Acessibilidade / Reportar erro

AS ESCOLAS PRIVADAS BILÍNGUES E A QUALIFICAÇÃO DOCENTE

LAS ESCUELAS PRIVADAS BILINGÜES Y LA CALIFICACIÓN DOCENTE

LES ÉCOLES PRIVÉES BILINGUES ET LA QUALIFICATION DES ENSEIGNANTS

Resumo

Em meio às tendências da rede privada de ensino no Brasil de atender à demanda das elites, o artigo discute a oferta de bilinguismo na educação infantil, analisando a qualificação exigida dos professores à luz das discussões sobre a estratificação horizontal do sistema de ensino superior brasileiro e seus efeitos para os cursos de Pedagogia. Foram realizadas entrevistas com representantes de cinco estabelecimentos em bairros nobres da cidade do Rio de Janeiro. Titulações, comprovação de proficiência, fluência “nativa” e habilidades práticas são requisitos básicos da qualificação docente para atuar com crianças de 0 a 5 anos. Evidencia-se que a tendência ao bilinguismo nas escolas privadas agrava as desigualdades de oportunidades entre os docentes.

EDUCAÇÃO BILÍNGUE; EDUCAÇÃO INFANTIL; ESCOLA PRIVADA; TRABALHO DOCENTE

Resumen

En lo que atañe a las tendencias de la red privada de enseñanza en Brasil de atender a la demanda de las élites, el artículo discute la oferta de bilingüismo en la educación infantil, analizando la calificación que se exige a los profesores a la luz de las discusiones sobre la estratificación horizontal del sistema de educación superior brasileño y sus efectos para los cursos de Pedagogía. Se realizaron entrevistas con representantes de cinco establecimientos ubicados en barrios nobles de la ciudad de Rio de Janeiro. Titulaciones, comprobación de proficiencia, fluencia “nativa” y habilidades prácticas son requisitos básicos de la calificación docente para actuar con niños de 0 a 5 años. Se pone de manifiesto que la tendencia al bilingüismo en las escuelas privadas agrava las desigualdades de oportunidades entre los docentes.

ENSEÑANZA BILINGÜE; EDUCACIÓN INFANTIL; ESCUELA PRIVADA; TRABAJO DOCENTE

Résumé

Dans le contexte où le réseau privé d’enseignement au Brésil répond re à une demande des élites, cet article discute l’offre du bilinguisme dans l’éducation de la petite enfance, en analysant la qualification exigée des enseignants à la lumière des discussions sur la stratification horizontale du système d’enseignement supérieur brésilien et ses effets dans les cours de Pédagogie. Des interviews ont été réalisées avec des représentantes de cinq établissements dans des quartiers nobles de la ville de Rio de Janeiro. Des titres (ou diplômes), certificats de compétence en langues, maîtrise comme un « natif » et habiletés pratiques sont des exigences minimales de la qualification des enseignants pour travailler avec des enfants de 0 à 5 ans. Cela met en évidence que la tendance au bilinguisme dans les écoles privées aggrave les inégalités d’opportunités entre les enseignants.

ENSEIGNEMENT BILINGUE; ÉDUCATION DE LA PETITE ENFANCE; ÉCOLE PRIVÉE; TRAVAIL D’ENSEIGNEMENT

Abstract

Amid the tendencies of the Brazilian private education system to meet the elites’ demand for the so-called international capital, the article discusses the growing offer of bilingualism in early childhood education. The goal is to analyze the qualifications required from teachers in light of recent discussions on the horizontal stratification of the Brazilian higher education system and their adverse effects on education programs. Interviews were conducted with representatives of five schools located in elite neighborhoods in the city of Rio de Janeiro. Academic titles, certificates of proficiency, native fluency, and practical skills make up the requirements for teachers to work with children aged 0-5 years. The trend toward bilingualism in private schools is a process that exacerbates inequalities in opportunities among Brazilian teachers.

BILINGUAL EDUCATION; EARLY CHILDHOOD EDUCATION; PRIVATE SCHOOL; TEACHING WORK

Os estudos sobre a escolarização das elites assinalam uma tendência das famílias a investir na internacionalização dos estudos e na aquisição de um “capital internacional” (Van Zanten et al., 2015; Aguiar & Nogueira, 2012Aguiar, A., & Nogueira, M. A. (2012). Internationalisation strategies of Brazilian private schools. International Studies in Sociology of Education, 22(4), 353-368.). No Brasil, entre 2014 e 2019, o mercado de escolas bilíngues apresentou um crescimento entre 6% e 10% e movimentou 250 milhões de reais (“Tendência que veio para ficar: escolas que têm um programa bilíngue conquistam mais alunos e pais pelo Brasil: escolas regulares têm apostado em programas bilíngues para oferecer ensino de inglês qualificado dentro da própria instituição”, 2019; Vieira, 2019Vieira, M. C. (2019, agosto 23). Escolas bilíngues se espalham pelo país. Isso é bom - e custa caro: Mercado cresceu 10% desde 2014 e movimenta 250 milhões de reais atualmente. Veja. https://veja.abril.com.br/educacao/escolas-bilingues-se-espalham-pelo-pais-isso-e-bom-e-custa-caro/
https://veja.abril.com.br/educacao/escol...
). Os serviços educacionais bilíngues foram considerados o segundo maior crescimento em faturamento no segundo trimestre de 2019 pela Associação Brasileira do Franchising (ABF, s.d.). Investimentos em escolas para as classes média e alta são uma tendência no setor de educação, em resposta à demanda por uma educação que “forme pessoas capazes de trabalhar em vários países”, de acordo com a Federação Nacional do Ensino Privado (Fenep, s.d.).

Chama a atenção, nesse fenômeno, o processo de introdução do bilinguismo em idades cada vez mais precoces (0 a 5 anos) nos estabelecimentos privados de ensino. Cabe ressaltar que o contato das crianças com um segundo idioma não é uma das necessidades reconhecidas pelo Ministério de Educação para essa etapa de aprendizagem. Na educação infantil, as escolas devem proporcionar a seus alunos um ambiente que promova a interação e brincadeiras e assegure às crianças “os direitos de conviver, brincar, participar, explorar, expressar-se e conhecer-se” (Ministério da Educação - MEC, s.d.). Mesmo assim, é crescente a oferta de “pré-escolas bilíngues” e, inclusive, de “creches bilíngues” no sistema privado de ensino. Em meio às diversas questões que o assunto parece colocar, dedica-se aqui à reflexão específica sobre as novas qualificações exigidas dos docentes nos estabelecimentos que passam a oferecer essa modalidade de educação.

Este artigo se propõe a refletir sobre os requisitos exigidos por esse “mercado educacional emergente” à luz das recentes discussões sobre o principal vetor da expansão do ensino superior brasileiro: a formação de professores. Fundamentando a análise da tendência crescente de educação bilíngue na literatura sociológica de escolarização das elites, a presente pesquisa mostra as visões, práticas e desafios de escolas privadas com relação à qualificação, formação e admissão de professores para o ensino infantil bilíngue. As particularidades regulatórias da oferta de bilinguismo no estado do Rio de Janeiro também são consideradas. A coleta de dados qualitativos foi feita junto a representantes de cinco estabelecimentos situados em bairros nobres da cidade do Rio de Janeiro.

Estratégias educacionais de fechamento social

A literatura especializada em escolarização das elites tem indicado uma tendência contemporânea à internacionalização dos estudos como estratégia de fechamento social (Van Zanten et al., 2015). Uma escolarização internacional representa, para as famílias favorecidas, das classes média e alta, um capital necessário para a obtenção de vantagens sociais, econômicas e simbólicas para seus filhos (Almeida & Nogueira, 2002Almeida, A. M., & Nogueira, M. A. (2002) A escolarização das elites: Um panorama internacional da pesquisa. Vozes.). Trata-se de uma estratégia que visa a equipar os descendentes com competências que lhes permitam circular entre as comunidades internacionais por meio do domínio de uma língua estrangeira e do conhecimento de diferentes países e culturas (Aguiar, 2009Aguiar, A. (2009). Estratégias educativas de internacionalização: uma revisão da literatura sociológica. Educação e Pesquisa, 35(1), 67-79.).

No Brasil, os estudos apontam que, de fato, as classes média e alta estão investindo cada vez mais em educação, principalmente em escolas que possuam políticas de internacionalização do ensino (Nogueira et al., 2008Nogueira, M., Aguiar, A. M. S., & Ramos, V. C. C. (2008). Fronteiras desafiadas: A internacionalização das experiências escolares. Educação & Sociedade, 29(103), 355-376.; Almeida, 2015Almeida, A. M. (2015). The changing strategies of social closure in elite education in Brazil. In A. Van Zanten, S. Ball, & B. Darchy-Koechlin (Orgs.), Elites, privilege and excellence: The national and global redefinition of educational advantage. (World Yearbook of Education). Routledge.). Escolas privadas vêm modificando suas políticas educacionais de modo a responder a essas exigências parentais, o que se dá com medidas tais como a introdução precoce de aprendizagem de uma língua estrangeira, a promoção de um currículo bilíngue e o fomento a viagens para outros países para a produção de identidades internacionais (Aguiar & Nogueira, 2012Aguiar, A., & Nogueira, M. A. (2012). Internationalisation strategies of Brazilian private schools. International Studies in Sociology of Education, 22(4), 353-368.).

