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LETRAMENTO CIENTÍFICO: UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE BRASIL E JAPÃO

ALFABETIZACIÓN CIENTÍFICA: UN ESTUDIO COMPARATIVO ENTRE BRASIL Y JAPÓN

CULTURE SCIENTIFIQUE : UNE ÉTUDE COMPARATIVE ENTRE LE BRÉSIL ET LE JAPON

Resumo

Este estudo compara o letramento científico de estudantes brasileiros e japoneses com base em resultados do Pisa, visando a contribuir com evidências para a discussão das desigualdades educacionais. Analisa dados empíricos obtidos por meio de observação de aulas de Ciências em escolas do Brasil e do Japão, de questionário aplicado aos professores observados e de entrevistas com especialistas da área de ciências e com responsáveis pelo Pisa nos dois países considerados neste estudo. A análise mostra que as diferenças de desempenho dos estudantes brasileiros e japoneses estão associadas à forma como o sistema educacional de cada país aborda o currículo e a formação continuada de professores, e, ainda, ao uso diferenciado que fazem dos resultados do Pisa.

LETRAMENTO CIENTÍFICO; CIÊNCIAS; PISA

Resumen

Este estudio compara la alfabetización científica de estudiantes brasileños y japoneses con base en los resultados de Pisa, con el objetivo de aportar evidencia a la discusión de las desigualdades educativas. Analiza datos empíricos obtenidos a través de la observación de clases de Ciencias en las escuelas de Brasil y Japón, un cuestionario aplicado a profesores y entrevistas con especialistas en el campo de la ciencia y con los responsables de Pisa en los dos países considerados en este estudio. El análisis muestra que las diferencias en el desempeño de los estudiantes brasileños y japoneses están asociadas con la forma en que el sistema educativo de cada país aborda el currículo y la formación continua de los profesores, y, aún, al uso diferenciado que hacen de los resultados de Pisa.

LETRAMIENTO CIENTÍFICO; CIENCIAS; PISA

Résumé

Cette étude compare les connaissances scientifiques des élèves brésiliens et japonais sur la base des résultats du Pisa, dans le but d’apporter des evidences à la discussion sur les inégalités éducatives. Il analyse les données obtenues grâce à l’observation des classes de Sciences dans les écoles du Brésil et du Japon, à un questionnaire appliqué aux enseignants observés ainsi qu’à des entretiens avec des spécialistes en sciences et des responsables du Pisa dans les deux pays. L’analyse montre que les différences de performance entre les élèves brésiliens et japonais sont associées à la manière dont le système éducatif de chaque pays aborde le curriculum et la formation continue des enseignants, aussi bien qu’à l’utilisation différente qu’ils font des résultats du Pisa.

CULTURE SCIENTIFIQUE; SCIENCES; PISA

Abstract

This study compares the Scientific Literacy of Brazilian and Japanese students based on PISA results, aiming to contribute with evidence to the discussion of educational inequalities. It analyzes empirical data obtained through observation of Science classes in schools in Brazil and Japan, a questionnaire answered by teachers who were observed and interviews with specialists in the science area and with those responsible for PISA in the two countries considered in this study. The analysis shows that the differences in performance of Brazilian and Japanese students are associated with the way in which the education system of each country approaches the curriculum and continuing teacher education, and also with the different use that they make of PISA results.

SCIENTIFIC LITERACY; SCIENCE; PISA

Apesar dos avanços propiciados no Brasil pelas políticas públicas educacionais em termos da universalização do ensino fundamental e da expansão do acesso ao ensino médio e à educação infantil, ainda persistem graves problemas em relação à qualidade de ensino e ao desempenho dos estudantes na educação básica, como mostram reiterativamente as avaliações nacionais em larga escala conduzidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), notadamente o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e a Prova Brasil.

Muito embora se considere a importância crescente do conhecimento científico, as avaliações nacionais têm se restringido, via de regra, às áreas de Língua Portuguesa e Matemática. Mesmo que se verifique a concordância de professores de Ciências, cientistas e gestores de políticas públicas em relação à importância do desenvolvimento do Letramento Científico, no sentido de enfatizar as capacidades dos estudantes para fazer uso do conhecimento científico em situações do mundo real, a literatura especializada registra também um desequilíbrio entre o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da educação científica dos cidadãos (Bybee, 1993Bybee, R. W. (1993). Reforming science education: Social perspectives and personal reflections. Teachers College Press.; Maienschein, 1998Maienschein, J. (1998). Scientific literacy. Science, 281, 917.; Millar et al., 1995Millar, R., Lubben, F., Gott, R., & Duggan, S. (1995). Investigating in the school science laboratory: Conceptual and procedural knowledge and their influence on performance. Research Papers in Education, 9(2), 207-248.; Deboer, 2000Deboer, G. E. (2000). Scientific literacy: Another look at its historical and contemporary meanings and its relationship to science education reform. Journal of Research in Science Teaching, 37(6), 582-601.; Roberts, 2007Roberts, D. A. (2007). Scientific literacy/science literacy. In S. Abell, & N. Lederman, Handbook of research on science education. Lawrence Erlbaum Associates.; Roberts & Bybee, 2014).

O Pisa - Programme for International Student Assessment -, em português Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes, desenvolvido e coordenado internacionalmente pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), é uma avaliação trienal que foca três áreas cognitivas - ciências, leitura e matemática -, além da contextualização dos resultados por meio de questionários aplicados aos estudantes, diretores de escolas, professores e pais. Em cada ciclo, uma dessas áreas cognitivas é o foco principal do teste, com a maior parte dos itens centrada nessa área (aproximadamente dois terços do total do tempo do teste) e os demais voltados para as outras duas áreas - embora ainda possam fornecer elementos suficientes para comparações entre os anos. Em 2015, por exemplo, o foco do Pisa foi ciências. Com esse esquema alternativo de avaliação das áreas do conhecimento, apresentam-se, a cada nove anos, uma análise aprofundada do desempenho dos estudantes na área foco e, a cada ciclo, uma análise das tendências nas áreas de menor domínio (OECD, 2016).

O Pisa avalia estudantes com idade entre 15 anos e 3 meses (completos) e 16 anos e 2 meses (completos) no início do período de aplicação. Essa faixa etária pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países e uma população de estudantes que está cursando, no mínimo, o 7o ano escolar. Nas edições do Pisa de 2006 e 2015 o foco foi o domínio de ciências, o que permite uma análise aprofundada do desempenho dos estudantes na área enfatizada e uma análise das tendências nas áreas de menor domínio. Neste estudo, foram utilizados os dados dessas duas edições e verificado o desempenho dos estudantes nas competências e conhecimentos avaliados na área de ciências em dois contextos específicos, o Brasil e o Japão.

A visão de letramento científico, que constitui a base do Pisa, pode ser resumida na seguinte pergunta: O que é importante que os jovens saibam, valorizem e sejam capazes de realizar em situações que envolvem ciência e tecnologia? O letramento científico no Pisa refere-se tanto à compreensão de conceitos científicos como à capacidade de aplicar esses conceitos e, ainda, de pensar em uma perspectiva científica. Portanto, está associado à capacidade de ir além da simples aquisição de conhecimentos, demonstrando competência para aplicar esses conhecimentos em situações do dia a dia. O Pisa busca examinar a capacidade dos estudantes para analisar, raciocinar e refletir ativamente sobre seus conhecimentos e experiências, enfocando competências que serão relevantes para suas vidas futuras.

