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EDUCAÇÃO INCLUSIVA: DIFERENÇAS ENTRE ACESSO, ACESSIBILIDADE E INCLUSÃO

INCLUSIVE EDUCATION: DIFFERENCES AMONG ACCESS, ACCESSIBILITY AND INCLUSION

EDUCACIÓN INCLUSIVA: DIFERENCIAS ENTRE ACCESO, ACCESIBILIDAD E INCLUSIÓN

ÉDUCATION INCLUSIVE: DIFFÉRENCES ENTRE ACCÈS, ACCESSIBILITÉ ET INCLUSION

Resumo

O objetivo deste artigo é diferenciar acesso, acessibilidade e inclusão, partindo do pressuposto de que tais categorias têm sido utilizadas como se fossem sinônimas na escolarização de pessoas com deficiência. A construção dessa sinonímia é analisada e criticada. Para demonstrar as diferenças epistemológicas, pedagógicas e políticas dessas categorias que são estruturantes da educação especial na perspectiva da educação inclusiva, metodologicamente foram recuperadas as propostas de design universal, analisando-as com a contribuição de autores brasileiros e estrangeiros. Nos diferentes modos de interpretar o uso do design, a especificidade da inclusão emerge como potência política. A conclusão é que, na singularidade da inclusão, reside a possibilidade de projetar a escola como ecossistema inclusivo.

ACESSO; ACESSIBILIDADE; INCLUSÃO; DESIGN UNIVERSAL

Abstract

The present article aims to distinguish among access, accessibility, and inclusion, based on the assumption that these categories have been used as if they were synonymous in the schooling of people with disabilities. The construction of this synonymy is analyzed and discussed critically. To demonstrate the epistemological, pedagogical and political differences among these categories that are structural to special education, from the perspective of inclusive education, the proposals of universal design were methodologically recovered and analyzed with the contribution of Brazilian and foreign authors. In the different ways of interpreting the use of design, the specificity of inclusion emerges as political power. It was concluded that the possibility of designing the school as an inclusive ecosystem lies in the uniqueness of inclusion.

ACCESS; ACCESSIBILITY; INCLUSION; UNIVERSAL DESIGN

Resumen

El objetivo de este artículo es diferenciar acceso, accesibilidad e inclusión, partiendo del supuesto de que estas categorías han sido utilizadas como sinónimos en la educación de personas con discapacidad. La construcción de esta sinonimia es analizada y criticada. Para demostrar las diferencias epistemológicas, pedagógicas y políticas de esas categorías que son estructuras de la educación especial en la perspectiva de la educación inclusiva, metodológicamente fueron recuperadas las propuestas del diseño universal, analizándolas con la contribución de autores brasileños y extranjeros. En diferentes formas de interpretar el uso del diseño, la especificidad de la inclusión emerge como una potencia política. La conclusión fue que, en la singularidad de la inclusión, radica la posibilidad de proyectar la escuela como un ecosistema inclusivo.

ACCESO; ACCESIBILIDAD; INCLUSIÓN; DISEÑO UNIVERSAL

Résumé

L’objectif de cet article est de différencier les notions d’accès, d’accessibilité et d’inclusion, dans l’hypothèse que ces catégories ont été employées comme synonymes dans la scolarisation des personnes handicapées. Ce travail analyse et critique la construction d’une telle synonymie. Pour démontrer les différences d’ordre épistémologique, pédagogique et politique de ces catégories qui structurent l’éducation spéciale dans une perspective d’éducation inclusive, la méthodologie utilisée reprend les propositions de design universel en les analysant à la lumière d’auteurs brésiliens et étrangers. Parmi les différentes interprétations de ce que recouvre le design, la spécificité de l’inclusion se manifeste comme pouvoir politique. La conclusion indique que c’est bien dans la singularité de l’inclusion que réside la possibilité de concevoir l’école en tant qu’écosystème inclusif.

ACCÈS; ACCESSIBILITÉ; INCLUSION; DESIGN UNIVERSEL

Diretamente relacionado ao tema educação especial na perspectiva da educação inclusiva, o objetivo principal deste artigo é discutir como as categorias acesso, acessibilidade e inclusão têm sido utilizadas equivocadamente nas dinâmicas de escolarização de pessoas com deficiência, pois, predominantemente, são empregadas como se fossem sinônimas. Essa discussão é complementada pelo esforço analítico para indicar perspectivas que permitam afirmar que as três categorias têm sentidos epistemológicos, pedagógicos e políticos diferentes.

Por ser um tema demasiadamente amplo, as perspectivas que serão utilizadas para levar a efeito a diferenciação proposta entre essas categorias têm um recorte e giram ao redor do tema design universal. E não se trata de uma escolha aleatória. É que especificamente sobre design universal e inclusão multiplicaram-se debates internacionais que pouco têm repercutido nas discussões sobre educação inclusiva no Brasil. E é justamente nessa produção acadêmica internacional, predominantemente antropológica, que este artigo encontra argumentos para reivindicar a singularidade da categoria inclusão, uma vez que a produção acadêmica brasileira no campo da educação especial já acumula esforços significativos para demonstrar que acessibilidade e acesso não são categorias sinônimas. E é a complexidade da categoria inclusão que acrescenta um desafio adicional a esses esforços.

Desde a década de 1990, no Brasil, a escolarização de pessoas com deficiência e as estratégias para garantir seus direitos educacionais, de modo geral, são temas que têm proporcionado intenso e cumulativo uso corrente das palavras acesso, acessibilidade e inclusão. São apropriações diversas porque essas categorias ora são tratadas como garantias jurídicas, ora como diretrizes pedagógicas; ora como conceituação sociológica, ora como diferenciação antropológica; ora como organizadoras de políticas educacionais, ora como roteiro para desvelar assimetrias sociais.

São palavras-chave de um processo ainda em curso (Freitas, 2020Freitas, M. C. (2020). Palavras-chave da educação especial e da educação inclusiva. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, 11, 245-263. https://repositorio.unifesp.br/xmlui/handle/11600/63702
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) que expressam como, no transcorrer de três décadas, o país conectou-se com a pauta internacional que consolidou compromissos e protocolos voltados às garantias constitucionais, educacionais e laborais de pessoas com deficiência. São também palavras-chave para que se possa, nacionalmente, compreender o processo histórico interno de reelaboração crítica da educação especial que há muito está em andamento e que, a partir de 2008, com a publicação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI) (Ministério da Educação, 2008Ministério da Educação. (2008). Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI). Brasília, DF.), tornou imprescindível também para a educação especial diferenciar acesso de acessibilidade e ambos da onipresente palavra inclusão.