Ao mesmo tempo, a escolarização das elites no ensino básico privado no Brasil parece estar reagindo às transformações ocorridas com as ações de democratização do acesso ao ensino superior adotadas pelo Estado, especialmente a partir de 2002 (Almeida, 2015Almeida, A. M. (2015). The changing strategies of social closure in elite education in Brazil. In A. Van Zanten, S. Ball, & B. Darchy-Koechlin (Orgs.), Elites, privilege and excellence: The national and global redefinition of educational advantage. (World Yearbook of Education). Routledge.). A experiência das ações afirmativas tem evidenciado o maior grau de inclusão social no espaço universitário, com o maior acesso de pretos, pardos e egressos das escolas públicas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2019). Almeida (2015) entende que a “massificação” do ensino superior estaria engendrando uma ressignificação das universidades brasileiras sob a perspectiva das elites, com a perda do valor distintivo que outrora seus diplomas carregavam, conduzindo tais segmentos a buscar novas formas de diferenciação e estratégias de manutenção de posições de poder.

Abrem-se, assim, demandas por novos atributos na formação universitária e profissional, entendendo-se a internacionalização como um elemento-chave para a formação universitária e a construção de carreiras (Cattani & Kieling, 2007Cattani, A. D., & Kieling, F. S. (2007). A escolarização das classes abastadas. Sociologias, 9(18), 170-187.). Assim, essas aspirações devem ser entendidas como parte de um conjunto de novas estratégias de fechamento social das elites no Brasil (Almeida, 2015Almeida, A. M. (2015). The changing strategies of social closure in elite education in Brazil. In A. Van Zanten, S. Ball, & B. Darchy-Koechlin (Orgs.), Elites, privilege and excellence: The national and global redefinition of educational advantage. (World Yearbook of Education). Routledge.; Van Zanten et al., 2015), com impacto sobre todos os níveis de escolarização (Vieira, 2007Vieira, M. M. (2007). A mobilidade como competência? Formação de elites e o programa Erasmus. [Texto apresentado]. European Conference on Educational Research, Universidade de Ghent, Bélgica.; Aguiar, 2009Aguiar, A. (2009). Estratégias educativas de internacionalização: uma revisão da literatura sociológica. Educação e Pesquisa, 35(1), 67-79.).

É na busca pela obtenção de patamares de capital cultural e social cada vez mais elevados para seus descendentes que se deve entender o aumento da oferta de bilinguismo nas escolas privadas brasileiras. As famílias das classes média e alta estão buscando formas de escolarização cada vez mais seletivas e em níveis cada vez mais precoces, como é o caso da antecipação etária do aprendizado de uma língua estrangeira, marcadamente o inglês, no segmento da educação infantil, de 0 a 5 anos.

Regulações do bilinguismo nas escolas

Um efeito da procura crescente das famílias de elite por uma formação que ofereça competências para o desempenho em mercados de trabalho globalizados é a transformação das práticas pedagógicas das escolas de elite. Estudos têm voltado sua atenção para as mudanças de currículo vivenciadas nas escolas engajadas em projetos de internacionalização, especialmente com a adoção do International Baccalaureate Program (Doherty, 2009Doherty, C. (2009). The appeal of the International Baccalaureate in Australia’s educational market: a curriculum of choice for mobile futures. Discourse: Studies in the Cultural Politics of Education, 30(1), 73-89.; Tarc, 2009Tarc, P. (2009). Global dreams, enduring tensions: International Baccalaureate in a changing world. Peter Lang.; Ziegler, 2014Ziegler, S. (2014, março). Regulación del trabajo de los profesores de la elite. Cadernos de Pesquisa, 44(151), 84-103.). Tratam-se, contudo, de estudos dirigidos aos níveis secundários da educação básica, já que o referido programa nasceu com o intuito de possibilitar o ingresso dos estudantes em universidades prestigiosas e reconhecidas internacionalmente (Ziegler, 2014).

No tocante especificamente à educação infantil, merece debate a regulação do currículo bilíngue. O Ministério da Educação só reconhece como escola bilíngue as escolas para deficientes auditivos, de fronteiras e indígenas, não havendo uma regulamentação nacional sobre as escolas bilíngues de prestígio no Brasil. Cabe dizer que tampouco há regulamentação sobre o ensino de línguas estrangeiras na educação infantil e no primeiro ciclo do ensino fundamental. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) contempla o ensino de língua estrangeira a partir do 6º ano, ou seja, a partir do ensino fundamental II.

Diante do exposto, as escolas autodenominadas bilíngues, em muitos estados, não são submetidas a uma legislação regulatória ou à fiscalização de órgãos educacionais no que se refere à implementação, avaliação e desenvolvimento de programas educacionais bilíngues (Storto, 2015Storto, A. C. (2015). Discursos sobre bilinguismo e educação bilíngue: A perspectiva das escolas [Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada]. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo.). Essa falta de regulamentação e alinhamento de entendimento causa confusão entre pais, alunos e comunidade escolar, tornando o campo da educação bilíngue controverso e mal-entendido (Megale, 2014Megale, A. H. (2014). A formação de professores para a educação infantil bilíngue: Bilinguismo e formação docente. Pátio Educação Infantil, 1(15), 12-15.).

Mello (2011Mello, H. A. B. (2011). Educação bilíngue: Uma breve discussão. Revista Horizontes de Linguística Aplicada, 9(1), 118-140.) destaca que o termo “educação bilíngue” é usado de maneira ampla para caracterizar variados modelos e formas de ensino em que a instrução ou parte dela é realizada em uma língua diferente da utilizada em casa. Freeman (1998Freeman, R. D. (1998). Bilingual education and social change. Multilingual Matters.) afirma que o significado de educação bilíngue e sua eficácia são fonte de confusão e conflito no nível político, na prática educacional e na imprensa popular.

Em um cenário de indefinições, muitas instituições se intitulam bilíngues ou internacionais por falta de informação ou como ferramenta de marketing para atrair pais interessados na internacionalização do ensino (Aguiar, 2009Aguiar, A. (2009). Estratégias educativas de internacionalização: uma revisão da literatura sociológica. Educação e Pesquisa, 35(1), 67-79.).

Embora ainda não haja legislação em âmbito nacional, os estados do Rio de Janeiro e de Santa Catarina lançaram, em 2013 e 2016, respectivamente, documentos oficiais que definem parâmetros para a educação bilíngue, com o intuito de estabelecer critérios e requisitos para sua oferta e certificação dos alunos. Com relação à Deliberação do Conselho Estadual de Educação (CEE) do Rio de Janeiro (Deliberação n. 341, 2013), que estabelece normas para a oferta de ensino bilíngue e internacional na educação básica, determina-se que as escolas bilíngues devem ter a autorização necessária para seu funcionamento, emitida pelo CEE. Essa autorização só é emitida mediante o cumprimento das normas estabelecidas por esse conselho e o atendimento às determinações da Deliberação.

No que tange ao entendimento do que seria o ensino bilíngue, o documento afirma que o estabelecimento deve oferecer disciplinas e atividades na língua estrangeira adotada. Esse posicionamento está alinhado à perspectiva de educação bilíngue apresentado por Hamers e Blanc (2000Hamers, J. F., & Blanc, M. (2000). Bilinguality and bilingualism. Cambridge University Press.), segundo a qual a instrução do ensino deve ser realizada em duas línguas. A deliberação reitera, no entanto, que o ensino em um segundo idioma deve ser alocado em período complementar, para além das 800 horas-aula exigidas para a educação básica brasileira:

Art. 7º. A instituição de Educação Básica que pretenda ofertar ensino com características de escola bilíngue ou internacional, em consonância com o seu Projeto Político Pedagógico - PPP, deve: I- apresentar Matriz Curricular com carga horária de no mínimo 800 (oitocentas) horas/aula, sendo estas destinadas às disciplinas da Base Nacional Comum e Parte Diversificada, obrigatórias, ministradas na língua portuguesa e complementadas por outra carga horária que contemple a necessidade de ensino da língua estrangeira adotada. (Deliberação n. 341, 2013).

Especialista em escolarização bilíngue, Megale (2018Megale, A. H. (2018). Educação bilíngue de línguas de prestígio no Brasil: Uma análise dos documentos oficiais. The Especialist, 39(2), 1-17.) reconhece que essas primeiras tentativas de definição de parâmetros representam um avanço no cenário educacional, principalmente diante do crescimento desse tipo de estabelecimento no Brasil e da ausência de parâmetros legais em nível nacional. Contudo, ao realizar uma análise dos documentos oficiais, a autora aponta incongruências e contradições na conceitualização do bilinguismo, sob a ótica de cultura, interculturalidade, repertório linguístico e sujeito bilíngue, havendo uma visão predominantemente centrada no ensino da língua.

