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AS CONTRIBUIÇÕES DE CASTILHO PARA AS LETRAS E AS ARTES EM SÃO MIGUEL (1847-1850)

CASTILHO’S CONTRIBUTIONS TO LETTERS AND THE ARTS IN SÃO MIGUEL (1847-1850)

LAS CONTRIBUCIONES DE CASTILHO A LAS LETRAS Y LAS ARTES EN SÃO MIGUEL (1847-1850)

CASTILHO ET SES CONTRIBUTIONS À LA LITTÉRATURE ET AUX ARTS SUR L’ÎLE DE SÃO MIGUEL (1847-1850)

Resumo

No presente artigo, discutem-se a trajetória e as contribuições de António Feliciano de Castilho para as letras e as artes na Ilha de São Miguel, nos Açores, no período de 1847 a 1850. Trata-se de um estudo histórico-documental e bibliográfico de dados garimpados em diferentes fontes, como jornais, correspondências, artigos e livros. Destaca-se que a presença desse intelectual nos Açores foi importante para o desenvolvimento cultural, artístico e instrutivo da ilha com a promoção de atividades diversas, como a criação da Sociedade das Letras e Artes, a realização de exposições da indústria micaelense, a atuação como tipógrafo e redator de periódicos e, em especial, a abertura de escolas para atender as populações menos favorecidas com o Método Português de Leitura.

CULTURA ESCOLAR; ILHA DE SÃO MIGUEL; ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO; EDUCAÇÃO POPULAR

Abstract

The present article discusses António Feliciano de Castilho’s career path and contributions to letters and the arts on the island of São Miguel in the Azores, from 1847 to 1850. This is a historical-documentary and bibliographic study, based on data collected from different sources such as newspapers, correspondence, articles and books. We emphasize that the presence of this intellectual in the Azores was important for the cultural, artistic and educational development of the island with the promotion of diverse activities such as the creation of the Sociedade das Letras e Artes [Society of Letters and the Arts], holding exhibitions of the industry of São Miguel, his work as a typographer and editor of periodicals and, in particular, the opening of schools to serve the less privileged communities based on the Método Português de Leitura [Portuguese Reading Method].

SCHOOL CULTURE; SÃO MIGUEL ISLAND; ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO; POPULAR EDUCATION

Resumen

En el presente artículo, se discute la trayectoria y las contribuciones de António Feliciano de Castilho para las letras y a las artes en la isla de São Miguel, en las Azores, en el período de 1847 a 1850. Se trata de un estudio histórico-documental y bibliográfico de los datos extraídos en diferentes fuentes, como periódicos, correspondencia, artículos y libros. Es de destacar que la presencia de este intelectual en las Azores fue importante para el desarrollo cultural, artístico y educativo de la isla con la promoción de diversas actividades, como la creación de la Sociedade das Letras e Artes [Sociedad de Letras y Artes], la realización de exposiciones de la industria de São Miguel, la actuación como tipógrafo y redactor de periódicos y, en especial, la apertura de escuelas para atender a las poblaciones menos favorecidas con el Método Português de Leitura [Método de Lectura Portugués].

CULTURA ESCOLAR; ISLA DE SÃO MIGUEL; ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO; EDUCACIÓN POPULAR

Résumé

Cet article présente le parcours d’António Feliciano de Castilho et ses contributions à la littérature et aux arts sur L’île de São Miguel, aux Açores, entre 1847 et 1850. Il s’agit d’une étude historique documentaire et bibliographique de données provenant de différentes sources: journaux, correspondance, articles et livres. La présence de cet intellectuel aux Açores y est perçue comme décisive pour ce qui est du développement culturel, artistique et éducatif de l’île grâce à sa promotion d’activités diverses, telles que la création de la Sociedade das Letras e Artes [Société des lettres et des arts], l’organisation d’expositions sur l’industrie de l’île, grâce aussi à son travail d’imprimeur et d’éditeur de revues et, plus particulièrement, à la création d’écoles pour les populations les moins favorisées dans lesquelles sa Método Português de Leitura [Méthode de lecture en langue portugaise] était utilisée.

CULTURE SCOLAIRE; ÎLE DE SÃO MIGUEL; ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO; ÉDUCATION POPULAIRE

O PRESENTE ARTIGO TEM O PROPóSITO DE RESPONDER à QUESTãO: QUAIS AS CONTRI- buições de António Feliciano de Castilho para as letras e as artes na Ilha de São Miguel nos anos de 1847 a 1850, “período pouco valorizado pela maioria dos seus biógrafos” (Riley, 2018Riley, C. G. (2018). António Feliciano de Castilho na Ilha de São Miguel (1847-1850). In Actas do 2º Colóquio “Saudade Perpetua” (pp. 18-29). Cepese., p. 20), quando fixou residência nos Açores? Esse período corresponde a uma “fase da sua vida em que sua escrita saltou para fora do campo estritamente literário, desdobrando-se por variados domínios” (Riley, 2018Riley, C. G. (2018). António Feliciano de Castilho na Ilha de São Miguel (1847-1850). In Actas do 2º Colóquio “Saudade Perpetua” (pp. 18-29). Cepese., p. 20) - da agricultura, das artes, e, principalmente da instrução pública. Nesse sentido, o estudo justifica-se pela relevância de se resgatar a memória desse educador e escritor português dos oitocentos que marcou a vida social e cultural de Ponta Delgada como tipógrafo e redator, como realizador de exposições industriais e fundador da Sociedade dos Amigos das Letras e Artes micaelense e, principalmente, como promotor do movimento em prol da instrução primária por meio do Método de Leitura Repentina.1 1 Inicialmente o método criado por Castilho foi denominado de Leitura Repentina (1ª edição); em seguida, de Método Castilho (2ª edição); e, na 3ª e 4ª edições, de Método Português. Portanto, neste texto, as diversas expressões são usadas com o mesmo sentido.

Trata-se de um estudo de abordagem histórico-documental e bibliográfica. A recolha dos dados foi feita em diferentes fontes, incluindo várias instituições de Lisboa e de Ponta Delgada, como jornais, correspondências, artigos e livros. Com base nessas fontes, salientamos que a sua presença nos Açores foi importante para o desenvolvimento cultural, artístico e instrutivo da Ilha; portanto, a influência de Castilho para os insulanos se evidencia, sobretudo, na promoção de atividades diversas, com destaque para a abertura de escolas em todos os sítios voltados para as populações menos favorecidas, a partir do Método Português de Leitura, espaços de ensino que cresceriam em número, estrutura e funcionamento, configurando uma “rede” de escolas em que seu método teve ampla repercussão, seja no território português, seja no Brasil.