Paralelamente, nos últimos 20 anos, tem sido possível reconhecer em vários debates internacionais uma dedicação cuidadosa em relação aos modos de usar as categorias design e design universal para expor princípios inclusivos (Gunn et al., 2020Gunn, W., Otto, T., & Smith, R. C. (Eds.). (2020). Design anthropology: Theory and practice. Routledge.). São perspectivas que extrapolam o campo educacional e compartilham aspectos imprescindíveis para adensar nossa compreensão sobre o que é e o que pretende a educação inclusiva, mesmo quando não aborde diretamente a presença de pessoas com deficiência. São argumentos, a meu ver, imprescindíveis também para ousar defender a escola pública como “ecossistema inclusivo”, o que se dá na conclusão deste artigo.

Cenário da diferenciação

A publicação da PNEEPEI (Ministério da Educação, 2008Ministério da Educação. (2008). Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI). Brasília, DF.), para além do extraordinário reforço ao princípio democratizante da escolarização de pessoas com deficiência na escola comum, permitiu que a sociedade brasileira observasse a sedimentação de argumentos que indicavam que inclusão diz respeito a um processo que extrapola a oferta de serviços específicos para pessoas com deficiência. Essa extrapolação ocorre porque inclusão materializa o convívio com a diferença e, nesse sentido, quer expressar resistência (inclusive jurídica) às estratégias segregadoras historicamente consideradas naturais para pessoas com deficiência. Foi com a categoria inclusão que inúmeras assimetrias sociais radicadas em questões de classe social, raça, etnia e gênero foram percebidas como inseparáveis das situações que associavam deficiência ao fracasso escolar (Freitas & Santos, 2021Freitas, M. C. de, & Santos, L. X. dos. (2021). Interseccionalidades e a educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Cadernos de Pesquisa, 51, Artigo e07896. https://doi.org/10.1590/198053147896
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).

Mais do que um documento ou marco legal de referência, a PNEEPEI de 2008 também permitiu à sociedade brasileira observar os movimentos políticos da própria educação especial que criticamente já vinha em processo de reconfiguração (Bueno, 2004Bueno, J. G. S. (2004). Educação especial brasileira: Integração/segregação do aluno diferente. Educ.), engendrando esforços para criticar e superar as práticas de segregação total ou parcial de crianças com deficiência que resultaram das chamadas políticas de integração (Mendes, 2006Mendes, E. G. (2006). A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, 11(33), 387-405.).

A perspectiva da educação inclusiva que o documento mencionado trouxe à educação especial não deve ser considerada simplesmente essência de um roteiro com o qual um argumento (da educação inclusiva) “melhora” um conjunto de procedimentos (os da educação especial). Resta inconclusa a tarefa política de afirmar a educação inclusiva como perspectiva que diz respeito à radical transformação da escola.

É importante lembrar que foi da própria pesquisa voltada à educação especial que emergiram os sinais de que as palavras acesso, acessibilidade e inclusão estavam sendo utilizadas com certa uniformização de sentido (Nunes & Nunes, 2008Nunes, L. R. O. P., & Nunes, F. P., Sobrinho. (2008). Acessibilidade. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 269-280). Mediação.; Manzini, 2008Manzini, E. J. (2008). Acessibilidade: Um aporte na legislação para o aprofundamento do tema na área da educação. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 281-290). Mediação.). Entre tantos possíveis, Nunes, Nunes e Manzini são exemplos de autores cuja densidade argumentativa visava a esclarecer e preservar as características inconfundíveis da acessibilidade. Por isso, para iniciar a diferenciação proposta, serão retomados brevemente alguns desses argumentos, com a intenção de demonstrar o que está sendo afirmado.

Acessibilidade

Nunes e Nunes (2008Nunes, L. R. O. P., & Nunes, F. P., Sobrinho. (2008). Acessibilidade. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 269-280). Mediação.) cuidaram de recuperar informações importantes a respeito do uso da palavra acessibilidade, cunhada na década de 1940, reconhecendo que a palavra também fez parte do repertório que configurou as criticáveis estratégias de integração, no âmbito da educação especial, mas que não permaneceu trancada nos estreitos limites dessas estratégias. Acessibilidade foi cumulativamente apropriada pelas práticas de reabilitação, ao mesmo tempo que foi crescentemente utilizada para abrir espaço aos “desenhos livres de barreiras” (Nunes & Nunes, 2008, p. 269). E é esse aspecto que importa salientar aqui.

Na primeira metade da década de 1980, as menções ao campo da acessibilidade enfatizavam barreiras que deveriam ser superadas nos ambientes em geral e na “usabilidade”, como diria Ingold (2015Ingold, T. (2015). Estar vivo: Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Vozes.), de utensílios os mais variados. No transcorrer desse processo, na maior parte do tempo predominou uma dinâmica que insistia em disseminar a palavra acessibilidade, expressando uma “lógica de customização para deficiências” (Nunes & Nunes, 2008Nunes, L. R. O. P., & Nunes, F. P., Sobrinho. (2008). Acessibilidade. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 269-280). Mediação., p. 269).

Até 1985, a legislação brasileira mencionava acesso e acessibilidade sem estabelecer distinções, mas a busca por novos parâmetros não se limitava à recepção de fundamentos legais. Tanto é assim que socialmente houve receptividade a uma perspectiva que se materializou na chegada dos anos 1990, quando emergiu

. . . o planejamento arquitetônico ambiental, de comunicação e de transporte, denominado desenho universal (universal design). Este conceito se constitui em uma evolução do “desenho livre de barreiras”, por destacar a diversidade humana, respeitando dessa forma a diferença entre as pessoas, independentemente de possuírem ou não uma deficiência e garantindo acessibilidade. (Nunes & Nunes, 2008Nunes, L. R. O. P., & Nunes, F. P., Sobrinho. (2008). Acessibilidade. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 269-280). Mediação., p. 270).

A eliminação de barreiras passa a ser um aspecto decisivo na compreensão da tarefa social a ser levada a efeito para garantir acesso. E a obra do arquiteto norte-americano Ronald Mace, criador da categoria universal design, em 1985, passa a ser continuamente citada, inclusive no campo educacional. Mas, de modo geral, acesso e acessibilidade permaneciam utilizados como sinônimos.

O design universal foi seguidamente assimilado como se fosse estratégia de acesso (entrar) e de acessibilidade (usar), apresentando-se desde o início não como recurso exclusivo para pessoas com deficiências, mas sim como técnica para planejar e configurar locais, utensílios, equipamentos e maquinarias para o uso de todos, independentemente das características corporais e das limitações de mobilidade.

Porém, na teia jurídica que estabeleceu os parâmetros legais da acessibilidade, abrangendo a Lei n. 7.853, de outubro de 1989Lei n. 7.853 de 24 de outubro de 1989. (1989). Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências. Brasília, DF. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7853.htm
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, até a Lei n. 10.098, de dezembro de 2000Lei n. 10.098 de 19 de dezembro de 2000. (2000). Estabelece normas gerais e critérios para promoção de acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Brasília, DF. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10098.htm
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, sua razão de ser vai se “especializando”, e, no conjunto, ao mesmo tempo que a norma passa a definir o que são barreiras, essa razão de ser da acessibilidade passa a se expressar mais com regulações adaptativas, ergonômicas e arquitetônicas. Essas dão início a um processo que efetivamente espalha, por exemplo, sinalizadores, placas escritas em Braille, aplicação de podotátil no chão, uso de elevadores, etc. Acessibilidade passa a abordar cumulativamente os recursos afeitos aos processadores, leitores, vocalizadores, ganhando importância expressiva em cada gadget de comunicação e interação.