Em um estudo maior, a tese de doutorado da primeira autora sob orientação da segunda (Muri, 2017Muri, A. F., Bonamino, A., & Soares, T. M. (2017). Funcionamento diferencial dos itens de ciências do PISA: Brasil e Japão. Estudos em Avaliação Educacional, 28(68), 538-570.), com o intuito de compreender o desempenho do Brasil em Ciências no Pisa, comparamos os resultados do país com os de outros países participantes do Programa, especialmente com os dos estudantes japoneses, em razão da oportunidade aberta por uma experiência vivida em um programa de treinamento de professores oferecido por esse país, entre os anos de 2007 e 2009, bem como da posição de destaque mantida pelo Japão nos testes comparativos internacionais. Em avaliações de larga escala como o Pisa, essa comparabilidade é muito complexa, tendo em vista que nem todos os itens dos testes apresentam o mesmo funcionamento. De acordo com Soares (2005Soares, T. M. (2005). Utilização da Teoria de Resposta ao Item na produção de indicadores socioeconômicos. Pesquisa Operacional, 25(1), 83-112.), para possibilitar a comparabilidade dos resultados é essencial que o modelo utilizado na avaliação garanta o pressuposto de que o item apresente o mesmo funcionamento para os diversos grupos populacionais que estão sendo avaliados. Para uma boa comparação entre resultados de grupos tão diferentes de estudantes, como é o caso de estudantes brasileiros e japoneses, é imprescindível uma atenção especial à construção dos itens, a fim de que estes não apresentem o chamado Funcionamento Diferencial do Item (DIF).

Um item apresenta DIF quando estudantes que possuem a mesma habilidade cognitiva não têm a mesma probabilidade de acertá-lo. Assim, na estimação das proficiências, o ideal é evitar a utilização de itens com DIF elevado, ou seja, que favoreçam um determinado grupo de estudantes. Todavia, o DIF, quando moderado e restrito a poucos itens, interfere minimamente na estimação da proficiência, e sua análise pode ser uma ferramenta de diagnóstico do sistema educacional bastante útil no que se refere às diferenças curriculares, socioculturais e, no caso de estudos internacionais, como o Pisa, à diversidade de realidades educacionais e à disparidade de resultados entre países. Por esse motivo, escolhemos essa abordagem metodológica para conduzir um estudo comparativo entre dois países de realidades socioeconômicas e culturais tão distintas, como é o caso do Brasil e do Japão.

Considerando também que as características distintivas dos sistemas educacionais desses dois países têm consequências nos diversos modos de elaboração e desenvolvimento do currículo e, ainda, que os conteúdos são selecionados pelos professores e abordados com ênfases diferenciadas nas aulas de Ciências, procuramos inicialmente na tese (Muri, 2017Muri, A. F., Bonamino, A., & Soares, T. M. (2017). Funcionamento diferencial dos itens de ciências do PISA: Brasil e Japão. Estudos em Avaliação Educacional, 28(68), 538-570.): a) identificar se o funcionamento diferencial dos itens da prova de Ciências do Pisa 2006 dá conta de explicar a distância de desempenho existente entre os estudantes avaliados no Brasil e no Japão; b) verificar se o comportamento diferencial dos itens do teste prejudica a comparabilidade dos resultados; e c) identificar diferentes ênfases curriculares e/ou práticas pedagógicas no ensino de Ciências no Brasil e no Japão que possam explicar o desempenho diferenciado dos estudantes brasileiros e japoneses no Pisa.

Os dois primeiros objetivos desdobraram-se em questões de pesquisa que foram respondidas em artigos publicados pelas autoras anteriormente (Muri et al., 2017Muri, A. F., Bonamino, A., & Soares, T. M. (2017). Funcionamento diferencial dos itens de ciências do PISA: Brasil e Japão. Estudos em Avaliação Educacional, 28(68), 538-570.; Muri Leite & Bonamino, 2020Muri Leite, A. F. M., & Bonamino, A. (2020). Defasagem idade-série e letramento científico no Pisa. Estudos em Avaliação Educacional, 31(77), 393-420.) e seus resultados, em linhas gerais, são trazidos para a discussão neste artigo, pois estão diretamente relacionados com o terceiro objetivo listado, que é um desdobramento do objetivo geral deste trabalho. Serão discutidos especificamente neste artigo os resultados do estudo empírico realizado em um total de seis escolas, três no Japão e três no Brasil, com observação de aulas de Ciências, aplicação de questionários aos professores observados e realização de entrevistas com especialistas da área de Ciências e com responsáveis pelo Pisa nos dois países considerados neste estudo.

Como nosso interesse específico foi o de explorar o conceito de letramento científico adotado pelo Pisa nos resultados dessa avaliação internacional e em situações reais de sala de aula, dito conceito foi a referência de base para a elaboração do conjunto de instrumentos utilizados em nossa pesquisa. Adotamos os construtos usados pelo Programa para aceder ao ponto de vista dos estudantes sobre o ensino e a aprendizagem de Ciências e também à perspectiva dos professores participantes nesta pesquisa, bem como para orientar as observações das aulas realizadas nos dois países. Buscamos, assim, contextualizar os resultados quantitativos obtidos com a abordagem do DIF pela agregação da percepção de estudantes, professores e especialistas ao desenho da pesquisa.

Em suma, os objetivos específicos do presente trabalho são: a) observar o uso do tempo das aulas de Ciências das séries finais do ensino fundamental no Brasil e no Japão; b) observar se nas aulas de Ciências desses países ocorrem, e com que frequência, atividades relacionadas à interação, investigação, experimentação e aplicação; c) buscar entender que atividades, e sua frequência, os professores admitem realizar nas suas aulas; e d) buscar entender, com a ajuda de especialistas e gestores, a diferença de desempenho verificada entre o Brasil e o Japão no Pisa.

O artigo apresenta a análise das evidências qualitativas da pesquisa relacionada à observação, nas escolas dos dois países, nas seguintes dimensões: uso do tempo nas aulas de Ciências das séries finais do ensino fundamental; adoção e frequência de atividades relacionadas à interação, investigação, experimentação e aplicação; percepção dos professores das atividades realizadas nas aulas e sua frequência; e o hiato de desempenho entre o Brasil e o Japão com apoio nas entrevistas realizadas com especialistas e gestores do Pisa em cada país.

Além desta introdução e das conclusões, o artigo está organizado em mais três seções. Na próxima seção, discutimos suscintamente o letramento científico no Pisa. Na sequência, é descrita a metodologia adotada e os instrumentos utilizados no estudo. Na seção seguinte são apresentados e discutidos os resultados da pesquisa qualitativa.

Letramento científico no Pisa

Especialistas internacionais dos países participantes desenvolveram um suporte estrutural e conceitual para cada área de avaliação do Pisa (OECD, 1999, 2003, 2006). A estrutura começa com o conceito geral de Letramento, que está relacionado com a capacidade dos estudantes de ir além daquilo que aprenderam, no sentido de aplicar seus conhecimentos em novos contextos; e de analisar, argumentar e comunicar de maneira eficaz, à medida que apresentam, resolvem e interpretam problemas em diversas situações (OECD, 2007).

Especificamente no caso da área de ciências, o Letramento Científico foi definido como um conjunto de competências que se esperaria de um indivíduo cientificamente letrado. As competências avaliadas no Pisa são amplas e incluem aspectos relacionados à utilidade pessoal, à responsabilidade social e ao valor intrínseco e extrínseco do conhecimento científico (OECD, 2006). Assim, a perspectiva do Programa difere daquelas fundamentadas exclusivamente no currículo e na disciplina de Ciências, uma vez que inclui problemas situados em contextos educacionais e também profissionais e que reconhece o lugar essencial dos conhecimentos, métodos, atitudes e valores que definem as disciplinas científicas (OECD, 2006). Nessa perspectiva, o termo que melhor descreve os propósitos gerais da avaliação científica do Pisa é o de Letramento Científico, conforme as concepções de Bybee (1997aBybee, R. W. (1997a). Toward an understanding of scientific literacy. In W. Graber, & C. Bolte, Scientific literacy (pp. 37-68). Institute for Science Education.), Fensham (2000Fensham, P. J. (2000). Time to change drivers for scientific literacy. Canadian Journal of Science, Mathematics, and Technology Education, 2, 9-24.), Gräber e Bolte (19971 1 Gräber, W., & Bolte, C. (Eds.). (1997). Scientific Literacy: An International Symposium. Institute for Science Education at the University of Kiel. apud Guimarães, 2003Guimarães, S. E. R. (2003). Avaliação do estilo motivacional do professor: Adaptação e validação de um instrumento [Tese de doutorado]. Universidade Estadual de Campinas.), Mayer (2002Mayer, V. J., & Kumano, Y. (2002). The Philosophy of Science and global Science literacy. In V. J. Mayer (Ed.), Global science literacy. Kluwer Academic Publishers.), Roberts (1983Roberts, D. A. (1983). Scientific literacy: Towards a balance for setting goals for school science programs. Minister of Supply and Services.) e United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Unesco) (1993).