Esses resultados sustentam a posição histórica de Castilho como um dos mais importantes intelectuais do século XIX e indicam como a sua passagem por São Miguel contribuiu com o cotidiano dos insulares. Desse modo, este trabalho se faz, ainda mais relevante na medida em que os estudos sobre o educador, tanto em Portugal como no Brasil, são lacunares e se centram mais nas suas atividades de literato do que de pedagogo, pois, ao conceber e pôr em prática seu método de leitura (Cunha, 2014Cunha, A. C. C. da. (2014). Presença de A. F. de Castilho nas letras oitocentistas portuguesas: Sociabilidades e difusão da escrita feminina [Tese de doutorado]. Universidade Federal Fluminense.; Albuquerque, 2019Albuquerque, S. L. de. (2019). Métodos de ensino de leitura no Império brasileiro: António Feliciano de Castilho e Joseph Jacotot [Tese de doutorado]. Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-19112019-163229/pt-br.php
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/4...
), trouxe importantes contribuições para o campo da história da educação e da história da cultura brasileira e portuguesa; isto é, o ensino proposto por Castilho “busc[ou] romper com o velho processo de soletração e com as práticas ‘tradicionais de punição física’ como ‘atrativo’ para o aprendizado” (Vieira, 2017Vieira, Z. P. P. (2017). Cartilhas de alfabetização no Brasil: Um estudo sobre trajetórias e memória do ensino aprendizagem da língua escrita [Tese de doutorado]. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia., p. 87). Nessa lógica, Castilho pretendia apresentar um modelo de escola livre de castigos corporais e aprazível no processo de aprendizagem da leitura via ensino simultâneo (Magalhães, 2003Magalhães, J. P. de. (2003). Castilho, António Feliciano de. In A. Novóa, Dicionário de Educadores Portugueses (pp. 330-352). Edições ASA.).

António Feliciano de Castilho (Lisboa, 1800-1875) foi um escritor romântico português e pedagogo que criou o Método Português de Leitura. Desde muito cedo, o 1º Visconde de Castilho enfrentou vários problemas de saúde. No entanto essa limitação não foi um impeditivo para se estabelecer “como um dos mais esplêndidos videntes da sua geração” (Deusdado, 1995Deusdado, F. (1995). Educadores portugueses. Lelo & Irmãos., p. 368) nem para se transformar em um propagador da ideia, ao defender que, por meio de espaços, artefatos, métodos e modos de ensino adequados e com professores capacitados, o ensino da leitura e da escrita se concretizaria em tempo rápido e aprazível a toda a gente (sexo, faixa etária, profissão, etc.). Segundo Boto e Albuquerque (2018Boto, C., & Albuquerque, S. L. de. (2018). Entre idas e vindas: Vicissitudes do método Castilho no Brasil do século XIX. História da Educação, 22(56), 16-37., p. 18), essas luzes na instrução primária são produtos de reformas e legislações que “apresentava[m]-se como uma proposta de escola moderna, caracterizada pela função modeladora, racionalizada, normativa e reguladora da cultura letrada”.

Na primeira parte, tratamos da sua chegada aos Açores e das dificuldades enfrentadas para se estabelecer física e materialmente. Em seguida, destacamos o seu envolvimento com a imprensa como redator do jornal O Agricultor Micaelense2 2 A primeira fase compreende de 1843 a 1845, e a segunda, de 1848 a 1852. e suas ações como promotor da exposição da agricultura e fundador da Sociedade dos Amigos das Letras e Artes de São Miguel,3 3 Essa sociedade, criada em São Miguel, vinha ao encontro de outras criadas por Castilho, como a Sociedade dos Amigos da Primavera e da Arcádia Lusitana. Seu interesse por esse tipo de agremiação foi inspirado em seu pai, Dr. José Feliciano de Castilho, que havia fundado a Sociedade dos Amigos das Letras e das Artes de Coimbra. instituição em que Castilho promoveu uma ampla campanha de instrução popular. Com esse fim, criou o Método Português de Leitura, que teve ampla repercussão (positiva e negativa) tanto em Portugal quanto no Brasil, sendo que os opositores alegavam que “ele havia transformado a escola em um território de experimentações pedagógicas, negando as tradições nacionais” (Boto & Albuquerque, 2018Boto, C., & Albuquerque, S. L. de. (2018). Entre idas e vindas: Vicissitudes do método Castilho no Brasil do século XIX. História da Educação, 22(56), 16-37., p. 21) e que, do mesmo modo que os alunos aprendiam rápido, esqueciam, haja visto que o “ensino com canto, marchas, palmas e ritmo, não preparava os alunos para a dureza da vida” (Boto & Albuquerque, 2018Boto, C., & Albuquerque, S. L. de. (2018). Entre idas e vindas: Vicissitudes do método Castilho no Brasil do século XIX. História da Educação, 22(56), 16-37., p. 21).

O mar embala a esperança de uma vida nova

No dia 28 de agosto de 1847, em uma tarde nublada de outono, depois de dez dias sob as ondas do Atlântico, aportou, no Cais da Alfândega, a Escuna Micaelense, em Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, nos Açores, António Feliciano de Castilho, “embrulhado num gabão azul, [e] a esposa trazendo ao colo uma criancinha, cercada de outros três filhos” (Castro, 1924Castro, A. de B. B. (1924). António Feliciano de Castilho: Consagrado apóstolo da Instrução Pública quando integrado a Ilha de São Miguel promove a mais intensa campanha em prol das letras, das artes e da agricultura regional (1847-1850). Tipografia do Diário dos Açores., p. 4), fixando ali residência e deixando amigos, a vida agitada de Lisboa e a redação da Revista Universal Lisboense, na esperança de encontrar meios para manter a si e à sua família.

A decisão para essa mudança abortou a de fixar-se no Brasil, onde já era conhecido pelas suas obras literárias e mantinha relações familiares. Segundo ele, “hesit[ara] algum tempo entre as atrações do Brasil e as de Açores; [mas] os Açores por mais a mão prevaleceram” (Castilho, 1847Castilho, A. F. de. (1847). Primeiros exercícios de leitura, aos discípulos das escolas da Sociedade dos Amigos das Letras de São Miguel. Tipografia de Castilho., p. 34), mesmo que o seu irmão, José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha, tivesse emigrado para o Brasil em 1846 para atuar como advogado, tornando-se conhecido por outras atividades, entre elas autor de obra escolar publicada pela primeira vez na província de Alagoas e adotada em várias outras localidades do Brasil: o Íris clássico.