Manzini (2008Manzini, E. J. (2008). Acessibilidade: Um aporte na legislação para o aprofundamento do tema na área da educação. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 281-290). Mediação., p. 282) deu tratamento analítico muito denso a esse debate, acrescentando aspectos de grande importância. Por exemplo, analisou como o Decreto n. 5.296, de dezembro de 2004, em seu artigo 8º, redefiniu o significado de acessibilidade:

  • I - acessibilidade: condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação e informação, por pessoa portadora (sic) de deficiência1 1 Trata-se da transcrição do decreto. Em respeito aos movimentos políticos de pessoas com deficiência no Brasil e no exterior, não usaria essa denominação que esses mesmos movimentos rejeitam. ou com mobilidade reduzida;

  • II - barreiras: qualquer entrave ou obstáculo que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento, a circulação com segurança e a possibilidade de as pessoas se comunicarem ou terem acesso à informação.

Na análise de Manzini (2008Manzini, E. J. (2008). Acessibilidade: Um aporte na legislação para o aprofundamento do tema na área da educação. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 281-290). Mediação.), é importante entender seu esforço interpretativo para demonstrar que estávamos (estamos) confundindo acessibilidade e acesso e perceber que, em ambos os processos, a meu ver, premissas como as do design universal se descaracterizam.

Acesso e acessibilidade

O Decreto n. 5.296, de dezembro de 2004Decreto n. 5.296, de 2 de dezembro de 2004 (2004). Regulamenta as Leis n. 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e n. 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF., redimensionou o entendimento tanto de acessibilidade quanto de barreiras, porém é muito importante considerar o que Manzini (2008Manzini, E. J. (2008). Acessibilidade: Um aporte na legislação para o aprofundamento do tema na área da educação. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 281-290). Mediação., p. 283) expõe quando analisa o conteúdo desse marco legal e se depara com acesso e acessibilidade tratados como sinônimos. O autor recupera o que há de específico na acessibilidade e pondera que, por exemplo, é possível ter acesso a determinado espaço e esse espaço ser desprovido de recursos de acessibilidade.

Acesso é um vetor de democratização, de ampliação do número de usuários, beneficiários, participantes, votantes, princípio esse que se move sempre com representações da universalização. Já acessibilidade - e Manzini (2008Manzini, E. J. (2008). Acessibilidade: Um aporte na legislação para o aprofundamento do tema na área da educação. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 281-290). Mediação., p. 285) enfatiza isso - diz respeito a produtos concretos que possibilitam usos específicos.

Acessibilidade é percebida acadêmica e socialmente como inseparável das possibilidades tecnológicas, sendo necessário lembrar que o próprio aparato jurídico relacionado ao tema estabeleceu e disseminou conjuntamente a noção de tecnologia assistiva. Nesse sentido, temos um vocabulário próprio. E esse vocabulário, especificamente no universo escolar, foi assimilado como expressão de possibilidades adaptativas as mais diversas, bem como de estratégias para comunicação alternativa, sendo frequentemente referido como essencial ao modus operandi de salas de recursos multifuncionais.

Manzini (2008Manzini, E. J. (2008). Acessibilidade: Um aporte na legislação para o aprofundamento do tema na área da educação. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 281-290). Mediação.) fez uma observação que tem crucial importância para o roteiro argumentativo deste escrito e que demonstra o significado que as palavras têm quando percebidas juntas, usadas como expressão de reciprocidade de conteúdo.

A observação do autor tem como ponto de partida o argumento jurídico:

. . . o Decreto 5.298 inclui, na definição de acessibilidade, as palavras total e assistida ao contemplar autonomia e insere a palavra acesso à informação. Essa inclusão é interessante porque, ao afirmar que acessibilidade pode ser assistiva, indica que, na realidade, é possível a construção de espaços ou equipamentos que somente poderão ser utilizados ou manuseados com a ajuda de um mediador. Um exemplo concreto, em termos de edificação, pode referir-se a um prédio escolar no qual todas as condições de acessibilidade podem estar presentes, mas mesmo assim, alguém necessitará conduzir uma cadeira de rodas . . . ou seja, esse aluno necessitará de um auxiliar ou de um cuidador. (Manzini, 2008Manzini, E. J. (2008). Acessibilidade: Um aporte na legislação para o aprofundamento do tema na área da educação. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 281-290). Mediação., p. 283).

Para a diferenciação que este artigo defende, tal observação do autor lança luz sobre um aspecto de crucial importância.

Em pesquisa recente (Freitas & Gonçalves, 2021Freitas, M. C., & Gonçalves, R. B. (2021). Crianças diagnosticadas com TEA na escola pública: Novos desafios, velhas dicotomias. Horizontes, 39(1), Artigo e021018. https://doi.org/10.24933/horizontes.v39i1.1107
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) foi possível constatar que familiares de crianças diagnosticadas com transtorno do espectro autista (TEA), matriculadas na rede pública de educação da cidade de São Paulo, quando exigiam “inclusão de fato”, referiam-se aos mediadores mencionados na citação de Manzini (2008Manzini, E. J. (2008). Acessibilidade: Um aporte na legislação para o aprofundamento do tema na área da educação. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 281-290). Mediação., p. 283). Expressavam-se como sujeitos coletivos (pais de crianças com TEA) e exigiam aquilo que seguidamente denominavam “inclusão de fato”, reivindicando, com esse argumento, a presença de estagiários, auxiliares de vida escolar (AVE), cuidadores para as crianças diagnosticadas, bem como solicitavam mediação institucional - via atendimento educacional especializado (AEE) - para acesso a serviços terapêuticos.

Com base em várias etnografias realizadas em escolas públicas nos últimos anos (Freitas, 2021Freitas, M. C. (2021). Diversidades culturais, deficiências e inclusão: A potência curricular da educação infantil. Debates em Educação, 13(33), 333-354. https://doi.org/10.28998/2175-6600.2021v13n33p333-354
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; Freitas & Garcia, 2019Freitas, M. C., & Garcia, E. C. (2019). De diagnósticos e prognósticos: Laudos na configuração de muitas experiências de escolarização. Cadernos de Pesquisa, 49(173), 316-340. https://doi.org/10.1590/198053146328
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), foi possível registrar inúmeras situações em que protagonistas do cotidiano escolar descreviam a “inclusão de fato” enumerando recursos de acessibilidade ou recorrendo aos números de matrícula do AEE. E, para demonstrar a inconsistência dessa sinonímia, que tenta confirmar a inclusão com inventários de recursos de acessibilidade e comprovar acessibilidade com números de acesso ao AEE, é oportuno revisitar a proposta de design universal tal como tem sido ressignificada em alguns debates.

