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LIBERDADE BEM REGRADA: UMA LEITURA PEDAGÓGICA DA FILOSOFIA DO EMÍLIO

Kawauche, T.. Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Editora Unifesp, 2021

Esse livro, do meu ponto de vista, já nasceu clássico. Não me lembro na literatura pedagógica em língua portuguesa da existência de nenhuma obra que verse exclusiva e exaustivamente sobre o Emílio, como fez Thomaz Kawauche (2021)Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp. no presente trabalho, que, não por acaso, é intitulado Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Rousseau é um autor que sabidamente fundou uma cultura pedagógica bastante difundida no mundo ocidental. O livro aqui lançado - conta Kawauche - foi elaborado sobretudo a partir de um importante curso de extensão universitária, ministrado pelo autor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), no segundo semestre de 2016. O texto foi redigido, em função desse curso, no decorrer de seu estágio de pós-doutorado desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E, como acentua Kawauche, o lançamento da obra integra o conjunto de suas atividades como professor visitante na Universidade Federal de São Paulo - a Unifesp.

O livro principia questionando o porquê de o Emílio ter provocado “escândalo em autoridades seculares e eclesiásticas, levando-as a condená-lo à fogueira tanto em Paris quanto em Genebra” (Kawauche, 2021Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp., p. 23). Por que especificamente essa obra de Rousseau causou tamanho incômodo em seu tempo? Rousseau - em seu livro (1979Rousseau, J. J. (1979). Emílio ou da educação (3a ed.). Difel.) - descreve a criança a partir do que Thomaz Kawauche caracteriza como “profilaxia pedagógica”; ou seja, um tipo de discurso crítico do rumo civilizatório, tal como ele se constituiu no Ocidente, em nome de uma outra racionalidade que principia com a dimensão do afeto. A arte da educação - diz Kawauche (2021Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp., p. 27) - ordena a constituição da criança. Sendo assim, o educador do Emílio deverá atentar para todas as faculdades que constituem o entendimento da criança - nas palavras do autor: “bem como ao jogo sempre cambiante que elas articulam entre si: vontade, imaginação, razão e juízo” (Kawauche, 2021Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp., p. 27). Rousseau inaugura - isso é certo - uma nova concepção de criança. E essa atitude diferenciada em relação à infância conduziria os médicos a retificarem a noção de natureza infantil. Preocupada com isso, essa obra trabalha a correlação entre as artes da medicina e as da pedago- gia, explorando minuciosamente o debate sobre o tema da civilidade como uma estratégia para conformar a lógica da racionalidade infantil, além de sua adequação ao tabuleiro social.

Ao procurar deslindar um “olhar crítico sobre o corpo infantil” (Kawauche, 2021Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp., p. 29), o livro demonstra que o pensamento pedagógico rousseauniano constrói uma acepção de natureza humana alternativa àquilo que era, até então, a perspectiva dos educadores. Rousseau, por exemplo, recusa a maldade original do ser humano, destacando que a corrupção do coração do homem é um constructo da sociedade. Retomando a caracterização de Claparède - para quem Rousseau teria sido o Copérnico da pedagogia - com a publicação do Emílio, era inventada uma inaudita concepção de criança, pautada pretensamente em uma visão científica. Sob tal ponto de vista, Rousseau pretendia não apenas formar o entendimento do Emílio: ele queria também acompanhar o desenvolvimento físico de seu aluno.

A faculdade de julgar, em Rousseau, é claramente antecedida pela formação do sujeito em exercícios físicos. A propósito disso, Kawauche efetua uma feliz remissão ao trabalho de Philippe Ariès, em seu clássico História social da criança e da família, livro que, no Brasil, foi traduzido e editado em 1981Ariès, P. (1981). História social da criança e da família (2a ed.). Zahar., exatamente vinte anos após seu lançamento no cenário francês. O trabalho de Ariès, ancorado em fontes manuscritas e iconografia, mostrou que historicamente teria ocorrido uma alteração significativa na forma de compreender a figura da criança, verificando as modificações nas representações sociais que se tinha da figura infantil com base em elementos expressos “nos traços dos rostos nas pinturas, na moda das roupas e nos jogos com adultos ou com brinquedos que reproduziam cavalos e pessoas, tudo em escala menor” (Kawauche, 2021Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp., p. 35). Ariès, em sua obra, chega à conclusão de que a criança medieval é compreendida como um ser provisoriamente imperfeito que tende em direção à idade adulta. Kawauche destaca, em paralelo com o livro de Ariès, a temática dos cuidados com o corpo da criança como um dos pontos basilares do Emílio.

Ancorando-se, por outro lado, na referência de Foucault, Educação e filosofia no Emílio de Rousseau trabalha o que se compreende como dispositivos da sexualidade, ou seja, como há, na obra de Rousseau, discursos normativos sobre o corpo individual, tomando esse como objeto de saber. Nas palavras de Kawauche (2021Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp., p. 41), Foucault ilumina a “pedagogização do sexo da criança como um dos domínios das relações de poder regidas pelo discurso sobre o sexo”.