A preferência por São Miguel deveu-se ao convite de trabalho de Duarte Borges da Câmara Medeiros, Visconde da Praia, chefe do Partido Cartista local,4 4 Movimento de tendência mais conservadora do iluminismo português, que surgiu depois da revolução de 1820, centrado na Carta Constitucional de 1826 e aprovado por D. Pedro IV. para assumir, pela sua experiência junto à Revista Universal, O Cartista dos Açores (1845-1849), jornal que enfrentava o Açoriano Oriental (1850Açoriano Oriental. (1850, 13 julho). (806).), criado em 18355 5 Esse jornal é o mais antigo em circulação em Portugal e um dos dez de todo o mundo em publicação contínua e regular com o mesmo nome. e impresso pelos setembristas,6 6 Partido de oposição ao cartismo que se constituiu na corrente mais de esquerda do movimento liberal em Portugal, cujo nome origina-se no grupo que apoiou a Revolução de Setembro. grupo político opositor. Para tanto, asseguravam-lhe auxílio financeiro, moradia e outros apoios para si e para sua prole (Riley, 2018Riley, C. G. (2018). António Feliciano de Castilho na Ilha de São Miguel (1847-1850). In Actas do 2º Colóquio “Saudade Perpetua” (pp. 18-29). Cepese., p. 23); mas a proposta não surtiu, em princípio, o efeito desejado, uma vez que ele não aceitou “o papel de grande protagonismo político” (Riley, 2018Riley, C. G. (2018). António Feliciano de Castilho na Ilha de São Miguel (1847-1850). In Actas do 2º Colóquio “Saudade Perpetua” (pp. 18-29). Cepese., p. 25) oferecido pelo seu “patrocinador”, que, em represália, o deixaria em “solidão, ao ócio, ao desamparo e à falta total de recursos que marcaram o princípio de sua estada . . . contacto inicial com a região . . . desastroso” (Albuquerque, 2023Albuquerque, S. L. de. (2023). Métodos de ensino de leitura no Império brasileiro. Editora Unesp., p. 73). Isso posto, evidencia que, “Na época em que Castilho chegou a S. Miguel, a crispação política entre cartistas e setembristas marcava o mau ambiente com que a sociedade local, na sua maioria progressista, acolheu o literato, cuja simpatia pelo cartismo era pública e precedia-o” (Centro do Conhecimento dos Açores, 2008Centro do Conhecimento dos Açores. (2008). Enciclopédia dos Açores. Direção Geral de Cultura., p. 76).

Todavia a sua saída de Lisboa foi motivo de “vergonha” e indignação para um dos seus admiradores, como se expressa em artigo publicado n’O Cartista dos Açores, em 1847, ao julgar inadmissível que “um dos maiores gênios de Portugal, o mais fecundo e mimoso engenho poético . . . , o escritor primoroso e clássico da formosa língua, . . . o mais português e afável coração” buscara sobrevivência longe “dessa terra tão adversa” por falta de meios. Isso retalhava o coração de toda “uma nação já tão afrontada!”, levando-o a “procurar o pão de cada dia através do Oceano!!!” (Vergonha, 1847Vergonha. (1847, 2 setembro). O Cartista dos Açores, (70), 280., p. 280).

Ao desembarcar “triste e abatido” (Castro, 1924Castro, A. de B. B. (1924). António Feliciano de Castilho: Consagrado apóstolo da Instrução Pública quando integrado a Ilha de São Miguel promove a mais intensa campanha em prol das letras, das artes e da agricultura regional (1847-1850). Tipografia do Diário dos Açores., p. 4), ninguém o esperava, como certamente imaginava pelas promessas que lhes foram feitas. Tal situação levou os “ilustres recém-chegados a [se] informarem de Hospedaria onde acolher-se; indica[ndo]-lhe[s] a da Praça Velha, [que] por mais modesta [que fosse], para aí se dirigiram [permanecendo] por três longos dias decorridos, sob a mais amarga desilusão” (Castro, 1924Castro, A. de B. B. (1924). António Feliciano de Castilho: Consagrado apóstolo da Instrução Pública quando integrado a Ilha de São Miguel promove a mais intensa campanha em prol das letras, das artes e da agricultura regional (1847-1850). Tipografia do Diário dos Açores., p. 4); isto é, foi dada mais atenção aos presentes trazidos de Portugal, destinados ao Visconde da Praia, “um belo cavalo Hanveriano e uma linda e curiosa coleção de pássaros da África” (O Cartista dos Açores, 1849O Cartista dos Açores. (1849, 16 julho). (109), 30., p. 30), que à própria chegada de um dos mais ilustres escritores portugueses à época.

Destarte, apareceu-lhe “um tal Gil” (Castro, 1924Castro, A. de B. B. (1924). António Feliciano de Castilho: Consagrado apóstolo da Instrução Pública quando integrado a Ilha de São Miguel promove a mais intensa campanha em prol das letras, das artes e da agricultura regional (1847-1850). Tipografia do Diário dos Açores., p. 4), empregado de Câmara Medeiros, que, depois de “aplanadas as primeiras escabrosidades, graças a [à] oficialidade, lhe oferece[u] uma casa de dois pisos na Rua do Lameiro (atual Rua Castilho), onde passou a residir durante todo o período em que esteve em São Miguel” (Castro, 1924Castro, A. de B. B. (1924). António Feliciano de Castilho: Consagrado apóstolo da Instrução Pública quando integrado a Ilha de São Miguel promove a mais intensa campanha em prol das letras, das artes e da agricultura regional (1847-1850). Tipografia do Diário dos Açores., p. 4) (Figura 1). Nessa rua, nasceu Antero de Quental e morava o professor de origem francesa monsieur Lambert, o qual lhe apresentou a obra de Lemare, o Cours de Lecture, adaptado para a língua portuguesa por Castilho, obra que serviu de base para a criação do Método Português.

Figura 1
Residência de Castilho na Ilha de São Miguel (1847-1850)