Design universal, reapropriações críticas

O design universal tem sido repensado, reconfigurado, de modo a transitar para outras teias de sentidos (Escobar, 2018Escobar, A. (2018). Designs for the pluriverse. Duke University Press.), e não permanece, assim, restrito às imprescindíveis quebras de barreiras (acesso) ou aos modernizadores processos de ampliação de funcionalidades em dispositivos tecnológicos (acessibilidade).

A obra do antropólogo Tim Ingold oferece contribuições muito densas para quem se dedica ao tema educação inclusiva, embora essa não seja uma questão abordada diretamente em seus escritos. E são densas as contribuições desse autor porque ele elabora sua argumentação tomando distância da dicotomia natureza versus cultura, muito presente no cotidiano escolar, uma vez que estudantes com deficiência são abordados frequentemente como se manifestassem déficits naturais.

Com esse distanciamento analítico, Ingold retoma antropologicamente conceitos como os de organismo e ambiente e, para aquilo que importa aqui, oferece contribuição singular para discutir o alcance da categoria design universal. O autor faz essa discussão recuperando a noção de affordances. Explico a seguir.

Ingold (2018Ingold, T. (2018). Back to the future with theory of affordances. Journal of Ethnographic Theory, 8(1/2), 39-44. https://doi.org/10.1086/698358
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) retomou a obra de James Gibson (1966Gibson, J. (1966). The senses considered as perceptual systems. Houghton Mifflin., 1979Gibson, J. (1979). The ecological approach to visual perceptual. Houghton Mifflin.) para estudar sua compreensão ecológica da noção de percepção. Chamou-lhe a atenção especialmente como Gibson evitou reduzir a percepção aos limites internos do corpo (evitando, assim, a ideia do corpo funcionando para perceber) e propôs, alternativamente, não separar corpo e mente, mas sim considerá-los em uma unidade que é indissociável do entorno (Ingold, 2018, p. 39).

Percepção, conclui o autor, diz respeito a estar vivo, movendo-se, permanecendo, interagindo, e, no transcorrer do fluxo que permite reconhecer onde se está e, principalmente, como se está, refere-se também à nossa possibilidade de compreender que, nessas “experiências do estar”, despontam “propiciações”, recursos com interfaces, interações, possibilidades de ação, vias de acessibilidade e sinalizações que configuram o perceber de quem percebe.

Mais do que isso, esses recursos, essas affordances, “produzem não exatamente a percepção, mas o perceptor” (Ingold, 2018Ingold, T. (2018). Back to the future with theory of affordances. Journal of Ethnographic Theory, 8(1/2), 39-44. https://doi.org/10.1086/698358
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, p. 39), o agente concreto que “está presente” e, a seu modo, maneja o entorno. As affordances se apresentam não como objetos em si, mas como potenciais conectores do corpo com o lugar e do lugar com o corpo.

Ingold percebe que, com essa noção de affordance, a percepção é resgatada da prisão do cognitivismo, que é uma tentativa de reduzir as dimensões do humano ao “cerebralismo natural” (Wolff, 2014Wolff, F. (2014). Nossa humanidade. Unesp.). Mais do que isso, a percepção é também reconhecida no modo como o mundo se faz com a intersecção de ambientes, e, nesse fluxo, a relação entre pessoas, não pessoas, objetos e demais formas de vida se torna ecossistêmica (Ingold, 2018, p. 40).

O autor reconhece que, entre os que se valem da noção gibsoniana de affordance, há os que consideram que os objetos tornam-se parte da experiência de percepção porque têm propriedades intrínsecas (como a dureza da pedra, por exemplo); mas, a seu ver, os que percebem o aspecto relacional das affordances são os que apreendem com mais consistência a potencialidade da palavra/conceito. Ou seja, affordances não existem “em si”, mas “se tornam quando percebidas na e com a atividade/presença” (Ingold, 2018Ingold, T. (2018). Back to the future with theory of affordances. Journal of Ethnographic Theory, 8(1/2), 39-44. https://doi.org/10.1086/698358
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, p. 40). Sem a pessoa, não temos affordances.

Essa noção, tal como recuperada por Ingold, vira de cabeça para baixo a expectativa de adaptação que acompanha o vocabulário da acessibilidade e dos recursos adaptativos, pois, como destaca Gláucia Silva (2012Silva, G. O. (2012). Os antropólogos devem, sim, falar de biologia. In C. A. Steil, & I. C. M. Carvalho (Orgs.), Cultura, percepção e ambiente: Diálogos com Tim Ingold (pp. 121-136). Terceiro Nome., p. 134), o autor não se alimentou da categoria affordance de Gibson sem também alimentar-se da noção de “mundo circundante” (Umwelt) de Jacob von Uexküll, e fez dessa visitação à psicologia ambiental e à própria ciência biológica um processo, um método, para compreender não como as pessoas se adaptam ao mundo, mas sim como “atuam” para adaptar o espaço a si. Se é assim, o que significaria para essa perspectiva configurar designs?

Configurar designs

Gatt e Ingold (2020Gatt, C., & Ingold, T. (2020) From description to correspondence: Anthropology in real tima. In W. Gunn, T. Otto, & R. C. Smith (Eds.), Design anthropology: Theory and practice (pp. 139-158). Routledge.) responderam a essa questão e, no modo como o fizeram, acentuaram a dimensão relacional com a qual categorias como affordances ou design devem ser pensadas. É no âmbito relacional do humano que o adjetivo universal pode ser acrescentado ou não. Isso porque a referência ao design exigiu dos autores certo nível de detalhamento, o que possibilitou compreender como emerge a noção de universal nesse modo de pensar.

O ponto de partida é fundamental, pois Gatt e Ingold (2020Gatt, C., & Ingold, T. (2020) From description to correspondence: Anthropology in real tima. In W. Gunn, T. Otto, & R. C. Smith (Eds.), Design anthropology: Theory and practice (pp. 139-158). Routledge.) indicam que pensar designs não é exatamente projetar algo para todos, mas sim com todos. Para que a palavra todos não se torne uma referência evasiva, design diz respeito a analisar fluxos de interdependência, ou seja, modos de fazer que propiciem não somente fazer, mas também fazer junto quando estamos juntos. Não se trata somente do uso individual que certos recursos e apetrechos proporcionam, mas também, principalmente, de entender como a experiência de estarmos juntos suscita interações em que as pessoas mostram que se percebem participantes de uma “comunidade de tempo” (Gatt & Ingold, 2020, p. 143), ou seja, de um ambiente que só se constitui com a presença de, com a interface entre, com sincronias que se estabilizam.

A argumentação dos autores se aproxima muito da elaboração de uma proposta com a qual a noção de design universal se reelabora como design interacional. Eles consideram que design não diz respeito exatamente a inovar, mas sim a improvisar e dar visibilidade aos modos com os quais a convivência (metaforizada por Ingold como habitação) exige “perceber como percebem” e, assim, ter por princípio que todo aquele que está presente está, de fato, tentando adaptar o ambiente a si e fazendo isso no fluxo da convivência com os demais naquela comunidade de tempo, na habitação conjunta de um mesmo cronos.