Visto que a legislação do estado do Rio de Janeiro determina a necessidade de autorização pelo conselho de educação, pode-se supor que o surgimento da legislação tenha criado um mercado de educação bilíngue mais regulado, de forma a proporcionar um cenário de oferta educacional mais padronizado, protegendo os “consumidores” das escolas que se autodenominam bilíngues apenas para persuadir públicos. No entanto, não foram encontrados estudos que tenham analisado o impacto das legislações estaduais no modo como as escolas privadas estão ofertando o ensino bilíngue nos estados do Rio de Janeiro e de Santa Catarina.

O professor da escola bilíngue e o contexto nacional de formação de professores

A crescente oferta de bilinguismo pelo mercado educacional chama a atenção para a compreensão das mudanças no perfil dos professores. O professor é o principal recurso humano das escolas, dado que é o responsável pela escolarização dos alunos, agora ampliada pela perspectiva do bilinguismo. A necessidade de um profissional com novos conhecimentos e novas habilidades para atuar nesse cenário emergente traz indagações sobre a trajetória de formação dessa “mão de obra”, suas condições de origem e sua preparação para atender ao que Cunha (2011Cunha, L. A. (2011, setembro). Contribuição para a análise das interferências mercadológicas nos currículos escolares. Revista Brasileira de Educação, 16(48), 585-607.) denominaria de novas interferências mercadológicas nos currículos escolares.

A exigência de formação em nível superior dos professores da educação infantil é recente no Brasil, oficializada a partir da Lei de Diretrizes Básicas da Educação Nacional (LDB), em 1996. Anteriormente, a formação do professor de educação infantil ocorria em nível médio, na modalidade Normal. Apesar de regulamentar a exigência de formação em nível superior para lecionar nos anos iniciais de escolarização, o art. n. 62 da LDB (Lei n. 9.394, 1996) deixa margens para que os profissionais já formados em nível médio possam continuar no exercício de sua profissão:

A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nos 5 (cinco) primeiros anos do ensino fundamental, a oferecida em nível médio na modalidade normal. (Lei n. 9.394, 1996).

A partir de então, diversos documentos legais apontam para a universalização da formação em nível superior de todos os professores da educação básica. Exemplos disso estão contidos no posicionamento do Conselho Nacional de Educação (CNE) emitido nos pareceres CNE/CEB n. 1 (Resolução CNE/CEB n. 1, 1999) e CNE/CEB n. 1 (Parecer CNE/CEB n. 1, 2003). De acordo com os pareceres, apesar de se admitir a formação de professores em nível médio, o desejável é que todos possuam formação em nível superior, com o intuito de garantir a qualidade dos anos iniciais de educação.

Os portadores de diploma de nível médio, bem como os que vieram a obtê-lo sob a égide da Lei nº 9.394/96, têm direito assegurado (e até o fim de suas vidas) ao exercício profissional do Magistério nas turmas de Educação Infantil ou nas séries iniciais do Ensino Fundamental, conforme a sua habilitação. A formação dos professores para a Educação Básica, em nível superior, é desejável ainda que admita-se, para a Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental, a formação em nível médio. (Parecer CNE/CEB n. 1, 2003).

O atual Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em 2014, prevê como meta a ser cumprida até 2024 a formação em nível superior de todos os professores da Educação Básica, incluindo educação infantil e os anos inicias do ensino fundamental. A meta 15 do PNE estabelece o objetivo de

Garantir, em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no prazo de 1 (um) ano de vigência deste PNE, política nacional de formação dos profissionais da educação de que tratam os incisos I, II e III do caput do art. 61 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, assegurado que todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam. (Lei n. 13.005, 2014).

A obrigatoriedade de ensino superior para lecionar na educação infantil e nos primeiros anos do ensino fundamental modificou a oferta de vagas no ensino superior no Brasil, que se adaptou para atender à nova demanda. Segundo Pinto (2002Pinto, U. A. (2002). O pedagogo escolar: Avançando no debate a partir da experiência desenvolvida nos cursos de complementação pedagógica. In S. G. Pimenta (Org.), Pedagogia e pedagogos: Caminhos e perspectivas (pp. 153-198). Cortez.), apesar da possibilidade de professores formados em nível médio ainda lecionarem na educação infantil e nos primeiros anos do ensino fundamental, os cursos Normais foram extintos na maioria dos estados do país, e houve crescimento nos cursos de nível superior em Pedagogia.

Em decorrência dessas transformações, o currículo da graduação em Pedagogia passou por um longo processo de revisão e reestruturação (Gripp & Rodrigues, 2017Gripp, G. & Rodrigues, L. (2017). Quem modela o trabalho dos professores: Currículos dos cursos de formação de professores no Brasil. Congresso da Associação Latino-Americana de Sociologia, Montevidéu, 31. (Texto apresentado no GT 24 Sociología de la Educación y Políticas Educativas)., 2019). Depois de muitos debates, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia foram aprovadas em 2006, tendo como eixo principal a formação de docentes para os anos iniciais de escolarização, mas incluíram também a formação de gestores, o que fez com que a licenciatura passasse a ter amplas atribuições, pouco compatíveis com a duração do curso e sua carga horária (Honorato et al., 2018Honorato, G., Zuccarelli, C., & Vieira, A. (2018). Expansão, diversificação e composição social da área de Educação no ensino superior brasileiro (1995-2015). In R. Heringer (Org.), Educação superior no Brasil contemporâneo: Estudos sobre acesso, democratização e desigualdades (pp. 31-78). Faculdade de Educação, UFRJ.; Gripp & Rodrigues, 2017, 2019). Gatti reforça essa visão ao afirmar que:

Enfeixar todas essas orientações em uma matriz curricular, especialmente para as classes noturnas onde se encontra a maioria dos alunos desses cursos, não é tarefa fácil. De qualquer modo, o que se verifica é que a formação de professores para a educação básica é feita, em todos os tipos de licenciatura, de modo fragmentado entre as áreas disciplinares e níveis de ensino, não contando o Brasil, nas instituições de ensino superior, com uma faculdade ou instituto próprio, formador desses profissionais, com uma base comum formativa, como observado em outros países, onde há centros de formação de professores englobando todas as especialidades, com estudos, pesquisas e extensão relativos à atividade didática e às reflexões e teorias a ela associadas. (Gatti, 2010Gatti, B. A. (2010). Formação de professores no Brasil: Características e problemas. Educação & Sociedade, 31(113), 1355-1379., p. 1.358).

Gripp e Rodrigues (2019Gripp, G. & Rodrigues, L. (2019, setembro 5-6). Estudo dos currículos dos cursos de formação de professores no Brasil. [Apresentação de trabalho]. Seminário do Projeto Estratificação da Educação Básica Brasileira: Uma abordagem multidimensional. Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Federal do Rio de Janeiro - IESP/UERJ.) analisaram o modelo curricular do curso de Pedagogia implantado nas instituições de ensino superior, públicas e privadas, e os resultados apontaram a permanência dos mesmos conteúdos ao longo dos anos e a existência de um conteúdo que prioriza a teoria em detrimento da técnica e do ensino da prática. A pesquisa aponta também a fragmentação de disciplinas, um excesso de temas introdutórios e uma baixa carga horária dedicada a disciplinas fundamentais, como as de preparação do professor para a alfabetização.

Ao realizar um comparativo entre as pesquisas de Gripp e Rodrigues (2019Gripp, G. & Rodrigues, L. (2019, setembro 5-6). Estudo dos currículos dos cursos de formação de professores no Brasil. [Apresentação de trabalho]. Seminário do Projeto Estratificação da Educação Básica Brasileira: Uma abordagem multidimensional. Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Federal do Rio de Janeiro - IESP/UERJ.), realizadas em 2017, e as pesquisas de Gatti (2009Gatti, B. A. (2009). Professores do Brasil: Impasses e desafios. Unesco.) e de Libâneo (2010Libâneo, J. C. (2010). O ensino da didática, das metodologias específicas e dos conteúdos específicos do ensino fundamental nos currículos dos cursos de Pedagogia. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 91(229), 562-583.), realizadas em 2008 e 2009, respectivamente, é possível verificar uma similaridade em relação à proporção de disciplinas de embasamento teórico em diferentes áreas de conhecimento e aquelas ligadas à profissionalização do pedagogo-professor, o que corrobora a falta de foco do curso de Pedagogia na didática e na prática de ensino, e um “engessamento” do modelo curricular do curso há, pelo menos, dez anos.

O estudo de Honorato et al. (2018Honorato, G., Zuccarelli, C., & Vieira, A. (2018). Expansão, diversificação e composição social da área de Educação no ensino superior brasileiro (1995-2015). In R. Heringer (Org.), Educação superior no Brasil contemporâneo: Estudos sobre acesso, democratização e desigualdades (pp. 31-78). Faculdade de Educação, UFRJ.) aponta para a tendência de oferta de cursos de Pedagogia no turno noturno nas últimas duas décadas. A oferta de cursos noturnos está relacionada à possibilidade de democratizar o acesso ao ensino superior para os estudantes que precisam conciliar trabalho e estudo, indicando a grande presença de estudantes trabalhadores. A história do ensino superior noturno já foi caracterizada pelas condições de ensino e aprendizagem mais precárias em comparação aos diurnos e vespertinos (Oliveira et al., 2010Oliveira, J. F., Bittar, M., & Lemos, J. R. (2010, maio). Ensino superior noturno no Brasil: Democratização do acesso, da permanência e da qualidade. Revista de Educação Pública, 19(40), 247-268.).