O termo Letramento Científico foi escolhido, de acordo com a OECD (2006), por representar os objetivos da educação científica para todos os estudantes, em uma perspectiva ampla e de natureza aplicada representada como um continuum de conhecimento científico e de habilidades cognitivas associadas à investigação científica, que incorpora múltiplas dimensões e inclui as relações entre ciência e tecnologia. Em conjunto, as competências científicas estão no centro da definição e caracterizam a base do Letramento Científico e o objetivo da avaliação científica, que é avaliar o grau de desenvolvimento de competências dessa natureza pelos estudantes da educação básica (Bybee, 1997bBybee, R. W. (1997b). Achieving scientific literacy: From purposes to practices. Heinemann.; Fensham, 2000Fensham, P. J. (2000). Time to change drivers for scientific literacy. Canadian Journal of Science, Mathematics, and Technology Education, 2, 9-24.; Law, 2002Law, N. (2002). Scientific literacy: Charting the terrains of a multifaceted enterprise. Canadian Journal of Science, Mathematics, and Technology Education, 2, 151-176.; Mayer & Kumano, 2002Mayer, V. J., & Kumano, Y. (2002). The Philosophy of Science and global Science literacy. In V. J. Mayer (Ed.), Global science literacy. Kluwer Academic Publishers.).

Além disso, a perspectiva adotada pelo Pisa reconhece que há um elemento afetivo na demonstração dessas competências pelo estudante (OECD, 2006, 2013, 2016), que é representado por suas atitudes ou disposição para a ciência e irá determinar o nível de interesse do estudante, sustentar seu envolvimento e motivá-lo a atuar (Schibeci, 1984Schibeci, R. A. (1984). Attitudes to science: An update. Studies in Science Education, 11(1), 26-59.). Assim, geralmente a pessoa cientificamente letrada demonstra interesse por assuntos científicos, envolvimento com problemas relacionados à ciência, preocupação com questões tecnológicas, com os recursos e o ambiente, e reflexão sobre a importância da ciência com base em uma perspectiva pessoal e social. Esses requisitos não significam que essas pessoas são necessariamente favoráveis à própria ciência, mas que esses indivíduos reconhecem a ciência, a tecnologia e a investigação nesse domínio como um elemento essencial da cultura contemporânea que estrutura muito do nosso pensamento (OECD, 2013, 2016).

São essas considerações que levaram às definições de Letramento Científico no Pisa 2006 e 2015. Em suma, o Pisa, bem como as contribuições mais recentes na busca de uma definição consensual de Letramento Científico, reúne os dois grandes domínios centrados na compreensão do conteúdo científico e da função social da ciência e da tecnologia, incluindo atitudes, crenças e interesses que influenciam decisões e ações com base em uma perspectiva pessoal, social e cultural.

Metodologia

O artigo apresenta o estudo qualitativo realizado no Brasil e no Japão com o objetivo de refinar e de ampliar o potencial de interpretação dos resultados quantitativos de desempenho dos estudantes desses dois países no Pisa e do estudo de DIF nos itens de ciências do Pisa 2006, pela inclusão da percepção de estudantes, professores e especialistas. Essa triangulação significou olhar para o mesmo fenômeno, no caso o conceito de Letramento Científico do Pisa, por mais de uma perspectiva. Na literatura especializada, a triangulação não constitui apenas uma das formas de combinar métodos qualitativos entre si (Flick, 2005aFlick, U. (2005a). Triangulation in qualitative research. In U. Flick, E. Kardorff, & A. Steinke (Eds.), Companion to qualitative research (pp. 178-183). Sage., 2005b) e de articular métodos quantitativos e qualitativos (Fielding & Schreier, 2001Fielding, N., & Schreier, M. (2001). Introduction: On the Compatibility between qualitative and quantitative research methods. Forum Qualitative Sozialforschung/Forum: Qualitative Social Research, 2(1), 1-21.; Flick, 2005b), mas também uma ruptura com a hegemonia do monismo metodológico ou do método único (Tashakkori & Teddlie, 1998Tashakkori, A., & Teddlie, C. (1998). Mixed methodology: Combining qualitative and quantitative approaches. Social Research Methods Series, 46.).

O conceito de Letramento Científico adotado pelo Pisa foi a referência para a elaboração de todos os instrumentos da pesquisa, cuja utilização gerou dados que foram usados em nossas análises. Para aceder ao ponto de vista dos estudantes sobre o ensino e a aprendizagem de Ciências e à perspectiva dos professores participantes na pesquisa, e ainda para orientar as observações das aulas, foram adotados construtos usados pelo Programa em 2006. Além da visão do professor e da observação de aulas de Ciências, para entender conceitual e operacionalmente o Letramento Científico nos países estudados conduzimos entrevistas abertas com professores especialistas no ensino dessa disciplina, no Japão, e com pessoas responsáveis pelo Pisa, no Japão e no Brasil. Tais entrevistas foram extremamente importantes, já que contribuíram para o levantamento de hipóteses que, na visão de especialistas, podem ajudar a explicar a diferença de desempenho entre os países envolvidos, bem como as peculiaridades dos distintos sistemas de ensino.

As escolas

Observamos no Japão e no Brasil, entre os meses de novembro de 2015 e outubro de 2016, um total de 147 aulas de Ciências dos três últimos anos do ensino fundamental (64 horas-aula no Japão e 83 no Brasil), em três escolas de cada país, e acompanhamos 16 professores no total, oito em cada país.

As três escolas japonesas selecionadas para participar da pesquisa de campo mantêm parcerias com a Universidade Gakugei de Tóquio, onde realizamos o estágio de doutorado sanduíche, o que garantiu a possibilidade de gravação em vídeo das aulas observadas. Já as escolas brasileiras foram definidas com base nas características das escolas japonesas que autorizaram a realização da pesquisa. Todas as escolas estavam localizadas em Tóquio, duas delas estavam associadas à Universidade Gakugei e guardavam relação com os colégios de aplicação no Brasil, e a terceira era uma escola municipal também parceira dessa universidade. Para manter algum grau de correspondência, no Brasil, as três escolas selecionadas estavam localizadas no município do Rio de Janeiro, duas delas eram federais - um colégio de aplicação e outro com tradição de excelência - e a terceira, como a japonesa, também era uma escola municipal, tendo sido selecionada por ter o maior Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do Rio de Janeiro à época. Observamos aulas de Ciências nos três últimos anos do ensino fundamental, que correspondem ao 7º, 8º e 9º anos do ensino fundamental, no Brasil, e aos três anos doJunior High School/中学校,no Japão.

A pauta de observação

O roteiro de observação de aspectos mais gerais da sala de aula e dos professores representa uma adaptação da ficha de observação utilizada pelo projeto Geres.2 2 Trata-se de um estudo longitudinal de painel, com início em 2005, no qual a mesma amostra de escolas e de alunos foi observada ao longo de quatro anos. O Geres envolveu a associação entre seis centros universitários com tradição em avaliação da educação, a saber: o Laboratório de Avaliação da Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (LAEd/ PUC-Rio), o Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (Game/UFMG), o Laboratório de Avaliação da Universidade Estadual de Campinas (Loed/Unicamp), a Linha de Pesquisa de Avaliação da Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o Centro de Avaliação da Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (CAEd/UFJF) e a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS). Já os itens relativos às práticas docentes de gestão da sala de aula e da aprendizagem dos estudantes em Ciências tiveram o Pisa como referência. O resultado foi uma pauta de observação que recobre três dimensões da sala de aula: uso do tempo, ênfases curriculares e práticas docentes.

