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ENSINO DE RELAÇÕES RACIAIS NA PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU DA ÁREA PÚBLICA NO BRASIL

EDUCACIÓN DE LAS RELACIONES RACIALES EN LOS CURSOS POSTGRADO STRICTO SENSU DEL ÁREA PÚBLICA EN BRASIL

L’ENSEIGNEMENT DES RAPPORTS DE RACE DANS LES PROGRAMMES D’ÉTUDES SUPÉRIEURES STRICTO SENSU DANS LA SPHÈRE PUBLIQUE AU BRÉSIL

Resumo

O racismo está enraizado na sociedade brasileira, sendo relevante discutir e promover ações antirracistas e de valorização da população negra. O ensino da temática “relações raciais” é importante instrumento para estimular essas ações, principalmente no âmbito dos programas de pós-graduação (PPGs) stricto sensu da área pública no Brasil. Assim, mediante pesquisa estatística-descritiva e análise documental, tais programas foram estudados e concluiu-se que a maioria dos que abordam a temática racial direta e/ou indiretamente em suas disciplinas está ligada às políticas públicas, enquanto o debate é secundarizado na maioria dos PPGs de Administração e Gestão Pública. Ademais, há uma tendência da não obrigatoriedade curricular de disciplinas que fazem referência direta à discussão racial.

RELAÇÕES RACIAIS; PÓS-GRADUAÇÃO; ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Resumen

El racismo está enraizado en la sociedad brasileña, siendo relevante discutir y promover acciones antirracistas y de valorización de la población negra. La educación de temática “relaciones raciales” es un importante instrumento para estimular esas acciones, principalmente en el ámbito de los programas de postgrado stricto sensu del área pública en Brasil. Así, mediante investigación estadística- descriptiva y análisis documental, se estudiaron tales programas y se concluyó que la mayoría de los que abordan la temática racial derecha y/o indirectamente en sus disciplinas está ligada a las políticas públicas, mientras el debate es secundario en la mayoría de los PPGs de Administración y Gestión Pública. Además, hay una tendencia de la falta de obligatoriedad curricular de disciplinas que son referencia directa a la discusión racial.

RELACIONES RACIALES; POST-GRADUACIÓN; ADMINISTRACIÓN PUBLICA

Résumé

Le racisme est enraciné dans la société brésilienne, pour cette raison il est fondamental de discuter et de soutenir des actions antiracistes et de valorisation de la population noire. L’enseignement des rapports sociaux de race est un outil important pour stimuler ces actions, principalement dans le cadre des programmes d’études supérieures stricto sensu dans la sphère publique au Brésil. Moyennant la recherche statistique descriptive et l’analyse documentaire, ces programmes ont été étudiés et il a été conclu que la plupart de ceux qui abordent la thématique race directement et/ou indirectement dans leurs disciplines sont liés aux politiques publiques, alors que le débat est secondaire dans la plupart des programmes d’études supérieures en administration et gestion publique. En plus, il existe une tendance à ne pas rendre obligatoires les disciplines qui font directement référence à la discussion sur la race.

RELATIONS RACIALES; ÉTUDES SUPÉRIEURES; ADMINISTRATION PUBLIQUE

Abstract

Racism is rooted in Brazilian society, and it is relevant to discuss and promote anti-racist and valorization population actions. The teaching of the theme “racial relations” is an important instrument to stimulate these actions, mainly within the scope of post-graduation stricto sensu programs in the public area in Brazil. Thus, through statistical-descriptive research and documentary analysis, these programs were studied and it was conceived that most of them address racial issues directly and/or indirectly in their disciplines is linked to Public Policies, while the debate is secondary in most Public Administration and Public Management PPGs. In addition, there is a tendency for curriculum not to be mandatory for subjects that make direct reference to racial discussion.

RACE RELATIONS; POST-GRADUATION; PUBLIC ADMINISTRATION

Em decorrência da herança escravocrata, os últimos séculos no Brasil foram marcados pela luta da população negra por melhorias de suas condições socioeconômicas, já que a cor da pele ainda é um fator determinante dessas condições. Além disso, essa população busca o reconhecimento legítimo dos seus costumes e tradições culturais e identidade como um dos elementos fundadores da nação.

Em que pese o avanço experimentado em diversas vertentes em torno das lutas da população negra, principalmente a partir dos anos 2000, os últimos anos têm sido marcados por flagrantes atos de racismo e desrespeito à cultura e à história afrodescendente que, em certa medida, têm sido chancelados pela ideologia negacionista do racismo assumida pelo comando do governo federal. Igualmente, situações de racismo ocorridas nos Estados Unidos e no Brasil, em 2020, ganharam destaque mundial, o que aqueceu ainda mais o debate sobre racismo e as desigualdades raciais, fomentando a reflexão sobre ações específicas para essas questões, rumo à valorização das vidas negras.

O Estado brasileiro é um dos principais responsáveis pela construção da estrutura de racismo no país, também (re)produzida pelas diversas instituições. Portanto é o principal responsável pela melhora da situação da população negra, por meio de políticas públicas de promoção da igualdade racial. Nesse sentido, acredita-se que a inserção da temática “relações raciais” na formação de administradores públicos, docentes e pesquisadores que atuam nas áreas pública e afins pode ser importante para o reconhecimento da contribuição da história africana e para a valorização dos direitos da cultura desses povos no Brasil.

Em termos de ações existentes, a Lei n. 10.639 (2003) obriga a inserção do ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas particulares e públicas nos níveis fundamental e médio. Para possibilitar o cumprimento dessa lei, foram criadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História Africana e Afro-brasileira, a fim de estimular a construção de uma educação antirracista, valorativa e inclusiva (Resolução n. 1, 2004). Tal legislação foi alterada pela Lei n. 11.645 (2008), incorporando, também, o ensino da história e cultura indígena, cujas diretrizes foram instituídas por meio do Parecer n. 14 (2015) do Conselho Nacional de Educação (CNE), que trata de Diretrizes Operacionais para Implementação da História e das Culturas dos Povos Indígenas na Educação Básica.

Buscando contribuir para a sua eficácia, o Parecer n. 3 do CNE (2004), que trata das diretrizes curriculares nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, acrescentou a temática étnico-racial nos conteúdos de disciplinas e atividades das instituições de ensino superior (IES), principalmente porque, nos cursos de licenciatura, ocorre o preparo de docentes para lecionar no ensino fundamental e médio (Parecer CNE/CEB n. 3, 2004). Oportuno destacar que esse parecer se refere à inserção da temática nos cursos de graduação em todas as áreas.