Com relação à expansão dos cursos na modalidade de educação a distância (EaD), cabe colocar que, desde sua concepção, foram feitas críticas a sua organização curricular e à qualidade dos cursos oferecidos (Honorato et al., 2018Honorato, G., Zuccarelli, C., & Vieira, A. (2018). Expansão, diversificação e composição social da área de Educação no ensino superior brasileiro (1995-2015). In R. Heringer (Org.), Educação superior no Brasil contemporâneo: Estudos sobre acesso, democratização e desigualdades (pp. 31-78). Faculdade de Educação, UFRJ.). De fato, os resultados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) indicam uma pior avaliação desses em relação aos presenciais (Enade, 2019). Nos cursos de formação de professores, o ensino a distância torna-se mais preocupante, visto que essa formação deveria exigir ênfase na prática pedagógica.

Conforme colocado por Honorato et al. (2018Honorato, G., Zuccarelli, C., & Vieira, A. (2018). Expansão, diversificação e composição social da área de Educação no ensino superior brasileiro (1995-2015). In R. Heringer (Org.), Educação superior no Brasil contemporâneo: Estudos sobre acesso, democratização e desigualdades (pp. 31-78). Faculdade de Educação, UFRJ.), a democratização do ensino superior, especialmente na área de Educação, com a migração de um “modelo de elite” para um “modelo de atendimento de massa”, teve um papel importante no campo da Educação e na configuração institucional do ensino superior no país. Apesar disso, os autores sinalizam a ausência de estudos que avaliem a ampliação do número de egressos dos cursos superiores e sua relação com as oportunidades que lhes são abertas.

Dubet (2015Dubet, F. (2015, maio). Qual democratização do ensino superior? Caderno CRH, 28(74), 255-266.) sustenta que as desigualdades se reproduzem no sistema de ensino superior de acordo com o capital cultural dos alunos, suas condições econômicas, local de residência, entre outros marcadores sociais. Honorato et al. (2018Honorato, G., Zuccarelli, C., & Vieira, A. (2018). Expansão, diversificação e composição social da área de Educação no ensino superior brasileiro (1995-2015). In R. Heringer (Org.), Educação superior no Brasil contemporâneo: Estudos sobre acesso, democratização e desigualdades (pp. 31-78). Faculdade de Educação, UFRJ., p. 33) afirmam que o perfil social dos estudantes dos cursos superiores da área de Educação, incluindo Pedagogia, é majoritariamente composto por “mulheres, estudantes de cursos noturnos, de origem familiar desfavorecida e, cada vez mais, matriculados em cursos à distância de instituições privadas”. Nessa linha, análises mais aprofundadas sobre a formação dos professores devem ser capazes de levar em conta a “estratificação horizontal do ensino superior” (Lucas, 2001Lucas, S. (2001). Effectively maintained inequality: Education transitions, track mobility, and social background effects. American Journal of Sociology, 106(6), 1642-1690.; Charles & Bradley, 2002Charles, M., & Bradley, K. (2002). Equal but separate? A cross-national study of sex segregation in higher education. American Sociological Review, 67(4), 573-599.; Gerber & Cheung, 2008Gerber, T., & Cheung, S. Y. (2008). Horizontal stratification in postsecondary education: Forms, explanations, and implications. Annual Review of Sociology, 34, 299-318. https://doi.org/10.1146/annurev.soc.34.040507.134604
https://doi.org/10.1146/annurev.soc.34.0...
), já que os cursos de Pedagogia no Brasil são reveladores de aspectos sociais estruturais (Grill & Honorato, 2019Grill, M., & Honorato, G. (2019). Expansão, diversificação e estratificação da área de Educação no Brasil: os cursos de Pedagogia em foco. In G. Honorato (Org.), Avanços e desafios na democratização da educação superior do Brasil. (Coleção Cadernos do Lepes, 2), (pp. 45-70). Faculdade de Educação, UFRJ.). Em sua expressiva maioria, os alunos de Pedagogia no Brasil provêm de famílias com baixo nível de escolaridade, baixa renda e estudam à noite porque trabalham durante do dia (Gripp & Rodrigues, 2019Gripp, G. & Rodrigues, L. (2019, setembro 5-6). Estudo dos currículos dos cursos de formação de professores no Brasil. [Apresentação de trabalho]. Seminário do Projeto Estratificação da Educação Básica Brasileira: Uma abordagem multidimensional. Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Federal do Rio de Janeiro - IESP/UERJ.).

Ao deslocar os desafios nacionais da formação do professor de educação infantil para as oportunidades de trabalho em escolas bilíngues, a questão se torna ainda mais complexa, visto que, além da formação em Pedagogia, são necessários outros requisitos para lecionar um currículo bilíngue. Segundo a deliberação n. 341, do CEE/RJ, que determina as normas para a oferta de educação bilíngue em estabelecimentos de educação básica, bem como a formação dos professores para atuar nesse contexto, o estabelecimento de educação bilíngue deve: “V - possuir um corpo docente brasileiro com a devida habilitação para as disciplinas que lecionem e docentes com habilitação ou proficiência na língua estrangeira adotada, neste caso com certificação que a comprove.” (Deliberação n. 341, 2013).

Além da formação em Pedagogia ou nível médio na modalidade Normal, é requerido do professor habilitação para a língua estrangeira adotada pelo estabelecimento de educação bilíngue ou proficiência no idioma, que deverá ser comprovada por meio de certificação. A mesma exigência é reforçada no âmbito municipal pela deliberação n. 22/2012, que trata especificamente da educação infantil (Deliberação n. 22, 2012, art. 20).

Megale e Liberali (2016Megale, A., & Liberali, F. (2016). Caminhos da educação bilíngue no Brasil: Perspectivas da linguística aplicada. Raído, 10(23), 9-24.) constataram a ausência de cursos de graduação com currículo adaptado para a formação de profissionais aptos para o ensino bilíngue. Essa constatação, pode-se pensar, levanta um fenômeno paradoxal: se, por um lado, houve no Brasil a ampliação do número de egressos de cursos de Pedagogia a partir da ampliação do acesso ao ensino superior, por outro lado, verifica-se um descolamento entre a formação acadêmica e as demandas cada vez mais exigidas no mercado de trabalho na rede privada. De acordo com as autoras,

No Brasil, em oposição ao crescimento das EBE [escolas bilíngues português-inglês], há uma quase ausência de programas de formação de professores referentes a aspectos teóricos e práticos relacionados ao bilinguismo e à educação bilíngue. . . . O número de cursos de extensão e de pós-graduação lato sensu no Brasil com a função de formar profissionais para EB aumenta gradualmente, uma vez que os cursos de graduação parecem ignorar a crescente demanda por professores capacitados para atuar nessas escolas. (Megale & Liberali, 2016Megale, A., & Liberali, F. (2016). Caminhos da educação bilíngue no Brasil: Perspectivas da linguística aplicada. Raído, 10(23), 9-24., p. 14).

Gardner (2012Gardner, S. (2012). Global English and bilingual education. In M. Martin-Jones, A. Blackledge, & A. Creese. The Routledge handbook of multilingualism (pp. 247-263). Routledge.) aponta a dificuldade em se encontrar, em diferentes contextos educacionais, professores qualificados e com experiência tanto em educação infantil como em educação bilíngue e que sejam, simultaneamente, proficientes na língua inglesa.

Visto o crescimento do bilinguismo no sistema privado de ensino básico e os problemas na formação de professores no Brasil, pode-se pensar que, apesar de o ensino superior brasileiro estar formando um número de professores cada vez maior, essa mão de obra não terá facilidades para atender às exigências dos empregadores das escolas particulares de educação infantil, processo que agrava o panorama das desigualdades de oportunidades entre os próprios docentes no Brasil.

Metodologia

Os sujeitos selecionados para a pesquisa atuam no segmento de educação básica na rede de ensino privada do Rio de Janeiro, em estabelecimentos que se autodenominam bilíngues. Deve-se dizer que mesmo por meio de indicação, alguns estabelecimentos demonstraram relutância em aceitar o convite para participar da pesquisa, afirmando indisponibilidade em todas as oportunidades apresentadas. Das doze escolas abordadas, somente cinco aceitaram contribuir, cedendo entrevistas.