O uso do tempo

Durante as observações, registramos os horários de início e término, oficial e efetivo, das aulas de Ciências. As referências principais para a análise do tempo foram mobilizadas com base no estudo de Marcel Crahay (2002Crahay, M. (2002). Poderá a escola ser justa e eficaz? Da igualdade das oportunidades à igualdade dos conhecimentos. Instituto Piaget.), autor que, na defesa da igualdade de conhecimento como expressão de uma escola justa, confere ao uso do tempo em atividades de ensino e aprendizagem um papel primordial. De Crahay tomamos como referência o conceito de Tempo Reservado à Ação Educativa (Trae), que expressa o tempo real alocado em atividades diretamente relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem, descontando-se o tempo gasto com outras questões durante a aula, para embasar a análise dos dados obtidos durante a observação das aulas expressa na seguinte sentença:

Trae = TO - TM - TE - TS, em que:

Trae - Tempo Reservado à Ação Educativa

TO - Tempo Oficial

TM - Tempo Morto (Pausa, Inatividade e Interrupções)

TE - Tempo “perdido” na Entrada

TS - Tempo “perdido” na Saída

As ênfases curriculares

Os resultados das análises de DIF sugeriram diferentes ênfases curriculares em Ciências, no Brasil e no Japão (Muri et al., 2017Muri, A. F., Bonamino, A., & Soares, T. M. (2017). Funcionamento diferencial dos itens de ciências do PISA: Brasil e Japão. Estudos em Avaliação Educacional, 28(68), 538-570.). Consideramos, então, o que era enfatizado do ponto de vista curricular nas aulas observadas, buscando registrar se os assuntos tratados estavam relacionados à área das ciências naturais e biológicas, física ou química.

As práticas docentes

As práticas docentes de gestão da sala de aula e de promoção da aprendizagem dos estudantes foram observadas por meio de um roteiro construído em diálogo com o Pisa. Essas práticas referem--se à frequência com que determinadas atividades têm lugar nas aulas de Ciências e dizem respeito, especificamente, à frequência com a qual:

  1. Os estudantes são convidados a expor as suas ideias.

  2. Os estudantes fazem experiências no laboratório.

  3. O professor pede aos estudantes que imaginem como determinada questão científica poderia ser investigada em laboratório.

  4. O professor pede aos estudantes que apliquem um conceito científico a problemas quotidianos.

  5. Os estudantes são convidados a dar a sua opinião acerca dos temas tratados.

  6. O professor pede aos estudantes que tirem conclusões de uma experiência por eles realizada.

  7. O professor explica como uma noção científica se pode aplicar a vários fenômenos (p. ex., ao movimento dos corpos ou a substâncias com propriedades idênticas).

  8. Os estudantes têm permissão para conceber as suas próprias experiências.

  9. Há um debate ou troca de ideias na aula.

  10. As experiências são feitas pelo professor, a título de demonstração.

  11. Os estudantes podem escolher os seus trabalhos de pesquisa.

  12. O professor usa a ciência para ajudar os estudantes a compreender o mundo exterior.

  13. Os estudantes debatem os temas tratados.

  14. Os estudantes fazem experiências seguindo as instruções do professor.

  15. O professor explica de modo claro a importância dos conceitos científicos na vida de todos.

  16. O professor pede aos estudantes que façam uma pesquisa para testarem as suas próprias ideias.

  17. O professor dá exemplos de aplicações tecnológicas para mostrar como a ciência é importante para a sociedade.

O questionário do professor

Inicialmente, a construção desse instrumento se referenciou nos modelos de questionários utilizados por avaliações externas nacionais e internacionais, como Saeb/Prova Brasil,3 3 A Prova Brasil e o Saeb são avaliações para diagnóstico, em larga escala, desenvolvidas pelo Inep. Têm o objetivo de avaliar a qualidade do ensino oferecido pelo sistema educacional brasileiro por meio de testes padronizados e questionários socioeconômicos. Saresp,4 4 O Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) é aplicado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo com a finalidade de produzir um diagnóstico da situação da escolaridade básica paulista, visando a orientar os gestores do ensino no monitoramento das políticas voltadas para a melhoria da qualidade educacional. Geres e Pisa. O questionário do professor foi dividido em três blocos. O primeiro, com o objetivo de traçar o perfil dos professores participantes, coletou informações gerais como: sexo, idade, formação, experiência e modo de contratação. Em seguida, no segundo bloco, apresentamos aos professores questões relativas à sua participação em vários tipos de formação continuada e à sua percepção do impacto dessas atividades na sua prática. O terceiro bloco foi dedicado ao recolhimento de informações sobre o Letramento Científico, por meio da incorporação dos itens do Pisa já listados e que foram enfatizados nas nossas análises.

A análise da prática pedagógica

O passo inicial para a análise dos dados obtidos das observações e do questionário respondido pelo professor foi a leitura cuidadosa da estrutura conceitual do Pisa. O processo de ensino e aprendizagem de Ciências no Pisa é investigado com foco nas estratégias utilizadas na escola e em sua variação nos diferentes tipos de ensino e de escolas participantes do Programa. Para tanto, o Programa criou quatro escalas com base nas 17 atividades descritas anteriormente, que permitem caracterizar o processo de Letramento Científico dos estudantes. As categorias utilizadas pelo Programa e também por nós na análise dos dados foram as seguintes: Interação, Experimentação, Investigação e Aplicação.

A categoria Interação envolve, sobretudo, atividades relacionadas à participação ativa dos estudantes na aula. A Experimentação tem como referência o exercício dos experimentos, uso do laboratório de Ciências, etc. A dimensão Investigação visa ao grau de autonomia dos estudantes para buscar e construir conhecimento. Por fim, a Aplicação está mais relacionada ao uso da ciência e, consequentemente, à sua importância para a sociedade. A distribuição das atividades entre as categorias elencadas pelo Programa pode ser mais bem visualizada no quadro a seguir (Quadro 1).

QUADRO 1
CATEGORIAS DE ANÁLISE DO LETRAMENTO CIENTÍFICO NO PISA 2006

Os mesmos construtos e categorias foram utilizados nas análises dos dados obtidos com base nas observações e no questionário do professor. Em suma, com o trabalho de campo buscamos responder às seguintes questões:

  1. Com base nas observações, qual é o Tempo Reservado à Ação Educativa de Ciências no Brasil e no Japão?

  2. Qual é a percepção dos estudantes participantes do Pisa quanto à frequência com que ocorrem as atividades de ensino-aprendizagem de Ciências? Essa frequência percebida pode ser relacionada ao desempenho em Ciências no Pisa dos estudantes brasileiros e japoneses?

  3. Com que frequência essas atividades acontecem nas aulas de Ciências observadas no Brasil e no Japão? As aulas de Ciências desses dois países concentram mais atividades características de alguma das escalas elaboradas pelo Pisa (interação, experimentação, investigação e aplicação)?

  4. Os professores observados assumem adotar essas atividades nas suas aulas? Com que frequência?

  5. Por que o desempenho do Brasil e do Japão no Pisa é tão diferente? Que lições podem ser extraídas da experiência japonesa?

Para responder a essas questões, buscamos conduzir as análises sob duas lógicas principais: uma descritiva e outra explicativa. A primeira está guiada principalmente pela discussão dos resultados do Pisa e pelas respostas dos estudantes às questões propostas no questionário contextual do estudante na avaliação internacional. Nesse caso, investigamos as correlações entre as frequências de uso de métodos/práticas pedagógicas, o desempenho dos estudantes e o tempo dedicado ao ensino de Ciências. Na segunda dimensão, buscou-se explicar os resultados encontrados na pesquisa por meio da observação das aulas e dos questionários respondidos pelos professores, e também verificar se as práticas que impactam o desempenho dos estudantes no Pisa são especialmente frequentes nas aulas de Ciências observadas nesses dois países e se são assumidas pelos professores nos questionários.