Um aspecto que me parece essencial na interpretação aqui trabalhada sobre o Emílio é a ênfase conferida à ideia de “liberdade bem regrada” em Rousseau. Digo isso porque, de fato, a temática da liberdade do menino Emílio é bastante complexa, já que, a despeito do discurso sobre o sujeito livre, Emílio está sempre amparado e ancorado pela figura do preceptor. Para Kawauche, o segredo estaria no fato de Rousseau conferir uma força reguladora à liberdade do menino, pela compreensão de que a liberdade não virá de uma pessoa, mas sim de uma lei e do fato de essa lei ser incorporada pela criança aos poucos, ao longo da dinâmica de seu desenvolvimento.

Esse livro aborda também a correlação entre a interpretação de Rousseau sobre o fenômeno educativo e aquela desenvolvida por Locke. Afinal, diferentemente do autor inglês, onde estaria, na abordagem rousseauniana, o papel da civilidade? Kawauche compreende que aqui se aplicaria a regra do justo meio, com o preceptor atuando

. . . com justiça a fim de diminuir as fontes de vícios, exercendo sua força na medida exata, ou seja, com virtude, de modo equidistante de exageros viciosos, tendo como alvo manter o equilíbrio isonômico, jamais permitindo que este seja rompido no curso das transformações por que passam a criança ou o corpo político. (Kawauche, 2021Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp., p. 51).

Kawauche retoma alguns dos tópicos já fundamentais na bibliografia sobre o Emílio: a compreensão de que a criança tem as características do homem no estado de natureza e a ideia de que a moralidade em construção no Emílio antecipará o conceito kantiano de autonomia da vontade. Tomando o paralelismo entre agricultura e puericultura, o autor recorre ao trabalho de Elisabeth Badinter (1985)Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: O mito do amor materno. Nova Fronteira. acerca do mito do amor materno, o qual, para essa autora, seria um amor inventado socialmente. Em seu trabalho, Badinter comenta sobre as mães que, na França daquele tempo (século XVIII), se recusavam a amamentar. O paralelismo com a natureza é estendido às artes médicas, sobre essa temática da amamentação e da alimentação do bebê.

Assim, o autor recupera aqui algumas das principais metáforas da educação: a metáfora da planta, que deve crescer regada e cercada de todas as condições favoráveis; e a metáfora da escultura, apontando o Emílio como uma obra de arte, já que o menino é um selvagem feito para habitar as cidades (Kawauche, 2021Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp., p. 61). De todo modo, a educação de cada educando deveria ser compreendida - pela interpretação de Rousseau - como um processo único e intransferível, não sendo cabível conceber um modelo de formação único e igual para crianças com estruturas mentais e físicas específicas e particulares. Nos termos de Thomaz: “além disso, as particularidades sociais, físicas e espirituais dos educandos implicam necessidades específicas que um modelo de educação como o dos colégios jesuíticos jamais poderia atender” (Kawauche, 2021Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp., p. 65).

O livro retoma a temática do corpo na educação da criança, na crítica de Rousseau à antecipação da idade da razão por parte dos educadores, dado que a racionalidade não deveria ser estimulada antes do momento oportuno. Não é apenas a alma a ser educada: trata-se de formar também um corpo, que deve ser cuidado, que precisa ser exercitado. E será o desenvolvimento do corpo que dará a senha para que se possam identificar quais serão os conhecimentos adequados a cada etapa do desenvolvimento da criança. Com Rousseau inicia-se toda uma tradição que, posteriormente, no campo da Psicologia do Desenvolvimento e da Psicologia da Educação, sobretudo, se debruçará sobre a tentativa de estabelecer correlações entre as fases do desenvolvimento infantil e as características intrínsecas à condição da infância.

Kawauche compreende que Rousseau teria sido o criador da infância moderna. Haveria uma sensibilidade social a propósito da condição da infância naquele final do século XVIII que anteriormente era desconhecida. E muito disso devia-se à publicação do Emílio. Valendo-se dos saberes da medicina e da pedagogia para efetuar uma leitura crítica muito arguta do pensamento pedagógico de Rousseau, Thomaz Kawauche toma por hipótese a tese segundo a qual Rousseau, tomando o corpo da criança como objeto científico, descortinou um tipo de reflexão sobre a infância que era absolutamente desconhecido em seu tempo.