A dificuldade de acesso de pesquisadores a estabelecimentos de ensino de elite é assunto de discussão em Jay (2002Jay, E. (2002). As escolas da grande burguesia: o caso da Suíça. In A. M. Almeida, & M. A. Nogueira (Orgs.), A escolarização das elites: Um panorama internacional de pesquisa (pp. 120-134). Vozes.), Almeida et al. (2012Almeida, A. M., Moschkoivich, M., & Polaz, K. (2012). Pesquisando os grupos dominantes: Notas de pesquisa sobre acesso às informações. Revista Pós Ciências Sociais, 9(17), 161-174.) e Fávaro (2009Fávaro, F. M. (2009). A educação infantil bilíngue (português/inglês) na cidade de São Paulo e a formação dos profissionais da área: Um estudo de caso [Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.). Fávaro (2009) relata que, das 39 escolas abordadas em sua pesquisa, somente cinco concordaram em conceder entrevistas, sendo que apenas dois estabelecimentos concordaram em realizar entrevistas presenciais. Ainda assim, tais entrevistas ocorreram em local fora da escola pesquisada.

Foram realizadas entrevistas em profundidade com representantes de cinco escolas privadas, que atuam na direção, coordenação pedagógica e coordenação de programas bilíngues. Também foi realizada uma entrevista com um sócio proprietário de uma empresa de consultoria responsável pela implantação do currículo bilíngue em estabelecimentos de educação básica em todo o Brasil. As entrevistas ocorreram entre os meses de junho e julho de 2019 e foram conduzidas dentro de cada escola pesquisada, com duração aproximada de uma hora.

Todas as entrevistas foram gravadas, com autorização, e, posteriormente, transcritas. Os entrevistados solicitaram confidencialidade quanto a sua identidade e ao nome dos estabelecimentos no qual atuam, e serão aqui tomados pelo gênero masculino. Em meio aos diversos assuntos abordados nessas ocasiões, discutem-se aqui os que se referem ao profissional docente da educação bilíngue, sua trajetória profissional e qualificação, assim como a oferta desses profissionais no mercado de trabalho.

Os quadros 1 e 2, a seguir, apresentam, respectivamente, um resumo das informações sobre as escolas pesquisadas e sobre os informantes.

QUADRO 1
PERFIL DAS ESCOLAS PESQUISADAS
QUADRO 2
PERFIL DOS ENTREVISTADOS

As escolas da pesquisa

A Escola A atua na educação infantil, atendendo a crianças de 3 meses até 5 anos. Localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro, foi criada como escola regular e iniciou seu processo de transição para se tornar uma escola bilíngue no ano de 2013, em virtude da necessidade percebida de se adaptar ao novo mercado de escolas de educação infantil, com o crescimento do ensino bilíngue nesse segmento. A primeira tentativa de transição ocorreu com a contratação de uma empresa especializada em educação bilíngue de grande porte, mas a parceria não foi bem-sucedida. Posteriormente, em 2015, foi contratada uma nova empresa especializada, de pequeno porte, para realizar a implantação do bilinguismo na escola. A parceria com essa empresa se estende até hoje.

A Escola B é atuante em todos os segmentos da educação básica - educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. Possui diversas unidades na Zona Sul do Rio de Janeiro. A implantação do bilinguismo teve início em 1996, com uma parceria com um instituto de idiomas, que perdura até hoje. O instituto de idiomas é responsável tanto pela coordenação do programa bilíngue quanto pelas aulas de inglês estendidas nas unidades regulares. A coordenação do programa bilíngue pelo instituto de idiomas é acompanhada por dois coordenadores, específicos do programa bilíngue da escola: um, responsável pela educação infantil e ensino fundamental I, e o outro, responsável pelo ensino fundamental II e ensino médio.

A transição para se tornar bilíngue foi uma iniciativa da escola, de forma a atender a demanda dos pais, que buscavam um ensino de inglês com qualidade para seus filhos e consideravam que a carga horária dos cursos de idiomas não era suficiente para garantir a fluência desejada.

A Escola C faz parte de um sistema de franquias internacional de escolas bilíngues. A rede de franquias atua em diferentes países ao redor do mundo, no ensino infantil, fundamental e médio. No Brasil, as escolas estão distribuídas em todas as regiões do país. No município do Rio de Janeiro, a franquia pesquisada atende desde a educação infantil até o sétimo ano do ensino fundamental II.

A Escola D foi inaugurada como escola bilíngue por meio da parceira com um instituto de idiomas, responsável pelo currículo em inglês da escola. A parceria, no entanto, foi encerrada dois anos depois, devido à incompatibilidade metodológica entre a escola e a empresa contratada. Atualmente, o programa bilíngue é conduzido por meio de uma parceria com uma empresa especializada em ensino bilíngue.

A motivação para a abertura de uma escola bilíngue veio do proprietário, que trabalhou durante 40 anos em uma escola regular de educação infantil e percebeu a oportunidade de crescimento do bilinguismo nesse segmento.

A Escola E é uma escola católica do Rio de Janeiro, que atende aos segmentos de educação infantil e do ensino fundamental I, e tem parceria com um instituto de idiomas para a coordenação e execução do ensino bilíngue. A implantação do bilinguismo na escola ocorreu como uma reação à concorrência, que já oferecia programas bilíngues ou carga horária estendida de inglês em seus estabelecimentos, especialmente no segmento infantil.

Nota-se que a média da mensalidade das cinco escolas estudadas (R$ 2.924,00) é superior à média das escolas particulares do município do Rio de Janeiro e corresponde a, aproximadamente, 76% da média salarial dos trabalhadores formais no município do Rio de Janeiro, equivalente a 4,1 salários mínimos.1 1 Valor do salário mínimo em 2017: R$ 937,00. Além disso, todas as escolas estão localizadas em bairros de classe média e classe média alta dessa cidade.

Resultados

Foi possível notar que os profissionais de educação reconhecem que os pais das crianças matriculadas em seus estabelecimentos buscam, primordialmente, na educação infantil, um ambiente escolar que preze pelo cuidado das crianças e um projeto pedagógico que valorize o “livre brincar”, aspectos endossados como relevantes:

A gente percebe que as demandas deles [pais e responsáveis] na educação infantil ainda é muito sobre o cuidado. Muito. A grande pergunta é “Comeu? Dormiu? Então, tá bom!”. “Ele ficou bem? Ele curtiu? Aproveitou?”. . . . A gente se preocupa muito com a parte pedagógica, a gente trabalha tanto com isso. . . Com o brincar, com o brincar livre. (Escola D).

Educação infantil, é claro que nós temos a preocupação com o cuidado, né? Com a higiene, com o carinho. Tudo isso tem que acontecer na educação infantil e na escola em geral. Mas a [Escola B], além disso tudo, tem um projeto pedagógico diferenciado, que busca a convivência entre as crianças. . . a brincadeira. (Escola B).

. . . o olhar que a [Escola A] tem pra criança foi o que me encantou. Esse olhar de respeitar o tempo da criança. O cuidado, em que o cuidar se mistura com o educar, na verdade. Que traz o que é próprio da idade da criança pra esse ambiente escolar, sem perder também sua característica de escola. Porque é escola, né? Então a gente precisa ter isso. (Escola A).

A Escola A classificou, ainda, as demandas dos pais em dois momentos distintos: para as crianças de 0 a 2 anos, as necessidades são de acolhimento e estão intimamente relacionadas com o retorno da mãe ao mercado de trabalho ao término do período de licença-maternidade; e, para crianças a partir de 3 anos, a preocupação dos pais começa a ser a alfabetização e a preparação para o ingresso no ensino fundamental.

Aqui eu vejo uma necessidade nessa faixa etária, nessa primeira faixa etária de 0 a 2, uma necessidade muito de mercado, e aí a gente vai passar por todas essas questões da nossa posição como mulher. Sinto as mães sofrendo, essa separação é difícil. . . . Então eu acho que, nesse primeiro momento, elas muitas vezes procuram a extensão de casa, esse acolhimento. Eu tenho muitos pais que estão muito menos preocupados com a parte pedagógica nesse início (0 a 2 anos) do que com esse acolhimento, de ser uma extensão de casa. . . . Quando eles chegam com 3, entre 3 a 5 anos, aí eu acho que esse foco muda um pouco. Claro que continua com o acolhimento, as mães procuram o acolhimento, querem sempre, óbvio, mas elas se preocupam mais com esse futuro. Em preparar essa criança para o ensino fundamental, muitas vezes. (Escola A).

No que se refere aos requisitos exigidos dos professores nesses estabelecimentos, conforme comentado anteriormente, a formação necessária para lecionar na educação infantil brasileira é ter curso superior em Pedagogia ou formação no nível médio, na modalidade Normal. Em termos de formação acadêmica, a resposta dos entrevistados sobre esses requisitos está em consonância com a legislação, havendo preferência pelos profissionais com formação universitária. A fluência em inglês foi citada como requisito para a contratação dos profissionais para atuação no ensino bilíngue. “Inglês fluente” e “inglês nativo” foram expressões recorrentes durante as entrevistas.

Com relação ao processo de admissão de professores, as entrevistas indicam a existência dos requisitos formais a serem cumpridos pelos profissionais, que se materializam em certificados e titulações para cumprimento da legislação, como graduação em Pedagogia ou Normal e certificações que comprovem a proficiência no idioma estrangeiro. Tais requisitos, no entanto, não seriam suficientes, pois é necessária a comprovação de habilidades na prática. Assim, esses professores são “testados” em sala de aula quando colocados em situações do dia a dia.