Resultados e discussão

O Brasil está em desvantagem em comparação com quase todos os países participantes do Pisa e não apenas em relação ao Japão. O Brasil ocupou a posição de 52o país em competência científica dentre os 57 participantes do Pisa em 2006 e a posição 63o entre os cerca de 70 países participantes em 2015. O Japão foi o 6o colocado em 2006 e o 2o em 2015. Na escala de desempenho, em 2006 e 2015, o Brasil permaneceu no nível 1 e o Japão passou do nível 3 para o nível 4. A comparação dos resultados do Pisa obtidos por estudantes brasileiros e japoneses deixou claro que a defasagem idade-série continua a constituir uma das dimensões mais importantes das desigualdades educacionais brasileiras, apesar de ser um dos problemas mais visados pelas políticas públicas federais, estaduais e municipais. Esse aspecto foi amplamente discutido, sobretudo no caso do Brasil, já que no Japão não há reprovação, por Muri Leite e Bonamino (2020Muri Leite, A. F. M., & Bonamino, A. (2020). Defasagem idade-série e letramento científico no Pisa. Estudos em Avaliação Educacional, 31(77), 393-420.).

Somente os estudantes brasileiros matriculados nas séries finais do ensino médio e, portanto, com escolaridade maior que os estudantes japoneses conseguiram atingir os patamares iniciais considerados pela OECD como necessários para uma participação ativa na sociedade (Muri, 2017Muri, A. F., Bonamino, A., & Soares, T. M. (2017). Funcionamento diferencial dos itens de ciências do PISA: Brasil e Japão. Estudos em Avaliação Educacional, 28(68), 538-570.). Os estudantes brasileiros defasados apresentaram um desempenho inferior em Ciências ao dos estudantes brasileiros da amostra geral. No entanto, quando comparados aos estudantes japoneses, a diferença dos estudantes brasileiros defasados alcança significativos 200 pontos em algumas competências. Esses resultados estão em linha com os achados da literatura especializada que mostram que a reprovação não é a melhor solução para os problemas de ensino-aprendizagem no Brasil (Freitas, 1947Freitas, M. A. T. (1947). A escolaridade média no ensino primário brasileiro. Revista Brasileira de Estatística, 8(30-31), 295-474.; Brandão et al., 1983Brandão, Z., Baeta, A. M. B., & Rocha, A. D. (1983). Evasão e repetência no Brasil: A escola em questão. Achiamé.; Ribeiro, 1991Ribeiro, S. A. C. (1991). Pedagogia da repetência. Estudos Avançados, 5(12), 7-21.; Alves et al., 2007Alves, F., Ortigão, M. I. R., & Franco, C. (2007). Origem social e risco de repetência: Interação entre raça--capital econômico. Cadernos de Pesquisa, 37(130), 161-180.; Correa et al., 2014Correa, E. V., Bonamino, A., & Soares, T. M. (2014). Evidências do efeito da repetência nos primeiros anos escolares. Estudos em Avaliação Educacional, 25(59), 242-269.). A reprovação tem se mostrado uma medida que incide negativamente no desempenho em Ciências no Pisa, porque priva esses estudantes da oportunidade de aprender o que é tipicamente avaliado pelo Programa entre jovens de 15 anos de idade, que deveriam estar frequentando o último ano do ensino fundamental ou a primeira série do ensino médio (Muri Leite & Bonamino, 2020Muri Leite, A. F. M., & Bonamino, A. (2020). Defasagem idade-série e letramento científico no Pisa. Estudos em Avaliação Educacional, 31(77), 393-420.).

As análises comparativas mostraram ainda que, não obstante os cuidados que cercam a elaboração e seleção de itens do Pisa, houve uma presença significativa de DIF nos itens de Ciências da edição de 2006 quando se comparam o Brasil e o Japão (Muri et al., 2017Muri, A. F., Bonamino, A., & Soares, T. M. (2017). Funcionamento diferencial dos itens de ciências do PISA: Brasil e Japão. Estudos em Avaliação Educacional, 28(68), 538-570.). Cabe lembrar que os itens diagnosticados com DIF não se mostraram capazes de comprometer o processo avaliativo ao privilegiar um grupo em detrimento do outro. Isso foi verificado nas análises do Brasil e do Japão, por Muri et al. (2017), que mostram que as diferenças favorecem um grupo de estudantes de um país em detrimento do outro, embora sugiram a existência de diferentes ênfases curriculares no ensino de Ciências, que foram investigadas in loco pela pesquisa.

Com efeito, o desempenho dos estudantes japoneses em Ciências no Pisa 2006 e 2015 foi bem melhor que o dos estudantes brasileiros, mas, apesar da ocorrência de DIF em alguns itens do teste, não foi possível afirmar que diferenças significativas de desempenho fossem explicadas única e exclusivamente pelo comportamento diferencial dos itens, ou seja, pelo fato de os itens estarem favorecendo o Japão em detrimento do Brasil. Dentre inúmeros outros fatores, tais como a condição socioeconômica dos estudantes, o nível de escolaridade de seus pais, etc., a literatura aponta que professores eficazes impactam positivamente a aprendizagem dos estudantes (Hanushek & Woessmann, 2010Hanushek, E., & Woessmann, L. (2010). Education and economic growth. In D. Brewer, & P. McEwan (Eds.), Economics of education (pp. 60-67). Elsevier.; Hattie, 2003Hattie, J. (2003). Teachers make a difference: What is the research evidence? https://research.acer.edu.au/research_conference_2003/4/
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, 2009, 2012; Hanushek, 2002; Taylor et al., 2010Taylor, J., Roehrig, A., Hensler, B., Connor, C., & Schatschneider, C. (2010). Teacher quality moderated the genetic effects on early reading. Science, 328(5977), 512-514.). A identificação de práticas que o professor incorpora nas atividades de ensino pode, portanto, contribuir para a compreensão do que pode fazer a diferença na aprendizagem e no desempenho dos estudantes e, ainda, resultar em subsídios para a adoção de medidas que promovam a eficácia escolar e a melhoria da qualidade do ensino.

No Japão, a maioria dos professores observados é do sexo masculino (cinco de oito) e, no Brasil, a maioria é do sexo feminino (seis de oito). Os professores brasileiros participantes da pesquisa são mais jovens (a maior parte dos professores brasileiros tem menos de 39 anos de idade, enquanto a maior parte dos japoneses está acima dos 40) e, no geral, têm maior grau de escolaridade do que os japoneses (metade dos professores brasileiros observados possui título de mestre e a outra metade, de doutor. No Japão, metade também possui título de mestre, mas a outra metade é composta de licenciados/bacharéis). Todos os professores brasileiros são formados em Biologia, enquanto no Japão há professores formados também em Química, Física e Geociências. A formação continuada dos professores brasileiros enfatiza iniciativas diretamente relacionadas à pesquisa e à extensão. Normalmente, essas atividades estão também relacionadas com a frequência a cursos de pós-graduação. A formação continuada dos professores japoneses se constitui de iniciativas relacionadas à interação com os pares, ou seja, aquelas que só podem ser implementadas quando a formação é realizada em e no serviço. No Japão, o trabalho colaborativo e os grupos de pesquisa formados por professores são parte constituinte do desenvolvimento profissional e têm sido considerados iniciativas bem-sucedidas na formação de professores.