Para Silva (2000Silva, S. S. (2000). Aspectos da vida social e cultural micaelense na segunda metade do século XIX. Arquipélago: História, 4(2), 299-348., p. 321), Castilho, ao chegar em Ponta Delgada, foi recebido com algumas desconfianças pelas relações com os cartistas, os quais almejavam o caráter político do jornal em defesa do partido, em vez de uma imprensa literária nos moldes da Revista Universal, como defendia António Feliciano. Este, ao não aceitar a agenda política, não “só azedou irremediavelmente as suas relações com o Visconde da Praia, como [também foi condenado] ao ostracismo pelos Setembrista[s]” (Riley, 2018Riley, C. G. (2018). António Feliciano de Castilho na Ilha de São Miguel (1847-1850). In Actas do 2º Colóquio “Saudade Perpetua” (pp. 18-29). Cepese., p. 25); entretanto, aos poucos, “acabaria por se impor como literato e ideólogo romântico, marcando várias gerações de insulares” (Silva, 2000Silva, S. S. (2000). Aspectos da vida social e cultural micaelense na segunda metade do século XIX. Arquipélago: História, 4(2), 299-348., p. 321) que participavam de tertúlias em sua casa, como, por exemplo, “Bernardino José de Sena Freitas, Alfredo Lambert, e os jovens Filipe Leite, Carlos Maria Gomes Machado, José de Torres e Felipe Quental” (Riley, 2018Riley, C. G. (2018). António Feliciano de Castilho na Ilha de São Miguel (1847-1850). In Actas do 2º Colóquio “Saudade Perpetua” (pp. 18-29). Cepese., p. 25). Dentre esses jovens, Filipe Leite “desde os dezenove anos [atuou] como secretário e dedicadíssimo auxiliar do mestre na cruzada da instrução” (Revista de Instrução Pública para Portugal e Brasil, 1857Revista de Instrução Pública para Portugal e Brasil. (1857). (3)., p. 11), em Ponta Delgada e Lisboa, sendo o redator, junto com Castilho, da Revista para a Instrução para Portugal e Brasil (1857Revista de Instrução Pública para Portugal e Brasil. (1857). (3). a 1858) e autor de Exercícios de Leitura Manuscrita para uso das Escolas pelo Método Português (1854) e dos Ramalhetinhos da puerícia (1854), indicados como textos complementares à aplicação do Método Português.

Castilho, com as suas relações “azedadas” com Câmara Macedo, responsável pelo convite para ir aos Açores, encontrava-se sem meios de manter-se na Ilha. André do Canto defendia que a fome e a pobreza seriam minimizadas entre os ilhotas cultivando-se a terra, motivo que o levou a criar, em 1843, a Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, visando a melhorar o solo e inserir a cultura de plantas adaptáveis ao clima local, como a laranja, o chá, o abacaxi, o tabaco, entre outros. Com a finalidade de divulgar as técnicas de plantio e de colheita e outros assuntos agrícolas, fundou o jornal O Agricultor Micaelense (1843), paralisado em 1845, e convidou Castilho, em 1848, por um estipêndio de 800$000 réis, para reeditá-lo.

A presença de Castilho à frente d’O Agricultor Michaelense (1848-1850) emprestou a esta publicação de cariz agrarista uma tonalidade literária que a coloca, decerto, entre um dos mais interessantes casos da imprensa periódica científica do Portugal de meados de Oitocentos. Foi nas páginas deste jornal (onde, pela primeira vez em S. Miguel, a gravura foi introduzida na arte tipográfica), que Castilho publicou sob a epígrafe Serões do Casal um conjunto notável de textos ilustrativos da sua utopia social ruralista, depois reunidos e impressos em opúsculo com o sugestivo título de Felicidade pela Agricultura. (Centro do Conhecimento dos Açores, 2008Centro do Conhecimento dos Açores. (2008). Enciclopédia dos Açores. Direção Geral de Cultura., p. 65).

Sobre a sua contratação, Castilho, em carta enviada à família, diz que:

Agora o que mais de notar (e isto aqui só para nós) é que esta proposta de redação tão útil no fundo e delicadíssima em todas as cláusulas que a acompanham, me foi feita por gente do partido Setembrista e do mais exaltada . . . pelo que, com mais probabilidade, infiro eu, que negócio, e que eles pecuniariamente vão ter perda, e no qual todavia mostrassem mais empenho que eu . . . foi decidido por motivos políticos; a saber: prosperar uma bofetada estrondosa no focinho do centro ou maioral do partido cartista aqui, por este não ter feito alguma coisa comigo depois de haver arrotado tanto. (Castilho, 1910Castilho, A. F. de. (1910). Cartas. In A. F. de Castilho, Obras completas de A. F. de Castilho (v. 60, pp. 40-92). Empresa da História de Portugal., p. 53, grifo nosso).

A partir do envolvimento de Castilho na redação desse jornal e com a sociedade que o publicava, iniciou-se de forma mais contundente a sua ligação às letras e às artes em São Miguel, uma vez que o lugar propiciava, em virtude de uma economia sustentada pela agricultura e pela pesca, preferencialmente, empreendimentos de toda ordem, como uma intervenção pedagógica na sociedade açoriana que pensasse a escola e os saberes elementares (ler, escrever e contar) para garantir formação e esclarecimento de crianças e jovens pobres (meninos e meninas), bem como a sua sobrevivência. O educador deixava claro seu posicionamento político via instrução ao afirmar que: “A terra nos fará ricos; a instrução, poderosos; a moralidade, unidos. A riqueza, o poder, a fraternidade, que são a civilização, felizes” (Castilho, 1847Castilho, A. F. de. (1847). Primeiros exercícios de leitura, aos discípulos das escolas da Sociedade dos Amigos das Letras de São Miguel. Tipografia de Castilho., p. 22).

Castilho e as letras e artes de São Miguel

Corria o ano de 1847, quando aportou às plagas desta mimosa e rica Ilha, onde pela primeira vez vimos raiar a aurora matinal um homem cujo coração chamejava ardentemente no desejo da difusão das letras por todas as classes da sociedade, ainda as mais desfavorecidas da fortuna, cuja ambição era a de ligar o trabalho a instrução e cuja mira, se fixava no desenvolvimento da moral do povo. Esse homem . . . era cego, mas a luz fugindo-lhe dos olhos, concentrou-se-lhe toda no espírito, para dele se espargir em jorros que desatassem a cegueira de tantos enternobrecidos. Era António Feliciano de Castilho, o cego de quem vos falo. O seu nome digno de ser escrito com caracteres de ouro nas páginas da história da literatura [e da Educação] pátria, jamais deixará de fazer eco nos magnânimos corações dos ilustrados micaelenses. (Casa Nova, 1877Casa Nova, J. A. dos S. (1877). Discurso sobre o desenvolvimento que teve a instrução em S. Miguel com a vinda do Exmo. Sr. Visconde António Feliciano de Castilho., p. 12).

Como evidencia Casa Nova (1877)Casa Nova, J. A. dos S. (1877). Discurso sobre o desenvolvimento que teve a instrução em S. Miguel com a vinda do Exmo. Sr. Visconde António Feliciano de Castilho., as ações de Castilho, durante o seu curto mas significativo tempo dedicado à história dos Açores, de Portugal, e, em especial, da educação desse país e do Brasil, defenderam e promoveram a difusão das letras e das artes agrícolas, como argumentavam os setembristas, e a relação entre o trabalho e a instrução como perspectiva de inserir homens e mulheres no desenvolvimento, no progresso e na formação moral da sociedade açoriana.