Os entrevistados fazem uma diferenciação entre o nível de inglês requerido para dar aulas de inglês - tal como oferecem os cursos de idiomas, com carga horária em torno de 50 minutos - e para dar aulas em inglês, ou seja, desenvolvendo conteúdos específicos em inglês, com número de horas superior, e em situações que exijam pensamento rápido e vocabulário vasto.

Eu não estou falando de uma aula de curso de inglês, em que eu vou dar 50 minutos. Eu estou falando de dez horas semanais de inglês com crianças em sala, fazendo roda, querendo ir ao banheiro, todo um vocabulário. . . é um outro vocabulário, é uma outra intencionalidade. Tudo tem que ter uma intencionalidade pedagógica. (Escola A).

Eu não sei se eles estão acostumados com outras escolas, outros ambientes, e aí eles falam “Não, eu sei sim dar uma aula de inglês”, mas não tem o inglês nativo, entendeu? A pessoa vem achando que tem inglês. Então, isso é uma das coisas que me atrapalha bastante. (Escola B).

Eu faço entrevista com pessoas que têm um bom inglês, mas quando eu coloco eles em momentos assim, e eles travam, e aí eu sei que não vai dar. Porque você tem que ter diálogo com os alunos. O aluno está chorando porque fulano bateu, não tem nada a ver com escola, você tem que saber resolver esses problemas. (Escola C).

Outro ponto que chama atenção na fala dos informantes se refere à contratação de profissionais com ensino superior em Letras (com habilitação em Português e Inglês) para docência na educação infantil. Cabe destacar, nesse contexto, a fala das escolas D e E:

Ele [o professor esperado] tem que ter, no mínimo, o avançado de Cambridge. Ou um TOEFL. A gente prefere o Cambridge, porque é pra vida, e o TOEFL só tem dois anos de validade. Eu dou preferência aos professores que tenham Pedagogia ou curso normal, porque eu acho que faz toda a diferença. Pré-requisito é Pedagogia ou Letras. Eu dou preferência a quem fez Pedagogia. Porque eu acho que é outro olhar, especialmente na educação infantil. (Escola D).

Então, as escolas pegam os professores de Letras e orientam esses professores a fazerem essa complementação ou Pedagogia. Porque Pedagogia, em quatro anos, eu formo um pedagogo. Mas, em quatro anos, eu não consigo formar uma pessoa com a fluência necessária em inglês. (Escola E).

Apesar de considerarem a Pedagogia, ou o Normal, como pré-requisito para contratação, as escolas informaram que se utilizam de profissionais formados em Letras, com inglês fluente, para compor seu quadro de professores. Pela escassez de profissionais com a proficiência necessária em inglês, acredita-se ser mais desejável contratar aqueles formados em Letras que, posteriormente, façam uma complementação pedagógica do que bons pedagogos com o inglês aquém do desejado.

Cabe ressaltar que a contratação de professores com licenciatura em Letras para lecionar na educação infantil vai de encontro com a legislação brasileira. Enquanto a licenciatura em Pedagogia é voltada para a educação, com aprofundamento em teorias e modelos de transmissão de conhecimento e aplicação em sala de aula, a licenciatura em Letras (com habilitação em Português e Inglês) forma o professor especialista apto a lecionar no ensino fundamental II e médio.

Essa mudança no perfil de contratação pode estar associada à intervenção das empresas especializadas no processo de recrutamento e seleção dos professores, cuja prioridade é a busca por profissionais com proficiência em inglês. Esse processo, vale destacar, deve ser entendido no âmbito das interferências mercadológicas nos currículos escolares (Cunha, 2011Cunha, L. A. (2011, setembro). Contribuição para a análise das interferências mercadológicas nos currículos escolares. Revista Brasileira de Educação, 16(48), 585-607.). Atualmente, cabe às empresas especializadas verificar se os candidatos estão aptos a exercer o cargo de professor bilíngue de acordo com os parâmetros estabelecidos pelas escolas:

A [empresa especializada] seleciona esses professores. Por exemplo, aqui na [Escola A]. Quando a gente começou, vi quantos professores ia precisar, botamos anúncio, fiz todo o processo de entrevista e seleção. Discuto antes com a escola qual é esse valor que vai ser pago. A gente orienta a escola, de acordo com a região. Faz uma pesquisa quando chega na região e tudo do valor médio que seja pago. Orienta a escola no valor mínimo. “Olha, eu acho que você deva oferecer entre tanto e tanto”. Então a gente faz essa consultoria pra escola, fecha o valor, e a partir daí a gente põe um anúncio, faz todo o processo de seleção e entrevista... E, na última etapa, é a conversa com a direção, então a gente pega, por exemplo, aquele grupo que tá fazendo o processo de seleção - três, quatro, cinco, depende do tamanho do grupo -, e fala pra escola: “todos esses estão no mesmo nível, estão qualificados, eu contrataria qualquer um desses”. A partir daí é com a escola. (Consultor Escola A).

A [empresa especializada] exige uma formação também, e é ela que nos atesta que podem dar aula. Sempre vem da [empresa especializada], depois a [Escola B] contrata, mas sempre sob supervisão deles. . . . É feita uma entrevista, pra gente conhecer e passar pro departamento pessoal. . . . Eles fazem um filtro, e depois encaminham pra gente ver também se realmente tem o perfil pra educação infantil. (Escola B).

Formação em Pedagogia ou Inglês, que é o exigido para trabalhar com educação em inglês. A parceira auxilia no processo de contratação, fazendo um filtro dos profissionais habilitados. (Escola E).

A fala dos entrevistados remete ao processo de ascendência das empresas especializadas sobre as escolas, pois, além de realizar a seleção e recrutamento, essas organizações também fazem a indicação dos profissionais considerados aptos para lecionar. Um exame dos possíveis conflitos entre propostas pedagógicas das escolas e das empresas por ocasião desse processo seletivo é digno de aprofundamento, dado o interesse prioritário das empresas na proficiência do professor com vistas à aplicação adequada de seu próprio programa bilíngue.

Entre os entrevistados, apareceu a visão de que os cursos de Pedagogia não abordam apropriadamente os aspectos teóricos relacionados ao bilinguismo e à educação bilíngue, necessários para atuar nesse segmento, conforme corroborado pela fala da Escola A:

. . . a formação desse professor ainda é falha. A gente ainda tem pouquíssimas instituições de ensino que formam. . . . Acho que a gente tá longe ainda nas universidades. . . . Não se toca nesse assunto. Eu hoje vejo assim, eu vim da UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro]... eu hoje vejo que, na graduação, esse é um mercado pouco falado ainda. A gente tem matérias no mestrado, matérias no doutorado sobre o bilinguismo, mas você vê que a formação do professor de Pedagogia... Em Pedagogia, nem se fala na maioria das universidades. Em Letras, se fala muito pouco também. É como se você estivesse formando aquele profissional pra curso de inglês. (Escola A).

A necessidade de disciplinas específicas sobre a educação bilíngue pode ser verificada também nos cursos de licenciatura em Línguas Estrangeiras - nas instituições públicas e privadas de ensino superior, cujo ensino estaria mais voltado à formação de professores de língua estrangeira, ensino de línguas estrangeiras na escola pública e aspectos estruturais das línguas (Salgado et al., 2009Salgado, A. C. P., Matos, P., Correa, T. H., & Rocha, W. I. (2009). Formação de professores para a educação bilíngue: Desafios e perspectivas. Congresso Nacional de Educação, Curitiba, 9.).

Nota-se que, para suprir essas lacunas existentes na formação dos professores, lentamente vão surgindo cursos de extensão e pós-graduação com o objetivo de formar a crescente demanda ignorada pelos cursos de graduação. Além disso, encontram-se, atualmente, cursos de extensão na modalidade de educação a distância que discutem os aspectos da educação bilíngue, com o objetivo de qualificar os profissionais para atuação no segmento de escolas bilíngues.

A contratação de professores formados em Letras como alternativa para suprir a carência de profissionais em escolas bilíngues parece estar reconfigurando não apenas a carreira dos professores da educação básica, como também a dinâmica das relações entre eles, com os professores especialistas em melhores condições de remuneração, prestígio e competitividade ocupando os espaços que foram tradicionalmente dos normalistas e pedagogos:

Eu acho que é uma excelente oportunidade, um excelente mercado para os professores. Em termos de mercado, porque a gente está falando de um salário 40%, 50% mais alto que os salários que a gente já sabe que são baixos, e a mão de obra é escassa. Acho que não só vejo como um futuro, não só para quem é de inglês, mas também quem é de português. Hoje a gente já sente que esse professor de Português também precisa ter um conhecimento do bilinguismo. Porque essa criança leva de um currículo para outro. (Escola A).

A gente percebe cada vez mais a importância desse professor de Língua Portuguesa estar pronto [em termos de formação profissional]. E aí estar pronto para [trabalhar em] uma escola bilíngue brasileira. . . . Toda escola precisa ter português no Brasil, mesmo as escolas internacionais. (Escola D).