Os autores retomam imagens que às vezes lembram a argumentação de Friedrich Engels (1946Engels, F. (1946). Dialectics of nature. Lawrence & Wisehart.), às vezes a argumentação de Henri Bergson (2010Bergson, H. (2010). Evolução criadora. Unesp.) e retêm dessas retomadas a possibilidade de representar qualquer um como homo faber. Todos são identificados como autoelaboradores de si, mas não no sentido do organismo que se desenvolve, mas sim do organismo “na malha”, na autoelaboração com, ao lado de, com a mediação de, nos desenhos entrelaçados da meshwork (Gatt & Ingold, 2020Gatt, C., & Ingold, T. (2020) From description to correspondence: Anthropology in real tima. In W. Gunn, T. Otto, & R. C. Smith (Eds.), Design anthropology: Theory and practice (pp. 139-158). Routledge., p. 142).

Antropologicamente, a palavra design tem o histórico de tomar parte das dinâmicas analíticas atentas à convivência, as quais apreendem os ambientes como sistemas de autoelaboração conjugada, em que cada qual, na interação com as propriedades de tudo e com as particularidades de todos, continuamente se (re)fazem.

Convivialidade

Devemos a Escobar (2018Escobar, A. (2018). Designs for the pluriverse. Duke University Press.) uma contribuição superlativa para o adensamento das pesquisas que reconhecem no tema design universal uma questão de fundo para a educação inclusiva. E sua perspectiva é fundamental não somente porque nela é possível encontrar argumentos que propiciam diferenciar acessibilidade de inclusão, mas, principalmente, porque compartilha conosco uma premissa que, ao termo, quer nos ensinar que a busca por um design universal é, em si, insuficiente, pois sua proposta diz respeito ao design não exatamente universal, mas sim “nos termos do pluriverso” (Escobar, 2018).

Quais seriam os “termos do pluriverso”? O que seria o design pluriversal?

Mais do que um neologismo, a noção de pluriverso expressa o engajamento de inúmeras frentes de pesquisa que têm se dedicado internacionalmente a refutar o uso acrítico e generalizado do conceito de desenvolvimento. Trata-se da elaboração de novas epistemologias com as quais se demonstra que o esgotamento planetário em andamento tem um contraponto nas propostas de “decrescimento” (D’Alisa et al., 2015D’Alisa, G., Demaria, F., & Kallis, G. (2015). Degrowth: A vocabulary of a new era. Routledge.) e de desaceleração nos modos de fazer e de viver. Trata-se de uma relativização do universalismo capitalista com a qual se desmitifica a ideia de que estamos construindo um único mundo em que tudo e todos chegarão ao “ponto de abundância”, após “aprender a desenvolver” cada respectivo lugar e cada vida que, em decorrência, é chamada a adquirir competências e habilidades para “fazer parte”.

Uma “tapeçaria global de alternativas” (Kothari et al., 2021Kothari, A., Salleh, A., Escobar, A., Demaria, F., & Acosta, A. (Orgs.). (2021). Pluriverso: Um dicionário do pós-desenvolvimento. Elefante.) reage ao processo histórico que deixou todos os aspectos da existência “sob a custódia da economia”, indicando também que a educação sofre efeitos muito nocivos desse reducionismo, pois tudo e todos participam (com grandes assimetrias sociais) de uma dinâmica em que a existência vai se processando como se o sentido da vida fosse dependente de obter condições para participar produtivamente das demandas do desenvolvimento. Emerge uma argumentação que desafia a ontologia moderna do universalismo (economicista) em prol da multiplicidade de universos possíveis. O avesso dos “modos competentes de progredir” são os “modos relacionais de existência”.

Articula-se uma autocrítica imprescindível para a educação inclusiva:

Melhorar o que já fazemos ou fazê-lo em menor escala não é o bastante. O caminho a ser seguido não é simplesmente tornar as empresas mais responsáveis ou ajustar burocracias regulatórias; tampouco é uma questão de reconhecer a cidadania das ‘pessoas de cor’, ‘idosas’, ‘deficientes’, ‘mulheres’ ou ‘queer’ por meio da política progressista pluralista. . . . [Essa] proposta sempre foi tornar o crescimento econômico e o desenvolvimento ‘sustentáveis e inclusivos’ por meio de tecnologias, mercados e reformas políticas institucionais adequadas. (Kothari et al., 2021Kothari, A., Salleh, A., Escobar, A., Demaria, F., & Acosta, A. (Orgs.). (2021). Pluriverso: Um dicionário do pós-desenvolvimento. Elefante., pp. 40-42).

Qual é o problema? Essa autocrítica quer enfatizar que, na maior parte do tempo, a ideia de inclusão permanece restrita à noção de “conseguir entrar”, “passar a fazer parte”, “estar dentro”. E temos, assim, típicas percepções do direito ao acesso, pressupondo que todos/as podem e devem participar, aceitando que participar dessa noção de desenvolvimento é adquirir (conhecimento, bens, posições pessoais) para “tentar ser uma unidade autônoma”.

Não há dúvida de que todos podem e devem participar, mas é necessário reconhecer que a estrutura operacional das instituições e da esfera pública de modo geral (Sennett, 1988Sennett, R. (1988). O declínio do homem público. Companhia das Letras.) seguidamente converte cada participação em processo individual de aquisição de direitos. Mas, mesmo engendrando inúmeros esforços sociais, ainda assim decorre dessa estrutura uma apropriação generalizada da ideia de acesso que, de fato, esvazia os conteúdos da diversidade, reduzindo a presença de cada qual às representações da tolerância, ou seja, fazendo com que a tarefa (da escola, da empresa, da instituição) seja a de reconhecer que a pessoa tem o direito a participar da produção “ainda que deficiente”, “ainda que mulher”, “ainda que LGBTQIA+”, “ainda que não branco”, e assim por diante.

A premissa é básica: na ordem do crescimento naturalizado, universal e supostamente imprescindível, as deficiências, debilidades, impotências e inconformidades são, na maioria das vezes, analisadas com repertórios que descrevem individualmente a ausência de competências ou a ausência de recursos (próprios, naturais) para usufruir os recursos gerados nas dinâmicas institucionais do crescimento econômico.

Assim, o centro da questão está na necessidade de uma radical reinterpretação dos modos de fazer, associados aos sentidos do saber fazer. E é aqui que a contribuição de Escobar (2018Escobar, A. (2018). Designs for the pluriverse. Duke University Press.) para a ressignificação de design universal se torna referência imprescindível para diferenciar inclusão e, consequentemente, adensar nossa noção de educação inclusiva com os termos do pluriverso.