Como redator d’O Agricultor Micaelense (1948), introduziu mudanças e inovações na arte tipográfica dos Açores, com o uso das gravuras em madeira, e marcou a sua trajetória como impressor ao criar a Tipografia Castilho, nome que foi alterado em seguida para Tipografia da Rua das Artes, n. 60. Para desenvolvê-la, importou manuais e ferramentas de cujos prelos publicou Noções rudimentares para uso das escolas dos amigos das letras de São Miguel (1850Ofício da Sociedade das Letras e Artes de São Miguel. (1850). Arquivo e Biblioteca de Ponta Delgada. Caixa 5.) e Felicidade pela agricultura (1849) (Tengarrinha, 2013Tengarrinha, J. (2013). Nova história da imprensa portuguesa das origens a 1865. Círculo das Letras.). À frente desse jornal, privilegiou os aspectos literários e expressou o papel da instrução como meio para o alcance do progresso social e cultural, posto que, “como livro do povo”, pela sua barateza, esses impressos contribuiriam para informar e incentivar práticas leitoras a todas as pessoas e comunidades.

A margem destes aspectos de índole técnica manifestamente relevantes para a História da Imprensa nos Açores, Castilho publicou a epígrafe Serões do Casal, um conjunto notável de textos doutrinários que testemunham a sua visão romântica de uma utopia rural vivida em harmonia família, fortemente inspirada pela leitura de Robinson Suisse, que . . . foi livro de cabeceira da família no decurso de toda a estadia nos Açores. (Riley, 2018Riley, C. G. (2018). António Feliciano de Castilho na Ilha de São Miguel (1847-1850). In Actas do 2º Colóquio “Saudade Perpetua” (pp. 18-29). Cepese., p. 21, grifos do autor).

Portanto o envolvimento de Castilho com O Agricultor Micaelense (1948-1850) e com os interesses das pessoas do campo fez com que ele reunisse diferentes artigos em Felicidade pela agricultura (1902) (Figura 2), como ideário de instrução e de “vida rural”. Na “Advertência”, os editores afirmaram que “essa [era] umas das obras mais cheias de estro e pujança que saíram do cérebro de Castilho” (Castilho, 1902Castilho, A. F. de. (1902). Advertência. In A. F. de Castilho, Felicidade pela agricultura (pp. 11-14). Empresa da História de Portugal., p. 6), já que reunira, nesse “livrinho, algumas das [suas] utopias, já publicadas em um pequeno, mas boníssimo periódico O Agricultor Micaelense”, mas julgava prematuros os seus “bons e santos desejos ou nenhum, se realizar[ia] em vida dos nossos netos” (Castilho, 1902Castilho, A. F. de. (1902). Advertência. In A. F. de Castilho, Felicidade pela agricultura (pp. 11-14). Empresa da História de Portugal., p. 11).

Figura 2
Capa do livro Felicidade pela agricultura

Entendemos que essa obra marca a gênese do seu pensamento sobre a instrução popular primária e converge com a criação do seu método. Para ele, agricultura, instrução e educação se materializavam no binômio riqueza/poder; indicativo de uma “civilização feliz”. No primeiro caso, tendo em vista a criação de escolas rurais, os alunos aprenderiam a plantar, colher, armazenar e beneficiar-se de produtos e do amor ao trabalho; no segundo, pela leitura “de todas as artes, a que menos custa e a que mais rende” (Castilho, 1909Castilho, A. F. de. (1909). Método português Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler, escrever e bem falar. In A. F. de Castilho, Obras completas de Antônio Feliciano de Castilho (v. 6, pp. 15-25). Empresa da História de Portugal., p. 17), todos poderiam compreender o sentido da vida e da moral.

Nesses aspectos, foram a agricultura e a difusão das ideias liberais os maiores fatores de desenvolvimento e de dinâmica social e econômica de muitas gerações de micaelenses, oportunizadas pela “vinda e influência de António Feliciano de Castilho, cuja plêiade de iniciativas contribui para o enriquecimento da história cultural da ilha” (Silva, 2000Silva, S. S. (2000). Aspectos da vida social e cultural micaelense na segunda metade do século XIX. Arquipélago: História, 4(2), 299-348., p. 319); entre elas, as exposições da indústria e a criação da Sociedade dos Amigos das Letras e Artes de São Miguel. A primeira, por constituir um espaço de divulgação dos diferentes produtos da ilha; a segunda, por ter dado origem à abertura das aulas com seu Método Português. A Sociedade foi criada em 9 de setembro de 1848, “por iniciativa de um forasteiro” (Silva, 2000Silva, S. S. (2000). Aspectos da vida social e cultural micaelense na segunda metade do século XIX. Arquipélago: História, 4(2), 299-348., p. 320) “que não [soube] passar sobre a terra sem semear com seus passos o gérmen da civilização” (Torres, 1849Torres, J. de. (1849). A Sociedade dos Amigos das Letras e Artes de São Miguel: Relatório. Tipografia do Correio., p. 3), uma vez que teve Castilho o apoio dos membros da comunidade micaelense: das senhoras D. Ana Carlota Vidal de Castilho, Ana Eulália e Emília Ferin, como também dos senhores António Joaquim Peixoto Siqueira, Filipe de Quental, Francisco Lambert, entre outros.

As exposições da indústria micaelense foram uma iniciativa dessa Sociedade, tendo a francesa de 1845 como referência. Sua finalidade era reunir objetos de todos os gêneros, “não só inventados, mas aperfeiçoados, ou simplesmente imitados” (Castilho, 1849Castilho, A. F. de. (1849, 6 outubro). Segunda exposição industrial micaelense. O Correio Michaelense, (158)., p. 582), e constituía “uma verdadeira festa da civilização, não se [poupando] de realçar-lhe o esplendor, que [teriam] alguns serões filarmônicos e poéticos, aos quais ser[iam] convidados também senhoras” (Castilho, 1849Castilho, A. F. de. (1849, 6 outubro). Segunda exposição industrial micaelense. O Correio Michaelense, (158)., p. 582). Realizada de 24 de dezembro a 6 de janeiro, e franqueadas a todas as pessoas para exporem ou visitarem as diversas salas divididas por tipo de atividade, a Exposição da Indústria Micaelense dava início à circulação de ideias, perspectivas e objetos, artefatos que, ao término, seriam devolvidos aos proprietários, arrematados em leilões ou doados para o museu da Sociedade.

Sobre essa exposição, descrevem Castilho e Pinto (1853Castilho, A. F. de, & Pinto, F. N. dos S. (1853). Estreias poético-musicais para o ano de 1853. Tipografia Universal., p. 18):

A Exposição da Indústria Micaelense desde o dia de Natal . . . até depois dos Reis; foi mais que um espetáculo imprevisto e maravilhoso: foi um fenómeno eficacíssimo ao trabalho e natural habilidade dos seus habitantes. Quatro salas continham apenas os produtos, que ali se apinhavam oferecidos à admiração de cerca de vinte mil visitadores nesse número os repetentes. Em todos os gêneros aparecerem primores, e muitos em desenho e pintura, em gravura, em escultura, em flores artificiais, de seda, de lã, de cabelo de penas, de cera, de conchas, bordados, outra de ourives, de galvanizadores. . . . A Ilha mesma ficou admirada das riquezas industriais que possuía sem o saber . . . e no decurso as noites de saraus artísticos.