No âmbito da pós-graduação stricto sensu, a Resolução n. 7 (2017), editada pelo Ministério da Educação (MEC), no parágrafo primeiro do 1º artigo, dispõe que os cursos de mestrado e doutorado são orientados para a produção intelectual comprometida com o avanço do conhecimento e de suas interfaces com a cultura, o bem econômico, a inclusão social e o bem-estar da sociedade.

No entanto, ainda que sejam louváveis os esforços e conquistas das últimas décadas na discussão das relações étnico-raciais no país, estudos mostram que o tema é pouco explorado ou inexistente nas estruturas curriculares dos cursos universitários (Camargo & Benite, 2019Camargo, M. J. R., & Benite, A. M. C. (2019). Educação para as relações étnico-raciais na formação de professores de química: Sobre a Lei n. 10.639/2003 no ensino superior. Química Nova, 42(6),691-701. https://www.scielo.br/j/qn/a/nxp6kmy7nHDPYcMffThdScH/?lang=pt https://doi.org/10.21577/0100-4042.20170375
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; Carvalho, 2018Carvalho, M. P. (2018). História da educação da população negra: O estado da arte sobre educação e relações étnico-raciais (2003-2014). Educar em Revista, 34(69), 211-230. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602018000300211&lng=en&nrm=iso. https://doi.org/10.1590/0104-4060.57236
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; Chagas, 2017Chagas, W. F. (2017). História e cultura afro-brasileira e africana na educação básica da Paraíba. Educação e Realidade, 42(1), 79-98. https://www.scielo.br/j/edreal/a/KFVY38qTQ55qnVLx55sj7kh/?lang=pt. https://doi.org/10.1590/2175-623661125
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; Coelho & Coelho, 2018Coelho, M. C., & Coelho, W. N. B. (2018). As licenciaturas em história e a Lei 10.639/03 - percursos de formação para o trato com a diferença? Educação em Revista, (34). https://www.scielo.br/j/edur/a/hvnLnRX7NpxPqJ9YqrBBQHG/?lang=pt. https://doi.org/10.1590/0102-4698192224
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; Santana et al., 2019Santana, R. A. R., Akerman, M., Faustino, D. M., Spiassi, A. L., & Guerriero, I. C. Z. (2019). A equidade racial e a educação das relações étnico-raciais nos cursos de Saúde. Interface, (23). https://www.scielo.br/j/icse/a/fcFjjTxbDtytgD9dXxdVcJK/?lang=pt
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; Silva, 2018Silva, P. B. G. (2018). Educação das relações étnico-raciais nas instituições escolares. Educação em Revista, 34(69), 123-150. https://www.scielo.br/j/er/a/xggQmhckhC9mPwSYPJWFbND/?lang=pt
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), evidenciando o longo caminho a ser percorrido na formação acadêmica para debate e enfrentamento das questões raciais. Um passo essencial seria abordar a temática “relações raciais” nos cursos de graduação e pós-graduação relacionados, principalmente, à área pública, visto que o profissional que atua nessa área assume papel fundamental na sociedade por ser responsável pelo bom funcionamento das organizações públicas, tendo implicações diretas no desenvolvimento do país (Lourenço et al., 2014Lourenço, C. D. S., Magalhães, T. F., & Ferreira, P. (2014). A formação em administração pública no Brasil: Desafios, perfil de formação e especificidades da área. Administração Pública e Gestão Social, 6(4), 177-186. https://periodicos.ufv.br/apgs/article/view/4494/2357
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). Conforme Silva (2017), os futuros administradores e gestores públicos precisam tomar consciência, enquanto acadêmicos e pesquisadores, do contexto atual da sociedade, principalmente porque a atuação deles deverá promover transformações nas organizações e políticas públicas e no racismo institucional, que, conforme Almeida (2018Almeida, S. L. (2018). O que é racismo estrutural? Letramento.), concede privilégios a determinados grupos de acordo com a raça, contribuindo para manter seus interesses sociais, políticos e econômicos, definindo regras e condutas que são naturalizadas.

A importância da discussão do tema é reforçada por pesquisadores que apontam a negligência da categoria raça nas pesquisas na área de estudos organizacionais (Conceição, 2009Conceição, E. B. (2009, setembro). A negação da raça nos estudos organizacionais. In Anais do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração. São Paulo, SP, Brasil.; Rosa, 2014Rosa, A. R. (2014). Relações raciais e estudos organizacionais no Brasil. Revista de Administração Contemporânea, 18(3), 240-260. https://www.scielo.br/j/rac/a/B8QtSZTYVYnZj3TgT4kBN7P/?format=pdf⟨=pt
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) e administração pública (Silva, 2016Silva, T. D. (2016, novembro). Administração pública e relações raciais: Uma análise da produção científica entre 2011 e 2016. In Anais do VII Encontro de Administração Pública e Governança. São Paulo, SP, Brasil.). Peci et al. (2019Peci, A., Soares, V. B., & Cabral, A. D. (2019, junho). A questão racial na administração pública: Promovendo a exploração ou a igualdade racial?. In Anais do VI Encontro Brasileiro de Administração Pública. Salvador, BA, Brasil., p. 12) ressaltam que, em virtude da relação contemporânea entre as questões raciais, migração e violência, torna-se fundamental “a ação do pesquisador em seu papel de denúncia”.

Em levantamento preliminar em algumas bases de pesquisa, como o Portal Periódicos Capes, SciELO e Google Scholar, não foram encontradas pesquisas relacionadas ao ensino de relações raciais em programas de pós-graduação stricto sensu, razão pela qual acredita-se ser essa uma das justificativas para a realização desta pesquisa.

Assim, diante da relevância do estudo e da pesquisa das relações raciais no combate ao racismo, este artigo objetiva compreender como tem sido inserida a temática “relações raciais” nos cursos de pós--graduação stricto sensu da área pública no Brasil. Nesta pesquisa, a “área pública” baseia-se no Campo de Públicas que, conforme Coelho et al. (2020Coelho, F. S., Almeida, L. S. B., Midlej, S., Schommer, P. C., & Teixeira, M. A. C. (2020). O campo de públicas após a instituição das diretrizes curriculares nacionais (DCNs) de administração pública: Trajetória e desafios correntes (2015-2020). Administração: Ensino e Pesquisa, 21(3), 488-529. https://raep.emnuvens.com.br/raep/article/view/1897/409. DOI 10.13058/raep.2020.v21n3.1897
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), é um movimento multidisciplinar, cuja abordagem tem como cerne o lócus público e subcampos da administração pública, políticas públicas e gestão social, mas mantém interfaces disciplinares e interdisciplinares com as áreas da educação, economia, direito, ciência política, entre outras.