Politicamente, pluriverso é uma afirmação de que “outro mundo é possível”, e epistemologicamente é também um reconhecimento de que a herança etnocêntrica que acompanhou nosso uso da palavra universal é um legado em permanente atrito com as diversidades. Não são poucas as vezes em que, ideologicamente, religiosamente ou gerencialmente, a universalidade é evocada para indicar que a diferença e a diversidade são “de outro mundo” (Moore, 2022Moore, J. W. (2022). Antropoceno ou capitaloceno? Elefante.).

Pessoas com deficiência vivem permanentemente a experiência do pertencimento a “outro mundo”. Decrescimento, desaceleração e convivialidade são palavras-chave raramente associadas aos esforços necessários para superação dessa situação. Design universal, ou design nos termos do pluriverso, é uma ferramenta imprescindível nesse processo, segundo Escobar (2018Escobar, A. (2018). Designs for the pluriverse. Duke University Press.).

Mediações e mediadores

Arturo Escobar (2018Escobar, A. (2018). Designs for the pluriverse. Duke University Press.) refere-se à necessidade de formular outros modos de estar em cada espaço, retomando a ideia de pessoa constituída em rede, com os fazeres “desenhados” para que a conexão entre todos corresponda à conexão entre interdependências que se reconhecem e se complementam.

A proximidade com os propósitos da educação inclusiva se revela quando a argumentação do autor demonstra que, no seu entender, a presença de cada qual nos espaços institucionais compartilhados não deve ser reduzida ao esforço para que todos adquiram “condições de participar do progresso, do desenvolvimento”, pois essa percepção naturaliza o desenvolvimento (e seus ritmos e acelerações) como roteiro único e homogêneo. Se é homogêneo, projeta-se a inserção de cada um como consequência do esforço individual (ainda que em espaços coletivos) para valer-se da “oportunidade recebida” para equiparar-se (Escobar, 2018Escobar, A. (2018). Designs for the pluriverse. Duke University Press.).

Por isso, o autor retoma o tema design propondo um processo que seja capaz de relativizar o desenvolvimento como ponto de chegada universal e que se deixe adjetivar com a noção de pluriverso, com a qual ele afirma ser possível e necessário assumir a radical interdependência como característica primeira da experiência humana.

Trata-se de reafirmar a densidade ontológica das diferenças, o que não significa retomar a noção de essência com a qual inúmeros reducionismos, preconceitos e capacitismos reduzem a pessoa àquilo que supostamente a natureza configurou como específico. Ao contrário disso, Escobar afirma que a experiência humana é desenhada com a convivialidade, categoria que ousadamente buscou na obra de Illich (1973Illich, I. (1973). Tools for conviviality. Marion Boyars.).

Nesse modo de pensar, está a base fundamental para indicar o que distingue inclusão, que não é preparar para conviver, tampouco recolher para conviver, mas sim forjar new commons, ou seja, reconhecer que é com a convivialidade que nos constituímos. Com ela, não para ela. Nela não entramos, com ela nos fazemos. Inclusão é esse fluxo que transcorre quando já se produziu historicamente o acesso.

A categoria convivialidade, buscada por Escobar em Illich, é também expressa com recursos descritivos que ora lembram argumentos sistêmicos de Gregory Bateson (1993Bateson, G. (1993). Mente e natureza. Francisco Alves.), ora lembram a noção de amanualidade que Álvaro Vieira Pinto (1986Pinto, A. V. (1986). Ciência e existência. Paz e Terra., 2004Pinto, A. V. (2004). O conceito de tecnologia. Contraponto.) ensinou a Paulo Freire, e que diz respeito a redesenhar o “mundo ao alcance da mão”.

O design nos termos do pluriverso toma como ponto de partida a premissa de que ninguém (ou mesmo nada) preexiste às relações que constituem tudo e todos. E desenhar a convivialidade é produzir ecossistemas relacionais, em que a experiência em comum, com seus emaranhamentos e tessituras, rompe com binarismos (produtivo/improdutivo; normal/anormal; hábil/inábil).

O design deixa de ser pensado como universal porque, nos termos da inclusão, da convivialidade, do estar-já-dentro, não faz sentido reposicionar somente a usabilidade dos objetos, dispositivos e perfis arquitetônicos. Se, por um lado, tudo isso é inegavelmente importante, por outro, o design passa a ser pensado como pluriversal, pois reconhece em primeiro plano que as ações humanas são radicalmente interdependentes, expressões necessárias do “fazer junto”, do “fazer com”, do “fazer com a mediação de”.

Nesses termos, mediações e mediadores não são demonstrativos da presença de alguém que deve ser assistido, mas materialidade da dimensão relacional da vida. Não se trata de esvaziar o sentido de universal que acompanha a categoria design universal, mas sim de reconhecer que só pode ser universal o desenho dos ecossistemas inclusivos, sem o risco de fazer com que universalidade represente qualquer prevenção contra a diversidade. Diversidades se complementam com o design pluriversal, e o heterogêneo, nesse caso, não é polo dicotômico do homogêneo.

O design, nos termos do pluriverso, aborda e abrange, fundamentalmente, os desenhos do tempo, das temporalidades, dos fluxos e modos de fazer. E essa é uma questão que exige um breve detalhamento.

Tecnologias temporais

A reabertura de diálogo com Illich levada a efeito por Escobar (2018Escobar, A. (2018). Designs for the pluriverse. Duke University Press.) trouxe para sua reflexão sobre a convivialidade uma questão de fundo, que diz respeito aos modos como uma sociedade orientada para a eficiência se estratifica.

A velocidade é um fator de estratificação entre pessoas, não somente porque na dimensão econômica do cotidiano percebem-se assimetrias de classe social nos tempos de obter, no acesso aos recursos mais velozes, nos tempos de ir e vir, mas também porque os tempos de fazer são decisivos na configuração de deficiências, incapacidades e insuficiências pessoais.

Por isso, a valorização das interdependências, que equivale a recusar tomar ações interdependentes como expressões “do perfeito ajudando o imperfeito”, solicita redesenhar os tempos, não os tempos de cada um, mas aqueles que estabelecem sincronias, ou seja, o fazer ao mesmo tempo, no mesmo espaço, com o mesmo ponto de partida em direção ao mesmo ponto de chegada, o que tem na escola possivelmente seu exemplo mais consistente.

Nos séculos XX e XXI foram intensificadas as dinâmicas de aceleração da existência de modo inseparável das dinâmicas de aniquilação da vida em comum, com o alargamento de uma “paisagem patológica” (Han, 2017Han, B. C. (2017). Sociedade do cansaço. Vozes.) em que o uso de tecnologias, longe de gerar oportunidade de apaziguamento e descanso do labor humano, significou e tem significado a projeção do homo oeconomicus como aquele que vive em crescente processo de aceleração e aquisição de competências resolutivas aceleradas e aceleradoras.