O tempo

O estudo empírico mostrou que o tempo de aula é um indicador-chave das oportunidades de aprendizagem de Ciências oferecidas aos estudantes. Tanto no Brasil quanto no Japão, nas escolas observadas, a hora-aula é composta de 50 minutos. Dado que observamos 64 horas-aula no Japão e 83 horas-aula no Brasil, nosso Tempo Oficial (TO) total foi de exatos 7.350 minutos. Aproximadamente uma hora e meia de aula dentre as 64 observadas no Japão foi destinada a questões outras que não o ensino e a aprendizagem de Ciências. Isso não representa sequer 2% do total das horas observadas. No Brasil, das horas-aula observadas (83) chega-se a perder pelo menos 15 horas-aula, quase 20% do tempo total. Portanto, as escolas brasileiras que observamos desperdiçam dez vezes mais tempo de aula que as escolas japonesas. Assim como em Bruns e Javier (2014Bruns, B., & Javier, L. (2014). Great teachers: How to raise teacher quality and student learning in Latin America and the Caribbean (Overview Booklet). World Bank Group.), as principais causas desse desperdício são os atrasos, o excesso de tarefas burocráticas (fazer chamada, limpar a lousa e distribuir trabalhos) e as interrupções.

A perda de tempo de instrução como um indicador de oportunidade educacional está fundamentada em um corpo robusto de pesquisas sobre a importância do tempo de aprendizagem. Há mais de meio século, John Carroll (1963Carroll, J. A. (1963). Model of school learning. Teachers College Record, 64, 723-733.) colocou o tempo no centro de seu modelo de aprendizado escolar. A ideia genérica de Carroll era de que o que os estudantes aprendem está intimamente relacionado com o tempo que passam aprendendo. Algumas das pesquisas mais extensas sobre a disponibilidade de tempo de aprendizagem foram feitas em países em desenvolvimento como o Brasil e em outros países latino-americanos (como Colômbia e Peru, por exemplo) e do Caribe (ver Bruns & Javier, 2014Bruns, B., & Javier, L. (2014). Great teachers: How to raise teacher quality and student learning in Latin America and the Caribbean (Overview Booklet). World Bank Group.). Estudos internacionais têm focado sua atenção nos fatores institucionais que moldam o tempo de aprendizagem e as oportunidades educacionais. A maioria desses estudos aponta que, em alguns países com renda média relativamente baixa, os estudantes frequentemente recebem instrução apenas em uma fração do tempo total de aprendizagem atribuído - caso do Brasil, de Gana, da Tunísia, entre outros (ver Abadzi, 2009Abadzi, H. (2009). Instructional time loss in developing countries: Concepts, measurement, and implications. The World Bank Research Observer, 24(2), 267-290.).

As ênfases curriculares

Outra dimensão que pode explicar as diferenças de desempenho entre os estudantes brasileiros e japoneses no Pisa-Ciências são as ênfases curriculares. O currículo é distribuído de forma mais homogênea ao longo dos anos escolares no Japão e se mostra muito fragmentado no Brasil, que apresenta ainda acentuada ênfase curricular nas ciências naturais. Via de regra, no Brasil, apenas no 9º ano os estudantes são expostos a conteúdos escolares relacionados aos sistemas físicos, químicos e tecnológicos. Nossas observações e o conteúdo da maioria expressiva dos livros didáticos brasileiros apoiam essa conclusão. No Japão, apesar de haver uma maior prescrição de conteúdos relacionados às ciências naturais e biológicas em cada ano escolar, foi possível observar uma distribuição mais equilibrada dos conteúdos. Nesse país, a cada ano, os estudantes estudam conteúdos relacionados a química, física e biologia. Desde muito cedo, os estudantes japoneses têm contato com temas relacionados ao avanço da ciência e da tecnologia e à sua importância para a vida.

Observamos que os diferentes conteúdos presentes na matriz referencial do Pisa são apresentados praticamente em todos os anos escolares aos estudantes japoneses, de forma tal que fica estabelecido um contato contínuo desses estudantes com os diversos temas do ensino de Ciências ao longo do ensino fundamental. Percebemos que essa continuidade oferece não apenas um maior e mais prolongado contato com os diversos campos das ciências, mas principalmente uma maior oportunidade de consolidação dos conceitos científicos que são retomados ano após ano.

Analisamos o currículo proposto ou formal, como o define Forquin (1992Forquin, J. C. (1992). Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais. Teoria & Educação, 5(1), 28-49.), nos dois países. No Brasil, nos debruçamos sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e no Japão sobre o Curso de Estudo (Course of Study, em inglês, e 学習指導要領 ou Gakushū shidō yōryō, em japonês). No caso do Brasil, apesar de termos, assim como no Japão, uma cobertura total dos conteúdos propostos na matriz referencial do Programa, percebemos a apresentação desses conteúdos de forma mais seccionada ao longo dos anos do ensino fundamental. Essa distribuição mais estanque dos conteúdos pode estar somada a outra dificuldade curricular no Brasil, àquela representada pela ausência de implementação de um currículo nacional comum.5 5 A Base Nacional Curricular Comum (BNCC) ainda estava em discussão na ocasião da coleta de dados do presente trabalho. O documento foi publicado em 2018, mas ainda encontra desafios na implementação nacional. Se há um aspecto relevante que pode ser aprendido com a experiência japonesa, este se refere à atenção que é dispensada no Japão aos detalhes do currículo nacional e à insistência no sentido de que esse currículo seja realmente ensinado e aprendido.

De acordo com a OECD (2010), o currículo japonês é coerente, cuidadosamente focado em tópicos essenciais e em uma profunda exploração conceitual, logicamente sequenciado e definido em um nível muito elevado de desafio cognitivo. O resultado disso é que os egressos do ensino médio naquele país têm um nível de domínio dos temas que se equipara ao dos graduados da faculdade em muitos países ocidentais. O Japão tem uma história de excelência sustentável e está no topo do ranking internacional de pesquisas educacionais desde o início das avaliações internacionais. Ryo Watanabe, diretor de Pesquisa Internacional do National Institute for Educational Research (Nier), em entrevista à OECD, afirmou que os estudantes japoneses têm tido muito sucesso no Pisa por causa do seu currículo. O Japão tem padrões curriculares nacionais, ou cursos de estudo que definem o conteúdo a ser ensinado por grau e disciplina, que a cada dez anos devem ser atualizados. Segundo Watanabe, em todo o país, os professores ensinam com base em padrões curriculares nacionais (OECD, 2010). Ainda de acordo com a OECD (2010), o currículo japonês é muito exigente, no entanto, é também altamente coerente, na medida em que progride passo a passo, de forma lógica de ano para ano, concentrando-se a cada ano nos temas que devem ser dominados para compreender o que será apresentado no ano seguinte.

A abordagem didática e a prática pedagógica

A abordagem didática e a prática pedagógica também constituem fatores curriculares importantes. A qualidade do ensino e sua eficácia têm sido objeto de vários estudos nacionais e internacionais que procuram destacar as características da atuação pedagógica docente que têm efeito positivo sobre o desempenho dos estudantes (Hanushek & Woessmann, 2010Hanushek, E., & Woessmann, L. (2010). Education and economic growth. In D. Brewer, & P. McEwan (Eds.), Economics of education (pp. 60-67). Elsevier.; Hattie, 2003Hattie, J. (2003). Teachers make a difference: What is the research evidence? https://research.acer.edu.au/research_conference_2003/4/
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, 2009, 2012; Hanushek, 2002; Taylor et al., 2010Taylor, J., Roehrig, A., Hensler, B., Connor, C., & Schatschneider, C. (2010). Teacher quality moderated the genetic effects on early reading. Science, 328(5977), 512-514.). Os estudantes brasileiros, apesar de não apresentarem um desempenho satisfatório em Ciências no Pisa, afirmam serem expostos mais frequentemente às abordagens construtivistas que envolvem “investigação”, “interação”, “aplicação” e “experimentação” do que os estudantes japoneses. A literatura sobre o tema sinaliza que essas abordagens do ensino de Ciências são extremamente importantes para o desenvolvimento de habilidades no âmbito do Letramento Científico. No entanto, apesar de o Japão apresentar um dos melhores resultados em Ciências no Pisa quando comparado a outros países da OECD, os estudantes japoneses raramente admitem uma utilização frequente dessas estratégias pedagógicas por parte de seus professores. Afirmam que, de modo geral, tais atividades ocorrem em pouco mais de 15% das aulas. Já os estudantes brasileiros responderam que a “experimentação”, embora seja a atividade realizada com menor frequência, ocorre pelo menos em 30% das aulas.