Este artigo está estruturado da seguinte forma: a primeira seção é composta por esta introdução; na segunda seção, é realizada uma breve contextualização acerca da temática e sua inserção no ensino; na terceira seção são apontados os procedimentos metodológicos utilizados na pesquisa; na quarta seção, os resultados obtidos e suas interpretações; e, por fim, na quinta seção, são apresentadas as considerações finais.

Relações raciais no Brasil

O termo raça, ao longo dos séculos, sempre esteve ligado ao contexto histórico e social, de modo que “a história da raça ou das raças é a história da constituição política e econômica das sociedades contemporâneas” (Almeida, 2018Almeida, S. L. (2018). O que é racismo estrutural? Letramento., p. 19). Nesse sentido, considerando o contexto histórico do Brasil, a colonização e a escravidão constituem dimensões essenciais para se compreender as relações raciais. A primeira porque constrói a visão colonialista, cujas premissas pautam-se na perspectiva eurocêntrica que considera o homem branco português (ou europeu) como modelo, de modo que os “outros” povos (índios e negros, por exemplo) seriam os “diferentes”, inferiores. Para Ortegal (2018Ortegal, L. (2018). Relações raciais no Brasil: Colonialidade, dependência e diáspora. Serviço Social & Sociedade, 133, 413-431. https://www.scielo.br/j/sssoc/a/zxQfQVHgVLVdr8ZMvQRHMkz/?lang=pt. https://doi.org/10.1590/0101-6628.151
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) e Guimarães (2016Guimarães, A. S. A. (2016). Formações nacionais de classe e raça. Tempo Social, 28(2), 161-182. https://www.scielo.br/pdf/ts/v28n2/1809-4554-ts-28-02-00161.pdf. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.109752
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), negros e indígenas foram classificados com base na visão do homem branco europeu de forma racializada como não humanos. A segunda porque, a partir da dimensão colonialista, portugueses se colocam como “raça” superior, escravizando negros trazidos para o Brasil.

Essa perspectiva ganha força no final do século XIX e início do século XX com o racismo científico, no qual, sob a justificativa de racionalidade e universalidade, propagou-se a ideia de superioridade biológica entre as raças humanas a fim de justificar a dominação e exploração de uma raça sobre a outra, consolidando atos das nações beneficiadas por essa estratificação, notadamente os países europeus (Barbosa, 2016Barbosa, M. R. J. (2016). A influência das teorias raciais na sociedade brasileira (1870-1930) e a materialização da Lei n. 10.639/03. Revista Eletrônica de Educação, 10(2), 260-272. http://www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/view/1525/502
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). Segundo Schwarcz (2012Schwarcz, L. M. (2012). Nem preto nem branco, muito pelo contrário: Cor e raça na sociabilidade brasileira. Claro Enigma.), o racismo científico tentou justificar, com base em argumentos científicos da época, correlações entre raça, intelectualidade e moralidade de modo que negros eram considerados raça inferior.

Seguidamente, foi construída uma ideologia falaciosa, baseada principalmente nos estudos de Gilberto Freyre, em torno da existência de convivência racial harmônica no Brasil (Fernandes, 1972Fernandes, F. (1972). O negro no mundo dos brancos. Difusão Europeia.), o que acabou gerando uma ideia de que o país seria um exemplo de harmonia racial. No entanto, na década de 1950, por meio de uma pesquisa realizada por Florestan Fernandes, Roger Bastide e outros pesquisadores, financiada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), a ideia de democracia racial foi refutada, verificando-se que, por trás das gritantes desigualdades sociais entre brancos e negros, predominava a existência do racismo (Schwarcz, 2012Schwarcz, L. M. (2012). Nem preto nem branco, muito pelo contrário: Cor e raça na sociabilidade brasileira. Claro Enigma.; Maio, 1999Maio, M. C. (1999). O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14(41), 141-158. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091999000300009&lng=en&nrm=iso
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).

Cabe pontuar ainda que a noção de convivência racial harmônica está incutida na mente de uma parcela da população brasileira contribuindo para o negacionismo do racismo, protelando o reconhecimento da identidade e cultura negra e dificultando ações de promoção de diversidade étnico- -racial por meio de políticas públicas (Theodoro, 2008Theodoro, M. (2008). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição. Ipea.), perpetuando o racismo institucional.

Não obstante, a partir da década de 1930, movimentos negros foram fortalecidos na tentativa de conscientizar a população sobre racismo existente e da luta por direitos iguais (Domingues, 2008Domingues, P. (2008). Um “templo de luz”: Frente Negra Brasileira (1931-1937) e a questão da educação. Revista Brasileira de Educação, 13(39), 517-534. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782008000300008&lng=en&nrm=iso. https://doi.org/10.1590/S1413-24782008000300008
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). Mais tarde, conforme Conceição (2018Conceição, M. S. (2018). Um estudo sobre o estado do conhecimento no tocante à implementação da Lei n. 10.639/2003 na educação básica (2009-2016) [Dissertação de Mestrado]. Núcleo de Estudos Transdisciplinares em Educação Básica, Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.), na década de 1970, houve um marco na luta da população negra quando discussões pautadas pela ótica sociológica deram força aos movimentos negros que reivindicavam políticas públicas corretivas das injustiças sociais, reacendendo a discussão racial também no meio acadêmico.

A despeito das contribuições da sociologia brasileira, a partir da década de 1950, no que se refere aos estudos das relações raciais de forma crítica e em tom de denúncia da estrutura de racismo existente no país, conjugada aos processos de luta e resistência dos movimentos negros em torno de políticas públicas de combate às desigualdades raciais, o Estado brasileiro continuou negando o racismo. Até nas décadas posteriores, no governo militar, a tônica era a do negacionismo (Theodoro, 2008Theodoro, M. (2008). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição. Ipea.).

Vale mencionar o reconhecimento pioneiro, pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, da existência do racismo no país, a partir de quando a efetivação de medidas antirracistas passou a ocorrer. Segundo Paiva (2015Paiva, A. R. (2015). Cidadania, reconhecimento e ação afirmativa no ensino superior. Revista Civitas, 15(4). dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2015.4.23251), na década de 2000, relevante avanço no que tange à democratização de acesso ao ensino superior à população negra ocorreu por meio do sistema de cotas. Dez anos depois, foi sancionada a Lei n. 12.711 (2012), que garantiu a reserva de vagas nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio aos autodeclarados pretos, pardos e indígenas.

