiça e políticas educacionais, diretrizes ou legislações específicas que incidem sobre o campo da educação. José Almir do Nascimento e Carlos Roberto Jamil Cury procuram explicitar os conceitos e princípios que regem o Estatuto da Criança e do Adolescente enquanto instrumento legal que detalha elementos importantes da garantia do direito à educação, jogando luzes sobre aspectos como as concepções de qualidade da educação e de proteção integral. Os autores chamam a atenção para a imprecisão do conceito de qualidade do ensino presente na Constituição Federal de 1988 e para a presença, no debate público, de variadas orientações para a definição de um padrão de qualidade nas políticas educacionais. Essa condição conceitual, na presença de prescrição para uma ação que garanta tal padrão, expõe sobremaneira os conflitos em torno dos princípios de justiça que regem a implementação das políticas educacionais. Para os autores, o Estatuto da Criança e do Adolescente é uma legislação que contribui para delimitar o padrão de qualidade do ensino no país, amparado numa agenda de humanização, de consolidação da cidadania e de proteção integral das crianças e adolescentes.

Adriana Aparecida Dragone Silveira, Salomão Barros Ximenes, Vanessa Elias de Oliveira, Silvia Helena Vieira Cruz e Nadja Bortolloti analisam os efeitos diretos e indiretos da judicialização da educação infantil realizada com medidas judiciais e extrajudiciais em nove municípios, distribuídos em quatro estados. Os autores se depararam com distintos critérios para a distribuição desse direito nas negociações entre legislativo, executivo e judiciário, indicando a presença de conflitos. Com essa situação, pode-se depreender que a educação infantil (0 a 3 anos) é um bem social para o qual a sociedade brasileira precisa construir mais consensos, sobretudo quanto aos critérios para a efetivação de sua distribuição. Considerando que um dos efeitos sociais da judicialização é a ampliação de vagas, os autores chamam a atenção para a necessidade de reflexões sobre os princípios de justiça que regem o alcance do direito à educação na etapa de 0 a 3 anos por meio da judicialização: não necessariamente é um princípio justo que preza pela igualdade entre quem busca a justiça e quem não a busca. Entretanto, essa prática tem gerado efeitos, dentre eles, o fortalecimento da capacidade de ação do Estado.

A segunda parte desta seção traz quatro artigos que focalizam as práticas nos sistemas educacionais e nas escolas e sua relação com distintos princípios de justiça, bem como suas implicações sobre o direito à educação. Os dois primeiros centram-se em políticas educacionais e na possibilidade de se gerar uma escola mais justa. Vanda Mendes Ribeiro, Alicia Bonamino e Sergio Martinic analisam, com base em discussões sobre princípios de justiça considerados adequados à educação básica obrigatória e subjetiva, as formas de regulação e as estratégias de implementação de políticas educacionais para o ensino fundamental 1 (EF1), implementadas por gestões do estado do Ceará desde 2007 e do município de Marília, no estado de São Paulo, do início dos anos 2000 até aproximadamente 2010. Essas políticas educacionais conseguiram, num período de tempo, alcançar equidade educacional em termos de uma distribuição mais justa do conhecimento no EF1, adotando um modelo de governança que institui padrões, instrumentos capazes de colocar agentes implementadores em torno de objetivos comuns e um sistema de vigilância sobre as ações, com negociação, correções e reenquadramento das interações desses agentes. A avaliação externa é medida educativa central nessas experiências, por meio dela, todos os agentes implementadores têm acesso a um mesmo instrumento condutor de suas ações: uma medida que indica o conhecimento que cada aluno deve ter em determinada etapa do ensino. O estudo aponta que os agentes implementadores de nível micro reconhecem a relevância da avaliação externa e da medida de conhecimento estabelecida por essa avaliação como meio de acompanhar a aprendizagem de cada aluno e, assim, tomar decisões que orientam o ensino de todos. Explicitam, porém, as tensões de seu uso no cotidiano escolar: cobrança, avaliação da capacidade de trabalho e simplificação da forma de verificar a aprendizagem dos alunos.

Carlinda Leite e Marta Sampaio, com base no caso de Portugal, tratarão das tensões decorrentes do uso da avaliação externa como política educacional. Para essas autoras, a avaliação externa pode favorecer a implementação de processos de autoavaliação rumo a práticas mais justas nas escolas no que concerne à garantia da aprendizagem e à organização do ensino, corroborando os achados do texto acima mencionado. Contudo, chamam a atenção para os problemas que a avaliação externa pode gerar quando está muito focada nos resultados em termos de performance dos alunos, dentre eles a sensação de que da avaliação decorrerão punições.

Os dois últimos textos dedicam-se à discussão sobre os distintos princípios de justiça enquanto norteadores de posicionamentos de indivíduos realizadores da prática educativa: o primeiro, pesquisando posicionamento de alunos; o segundo, de futuros professores. José Manuel Resende, Luís Gouveia e David Beirante investigam o cotidiano escolar, identificando a pluralidade de princípios de justiça que podem ser mobilizados entre alunos do ensino médio para a formulação de julgamentos de situações que compõem esse cotidiano. Afirmam que é no encontro desses julgamentos, no âmbito dos quais se manifesta a pluralidade de princípios, que, na escola, é construído o comum. Para esses autores, o princípio da igualdade de tratamento aparece como elemento de sustentação dos julgamentos dos alunos; porém é o princípio do reconhecimento que fala mais alto no momento de distinguir entre o aceitável e o não aceitável.