As percepções dos professores brasileiros e japoneses se aproximam no reconhecimento de “interação” e “aplicação” serem as atividades mais frequentemente realizadas em suas aulas, com implementação em mais de 50% das aulas. Já as atividades de “experimentação”, reconhecidas por seu poder de atrair o interesse dos estudantes pela ciência, são as menos utilizadas pelos professores brasileiros e as mais utilizadas pelos professores japoneses.

Por último, os professores japoneses e brasileiros tendem a se aproximar quanto à menor frequência com que recorrem a atividades investigativas nas suas aulas. As atividades investigativas estão basicamente relacionadas ao nível de autonomia concedido aos estudantes para escolher seus temas de pesquisa, testar suas próprias ideias, fazer seus próprios experimentos, etc.

Guimarães (2003Guimarães, S. E. R. (2003). Avaliação do estilo motivacional do professor: Adaptação e validação de um instrumento [Tese de doutorado]. Universidade Estadual de Campinas.) reforça a ideia de autonomia defendendo que os indivíduos são naturalmente propensos a realizar uma atividade por acreditar que o fazem por vontade própria e não por serem obrigados por força das demandas externas. Em decorrência dessa percepção, seus comportamentos podem ser intrinsecamente motivados, fixando metas pessoais, demonstrando seus acertos e dificuldades, planejando as ações necessárias para viabilizar seus objetivos e avaliando adequadamente seu progresso.

O objetivo das investigações sobre ensino e aprendizagem das ciências é envolver os estudantes no amplo processo de investigação científica, incluindo, por exemplo, oportunidades de testar suas próprias ideias usando métodos científicos. Embora essas atividades de ensino deem aos estudantes a oportunidade de desenvolver as três competências centrais (“identificar questões científicas”, “explicar fenômenos cientificamente” e “usar evidência científica”) do quadro de Ciências do Pisa (Kobarg et al., 2011Kobarg, M., Prenzel, M., Seidel, T., Walker, M., McCrae, B., Cresswell, J., & Wittwer, J. (2011). An international comparison of science teaching and learning: Further results from PISA 2006. Waxmann.), elas foram menos frequentes na percepção de estudantes e professores, bem como nas observações realizadas tanto no Brasil quanto no Japão. Ocorreram em apenas 1% das aulas observadas no Brasil e em 6% das aulas observadas no Japão. Uma revisão da literatura recente fornece evidências positivas sobre o impacto das atividades investigativas no conhecimento científico dos estudantes. A qualidade de como a ciência é representada por inquéritos e investigações científicas é mais importante do que a implementação de experiências de estudantes (Harlen, 1999Harlen, W. (1999). Effective teaching of science. The Scottish Council for Research in Education (SCRE).), ou seja, os experimentos podem apoiar o desenvolvimento do Letramento Científico quando integrados em unidades de ensino com o objetivo de melhorar a capacidade dos estudantes para pensar e raciocinar cientificamente. Assim, deve-se ressaltar que atividades práticas isoladas não promovem o Letramento Científico dos estudantes; eles precisam conhecer o processo mais amplo de investigação científica para desenvolver uma profunda compreensão do conteúdo científico (Kobarg et al., 2011).

Atividades relacionadas à “experimentação” foram mais frequentemente observadas nas aulas das escolas japonesas, nas quais o uso do laboratório e a realização de experimentos ocorreram em cerca de 40% das aulas. Os professores japoneses assumiram fazer uso dessa prática em cerca de 70% das suas aulas. No Brasil, observamos tais atividades em apenas 16% das aulas e os professores brasileiros afirmaram ser essa a prática a que menos recorrem nas suas aulas (pouco mais de 10% das aulas). As atividades práticas são um aspecto importante do ensino de Ciências (Harlen, 1999Harlen, W. (1999). Effective teaching of science. The Scottish Council for Research in Education (SCRE).) porque proporcionam aos estudantes a oportunidade de realizar tarefas, como planejar e conduzir um experimento e tirar conclusões de seus resultados (Kobarg et al., 2011Kobarg, M., Prenzel, M., Seidel, T., Walker, M., McCrae, B., Cresswell, J., & Wittwer, J. (2011). An international comparison of science teaching and learning: Further results from PISA 2006. Waxmann.). As atividades práticas proporcionam aos estudantes a oportunidade de coletar suas próprias evidências científicas, o que pode ajudá-los a desenvolver a competência de usar esse tipo de evidências. No entanto, é preciso considerar que as atividades práticas são muitas vezes limitadas à coleta de dados e não vão muito longe na sua interpretação.

A interação ativa dos estudantes com o processo de ensino e aprendizagem de Ciências foi observada por nós e reconhecida pelos professores nas respostas ao questionário em mais de 50% do total de aulas, tanto no Brasil quanto no Japão. Em resposta ao questionário contextual, os estudantes brasileiros também identificaram atividades desse tipo em mais de 50% das aulas, enquanto os japoneses as reconheceram como fazendo parte de pouco mais de 15% das aulas. Durante a pesquisa em sala de aula, esse foi o tipo de atividade mais frequentemente observado no Brasil e no Japão. As atividades de “interação” podem ser usadas para envolver os estudantes com a sala de aula. Por exemplo, os estudantes podem ser convidados a declarar sua própria opinião, explicar suas ideias ou participar em discussões sobre questões científicas. Atualmente, os educadores de Ciências concordam que o ensino dessa disciplina deve enfatizar atividades de aprendizado interativas (Hofstein & Lunetta, 2004Hofstein, A., & Lunetta, V. N. (2004). The laboratory in science education: Foundations for the twenty-first century. Science Education, 88(1), 28-54.). O ensino de Ciências transmissivo tem um forte foco nos conhecimentos científicos e na aula teórica, nos livros didáticos e na demonstração de experiências, ao passo que o ensino interativo de Ciências é, em contraste, orientado para a aprendizagem cooperativa, por meio de discussões e interações colaborativas de estudantes e professores (Kobarg et al., 2011Kobarg, M., Prenzel, M., Seidel, T., Walker, M., McCrae, B., Cresswell, J., & Wittwer, J. (2011). An international comparison of science teaching and learning: Further results from PISA 2006. Waxmann.).

As atividades relacionadas à aplicabilidade da ciência, sobretudo de conhecimentos científicos a problemas quotidianos e a aplicação de um conceito científico a vários fenômenos, bem como a importância da ciência na vida de todos e da sociedade, foram bem mais frequentemente observadas no Brasil (quase 60% das aulas) que no Japão (menos de 30% das aulas). Os diferentes enfoques de ensino construtivista enfatizam as aplicações na vida real como um meio de criar contextos autênticos e significativos para os estudantes (Collins et al., 1989Collins, A., Brown, J. S., & Newman, S. E. (1989). Cognitive apprenticeship: Teaching the craft of reading, writing, and mathematics. In L. B. Resnick (Ed.), Knowing, learning and instruction. Essays in honor of Robert Glaser (pp. 453-494). Erlbaum.), mas, geralmente, as aplicações da vida real não representam um foco importante no ensino tradicional de Ciências (Seidel, 2003Seidel, T. (2003). Lehr-Lernskripts im Unterricht. Waxmann.; Tesch, 2004Tesch, M. (2004). Experimentieren im Physikunterricht - Ergebnisse einer Vide ostudie. Zeitschrift für Didaktik der Naturwissenschaften, 10, 51-69.; Widodo, 2004Widodo, A. (2004). Constructivist oriented lessons. Peter Lang.). Via de regra, os resultados de estudos sobre a inclusão de aplicações da vida real no ensino das ciências mostram uma correlação positiva entre a motivação dos estudantes para aprender e suas atitudes em relação à ciência (Kobarg et al., 2011Kobarg, M., Prenzel, M., Seidel, T., Walker, M., McCrae, B., Cresswell, J., & Wittwer, J. (2011). An international comparison of science teaching and learning: Further results from PISA 2006. Waxmann.).