Em meio aos avanços alcançados até a primeira década do século XXI, frisa-se que, principalmente a partir da eleição presidencial de 2018, o discurso negacionista do racismo ganhou força no país, além de ter havido um enfraquecimento das políticas de promoção da igualdade racial (Tommaselli, 2020Tommaselli, G. (2020). Necropolítica, racismo e governo Bolsonaro. Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, Dossiê “Conjuntura no Brasil: Retrocessos sociais e ações de resistência, 42(4), 179-199. https://revista.fct.unesp.br/index.php/cpg/article/view/7868/5867
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).

Assim sendo, é certo que há predominância do letramento branco no país e que a população negra ainda necessita da intensificação das medidas antirracistas de inclusão social, educacional e econômica, bem como da implantação de medidas de reconhecimento da cultura e identidade da população negra, principalmente no âmbito da pós-graduação, a fim de que a academia contribua para a superação das diversas nuances do panorama de racismo estrutural e institucional no país.

O ensino das relações raciais

A construção de uma verdadeira democracia racial no Brasil, calcada na promoção de serviços, benefícios e oportunidades iguais aos distintos grupos raciais, ocorrerá à medida que o debate político e a agenda governamental se dedicarem à elaboração de estratégias e ampliação dos programas de políticas públicas visando à igualdade racial (Jaccoud, 2018Jaccoud, L. (2018) O combate ao racismo e à desigualdade: O desafio das políticas públicas de promoção da igualdade racial. In M. Theodoro (Org.), As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição (pp. 131-166). Ipea.). Considerando que o Estado é o principal responsável pela construção da estrutura de racismo no país, também (re)produzida pelas diversas instituições, ele é igualmente responsável pela melhora da situação da população negra por meio de políticas públicas com recorte racial.

Atualmente, existem algumas iniciativas, como a Lei n. 10.639 (2003), que obriga a inserção do ensino sobre a História e Cultura Afro-brasileira nas escolas particulares e públicas nos níveis fundamental e médio, modificada pela Lei n. 11.645 (2008), que incorporou o ensino da história e cultura indígena. Além disso, destacam-se o Parecer CNE/CEB n. 3 (2004) e a Resolução n. 1 (2004), que instauram a obrigatoriedade da inserção da temática também no ensino superior nos cursos de graduação em todas as áreas do conhecimento. No âmbito da pós-graduação stricto sensu, tem-se a Resolução n. 7 (2017), editada pelo Ministério da Educação (MEC), que dispõe que os cursos de mestrado e doutorado sejam orientados ao desenvolvimento de produção intelectual comprometida com o avanço do conhecimento e de suas interfaces com a inclusão social e o bem--estar da sociedade.

Apesar da implementação dessas leis, no caso do ensino básico e superior, ou mesmo das recomendações relacionadas à pós-graduação, a literatura mostra que a inserção da temática “relações raciais” no ensino brasileiro ainda é bastante tímida e enfrenta muitas barreiras, como apresentado em alguns trabalhos publicados na última década, sistematizados no Quadro 1, a seguir.

QUADRO 1
RESULTADOS DE PESQUISAS SOBRE O ENSINO/EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES RACIAIS

Pela sistematização de alguns trabalhos publicados sobre o ensino/educação das relações raciais, percebe-se a inexistência de estudos voltados para o contexto da pós-graduação e da área pública. Mesmo no ensino básico ou superior, quando ocorre, acontece de maneira secundária. Por isso, faz-se necessário maior incentivo de tais pesquisas, julgando-se pertinente e relevante a realização deste estudo.

Partindo da premissa de que a compreensão da realidade transforma valores e comportamentos e prepara melhor os indivíduos para a consciência coletiva e articulação de recursos em favor da inclusão social (Cavalcanti, 1981Cavalcanti, B. S. (1981). Formação do administrador público: Alternativas em debate. Revista de Administração Pública, 15(3), 31-53.), este estudo defende a inserção da temática “relações raciais” no âmbito educacional, especificamente nos cursos voltados para a área pública. Pelo fato de os cursos do Campo de Públicas estarem inseridos em uma comunidade acadêmica multidisciplinar no contexto da graduação e pós-graduação voltada para estudos sobre interesse público e bem-estar coletivo (Coelho et al., 2020Coelho, F. S., Almeida, L. S. B., Midlej, S., Schommer, P. C., & Teixeira, M. A. C. (2020). O campo de públicas após a instituição das diretrizes curriculares nacionais (DCNs) de administração pública: Trajetória e desafios correntes (2015-2020). Administração: Ensino e Pesquisa, 21(3), 488-529. https://raep.emnuvens.com.br/raep/article/view/1897/409. DOI 10.13058/raep.2020.v21n3.1897
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), acredita-se que tratar de relações raciais na prática da gestão contribui para a construção de um cenário de incentivo para formação de alunos, pesquisadores, mestres, doutores e servidores públicos e gestores como verdadeiros agentes de mudanças da realidade social, uma vez que atuarão em setores que abarcam as relações raciais, explícita ou implicitamente.

Procedimentos metodológicos

O estudo contou com duas etapas metodológicas. Por ter exigido certo nível de mensuração em relação a frequências e organização de dados, caracteriza-se como uma pesquisa quantitativa descritiva. A coleta de dados foi realizada por pesquisa documental, que aborda as fontes primárias que ainda não receberam algum tipo de tratamento analítico (Sá Silva et al., 2009Sá Silva, J. R., Almeida, C. D., & Guindani, J. F. (2009). Pesquisa documental: Pistas teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, 1(1), 1-15.).

Para isso, uma pesquisa inicial foi realizada na Plataforma Sucupira, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do governo federal, especificamente na seção de “dados cadastrais do programa”. Os termos buscados, individualmente, no campo “programas” da Plataforma foram “Administração Pública”, “Gestão Pública”, “Políticas Públicas” e “Gestão Social”, que, por meio do filtro “em funcionamento”, trouxeram o resultado de 84 programas em atividade, considerando profissionais e acadêmicos. Tais termos foram selecionados tendo como referência o chamado Campo de Públicas, nomenclatura cunhada pelo Conselho Nacional de Educação, em 2010, e institucionalizada principalmente na segunda metade da década, com a elaboração de eventos e pesquisas científicas próprias, abrangendo os cursos de Administração Pública, Gestão Pública, Gestão Social, Políticas Públicas e Gestão de Políticas Públicas (Coelho et al., 2020Coelho, F. S., Almeida, L. S. B., Midlej, S., Schommer, P. C., & Teixeira, M. A. C. (2020). O campo de públicas após a instituição das diretrizes curriculares nacionais (DCNs) de administração pública: Trajetória e desafios correntes (2015-2020). Administração: Ensino e Pesquisa, 21(3), 488-529. https://raep.emnuvens.com.br/raep/article/view/1897/409. DOI 10.13058/raep.2020.v21n3.1897
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).