Rosa (2022Rosa, H. (2022). Alienação e aceleração. Vozes., p. 21) chamou atenção para nosso “tecido temporal”, destacando que procuramos produzir um “eu saturado” (p. 63) de uma “lógica performativa” (p. 87) em que a aceleração progressiva tem efeitos tremendos para a vida social, porque, no limite, esse sujeito em permanente estado de aceleração é, simultaneamente, alguém que destrói o entorno destruindo-se a si, e vice- -versa. Enredamo-nos na lógica de que modernizar (melhorar, progredir) é sempre equivalente a acelerar em direção ao que não se tem e tornar obsoleto aquilo que se tem.

Para a educação inclusiva, a questão central não é adquirir ou distribuir “ferramentas cognitivas” para participar desse crescimento econômico. E Escobar (2018Escobar, A. (2018). Designs for the pluriverse. Duke University Press.) e os autores que debatem a “tapeçaria do pluriverso” trataram detida e cuidadosamente dessa questão, apontando saídas políticas e econômicas elaboradas com estratégias denominadas “decrescimento”.

Decrescimento é um denso argumento que demonstra que nossa noção de eficiência (Malghan, 2021Malghan, D. (2021). Eficiência. In A. Kothari, A. Salleh, A. Escobar, F. Demaria, & A. Acosta (Orgs.), Pluriverso: Um dicionário do pós-desenvolvimento (pp. 142-145). Elefante., p. 142) contém uma dinâmica “deficientizadora” (Freitas, 2022Freitas, M. C. (2022). Deficiências e diversidades: Educação inclusiva e o chão da escola. Cortez.) e um modus operandi que esgota todos os modos de viver, humanos e não humanos.

A síntese que Demaria e Latouche (2021Demaria, F., & Latouche, S. (2021). Decrescimento. In A. Kothari, A. Salleh, A. Escobar, F. Demaria, & A. Acosta (Orgs.), Pluriverso: Um dicionário do pós-desenvolvimento (pp. 241-245). Elefante., pp. 241-242) fizeram é elucidativa:

O decrescimento é geralmente associado à ideia de que aquilo que é menor pode ser bonito. No entanto, a ênfase não deve ser apenas no “menos”, mas também nos “diferentes”. . . . O objetivo do decrescimento é escapar de uma sociedade absorvida pelo fetichismo do crescimento. . . . Não é inicialmente um projeto econômico nem mesmo um projeto para outra economia, mas um projeto social que implica escapar da economia como uma realidade material. . . . “Compartilhamento”, “simplicidade”, “convivência”, “cuidado” e “bens comuns” são manifestações primordiais. . . . [Trata-se de] uma transição para sociedades conviviais que vivem de maneira mais simples, em comum e com menos. . . . Trata-se de sair do paradigma do homo Oeconomicus ou “homem unidimensional” de Marcuse, principal fonte de homogeneização planetária e destruição de culturas.

Uma vida inclusiva (Solón, 2019Solón, P. (2019). Alternativas sistêmicas. Elefante., p. 21) é o avesso de um sistema cada vez mais interconectado para não parar de crescer e que se recusa a discutir o que representa viver como se fosse possível crescer sem parar. Uma vida inclusiva concerne à reapropriação das tecnologias com base na premissa de que a diversidade também diz respeito a esse universo tecnológico, universo esse que só aparentemente é universal:

. . . a tecnologia não é antropologicamente universal, seu funcionamento é assegurado e limitado por cosmologias particulares que vão além da mera funcionalidade e da utilidade. Assim, não há uma tecnologia única, mas uma multiplicidade de cosmotécnicas. (Hui, 2020Hui, Y. (2020). Tecnodiversidade. UBU., p. 25).

A expectativa de buscar perfeição técnica pelo aperfeiçoamento de ferramentas e habilidades individuais (Hui, 2020Hui, Y. (2020). Tecnodiversidade. UBU., p. 44) é parte da aceitação acrítica e autodestrutiva de que educar representa potencializar desempenhos cada vez mais acelerados e obter tecnologias cada vez mais atualizadas para cada um “incorporar” o ritmo “necessário” para aprender, compreender e empreender.

O design pluriversal de Escobar sugere ferramentas imprescindíveis para a educação inclusiva, a qual não pode ser pensada como parte orgânica desse mundo em processo de autoaniquilação, mas sim como uma de suas antíteses, uma das soluções sistêmicas para enfrentar seus problemas estruturais. Dentre essas ferramentas imprescindíveis, cabe destacar as tecnologias da desaceleração.

Desaceleração, no âmbito da educação inclusiva, “não” significa reconhecer que alguns só conseguem um fazer vagaroso porque têm outro ritmo. Desaceleração, na virada ontológica do pluriverso, é o reconhecimento de que ninguém é lento em si mesmo, mas somente no âmbito de um fluxo relacional, em que esse alguém se torna lento em relação a alguém ou algo.

Se decrescer significa desprender a vida da armadilha do desenvolvimento, para a escola desacelerar é uma tecnologia de redesenhar fluxos, diminuindo a aceleração constante do todo e com todos, necessariamente com todos, para que a malha relacional tenha nova pauta rítmica, e cada qual, com suas interdependências, faça parte daquele ecossistema manejando ferramentas da convivialidade, não da eficiência. E são ferramentas da convivialidade, por exemplo, cada agir pedagógico sobre os fazeres com todos, sem separar os que “dependem” de mediações e mediadores.

Intervenções nas temporalidades de todos e do todo, abrangendo todo tecido relacional do ecossistema educativo, são tecnologias que adensam as propriedades inclusivas da convivência que caracteriza a experiência escolar.

Desaceleração com todos, não apenas para socorrer “a imperícia da pessoa ineficiente”, é uma das mais sólidas pedagogias inclusivas, porque diz respeito a abordar a escola no seu todo, com as diversidades já convivendo no ecossistema escolar. É essa abordagem que diferencia inclusão de acesso e acessibilidade.

Considerações finais

Acesso, acessibilidade e inclusão são palavras do léxico da educação inclusiva. São inseparáveis, mas não são sinônimas. Têm sido utilizadas com grande embaralhamento de sentido, predominando, no cotidiano escolar, estratégias argumentativas que se valem dos repertórios da acessibilidade para “demonstrar e garantir” o compromisso com a educação inclusiva. Outras palavras recentemente acrescentadas a esse léxico, como desaceleração e convivialidade, pouco ou nada estão presentes em nossos projetos pedagógicos.

Em termos educacionais, em certo sentido, tem ocorrido com a categoria inclusão algo que há bom tempo foi percebido por Martins (1997Martins, J. S. (1997). Exclusão social e a nova desigualdade. Paulus.) em relação ao uso generalizado da categoria exclusão para descrever quase todos os problemas sociais. O sociólogo argumentava que seria impossível compreender as debilidades sociais que descrevíamos sempre com a palavra exclusão, sem colocar no centro dos debates o que entendíamos por inclusão; esta, no seu entender, jamais discutida considerando o que efetivamente acontece.