O uso dos resultados do Pisa

Outro ponto que abordamos para tentar explicar a diferença significativa de desempenho entre Brasil e Japão foi o uso que esses dois países fazem dos resultados do Pisa. Para ambas as gerentes do Programa, no Brasil e no Japão, o objetivo da avaliação é subsidiar políticas públicas de melhoria da qualidade do ensino. No entanto, diferentemente do que acontece no Brasil, onde ainda muito se questiona sobre o que é feito, efetivamente, com o diagnóstico propiciado pelas avaliações em larga escala, no Japão, os resultados da avaliação são diretamente empregados na tomada de decisões para melhorar a qualidade da educação. Diante dos resultados do primeiro ciclo de edições do Pisa (2000, 2003 e 2006), por exemplo, três reformas educacionais e curriculares foram realizadas no Japão. No Brasil, a gestora da avaliação assinala que o país não teria, mesmo com a experiência de participação nas seis edições do Pisa, dado muitos passos na direção de, por exemplo, melhoramento dos materiais didáticos, do livro didático, da formação de professores, do currículo, etc.

O alto desempenho do Japão e o baixo desempenho do Brasil

Na perspectiva da gerente do Pisa no Japão, o bom desempenho do país pode ser explicado pelas reformas realizadas no ensino daquele país com base nos resultados dessa avaliação internacional. Em breves palavras, o currículo foi revisto, os professores receberam uma publicação com instruções sobre o Pisa e o sistema nacional de avaliação foi retomado com itens que, assim como o Pisa, avaliam habilidades. O que a OECD e a gerente do Pisa no Japão apontaram como as razões do alto desempenho dos estudantes japoneses aparece na fala da gerente do Pisa no Brasil como as principais dificuldades e problemas encontrados pelos estudantes brasileiros no Programa e como fatores explicativos do baixo desempenho dos nossos estudantes e escolas, e isso envolve falta de familiaridade e de preparo dos estudantes com e para o teste, de infraestrutura e de uso das evidências oriundas das avaliações externas.

O Japão está no topo do ranking internacional desde as primeiras avaliações educacionais e há características do sistema educacional desse país das quais é possível retirar algumas lições. No desenvolvimento da pesquisa, sobretudo com base nas contribuições de especialistas em ensino de Ciências, observamos algumas dessas características e verificamos como se relacionam com o alto desempenho do Japão nas avaliações externas em larga escala, como é o caso do Pisa. São elas: a) a política de promoção dos estudantes - considerando que 100% dos estudantes estão “em fase” e que o Japão é um dos poucos países do mundo onde não há reprovação; b) o currículo nacional comum revisado a cada dez anos; c) a formação continuada de professores feita em serviço; d) a utilização do tempo reservado à ação pedagógica; e e) o uso dos resultados da avaliação para monitorar, diagnosticar e promover o desempenho do sistema educacional.

Conclusões

Nosso objetivo neste trabalho foi, com base nos dados do Pisa e na adoção complementar de uma abordagem qualitativa, identificar diferentes ênfases curriculares e/ou práticas pedagógicas no ensino de Ciências do Brasil e do Japão que contribuíssem para a compreensão das diferenças de desempenho entre estudantes desses dois países. Para tanto, buscamos refinar e ampliar o potencial de interpretação dos resultados quantitativos da pesquisa, por meio da observação do uso do tempo nas aulas de Ciências; do registro das ênfases curriculares e da ocorrência de atividades relacionadas à “interação”, “investigação”, “experimentação” e “aplicação” de acordo com a observação das aulas e da percepção de alunos e professores; e de entrevistas com especialistas e gestores.

Observamos, no Japão e no Brasil, entre os meses de novembro de 2015 e outubro de 2016, um total de 147 aulas de Ciências dos três últimos anos do ensino fundamental (64 horas-aula no Japão e 83 no Brasil), de 16 professores (8 no Brasil e 8 no Japão), em três escolas de cada país. As conclusões a que chegamos podem ser assim sintetizadas:

  1. Mais de 20% do tempo oficial de aula observado no Brasil é desperdiçado com questões outras que não o ensino efetivo de Ciências; dez vezes mais que no Japão.

  2. No Brasil, há ênfase curricular mais acentuada nas ciências naturais e biológicas. O currículo é distribuído mais homogeneamente no Japão e é seccionado no Brasil.

  3. Segundo os estudantes japoneses, não são frequentes as atividades de interação, investigação, experimentação e aplicação. As atividades mais recorrentes observadas e percebidas pelos professores japoneses são as de experimentação e interação; no Brasil, as de interação e aplicação.

  4. Entrevistas realizadas com especialistas em ensino de Ciências e gestoras do Pisa, no Brasil e no Japão, mostraram que o sucesso do Japão nessa avaliação é associado à existência de um currículo nacional comum e à formação continuada de professores em serviço, bem como às reformas do sistema educacional japonês suscitadas pelos resultados do Pisa. O baixo desempenho dos estudantes brasileiros no Pisa estaria, por sua vez, relacionado com o despreparo dos estudantes, com sua falta de familiaridade com o teste, com a deficiente formação dos professores e com o limitado uso das evidências produzidas pelas avaliações em larga escala.

Os resultados analisados sugerem que políticas para o ensino de Ciências precisam ser acompanhadas por políticas curriculares e de formação continuada de professores que incorporem evidências e diagnósticos produzidos pelas avaliações em larga escala. No Japão, esse tipo de iniciativa se mostra mais promissor em relação à geração de mudanças curriculares e nas práticas docentes que influenciam positivamente o desempenho dos alunos, quando comparado a iniciativas de responsabilização e premiação que, apesar de décadas de adoção no Brasil, não parecem ter propiciado efeitos positivos claros na aprendizagem dos alunos e no desenvolvimento curricular e profissional dos professores.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001.

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  • Disponibilidade de dados

    Os dados subjacentes ao texto da pesquisa estão informados no artigo.
  • 1
    Gräber, W., & Bolte, C. (Eds.). (1997). Scientific Literacy: An International Symposium. Institute for Science Education at the University of Kiel.
  • 2
    Trata-se de um estudo longitudinal de painel, com início em 2005, no qual a mesma amostra de escolas e de alunos foi observada ao longo de quatro anos. O Geres envolveu a associação entre seis centros universitários com tradição em avaliação da educação, a saber: o Laboratório de Avaliação da Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (LAEd/ PUC-Rio), o Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (Game/UFMG), o Laboratório de Avaliação da Universidade Estadual de Campinas (Loed/Unicamp), a Linha de Pesquisa de Avaliação da Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o Centro de Avaliação da Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (CAEd/UFJF) e a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS).
  • 3
    A Prova Brasil e o Saeb são avaliações para diagnóstico, em larga escala, desenvolvidas pelo Inep. Têm o objetivo de avaliar a qualidade do ensino oferecido pelo sistema educacional brasileiro por meio de testes padronizados e questionários socioeconômicos.
  • 4
    O Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) é aplicado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo com a finalidade de produzir um diagnóstico da situação da escolaridade básica paulista, visando a orientar os gestores do ensino no monitoramento das políticas voltadas para a melhoria da qualidade educacional.
  • 5
    A Base Nacional Curricular Comum (BNCC) ainda estava em discussão na ocasião da coleta de dados do presente trabalho. O documento foi publicado em 2018, mas ainda encontra desafios na implementação nacional.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2020
  • Aceito
    27 Jul 2021
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