Seja como for - considera essa obra -, a desnaturação do menino Emílio é procedimento inevitável no caminho de sua civilização, por mais que Rousseau fosse resistente a isso. O livro toca, ainda, em um aspecto delicado do Emílio, que consiste no fato de Rousseau apontar que é a criança educada em casa e não a criança educada em colégios aquela que pode melhor se preparar para os infortúnios da sociedade, sem ser contaminada com os vícios inerentes às relações da ordem pública. Para ensinar às crianças os deveres da sociedade, a educação cívica se impõe, bem como a formação, portanto, do futuro cidadão. A verdadeira educação será, entretanto, aquela que conferirá ao menino os deveres do homem enquanto homem. Para abordar essa questão, Thomaz dialoga com toda a literatura de civilidade que circulava à época, com ênfase para os trabalhos de Erasmo, Montaigne e Locke. Kawauche procura discernir a concepção de civilidade expressa por Rousseau, estabelecendo suas similitudes, mas também suas distinções relativamente aos tratados de civilidade presentes naquela época. Tomando como referência teórica o clássico trabalho de Norbert Elias - O processo civilizador (1993Elias, N. (1993). O processo civilizador: Uma história dos costumes (v. 1). Zahar., 1994Elias, N. (1994). O processo civilizador: Formação do Estado e civilização (v. 2, 2a ed.). Zahar.) -, o autor identifica que, naquele século XVIII, as pessoas frequentavam certos grupos apenas se dominassem seus respectivos sinais de cortesia: “o ideal de homem civilizado para os aristocratas emergentes era o do indivíduo intelectualmente bem-dotado e com domínio do decoro, ou seja, dos gestos e da linguagem que sabia serem adequados a cada situação particular” (Kawauche, 2021Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp., p. 234). Afinal, ser polido - constata o autor - era também ser policiado (p. 239).

A preocupação de Rousseau com a civilidade indica claramente que Emílio não era tão livre quanto seu governante queria fazer parecer. Nas diferentes etapas de seu desenvolvimento, exatamente por ser um forasteiro na ordem civil, Emílio precisará ser um “amável estrangeiro” (Kawauche, 2021Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp., p. 241). Mas há de se ter, na formação do menino, sentido de proporção. Nas palavras de Kawauche (2021Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau. Unifesp., p. 242),

. . . o jovem quer ser agradável, mas não a ponto de se tornar fútil ou bajulador; adapta-se aos costumes da sociedade, porém sem fazer muito caso deles. Em suma, Emílio é um “ser híbrido”: ao mesmo tempo educado segundo a natureza e atento às opiniões da sociedade.

O método de Rousseau consistia na observação e interpretação das faculdades e dos órgãos da criança no decorrer de seu desenvolvimento, tendo como finalidade a construção de sua capacidade de julgar e de agir moralmente. Rousseau queria - de maneira única e, portanto, diferente dos demais tratados pedagógicos que circulavam em seu tempo - compreender a criança enquanto criança; e desde o início do Emílio expressa essa finalidade como um novo objeto de pesquisa. O menino Emílio será, então, uma categoria operatória ou uma ideia reguladora: um método para proceder ao pensamento.

A leitura do livro de Thomaz Kawauche nos possibilita uma melhor interpretação do Emílio; mas faculta também uma reflexão sobre a condição da infância. Em certa medida, as múltiplas leituras da obra rousseauniana por parte da tradição pedagógica construíram um modo de olhar para a criança à luz de sua liberdade. Nos dias que correm, nunca as crianças foram tão livres. Todas as teorias pedagógicas em voga ocupam-se de demarcar o lugar de liberdade para o desenvolvimento infantil. As escolas e a família historicamente foram ampliando a voz concedida às crianças: a tal ponto que hoje a voz infantil torna-se o álibi para que a principal ocupação dos adultos seja a de satisfazerem todas as vontades das crianças. Nada menos rousseauniano do que isso. Tal leitura mal feita do Emílio desconsidera em Rousseau sua busca de explicitar o que ele próprio conceituou de liberdade bem regrada. Thomaz recupera o sentido dessa expressão na obra de Rousseau; e, por ser assim, em meu entendimento, reinventa a leitura da pedagogia rousseauniana. Mas nada do que eu puder aqui falar irá substituir a beleza e o impacto que a leitura desse livro produz no seu leitor. Para concluir, gostaria de convidar o leitor para fruir dessa leitura.

Referências

  • Ariès, P. (1981). História social da criança e da família (2a ed.). Zahar.
  • Badinter, E. (1985). Um amor conquistado: O mito do amor materno Nova Fronteira.
  • Elias, N. (1993). O processo civilizador: Uma história dos costumes (v. 1). Zahar.
  • Elias, N. (1994). O processo civilizador: Formação do Estado e civilização (v. 2, 2a ed.). Zahar.
  • Kawauche, T. (2021). Educação e filosofia no Emílio de Rousseau Unifesp.
  • Rousseau, J. J. (1979). Emílio ou da educação (3a ed.). Difel.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2022
  • Aceito
    16 Fev 2022
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