Verifica-se que a mudança no perfil docente também incidiria sobre os professores que atuam com a língua portuguesa. As escolas estariam percebendo a necessidade de adaptação desse profissional de modo a atender um novo perfil de aluno, que aprende por meio de dois idiomas distintos e acaba por não os dissociar durante as aulas, independentemente do idioma utilizado pelo professor.

Outro ponto que merece destaque nesse contexto de mudanças diz respeito à forma como as escolas bilíngues têm transformado as relações entre os professores dentro da escola, gerando uma assimetria entre os professores que atuam com a língua portuguesa e os professores que atuam com a língua inglesa:

A gente entra num outro problema de formação da educação brasileira. O nível socioeconômico e cultural dos professores que a gente tem ainda em língua portuguesa, que é muito diferente dos que a gente tem em inglês. Essa é uma diferença ainda muito gritante. Então você precisa de toda uma formação, que não dá para partir também só de onde estão os professores de inglês. Se eu entendo que é para integrar, então eu [atores de interesse do campo da Educação] tenho que abrir para todo mundo, né? (Escola A).

Essa diferença é reforçada pela elevação no nível de exigência de formação profissional dos professores bilíngues para a atuação nas escolas:

. . . esses profissionais [professores bilíngues], eles têm que estar muito preparados, e cada vez a gente exige mais deles, né? Antigamente, você era normalista e podia ser professora para sempre. Hoje você não consegue mais com o Normal, “mas você não tem Pedagogia?”. Virou uma exigência. Antigamente, você ter uma pós-graduação diferenciava no mercado, assim, em 500%. Hoje, [o profissional] acaba a faculdade, já faz a pós[-graduação]. Então, professor de 25, 26 anos que tem pós[-graduação], tem mercado. A exigência hoje é outra, muito diferente. . . . Todos [os professores bilíngues] têm faculdade. Eu acho que, hoje, a maioria tem pós[-graduação]. Muitos em psicopedagogia ou linguística. Os formados em Letras fazem mestrado. Quem é da Pedagogia prefere fazer uma pós[-graduação]. (Escola B).

As falas ilustram a crescente demanda das escolas por professores bilíngues cada vez mais especializados, o que tende a aumentar a desigualdade entre o perfil de professor que foi “aluno-trabalhador” na modalidade Normal ou cursou Pedagogia à noite ou a distância, e aquele de uma condição mais privilegiada, com maior capital cultural, experiências internacionais, acesso a cursos de idiomas, pós-graduações e que cursou Pedagogia na modalidade presencial e diurna.

Ziegler (2014Ziegler, S. (2014, março). Regulación del trabajo de los profesores de la elite. Cadernos de Pesquisa, 44(151), 84-103.) debate temática semelhante ao trabalhar a posição ambivalente dos docentes de escolas particulares, em Buenos Aires, que adotam o International Baccalaureate Program. Se, por um lado, esses professores são mantidos em uma posição social subordinada em relação aos grupos que se ocupam de formar; por outro, a função simbólica de formar membros das elites e de promover a sua seleção social também conferiria uma posição de prestígio a esse grupo.

Com base nas entrevistas, percebe-se que as práticas e políticas de recursos humanos, como padrão remuneratório, treinamentos e formação continuada, projetos pedagógicos, processos de supervisão da atividade docente e processos de avaliação e controle, são distintas para os professores que lecionam em língua estrangeira e em português. Megale critica o fato de que os professores que atuam com a língua portuguesa tendem a ser “alijados das discussões teóricas e metodológicas que perpassam o ensino bilíngue” e destaca a importância de “colocar esse professor no centro dessa discussão, com os professores que atuam na língua adicional” (2018, p. 221). De fato, pode-se suspeitar que essas diferenças fragmentem o ensino em um mesmo estabelecimento, que deveria trabalhar em conjunto segundo os princípios da educação bilíngue.

Em suma, a nova dinâmica gera uma série de transformações passíveis de maiores reflexões, como a emergência de um novo perfil profissional de professor, a inadequação da grade curricular dos cursos de Pedagogia frente à nova demanda por profissionais para atuar no ensino bilíngue, o conflito de interesses entre diferentes atores para garantia da reserva de mercado das profissões (Cunha, 2011Cunha, L. A. (2011, setembro). Contribuição para a análise das interferências mercadológicas nos currículos escolares. Revista Brasileira de Educação, 16(48), 585-607.), a infração da legislação brasileira pelas escolas bilíngues e a reconfiguração das relações dentro do ambiente escolar.

Considerações finais

Este trabalho se propôs a refletir sobre as novas exigências na qualificação dos docentes para atuar em escolas bilíngues no segmento de educação infantil, o que deve ser entendido no âmbito das tendências da rede privada de atender à demanda das elites pela aquisição de “capital internacional” para seus filhos em idades cada vez mais precoces.

Para atuar com crianças de 0 a 5 anos, exige-se dos professores titulações de ensino superior e pós-graduação, proficiência em língua estrangeira comprovada em exames internacionais, fluência “nativa” em língua estrangeira e habilidades práticas. A elevação da qualificação no recrutamento de professores para escolas bilíngues tem sido um desafio para as próprias escolas, diante da escassez de oferta desse perfil no mercado de trabalho. Diante da visão de que, “em quatro anos, eu formo um pedagogo, mas, em quatro anos, eu não consigo formar uma pessoa com a fluência necessária em inglês”, os profissionais formados em Letras têm sido visados por algumas escolas, que os orientam a cursar uma complementação pedagógica.

A implantação do bilinguismo parece ocasionar assimetrias entre os docentes no interior do espaço escolar. As diferenças nos perfis educacionais, sociais e econômicos entre os professores, somada à utilização de práticas e políticas de recursos humanos distintas, posicionam os professores que atuam por meio da língua estrangeira em melhores condições de remuneração, prestígio e competitividade. Outro efeito na qualificação dos professores que atuam por meio da língua portuguesa seria a maior necessidade de se adaptar para atender a um novo perfil de aluno, que aprende por meio de dois idiomas distintos.

Visto o crescimento do mercado de escolas bilíngues e os problemas na formação de professores no Brasil, entende-se que, apesar de o sistema de ensino superior brasileiro estar formando um número de pedagogos cada vez maior, essa mão de obra não terá facilidades para atender às exigências dos empregadores do setor privado de educação infantil. A tendência à oferta de bilinguismo constitui, portanto, um processo que provavelmente agrava as desigualdades de oportunidades entre os docentes no Brasil.