Após a identificação de todos os programas anteriormente elencados pela Plataforma Sucupira, seguiu-se para o acesso aos sítios eletrônicos de cada instituição de ensino superior (IES) e para a verificação de suas páginas virtuais internas dedicadas ao seu(s) respectivo(s) programa(s) de pós-graduação nas áreas de interesse da pesquisa. Com isso, iniciou-se uma busca pelas estruturas curriculares mais recentes dos cursos e, em seguida, pelos ementários de cada disciplina ofertada. Aquelas matrizes curriculares e ementas não encontradas ou que não estavam disponibilizadas publicamente nas páginas das instituições foram solicitadas via e-mail ou por meio da página de contatos institucionais. Dos 84 resultados de programas de pós-graduação em funcionamento, dois não foram encontrados, e apenas 36 contavam com as informações necessárias em suas páginas virtuais, o que demandou contato com as secretarias ou coordenações dos 46 programas de pós-graduação restantes via e-mail ou página institucional. Dos 46 contatados, 20 responderam, um deles informando a inexistência do curso apontado na Plataforma. Com isso, a amostra foi ampliada para 55 programas de pós-graduação.

Unidades de análise foram utilizadas para categorizar o ensino de relações raciais segundo abordagem direta e indireta. Para esse fim, alguns termos foram previamente determinados como abordagem direta à temática racial, a saber, “relações raciais”, “racismo”, “raça”, “negros”, “indígenas”, “preconceito racial”, “discriminação racial”, “desigualdade racial”, “igualdade racial” e “diversidade racial”, e outros foram identificados durante a coleta e análise dos dados, como “povos originários”, “intolerância étnica”, “pensamento racializado”, “diáspora africana”, “quilombolas”, entre outros. Em relação à abordagem indireta, os termos predeterminados foram: “minorias”, “desigualdades sociais”, “colonização brasileira”, “cultura brasileira”, “ações afirmativas” e “cotas”, não havendo a inserção de outros termos durante a coleta dos dados.

Além dos termos presentes nas ementas, as demais informações obtidas sobre cada um dos programas de pós-graduação foram dispostas em uma planilha, onde foi possível destacar os dados referentes à categoria das IES (públicas ou privadas), aos estados onde estão localizadas, ao nível do curso ofertado (mestrado ou doutorado), ao tipo de programa de pós-graduação (acadêmico ou profissional) e área de concentração da Capes e, finalmente, aos tipos de disciplinas que fazem menção direta ou indireta às relações raciais (obrigatória, eletiva, optativa, etc.). A seguir, serão realizadas as inferências e interpretações dos dados obtidos com base nessa análise.

Resultados e discussões

A priori, a apresentação dos dados contará com a amostra total, considerando os programas de pós- -graduação (PPGs) que abordam a temática racial direta ou indiretamente em alguma(s) disciplina(s) e, também, aqueles que não a abordam, o que possibilita o levantamento de certas características e interpretações importantes, além de facilitar a visualização do leitor. Em seguida, a amostra sofrerá um recorte, e as análises se concentram nos PPGs que apresentam referências diretas ou indiretas à temática racial, passando pela Área Capes, modalidade (se profissional ou acadêmico), nível acadêmico (mestrado, doutorado ou ambos), categoria (se público ou privado) e distribuição em território nacional de cada um deles. Por fim, serão abordadas as características das disciplinas e de seus termos diretos e indiretos.

Inserção da temática relações raciais nos PPGs

A pesquisa na Plataforma Sucupira resultou em uma ampla gama de áreas do conhecimento. Embora 21 dos 55 PPGs que compõem a amostra da pesquisa estejam inseridos na Área Capes de Administração Pública e de Empresas, Ciências Contábeis e Turismo, a amostra também contou com PPGs vinculados às áreas Interdisciplinar, Ciência Política e Relações Internacionais, Planejamento Urbano e Regional/Demografia, Direito, Educação, Serviço Social, Economia, Psicologia e Saúde Coletiva, conforme Tabela 1.

TABELA 1
PPGS CONFORME A ÁREA CAPES

Esse recorte da amostra analisada, segundo Área Capes, demonstra o quanto a área pública é interdisciplinar, principalmente quando o enfoque se volta aos PPGs relacionados às políticas públicas, que perpassam todas as Áreas Capes elencadas na Tabela 1.

Apesar de, nesse primeiro momento, a prevalência ser dos cursos vinculados à Área Capes de Administração Pública e de Empresas, Ciências Contábeis e Turismo, o panorama se transforma quando são focalizados apenas os PPGs que fazem referência direta e/ou indireta à questão racial em suas disciplinas, como apresentado na Tabela 2.

TABELA 2
PPGS QUE FAZEM REFERÊNCIA DIRETA E INDIRETA À QUESTÃO RACIAL EM SUAS DISCIPLINAS, CONFORME ÁREA CAPES

Quando esse recorte é realizado, nota-se grande queda na frequência dos cursos da Área Capes de Administração Pública e de Empresas, Ciências Contábeis e Turismo, que passa de 21 - quando considerada a amostra total - para apenas quatro, o que configura uma diminuição de mais de 80%. Esses dados sugerem um caminho parecido com aqueles apontados por Conceição (2009Conceição, E. B. (2009, setembro). A negação da raça nos estudos organizacionais. In Anais do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração. São Paulo, SP, Brasil.) e Rosa (2014Rosa, A. R. (2014). Relações raciais e estudos organizacionais no Brasil. Revista de Administração Contemporânea, 18(3), 240-260. https://www.scielo.br/j/rac/a/B8QtSZTYVYnZj3TgT4kBN7P/?format=pdf⟨=pt
https://www.scielo.br/j/rac/a/B8QtSZTYVY...
) sobre a omissão da discussão racial na área de Estudos Organizacionais da Administração, além de corroborar os resultados de Silva (2016Silva, T. D. (2016, novembro). Administração pública e relações raciais: Uma análise da produção científica entre 2011 e 2016. In Anais do VII Encontro de Administração Pública e Governança. São Paulo, SP, Brasil.), que já indicavam a negligência ou importância secundária da categoria raça na produção científica da área de Administração Pública.