Além das exposições, promoveu a educação artística, literária e científica, assim como a instrução rural e primária estabelecidas conforme seus estatutos. Ao compararmos os estatutos da Academia Real de Ciências de Lisboa e da Sociedade dos Amigos das Letras, verificamos que em alguns aspectos eles são similares, e, em outros, adequados à realidade e às características do local, em função da economia baseada em produtos agrícolas e na pesca e na divisão da sociedade entre dois partidos em constantes arengas políticas, com fortes características rurais e altos índices de analfabetismo. A Sociedade era composta por seis seções: Científica e Literária, Artes e Desenho, Filarmônica, Teatral, Mecânica e Protetora. Em todas, exceto a última, o requisito para participação era de que os membros fossem professores ou cultores das atividades relativas à Sociedade. Já em 1849 havia 429 membros que pagavam 120 réis mensais, o que evidencia o “reconhecimento e a admiração das suas ações” (Torres, 1902, p. 3). Estas incluíam palestras, conferências e concertos no Teatro São Sebastião, como anunciava o Açoriano Oriental, na edição de 13 de julho de 1850.

Assistimos no Sábado um Serão Musical em benefício da Sociedade das Letras e Artes. Começou com o Hino do Trabalho, seguiram-se diferentes peças de música vocal a orquestra e algumas sinfonias executadas pela mesma. O ilustríssimo Senhores Rangel, Cymbora e Miranda deram mais uma prova do seu reconhecido talento. . . . Devemos registrar este oferecimento generoso para a sustentação das escolas de primeiras letras que a sociedade fraqueia as classes desvalidas. Este legado da instrução é o Pão partido aos pequeninos, que há de facilitar os pequeninos do povo, elevando-os acima da ignorância e do infortúnio. . . . O Sr. António Feliciano de Castilho jamais deixará de estar presente nos corações de todos que tiveram a fortuna de o conhecer [isso se deve ao fato de Castilho já nessa altura ter regressado a Lisboa]. Ainda é o seu gênio que preside à obra humanizadora que institui. (Açoriano Oriental, 1850Açoriano Oriental. (1850, 13 julho). (806)., p. 65, grifos do autor).

Mesmo com a representatividade social, instrutiva e cultural que a Sociedade mantinha em São Miguel, apesar do pouco tempo da sua criação, carecia de espaço para instalar a sua biblioteca, museu e salas de concerto e de aulas. Com a finalidade de obter a concessão do prédio do extinto Convento da Conceição e para a aprovação do seu Estatuto, Castilho embarcou para Lisboa, “não levando unicamente a saudade da mulher e dos filhos: [mas de] S. Miguel toda” (Despedida, 1849Despedida. (1849, 24 fevereiro). O Correio Michaelense, (126), 212., p. 212), onde permaneceu por três meses e recebeu o apoio dos deputados João de Sande e Magalhães Mexia Salema, os quais apresentaram ao parlamento as realizações da entidade e defenderam a doação do edifício e a aprovação do seu Estatuto.

Contudo, apesar de todos os esforços, dos pedidos e de divulgar na imprensa da capital do reino a importância da Sociedade e dos benefícios para a cidade de São Miguel, não obteve o resultado desejado, o que fez retornar “a [sua] ilha, este benigno e pacífico torrão, em que . . . fizera mais e melhor que renascer, pois renascerá nela” (Chegada do Sr. Dr. Castilho, 1849Chegada do Sr. Dr. Castilho. (1849, 2 julho). Açoriano Oriental, (748), 3., p. 3) “tudo aquilo que pesou e implantou, uma vez que, quando nela desembar[cara], vinha precisando de amar e não vi a quem; de trabalhar e não achei em que”, e que depois de “Passados aqueles primeiros tempos, em que [lhe] parecia ter naufragado para aqui, como para uma praia, ou erma ou inimiga, começaram de [lhe] alvorecer dias mais claros” (Chegada do Sr. Dr. Castilho, 1849Chegada do Sr. Dr. Castilho. (1849, 2 julho). Açoriano Oriental, (748), 3., p. 3). Renascer e dias mais claros quando retorna de Lisboa, em 25 de maio de 1849, vendo-se “de repente cercado de saudações e afetos . . . recebido em verdadeira evocação de amizade” pelos micaelenses que marcaram sua memória. Estes cantavam ao som do hino da indústria e dos foguetes, com flores nas portas das casas e nas mãos das pessoas, que encontravam-se “apinhadas pelas ruas, até dentro da [sua] casa. . . . Foi o mais belo [dia] dos [seus] quarenta e nove anos” (Chegada do Sr. Dr. Castilho, 1849Chegada do Sr. Dr. Castilho. (1849, 2 julho). Açoriano Oriental, (748), 3., p. 3).

Outra atividade, e uma das mais importantes da Sociedade das Letras e Artes, foi a relacionada à instrução e à educação de toda a gente da Ilha de São Miguel. Com a abertura de aulas de instrução primária, também foram abertos o Curso de Versificação Portuguesa, ministrado por Castilho a vários jovens interessados em poesia, entre eles Filipe de Quental, Filipe Leite e Pedro Eusébio Leite (jovens que, segundo ele, haviam nascido para as letras), e os cursos de Desenho, Geometria, Aritmética, Higiene, Língua Francesa e Leitura, que tinham o Método de Castilho como fundamento, o qual teve como referência o sistema francês de monsieur Lemare, que objetivava ensinar a ler, em poucas lições, as pessoas que sequer tinham conhecimento do alfabeto (Torres, 1849Torres, J. de. (1849). A Sociedade dos Amigos das Letras e Artes de São Miguel: Relatório. Tipografia do Correio., p. 8). Tal público “tem merecido as maiores atenções do senhor doutor Castilho, que o apropriou com grande custo à língua portuguesa; ou melhor o inventou para ela”, posto que o francês e o português diferem “entre si absolutamente. Assim só uma invenção não poderia transportar e tornar ativo, aquele método bem original. Consegui-o este grande pensador” (Torres, 1849Torres, J. de. (1849). A Sociedade dos Amigos das Letras e Artes de São Miguel: Relatório. Tipografia do Correio., p. 10).