César Peña-Sandoval e Tatiana López Jimenez identificam ideologias curriculares entre futuros professores, estudantes de uma universidade chilena, relacionando-as a seus princípios de justiça. Em termos de ideologias curriculares, os autores afirmam o predomínio da ideologia centrada na aprendizagem, indicando priorização, pelos futuros professores, do sujeito que aprende. Apesar dessa centralidade do sujeito que aprende, observa-se, segundo os autores, predominância de uma visão tradicional que privilegia o conteúdo em detrimento da didática, que é a facilitadora da aprendizagem. Quanto aos princípios de justiça, os futuros professores parecem inclinados à noção de igualdade de tratamento sem avançar muito na discussão sobre a noção de equidade educacional, compreendida como capacidade de gerar, por meio do ensino, aprendizagem entre todas e todos. Considerando a crescente diversidade cultural e a segregação escolar chilena, os autores deixam recomendações sobre a importância de os programas curriculares de formação de professores centrarem mais esforços na construção de uma formação para a equidade e para a justiça social, condição para a consolidação do direito à educação.

As conclusões desses dois últimos artigos permitem reflexões sobre os programas de formação de professores, inicial e continuada. Sabe-se que, influenciados pelo contexto, processos de construção de suas identidades, questões de legitimidade e por sua experiência, esses profissionais fazem uso de suas crenças e conhecimentos para agir. Uma formação de professores que tenha como objetivo a discussão sobre os princípios de justiça que sustentam as práticas escolares poderia contribuir para que professores consigam ter maior consciência sobre as repercussões dos princípios de justiça que adotam nas suas práticas, tanto no que concerne a atitudes que implicam reconhecimento, quanto no que se refere à justiça proveniente do ensino e aprendizagem dos conteúdos disciplinares previstos nos currículos.

Há ainda uma resenha elaborada por Alexandre Zawaki Pazetto e Nei Antonio Nunes sobre o livro A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade, de Renivaldo O. Fortes (2019FORTES, Renivaldo Oliveira. A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade. Porto Alegre: Fi, 2019.). O texto apresenta as principais ideias dessa obra que tem, segundo os autores, o objetivo de sustentar a tese das ações afirmativas por meio dos argumentos de John Rawls, concentrando-se mais precisamente em seu princípio de justiça como equidade. Trata-se de importante contribuição, considerando o forte debate que essa temática tem gerado no país, o qual normalmente inclui a noção de que se trata de políticas que incidem negativamente sobre o princípio da meritocracia. O princípio de justiça como equidade de Rawls oferece argumentos para que, sem que a meritocracia seja deixada de lado como princípio fundamental organizador das sociedades democráticas capitalistas, se possa recorrer a um princípio de correção das desigualdades constantemente produzidas nessas sociedades.

As pesquisas apresentadas neste Tema em Destaque indicam a relevância de se refletir sobre que concepções de justiça sustentam (ou devem sustentar) as políticas e práticas educacionais. Concepções distintas de justiça são concomitantes a resultados educacionais mais ou menos justos, estão presentes na construção, nas escolas, de noções do comum, são subjacentes a ideologias curriculares mais ou menos associadas a noções de justiça social coerentes com práticas democráticas. O estudo sobre princípios de justiça que sustentam políticas e práticas educacionais contribui para explicitar conflitos sociais em torno do fortalecimento da democratização do ensino e da aprendizagem e também das relações sociais. Observa-se que faz sentido tanto investigar os princípios de justiça presentes nas políticas e práticas educacionais do ponto de vista da relação entre o normativo e o que é concreto, quanto verificar as concepções de justiça nativas, vinculadas à moral dos sujeitos, relevantes para a consolidação da vida cotidiana nas instituições escolares. Determinados princípios de justiça podem ser mais ou menos coerentes com a noção de direito de todos e todas à educação básica.

REFERÊNCIAS

  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União. Brasília, 05 out. 1988.
  • BRASIL. Emenda Constitucional n. 59 de 2009. Diário Oficial da União. Seção 1. Página 8. Brasília, 12 de nov. 2009.
  • CURY, C. R. J. A educação básica como direito. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 134, p. 293-303, maio/ago. 2008.
  • DUBET, F. Les dilemmes de la justice. In: DEROUET, J. C.; DEROUET-BESSON, M. C. Repenser la justice dans le domaine de l’éducation et de la formation. Lyon: Peter Lang, 2009. p. 29-46.
  • FLEISCHACKER, S. Uma breve história da justiça distributiva. Tradução Á. Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
  • FORTES, Renivaldo Oliveira. A teoria da justiça de John Rawls e as ações afirmativas: reparar as contingências em direção à igualdade. Porto Alegre: Fi, 2019.
  • FRASER, Nancy. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 291-308, ago. 2007.
  • FRASER, Nancy. Sobre justiça: lições de Platão, Rawls e Ishiguro. Revista Brasileira de Ciências Políticas, Brasília, n. 15, p. 265-277, dez. 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020
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