Em relação aos PPGs das demais Áreas Capes envolvidas na pesquisa, a queda é menor após o recorte. No caso da área Interdisciplinar, a frequência passa de doze para nove, e Planejamento Urbano e Regional/Demografia passa de quatro para dois. As áreas que sofrem menores ou nenhuma alteração são: Ciência Política e Relações Internacionais (de nove para oito), Educação (de dois para um) e Serviço Social, Economia e Psicologia (não sofrem alterações). Além disso, é possível perceber a ausência das áreas de Direito e Saúde Coletiva, elencadas anteriormente.

Pelo fato de a estratégia de busca pelos PPGs ter usado como principais filtros de pesquisa os termos “Administração Pública”, “Gestão Pública”, “Políticas Públicas” e “Gestão Social”, e partindo do pressuposto de que essas nomenclaturas nem sempre estão relacionadas diretamente às Áreas Capes desses respectivos programas, como é o caso dos PPGs que possuem o termo “Políticas Públicas” apontados na Tabela 2, faz-se necessária uma análise por meio desse enfoque, o que possibilita algumas inferências com base nos dados obtidos, como exposto na Tabela 3.

TABELA 3
PPGS QUE FAZEM REFERÊNCIA DIRETA E/OU INDIRETA À QUESTÃO RACIAL CONFORME TERMO PRESENTE NA NOMENCLATURA

Pode-se observar que a maioria dos PPGs que abordam a temática racial de maneira direta e/ou indireta em suas disciplinas está intimamente ligada às Políticas Públicas, enquanto aqueles de Administração Pública surgem com a menor frequência de PPGs, quando comparado à amostra analisada, o que corrobora as informações trazidas anteriormente de que a categoria raça possui importância apenas secundária nessa área. Além disso, tais dados demonstram a aplicabilidade das discussões promovidas por Madureira (2005Madureira, C. (2005). A formação profissional contínua no novo contexto da administração pública: Possibilidades e limitações. Revista de Administração Pública, 39(5), 1109-1133. https://www.redalyc.org/pdf/2410/241021503005.pdf
https://www.redalyc.org/pdf/2410/2410215...
) acerca da necessidade de reflexão sobre as estruturas curriculares dos cursos superiores em Administração Pública também no nível de pós-graduação. Pelo fato de a área ser amplamente voltada a aspectos procedimentais e normativos, e, à luz de Jaccoud (2018Jaccoud, L. (2018) O combate ao racismo e à desigualdade: O desafio das políticas públicas de promoção da igualdade racial. In M. Theodoro (Org.), As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição (pp. 131-166). Ipea.), considerando a necessidade de ampliação dos programas e políticas da gestão pública que promovam a igualdade social, a modernização das estruturas curriculares desses cursos requer a inserção de debates e conteúdos afeitos também aos elementos culturais e sociais próprios da sociedade brasileira, como sugere a Resolução n. 7 (2017) do MEC, na qual se inserem, por extensão, a desigualdade racial e o racismo estrutural.

Quanto aos PPGs vinculados à Gestão Social, ressalta-se que apenas dois foram encontrados na Plataforma Sucupira. Ambos não apresentavam suas ementas disciplinares nas respectivas páginas institucionais, e apenas um deles retornou a tentativa de contato por e-mail. Com isso, embora os números dos PPGs de Administração Pública e Gestão Social sejam iguais, como apresentado na tabela, suas amostragens são significativamente diferentes, haja vista que, dos 55 PPGs analisados, 14 possuem o termo “Administração Pública”, enquanto apenas um vincula-se à “Gestão Social”.

Seguindo com a análise dos dados por diferentes enfoques, observa-se que um número expressivo da amostra total pesquisada (27 PPGs) não possui disciplinas que fazem referência direta ou indireta às relações raciais. Da amostra dos outros 28 PPGs que contam com disciplinas que mencionam direta e/ou indiretamente a temática racial em suas ementas, 12 abordam-na apenas indiretamente; seis, apenas diretamente; e os 11 restantes apresentam discussões diretas e indiretas em duas ou mais disciplinas, como disposto na Tabela 4.

TABELA 4
REFERÊNCIA DIRETA E INDIRETA DAS DISCIPLINAS À QUESTÃO RACIAL

Desses 28 PPGs, 10 (ou 35,71%) são profissionais, e 18 (ou 64,28%) são acadêmicos, o que demonstra maior dedicação à temática racial daqueles PPGs da área pública que estão ligados à formação de pesquisadores e professores universitários - os acadêmicos. De acordo com os dados obtidos na Plataforma Sucupira e sítios eletrônicos dos PPGs, 20 são em nível de mestrado; 1, apenas de doutorado; e 7, de mestrado e doutorado. Além disso, 24 (ou 85,71% do total) desses PPGs estão vinculados a universidades públicas, enquanto os outros quatro (ou 14,28%) pertencem a universidades privadas. Apesar da aparente discrepância, a amostra de universidades públicas e privadas foi expressivamente diferente, considerando que 50 PPGs de universidades públicas foram analisados, enquanto apenas cinco PPGs de universidades privadas compuseram a amostra.

Entre outras características, uma análise da distribuição desses PPGs pelo território nacional também abre campo para interpretações, além de possibilitar a identificação de certas carências, quando examinados regionalmente (Tabela 5).

TABELA 5
PPGS QUE FAZEM REFERÊNCIA DIRETA E INDIRETA À QUESTÃO RACIAL CONFORME REGIÃO

Enquanto a região Nordeste conta com a maior parte dos PPGs que abordam a temática racial em alguma(s) disciplina(s) e, segundo dados do Censo 2010, tem também a maior distribuição proporcional de população autodeclarada preta e parda do país, a região Norte, que tem o maior contingente de população autodeclarada indígena do Brasil (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2013), não conta com PPGs da área pública que abordam as relações raciais, seja direta ou indiretamente.

A região Sudeste, que abarca o segundo maior contingente de população autodeclarada parda do Brasil e a maior parte da população autodeclarada preta (IBGE, 2013), aparece com o segundo maior número de PPGs com tais características. A região Centro-Oeste, por sua vez, que contém o maior percentual de população não natural - oriunda de outras regiões do país -, possui apenas um PPG nos moldes supramencionados. Por fim, a região Sul, que tem o menor contingente de autodeclarados pretos, pardos e indígenas (IBGE, 2013), conta com seis PPGs da área pública que fazem referência à questão racial e destaca-se por trazer esse tipo de debate em 75% dos PPGs da região que integram a amostra analisada.