Contudo o método de Castilho, mesmo que voltado para o ensino da leitura rápida e aprazível, e que fora adotado em Portugal e no Brasil, teve várias objeções, apesar de que fosse defendido na imprensa e em obras publicadas por ele para demonstrar a sua superioridade em relação aos métodos antigos, que pouco favoreciam e tornavam a aprendizagem uma tortura, já que a escola era um espaço pouco agradável para alunos e professores.

Sobre a sua criação, Castilho (1853Castilho, A. F. de. (1853). Método Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever. Imprensa Nacional., p. XXVII) descreve que:

Achava-me eu na ilha de S. Miguel; pertencia à Societal Promotora da Agricultura; . . . onde se criou escolas rurais de primeiras letras. Ofereci-me eu, à falta de outrem, a tentar para isso, alguma facilitação, . . . e fiquei, por minha palavra, obrigado, pelo menos a diligenciar até onde as forças me consentissem. Revolvi cardumes de cartilhas portuguesas em quase todas o mesmo fundo; isto é, coisa pouquíssima. (Castilho, 1853Castilho, A. F. de. (1853). Método Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever. Imprensa Nacional., p. XXVII).

Em 1848, na Sociedade das Letras e Artes, foram abertas três salas de aula com base nessa “nova proposta pedagógica” de caráter experimental e centradas nas três bases do método: a primeira, dedicada à leitura auricular, ministrada por Cristiano Frederico de Aragão Moraes; a segunda, à leitura fônica, por Felipe de Quental; e a última, de leitura e escrita, ou grafoescrita, por Francisco de Bittencourt Atahayde. No total, “cerca de duas centenas de crianças concorreram a elas” (Torres, 1849Torres, J. de. (1849). A Sociedade dos Amigos das Letras e Artes de São Miguel: Relatório. Tipografia do Correio., p. 9).

Na perspectiva de ampliar o número de aulas para toda a Ilha de São Miguel, Castilho e Luís Filipe Leite capacitaram membros da sociedade local para atuarem como decuriões do Método Português. Essas pessoas teriam como responsabilidade reproduzir os fundamentos para o maior número de professores interessados em abrir classes, a saber: Ana Carlota Vidal de Castilho (esposa de Castilho), Euzébia Carlota Leite (mãe de Filipe Leite), Frederico Leite Cabrerra, Pedro Alcântara Leite, José Anselmo Bittencourt do C. Choque, Maria Cordeiro Lima, Francisco Lambert, Cafraroy Olivier, João Rendall, entre outros. Os decuriões recebiam dos cofres da Sociedade dos Amigos 120 réis mensais para desenvolverem a atividade, expandindo por várias freguesias da Ilha o Método Português.

Apesar do predomínio de crianças nas aulas, nos mapas de matrículas e nas frequências encaminhadas pelos professores a Castilho, como Comissário da Instrução de Ponta Delgada, diferentes faixas etárias (entre eles adultos) e número variado de alunos por sala se computavam, a exemplo da ministrada pelo professor Jacinto Inácio Barreto Amber, do Conselho da Vila da Lagoa, com 126 alunos, e do professor José Alexandre Garcia de Abranys, do Conselho de Vila Franca, com 45 discípulos. Os alunos tinham idades entre 8 e 30 anos e exerciam as profissões de camponês, pescador, negociante de louças, queijeiro, entre outras, com predomínio da primeira.

Os resultados positivos na alfabetização de crianças e adultos despertaram o interesse de José António Aquino, sargento do Regimento de Infantaria, em abrir escolas para o corpo de praças, oferecendo-se para atuar como professor. Em documento encaminhado a Castilho, informou que, dos 102 alunos frequentes, 11 sabiam ler e escrever, 10 sabiam ler, escrever e contar, e cinco sabiam apenas ler. Os demais não sabiam nada. Para ampliar a essa clientela tal oportunidade de instrução e:

Desejando promover a Instrução dos praças deste batalhão e como haja ocasião para este fim, pelo obséquio favorecimento da Sociedade de Letras e Artes em São Miguel que me foi transmitido pelo seu digno presidente, previsto a todos os praças de poderem se matricular nas aulas da mesma Sociedade criadas no Distrito do Convento da Graça que se abriu 15 do corrente mês e são frequentadas todos os dias não santificados. Não tendo, contudo, dispensados do serviço que na escolta lhe pertencem, nem do toque de recolher. (Ofício da Sociedade das Letras e Artes de São Miguel, 1850Ofício da Sociedade das Letras e Artes de São Miguel. (1850). Arquivo e Biblioteca de Ponta Delgada. Caixa 5.).

Todavia os professores encontravam dificuldades para aplicarem o método por falta de espaços e materiais, como solicita o professor Jacinto Ferreira Júnior, da Vila de Funças, em que pede o “pagamento de aluguel de uma casa grande (500 réis), 4 lampiões, 2 castiçais ou 6 lampiões, 2 competentes mesas com os devidos assentos, 6 bancos” (Ofício, 1859Ofício da Sociedade das Letras e Artes de São Miguel. (1859). Arquivo e Biblioteca de Ponta Delgada. Caixa 9.), além da última edição do Método Português, 40 ou 50 folhetinhos da segunda parte do Ramalhetinho da puerícia, de Filipe Leite, exemplares do sistema de pesos e medidas e “candeeiros a azeite que tinham um preço menor que o de sebo e folhetos das cantigas populares” (Ofício da Sociedade das Letras e Artes de São Miguel, 1859Ofício da Sociedade das Letras e Artes de São Miguel. (1859). Arquivo e Biblioteca de Ponta Delgada. Caixa 9.).

Contudo o empenho de Castilho em promover a instrução em São Miguel foi reconhecido pelo reino ao nomeá-lo, em 20 de dezembro de 1847, Comissário dos Estudos de Ponta Delgada, o que contribuiu para que o Método Português se tornasse a referência do ensino na localidade naquele tempo. A esse respeito, Castilho dizia que:

Farei por entrar quanto antes no exercício do meu emprego pois conto já daqui com toda a coadjuvação de V. Exa. como autoridade [se reportando a Dom Pedro da Costa e Souza, Governador Geral em Ponta Delgada], mas também com as luzes, que não me recusará o seu notório zelo pela instrução e prosperidade do povo. (O Correio Michaelense, 1849O Correio Michaelense. (1849, 3 fevereiro). (123)., p. 32).

E continuou:

É a minha ideia e espero que a imprensa a não desaprovará, fazer com que os métodos mais simples, agradáveis e eficazes dos diferentes ramos do ensino primário, sejam primeiro experimentados nas escolas gratuitas da nossa Sociedade, e uma vez abonados nelas pelo êxito e demonstrada incontestavelmente a vantagem, que levam os métodos antigos se façam impreterivelmente adotar em todos os estabelecimentos de ensino assim nacionais como particulares . . . tornando mais fácil para os professores, mais agradável para os alunos e muitíssimo mais breve. (O Correio Michaelense, 1849O Correio Michaelense. (1849, 3 fevereiro). (123)., p. 2).