Referências

  • Aguiar, A. (2009). Estratégias educativas de internacionalização: uma revisão da literatura sociológica. Educação e Pesquisa, 35(1), 67-79.
  • Aguiar, A., & Nogueira, M. A. (2012). Internationalisation strategies of Brazilian private schools. International Studies in Sociology of Education, 22(4), 353-368.
  • Almeida, A. M. (2015). The changing strategies of social closure in elite education in Brazil. In A. Van Zanten, S. Ball, & B. Darchy-Koechlin (Orgs.), Elites, privilege and excellence: The national and global redefinition of educational advantage. (World Yearbook of Education). Routledge.
  • Almeida, A. M., & Nogueira, M. A. (2002) A escolarização das elites: Um panorama internacional da pesquisa. Vozes.
  • Almeida, A. M., Moschkoivich, M., & Polaz, K. (2012). Pesquisando os grupos dominantes: Notas de pesquisa sobre acesso às informações. Revista Pós Ciências Sociais, 9(17), 161-174.
  • Associação Brasileira de Franchising. (s.d). Com mais unidades e empregos, setor de franquias cresce 5,9% no 2º tri de 2019. Associação Brasileira de Franchising. https://www.abf.com.br/com-mais-unidades-e-empregos-setor-de-franquias-cresce-59-no-2o-tri-de-2019/
    » https://www.abf.com.br/com-mais-unidades-e-empregos-setor-de-franquias-cresce-59-no-2o-tri-de-2019/
  • Cattani, A. D., & Kieling, F. S. (2007). A escolarização das classes abastadas. Sociologias, 9(18), 170-187.
  • Charles, M., & Bradley, K. (2002). Equal but separate? A cross-national study of sex segregation in higher education. American Sociological Review, 67(4), 573-599.
  • Cunha, L. A. (2011, setembro). Contribuição para a análise das interferências mercadológicas nos currículos escolares. Revista Brasileira de Educação, 16(48), 585-607.
  • Deliberação n. 22, de 02 de agosto de 2012. (2012). Fixa normas para autorização de funcionamento de instituições privadas de Educação Infantil do Sistema de Ensino do Município do Rio de Janeiro e dá outras providências.
  • Deliberação n. 341, de 12 de novembro de 2013. (2013). Estabelece normas para a oferta de Ensino Bilíngue e Internacional na Educação Básica, pelas instituições pertencentes ao Sistema de Ensino do Estado do Rio de Janeiro.
  • Doherty, C. (2009). The appeal of the International Baccalaureate in Australia’s educational market: a curriculum of choice for mobile futures. Discourse: Studies in the Cultural Politics of Education, 30(1), 73-89.
  • Dubet, F. (2015, maio). Qual democratização do ensino superior? Caderno CRH, 28(74), 255-266.
  • Fávaro, F. M. (2009). A educação infantil bilíngue (português/inglês) na cidade de São Paulo e a formação dos profissionais da área: Um estudo de caso [Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
  • Federação Nacional Do Ensino Privado (s. d.). Dado do ensino privado. Brasília: Federação Nacional do Ensino Privado (2019, maio 15). https://www.fenep.org.br/biblioteca/dados-do-ensino-privado/
    » https://www.fenep.org.br/biblioteca/dados-do-ensino-privado/
  • Freeman, R. D. (1998). Bilingual education and social change. Multilingual Matters.
  • Gardner, S. (2012). Global English and bilingual education. In M. Martin-Jones, A. Blackledge, & A. Creese. The Routledge handbook of multilingualism (pp. 247-263). Routledge.
  • Gatti, B. A. (2009). Professores do Brasil: Impasses e desafios. Unesco.
  • Gatti, B. A. (2010). Formação de professores no Brasil: Características e problemas. Educação & Sociedade, 31(113), 1355-1379.
  • Gerber, T., & Cheung, S. Y. (2008). Horizontal stratification in postsecondary education: Forms, explanations, and implications. Annual Review of Sociology, 34, 299-318. https://doi.org/10.1146/annurev.soc.34.040507.134604
    » https://doi.org/10.1146/annurev.soc.34.040507.134604
  • Grill, M., & Honorato, G. (2019). Expansão, diversificação e estratificação da área de Educação no Brasil: os cursos de Pedagogia em foco. In G. Honorato (Org.), Avanços e desafios na democratização da educação superior do Brasil. (Coleção Cadernos do Lepes, 2), (pp. 45-70). Faculdade de Educação, UFRJ.
  • Gripp, G. & Rodrigues, L. (2017). Quem modela o trabalho dos professores: Currículos dos cursos de formação de professores no Brasil. Congresso da Associação Latino-Americana de Sociologia, Montevidéu, 31. (Texto apresentado no GT 24 Sociología de la Educación y Políticas Educativas).
  • Gripp, G. & Rodrigues, L. (2019, setembro 5-6). Estudo dos currículos dos cursos de formação de professores no Brasil. [Apresentação de trabalho]. Seminário do Projeto Estratificação da Educação Básica Brasileira: Uma abordagem multidimensional. Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Federal do Rio de Janeiro - IESP/UERJ.
  • Hamers, J. F., & Blanc, M. (2000). Bilinguality and bilingualism. Cambridge University Press.
  • Honorato, G., Zuccarelli, C., & Vieira, A. (2018). Expansão, diversificação e composição social da área de Educação no ensino superior brasileiro (1995-2015). In R. Heringer (Org.), Educação superior no Brasil contemporâneo: Estudos sobre acesso, democratização e desigualdades (pp. 31-78). Faculdade de Educação, UFRJ.
  • Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (2019, novembro 13). Pretos ou pardos estão mais escolarizados, mas desigualdade em relação aos brancos permanece. Agência IBGE Notícias. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25989-pretos-ou-pardos-estao-mais-escolarizados-mas-desigualdade-em-relacao-aos-brancos-permanece
    » https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/25989-pretos-ou-pardos-estao-mais-escolarizados-mas-desigualdade-em-relacao-aos-brancos-permanece
  • Jay, E. (2002). As escolas da grande burguesia: o caso da Suíça. In A. M. Almeida, & M. A. Nogueira (Orgs.), A escolarização das elites: Um panorama internacional de pesquisa (pp. 120-134). Vozes.
  • Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. (1996). Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. (1996, dezembro 23). Diário Oficial da União, 27833.
  • Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014. (2014). Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. (2014, junho 26). Diário Oficial da União. Edição extra, 1.
  • Libâneo, J. C. (2010). O ensino da didática, das metodologias específicas e dos conteúdos específicos do ensino fundamental nos currículos dos cursos de Pedagogia. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 91(229), 562-583.
  • Lucas, S. (2001). Effectively maintained inequality: Education transitions, track mobility, and social background effects. American Journal of Sociology, 106(6), 1642-1690.
  • Megale, A., & Liberali, F. (2016). Caminhos da educação bilíngue no Brasil: Perspectivas da linguística aplicada. Raído, 10(23), 9-24.
  • Megale, A. H. (2018). Educação bilíngue de línguas de prestígio no Brasil: Uma análise dos documentos oficiais. The Especialist, 39(2), 1-17.
  • Megale, A. H. (2014). A formação de professores para a educação infantil bilíngue: Bilinguismo e formação docente. Pátio Educação Infantil, 1(15), 12-15.
  • Mello, H. A. B. (2011). Educação bilíngue: Uma breve discussão. Revista Horizontes de Linguística Aplicada, 9(1), 118-140.
  • Ministério da Educação. (n.d.). Base Nacional Comum Curricular: Educação é a base. Base Nacional Comum Curricular. (2019, novembro 10). http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/
    » http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/
  • Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. (2019). Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade). gov.br. (2020, novembro 3). https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/enade/resultados
    » https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/enade/resultados
  • Nogueira, M., Aguiar, A. M. S., & Ramos, V. C. C. (2008). Fronteiras desafiadas: A internacionalização das experiências escolares. Educação & Sociedade, 29(103), 355-376.
  • Oliveira, J. F., Bittar, M., & Lemos, J. R. (2010, maio). Ensino superior noturno no Brasil: Democratização do acesso, da permanência e da qualidade. Revista de Educação Pública, 19(40), 247-268.
  • Parecer CNE/CEB n. 1/2003. (2003). Responde consulta sobre formação de profissionais para a Educação Básica. http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pceb001_03.pdf
    » http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/pceb001_03.pdf
  • Pinto, U. A. (2002). O pedagogo escolar: Avançando no debate a partir da experiência desenvolvida nos cursos de complementação pedagógica. In S. G. Pimenta (Org.), Pedagogia e pedagogos: Caminhos e perspectivas (pp. 153-198). Cortez.
  • Resolução CNE/CEB 1, de 7 de abril de 1999 (1999). Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Diário Oficial da União, Seção 1, 18. http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/resolucao_ceb_0199.pdf
    » http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/resolucao_ceb_0199.pdf
  • Salgado, A. C. P., Matos, P., Correa, T. H., & Rocha, W. I. (2009). Formação de professores para a educação bilíngue: Desafios e perspectivas. Congresso Nacional de Educação, Curitiba, 9.
  • Storto, A. C. (2015). Discursos sobre bilinguismo e educação bilíngue: A perspectiva das escolas [Dissertação de Mestrado em Linguística Aplicada]. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo.
  • Tarc, P. (2009). Global dreams, enduring tensions: International Baccalaureate in a changing world. Peter Lang.
  • Tendência que veio para ficar: Escolas que têm um programa bilíngue conquistam mais alunos e pais pelo Brasil: Escolas regulares têm apostado em programas bilíngues para oferecer ensino de inglês qualificado dentro da própria instituição. (2019, março 14). Terra. https://www.terra.com.br/noticias/dino/tendencia-que-veio-para-ficar-escolas-que-tem-um-programa-bilingue-conquistam-mais-alunos-e-pais-pelo-brasil,40b96e0d377debe913541a3fb34a9b0e8qtrmczn.html
    » https://www.terra.com.br/noticias/dino/tendencia-que-veio-para-ficar-escolas-que-tem-um-programa-bilingue-conquistam-mais-alunos-e-pais-pelo-brasil,40b96e0d377debe913541a3fb34a9b0e8qtrmczn.html
  • Van Zanten, A., Ball, S., & Darchy-Koechlin, B. Elites, privilege and excellence: The national and global redefinition of educational advantage. Routledge.
  • Vieira, M. C. (2019, agosto 23). Escolas bilíngues se espalham pelo país. Isso é bom - e custa caro: Mercado cresceu 10% desde 2014 e movimenta 250 milhões de reais atualmente. Veja. https://veja.abril.com.br/educacao/escolas-bilingues-se-espalham-pelo-pais-isso-e-bom-e-custa-caro/
    » https://veja.abril.com.br/educacao/escolas-bilingues-se-espalham-pelo-pais-isso-e-bom-e-custa-caro/
  • Vieira, M. M. (2007). A mobilidade como competência? Formação de elites e o programa Erasmus. [Texto apresentado]. European Conference on Educational Research, Universidade de Ghent, Bélgica.
  • Ziegler, S. (2014, março). Regulación del trabajo de los profesores de la elite. Cadernos de Pesquisa, 44(151), 84-103.
  • 1
    Valor do salário mínimo em 2017: R$ 937,00.
  • Disponibilidade de dados

    Os dados desta pesquisa estarão disponíveis sob demanda às autoras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2020
  • Aceito
    23 Set 2020
Fundação Carlos Chagas Av. Prof. Francisco Morato, 1565, 05513-900 São Paulo SP Brasil, Tel.: +55 11 3723-3000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cadpesq@fcc.org.br