Aspectos das disciplinas relacionadas às relações raciais

Finalmente, a análise parte para as disciplinas dos 28 PPGs que abordam as relações raciais direta ou indiretamente. O total de disciplinas foi de 56, em que 31 (55,35%) fazem referência indireta, e as outras 25 (44,64%) mencionam termos diretamente relacionados ao estudo da temática racial em suas ementas. Esse total divide-se em disciplinas obrigatórias e eletivas/optativas, conforme enumerado a seguir:

TABELA 6
QUANTIDADE DE DISCIPLINAS QUE FAZEM REFERÊNCIA DIRETA OU INDIRETA À QUESTÃO RACIAL CONFORME TIPO

Apesar de parte dos sítios eletrônicos dos PPGs pesquisados não informarem se suas disciplinas são obrigatórias ou eletivas/optativas em suas dinâmicas curriculares, como apresentado na Tabela 6, durante a coleta dos dados foi possível notar a prevalência de disciplinas eletivas ou optativas no número total de disciplinas citado anteriormente, e, por conseguinte, a tendência da não obrigatoriedade curricular das disciplinas que fazem referência direta à discussão racial. Em termos quantitativos, das 25 encontradas, apenas seis são obrigatórias, o que permite inferir que, para cursar uma disciplina que aborde diretamente a temática racial, na maioria dos PPGs da área pública, o discente deve ter interesse pessoal prévio pelo debate, sendo considerado um tema com importância apenas complementar para a formação profissional do aluno.

Ainda em relação à obrigatoriedade das disciplinas que mencionam diretamente termos vinculados à temática racial, destacam-se alguns programas, como: o PPGs em Desenvolvimento e Gestão Social da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que, na disciplina “Cultura e Identidades”, debate a etnicidade como parte integrante da formação da identidade cultural brasileira; o PPG em Gestão Pública e Sociedade, da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), que, na disciplina “Relações Raciais”, atravessa a temática racial desde a colonização do Brasil, passando pela formação da sociedade brasileira até a construção das categoria raça, racismo e desigualdade racial, bem como pelas ações afirmativas para seu enfrentamento; o PPG em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), que, nas disciplinas “Teoria e História dos Direitos Humanos e da Democracia na América Latina” e “Territórios, Direitos Humanos e Diversidades Socioculturais I”, aborda as características identitárias e organizativas dos povos originários e a intolerância étnica na América Latina.

Destaca-se, por fim, o PPG em Políticas Públicas em Direitos Humanos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que, nas disciplinas “Estudos de Desigualdade e Cidadania” e “Estado, Política e Teoria de Direitos Humanos”, debate a categoria raça e suas desigualdades na América Latina, além de oferecer disciplinas eletivas que versam sobre o feminismo negro, a criminalização dos movimentos negros e a construção do pensamento racializado brasileiro, configurando-se como o PPG da área pública que oferta o maior número de disciplinas obrigatórias e optativas/eletivas que oferecem conteúdos relacionados diretamente à questão racial em suas ementas curriculares, de acordo com os critérios de busca utilizados na pesquisa.

Partindo para a análise das ementas propriamente dita, importa mencionar que o número total de termos encontrados extrapola o número total de ementas que abordam a temática racial direta ou indiretamente, pois algumas ementas contêm mais de um dos termos diretos ou indiretos previamente determinados. Diferentemente do que ocorre com os termos indiretos, em que não houve inserção de novos termos durante a análise, especificamente sobre os termos diretos, novas expressões diretas foram agregadas àquelas previamente estabelecidas. Por se tratar de uma quantidade significativa de novos termos acrescentados (30), visando a facilitar a sua visualização e quantificação, optou-se por separá-los em categorias, de acordo com suas semelhanças e relações semânticas e de sinonímia.

Ressalta-se que termos relacionados à mesma categoria podem ser mencionados mais de uma vez em uma mesma ementa, portanto, na maioria das oportunidades, a quantidade em que as expressões aparecem é superior ao número de ementas ligadas a cada categoria.

TABELA 7
TERMOS DIRETOS E INDIRETOS PRESENTES NAS EMENTAS DAS DISCIPLINAS ANALISADAS

Sobre os termos indiretos, destaca-se a quantidade de disciplinas que debatem temas relacionados à “desigualdade” e “desigualdade social”, repetindo-se em 23 das 31 ementas com termos indiretos. “Minorias” e “grupos minoritários” também são citados, mas com menor frequência. Os demais termos são citados em poucas oportunidades, são eles: “políticas ou ações afirmativas”, “exclusão social”, “período ou origem colonial” e “cultura brasileira”. Entende-se que tais terminologias podem estar associadas ao debate racial pelas características que fundamentam o processo de construção e as características da sociedade brasileira.

No que diz respeito aos termos diretos, considerando a vastidão de expressões encontradas e a fim de viabilizar a apresentação de todos os termos diretos encontrados nas ementas de forma ilustrativa, utilizou-se uma “nuvem de palavras”, recurso que elenca termos hierarquicamente, de acordo com o peso de cada palavra. No caso a seguir, o peso utilizado foi a frequência na qual esses termos foram citados na amostra pesquisada, ou seja, quanto maior a fonte, maior a frequência nas ementas.

FIGURA 1
TERMOS DIRETOS DAS EMENTAS DISCIPLINARES

Os termos diretos apresentados demonstram as múltiplas abordagens que o debate racial pode ter no ambiente acadêmico brasileiro, perpassando construções que se relacionam à categoria raça, racismo, etnia, escravidão, indígenas, negros e migrantes, esbarrando, muitas vezes, em outras categorias importantes, como a questão social e a questão de gênero.