Permanece atual a perspectiva desse autor, e pode-se acrescentar um dado que pude observar e analisar em situações distintas (Freitas, 2022Freitas, M. C. (2022). Deficiências e diversidades: Educação inclusiva e o chão da escola. Cortez.). A palavra inclusão tem sido utilizada como se fosse autoexplicativa, como se a simples menção ou o uso de sua forma adjetivada, como inclusiva para educação inclusiva, por exemplo, fosse suficiente para expressar seu conteúdo.

A Lei n. 13.146 (2015)Lei n. 13.146 de 6 de julho de 2015. (2015). Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, DF. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
, que é a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, referida também como Estatuto da Pessoa com Deficiência, de importância inquestionável, por óbvio menciona dezenas de vezes a palavra inclusão. Mas não pareceu necessário às inúmeras autoridades que participaram da sua tramitação explicitar a priori o sentido com o qual a palavra emergia na razão de ser daquela Lei, daquele Estatuto.

No preâmbulo dessa Lei, a deficiência é apresentada não mais como atributo pessoal, nem como condição estática e exclusivamente biológica. O pressuposto indicado no documento é o de que deficiências resultam da interação entre limitações individuais e barreiras. Deficiência “passa a ser o resultado da falta de acessibilidade que a sociedade e o Estado dão às características de cada um” (p. 12, preâmbulo).

O texto destaca que sua grande “inovação” está nesse deslocamento interpretativo, reconhecendo a deficiência relacionada “ao meio”, e esse meio conjugado aos impedimentos pessoais. Mas é surpreendente constatar que um texto elaborado para balizar a inclusão tenha um título específico para acessibilidade (o Título III) e não tenha um específico para a inclusão. No todo, ainda que as barreiras, a sociedade, o meio despontem como expressões de reconhecimento de que a singularidade individual não esgota o que é necessário para abordar direitos da pessoa com deficiência, predomina um “modo de usar inclusão” que se explica e comprova com recursos de acessibilidade, com normas técnicas e operacionais e, principalmente, com estratégias adaptativas. Essas, aliás, correspondem ao conteúdo mais denso desse Estatuto, que conjuga muitos avanços políticos. Mas qual a diferença de fundo que a categoria inclusão traz em seu conteúdo epistemológico, político e pedagógico?

Tal como este artigo reconheceu no início, é muito importante e consistente a defesa que Manzini (2008Manzini, E. J. (2008). Acessibilidade: Um aporte na legislação para o aprofundamento do tema na área da educação. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 281-290). Mediação.) faz do que é específico na acessibilidade, inclusive porque o autor demonstra interfaces entre acessibilidade e a presença de mediadores/mediações, focalizando desde um ângulo muito próximo ao chão da escola até a complexidade da questão. Do mesmo modo é importante considerar o detalhamento que este escrito buscou na análise de Nunes e Nunes (2008Nunes, L. R. O. P., & Nunes, F. P., Sobrinho. (2008). Acessibilidade. In C. R. Baptista, K. R. M. Caiado, & D. M. Jesus (Orgs.), Educação especial: Diálogo e pluralidade (pp. 269-280). Mediação.), que pormenoriza o conceito de acessibilidade, desdobrando aspectos que permitem compreender seus nexos com as tecnologias assistivas, de informação e múltiplas ergonomias.

Em ambos os escritos, pode-se perceber o esforço analítico para diferenciar acessibilidade de acesso, bem como para evidenciar que, muitas vezes, a referência às quebras de barreiras é apresentada de modo a confundir uma categoria com a outra. Não é casual que esses movimentos de análise comparativa tenham abordado o tema design universal, pois se trata de uma perspectiva que traz em seu bojo aspectos com potencial para consolidar o acesso e aspectos para ampliar o alcance das estratégias de acessibilidade.

Mas o design universal ganhou destaque neste artigo porque tal tema permite compreender como algo de específico em termos de inclusão emerge e se adensa quando são considerados os fluxos de interdependência com os quais as pessoas se configuram de modo relacional. Nesses fluxos, uma reorientação ontológica da noção de design se processa, e o que se torna imprescindível passa a redesenhar os tempos de todos com todos e os espaços como sistemas de concatenação do fazer juntos. Se são redesenhados os fluxos, emerge o pluriverso.

Essa é a diferença estrutural da inclusão, que incide sobre a escola, e não sobre deficiências e diversidades em específico. Incide sobre o “em comum”, e é por isso que o design em termos inclusivos deixa de ser universal para ser a expressão das diferenças que se complementam como um pluriverso, sem estratificações performáticas instituídas pela eficiência.

A escola, nesse sentido, pode ser pensada (ou sonhada) como um ecossistema inclusivo, uma rede de redes em que se enredam as diferenças de modo complementar, e pessoas objetiva e subjetivamente se complementam.

Complementação é parte do repertório das interdependências, e com estas o todo é per- manentemente repensado, redesenhado para que, sistemicamente, tudo o que se perceba como fluxo inclusivo seja adensado. É um processo que não termina, não fica pronto, mas se adensa continuamente.

Inclusão não é a conquista do direito de entrar, isso é acesso, é democratização, universalização de direitos. Tampouco é base tecnológica para usar, manejar, comunicar, deslocar, isto é acessibilidade. Inclusão é a convivialidade em si, dimensão da internalidade já em processo, já conquistada, já revelando a complexidade das diferenças quando juntas. É intervenção permanente no todo.

Equivale, por exemplo, a modificar o modo como todos produzem e consomem energia, para que não falte água para tudo, para todos e para cada um. É intervenção nos modos de fazer num fluxo do todo para a parte.

Por isso, quantitativamente, temos números e exemplos mais expressivos de acesso e acessibilidade do que de inclusão. Embora essa palavra seja onipresente e usada para “demonstrar” acesso ou acessibilidade, as experiências de educação inclusiva em si são embrionárias porque dependem do encadeamento sistêmico de outros fatores.

Vale para a educação inclusiva o mesmo que Solón (2019Solón, P. (2019). Alternativas sistêmicas. Elefante., p. 13) considerou para a atual situação que enfrentamos enquanto humanidade:

. . . estamos vivendo uma crise sistêmica que só pode ser resolvida com alternativas sistêmicas. O que a humanidade enfrenta não é só uma crise ambiental, econômica, social, geopolítica, institucional e civilizatória. Essas crises são parte de um todo. É impossível resolver qualquer uma delas sem abordar conjuntamente todas as outras. Elas se retroalimentam. As estratégias unidimensionais não conseguirão resolver essa crise sistêmica. Pelo contrário, podem agravá-la.

Educação inclusiva não é uma estratégia unidimensional. É uma das alternativas sistêmicas necessárias para o enfrentamento do grave momento que vivemos como humanidade. Quanto mais confundirmos inclusão com acesso e acessibilidade, mais difícil será compreender que educação inclusiva, escolas como ecossistemas inclusivos dizem respeito não a tornar o ensino mais eficiente, mas sim a engendrar outra sociedade, outro mundo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2023
  • Aceito
    27 Abr 2023
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