Considerações finais

Os resultados desta pesquisa apontam a negligência ou o caráter secundário da categoria raça na descrição das ementas das disciplinas da maioria dos PPGs da amostra. Como não foram encontradas pesquisas voltadas ao ensino de relações raciais na pós-graduação e, em especial, na área pública, acredita-se ser importante fazer o confronto dos achados dessa pesquisa com a literatura relacionada ao contexto do ensino básico e superior, já apresentados aqui. Nesse sentido, o principal resultado vai ao encontro dos achados das pesquisas de Camargo e Benite (2019Camargo, M. J. R., & Benite, A. M. C. (2019). Educação para as relações étnico-raciais na formação de professores de química: Sobre a Lei n. 10.639/2003 no ensino superior. Química Nova, 42(6),691-701. https://www.scielo.br/j/qn/a/nxp6kmy7nHDPYcMffThdScH/?lang=pt https://doi.org/10.21577/0100-4042.20170375
https://www.scielo.br/j/qn/a/nxp6kmy7nHD...
), Silva (2018Silva, P. B. G. (2018). Educação das relações étnico-raciais nas instituições escolares. Educação em Revista, 34(69), 123-150. https://www.scielo.br/j/er/a/xggQmhckhC9mPwSYPJWFbND/?lang=pt
https://www.scielo.br/j/er/a/xggQmhckhC9...
), Muller (2018Muller, T. M. P. (2018). Livro didático, educação e relações étnico-raciais: O estado da arte. Educação em Revista, 34(69), 77-95. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40602018000300077&lng=en&nrm=iso. https://doi.org/10.1590/0104-4060.57232
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) e Santana et al. (2019Santana, R. A. R., Akerman, M., Faustino, D. M., Spiassi, A. L., & Guerriero, I. C. Z. (2019). A equidade racial e a educação das relações étnico-raciais nos cursos de Saúde. Interface, (23). https://www.scielo.br/j/icse/a/fcFjjTxbDtytgD9dXxdVcJK/?lang=pt
https://www.scielo.br/j/icse/a/fcFjjTxbD...
). Não se pode negar que apenas o fato de o espaço para a discussão sobre as questões raciais estar se ampliando já mostra avanços importantes, conforme apontou Silva (2018), todavia, acredita-se que esse debate não pode ser secundário, devendo fazer parte da dinâmica curricular como componente obrigatório. Evidentemente, há barreiras como aquelas apontadas por diversos autores, relacionadas à perspectiva eurocêntrica nos sistemas de ensino (Araújo, 2018Araújo, D. C. (2018). Em busca de uma iniciativa histórica africana: Possibilidades e limites das práticas pedagógicas na educação básica. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 99(252), 429-448. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-66812018000200429&lng=en&nrm=iso. https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.99i252.3577
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Chagas, 2017Chagas, W. F. (2017). História e cultura afro-brasileira e africana na educação básica da Paraíba. Educação e Realidade, 42(1), 79-98. https://www.scielo.br/j/edreal/a/KFVY38qTQ55qnVLx55sj7kh/?lang=pt. https://doi.org/10.1590/2175-623661125
https://www.scielo.br/j/edreal/a/KFVY38q...
; Coelho & Coelho, 2018Coelho, M. C., & Coelho, W. N. B. (2018). As licenciaturas em história e a Lei 10.639/03 - percursos de formação para o trato com a diferença? Educação em Revista, (34). https://www.scielo.br/j/edur/a/hvnLnRX7NpxPqJ9YqrBBQHG/?lang=pt. https://doi.org/10.1590/0102-4698192224
https://www.scielo.br/j/edur/a/hvnLnRX7N...
), fragmentação e dificuldade de adoção de uma educação antirracista do ponto de vista coletivo e institucional (Fonseca & Rocha, 2019Fonseca, M. V., & Rocha, L. F. R. (2019). O processo de institucionalização da Lei n. 10.639/2003 na rede federal de educação profissional, científica e tecnológica. Educação em Revista, 35, e187074. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982019000100428&lng=en&nrm=iso. http://dx.doi.org/10.1590/0102-4698187074
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) e menos dependente de iniciativas individuais (Meinerz, 2017Meinerz, C. B. (2017). Ensino de história, diálogo intercultural e relações étnico-raciais. Educação e Realidade, 42(1), 59-77. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175-62362017000100059&lng=en&nrm=iso>. https://doi.org/10.1590/2175-623661184
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Foi possível verificar que os PPGs mais comprometidos com o ensino de relações raciais são aqueles voltados para as Políticas Públicas e Direitos Humanos. Pressupõe-se que isso tenha relação com o fato de que as ações antirracistas e afirmativas no Brasil estejam mais circunscritas ao contexto das políticas públicas de promoção da igualdade racial, razão pela qual esses PPGs buscam estudá-las.

Os achados evidenciam que a maior parte dos PPGs vinculados à área Capes de Administração Pública foram os menos comprometidos com a pauta racial, o que evidencia a necessidade de mudanças nas dinâmicas curriculares desses programas, que, muitas vezes, estão ligados a procedimentos mais técnicos e normativos da máquina pública e ignoram aspectos sociais e culturais.

Tamanha ausência da inserção da temática nos PPGs da área pública possibilita inferir que o racismo e a desigualdade racial não são entendidos como um problema social tão importante e, tampouco, como um problema que deve ser pesquisado, debatido e problematizado por docentes e pesquisadores, e mitigado pelos gestores e profissionais da área pública. À luz de Almeida (2018Almeida, S. L. (2018). O que é racismo estrutural? Letramento.), esses espaços de poder - nos quais se se encaixam a universidade e os PPGs - ainda são instâncias de (re)produção do racismo estrutural e continuam replicando normas e condutas do racismo institucional, o que implica uma naturalização da minimização ou até eliminação do debate sobre o racismo e as desigualdades raciais nas instituições.

Desse modo, o engajamento dos programas de pós-graduação da área pública com a temática “relações raciais”, por meio da promoção e incentivo de disciplinas, pesquisas e eventos relacionados ao assunto, pode vir a ampliar o debate e destacar a história e cultura negra, bem como racismo e desigualdades raciais e as formas de combatê-los na área pública. Isso pode contribuir para que, progressivamente, práticas antirracistas sejam absorvidas no cotidiano social das organizações públicas, ao formar pesquisadores, docentes, gestores e administradores públicos mais conscientes da causa. Tais medidas, por si só, não são capazes de resolver toda a demanda supramencionada, tampouco curar as mazelas consolidadas por séculos de desigualdades e marginalizações da população negra, porém, trata-se de iniciativa viável, importante e necessária.

Por fim, entre as principais adversidades experimentadas durante o processo de pesquisa, destaca-se o dificultoso acesso às ementas disciplinares dos PPGs, sobretudo aqueles vinculados a universidades privadas, o que impossibilitou a ampliação da amostra analisada. Ressalta-se também que o estudo não tencionou esgotar a temática, mas sim contribuir para a produção de conhecimento sobre a matéria e estimular pesquisas futuras semelhantes e que agreguem outros enfoques, como, por exemplo, as bibliografias disciplinares, ou, ainda, outras estratégias de pesquisa que abarquem outros bancos de dados, ou mesmo outros campos de pesquisa da própria Plataforma Sucupira, além da possibilidade de replicação deste estudo a outras áreas do conhecimento.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001.

Referências

  • Disponibilidade de dados

    Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2021
  • Aceito
    05 Maio 2021
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