Sem embargo, apesar de todo o reconhecimento e contribuição de Castilho para as letras, artes e a instrução dos micaelenses, em 22 de fevereiro de 1850 retornou com a família para Lisboa. Inferimos que, com a finalidade de divulgar e expandir o Método Português em Portugal, iniciou a sua campanha em cursos que ministrou em Lisboa, seguido de Leiria, Porto e Coimbra. Em 1851, em Lisboa, abriu um curso gratuito, mas ninguém se inscreveu. No ano seguinte, a Duquesa de Bragança pediu que o aplicasse nos asilos de infância desvalida, reabrindo o curso desta vez em sua casa, com 700 inscritos. Ao fim de três meses, apresentou resultados positivos à sociedade lisboeta. Diante de tal sucesso, o ministro do reino encarregou Luís Filipe Leite, diretor da escola normal, de ministrar um curso regular a cem alunos da Casa Pia. O presidente do conselho, marechal Duque de Saldanha, ordenou que os “oficiais do corpo do exército se habilitassem a fim de criar escolas regimentais pelo novo método” (Castilho, 1853Castilho, A. F. de. (1853). Método Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever. Imprensa Nacional., pp. XXXIV-XXXVIII). Logo, “ao cabo de 63 horas, havia ensinado a ler e escrever de forma inteligível a um público muito heterogéneo” (Magalhães, 2003Magalhães, J. P. de. (2003). Castilho, António Feliciano de. In A. Novóa, Dicionário de Educadores Portugueses (pp. 330-352). Edições ASA., p. 344).

Contudo o método recebeu inúmeras críticas, entre elas ser cópia do método do francês Lemare e configurar uma prática em desuso em Portugal, por utilizar letras representadas por figuras; as regras ortográficas em forma de verso saturavam a memória das crianças; e a decomposição através dos sons (representados pelo nome das figuras) não facilitava a soletração nem se constituía em uma garantia de redução do tempo no processo de aprendizagem; para além de ser oneroso pela quantidade de alfaias requeridas para a sua aplicação. Nessa esteira de julgamentos e críticas, Castilho publica Ajuste de contas com os adversários do Método Português (1854aCastilho, A. F. de. (1854a). Ajustes de contas com os adversários do Método Português. Imprensa da Universidade.), para rebatê-las.

Segundo Villela, Chagas e Dias (2009Villela, H. de O. S., Chagas, R. R., & Dias, M. O. (2009). Rotas atlânticas: Um poeta português, um professor baiano, destinos cruzados no Rio de Janeiro do século XIX. In II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial., p. 8), nessa obra,

Castilho retoma a palavra, discorda desses ataques e faz sua defesa lembrando que desde que o método apareceu sempre se preocupou em aperfeiçoá-lo a partir das observações e conselhos de algumas pessoas; que os resultados atestavam a eficiência e que seus detratores nunca provaram suas afirmações. Ratifica sua lógica da divisão do período em palavras, à da divisão da palavra em sílabas e consequente a decomposição das sílabas. Justifica as vantagens da leitura auricular e defende a simplificação da ortografia.

Mesmo ao assumir o cargo de Comissário da Instrução Pública pelo Método Português, a sua defesa e a abertura de várias aulas em diferentes localidades de Portugal nunca foram aprovadas pelo Conselho da Instrução Pública do Reino, como Castilho desejava. O Método era julgado como se estivesse à prova, e, por isso, não seria pertinente aprová-lo ou indicá-lo como superior em relação a outros métodos. Da mesma forma, as chamadas grandes invenções deveriam comprovar os seus

. . . resultados antes de ver: a quadratura do círculo - o motor contínuo - a direção aos Balões aerostáticos - ainda não saíram de quimeras, apesar de anunciadas pomposa e arrogantemente como descobertas já feitas. O Conselho estimará muito que esteja reservada para o insigne filólogo A. F. de Castilho a imensa gloria que merece, se se realizarem as vantagens de facilidade, de brevidade, e perfeição que promete ao ensino por seu método, que publicou há seis anos, e desde então tem forcejado tanto para ensiná-lo, propagá-lo e, com ele substituir nas escolas públicas os outros métodos, que por si condenava como péssimos. (O Instituto, 1857O Instituto. (1857, 11 julho). Diário do Governo, 101., p. 101).

Com a proposta de divulgar o seu método além-mar, Castilho veio ao Brasil em 1855, quando abriu salas de aula, proferiu palestras e conversou com professores no Rio de Janeiro e em Pernambuco, sendo acolhido em algumas localidades, como nas províncias da Bahia, e rechaçado em Alagoas e Goiás, por exemplo, como afirma Albuquerque (2023)Albuquerque, S. L. de. (2023). Métodos de ensino de leitura no Império brasileiro. Editora Unesp.. Diante das críticas, o método passou por alterações, sem perder, contudo, a sua base de leitura auricular, a simplificação da ortografia e o uso das marchas, palmas e canto, resultando em suas diversas edições e de mudança do título.

O Método não nasceu completo e definitivo desde a 1ª edição em 1850; foi se aperfeiçoando, foi desenvolvendo no calor de uma filosofia luminosa, que na alma do poeta acendeu com a meditação nestes assuntos. Assim pois, vemos que a leitura auricular, a sublime leitura auricular, não ocorreu ao princípio; alvorece com a 2ª edição. Na 1ª, em 1850, a base toda é a mnemonização das letras por figuras, ideia tirada do Método francês de Lemare, aperfeiçoada, ampliada, pelo reformador português. O gérmen dessa edição idéia é de Lemare, segundo Castilho tão lealmente declara em muito passos. Na 2ª edição o Método, baseado na leitura auricular, e na análise atenta dos elementos da palavra falada, abre as asas, conserva de Lemare apenas a ideia da mnemonização dos caracteres gráficos, e torna-se autônomo e original. Se a 1ª se denominou Leitura repentina, a 2ª é já Método Castilho. Na 3ª, para firmar bem no espírito do público a nacionalidade do invento, denomina-se Método Português-Castilho. A doutrina é a mesma; a disposição tipográfica é mais condensada, mais abreviada, mais sintética, que na 2ª, que tinha sido quase luxuosa, entremeada de vinhetas e amenizada de pequenos jogos didáticos para as horas de recreação pueril. Na 4ª, enfim, precede-se o humilde livrinho com o Discurso preliminar, onde o autor, cansado de ouvir criticar acessórios, faz ao gosto geral todas as concessões possíveis das demasias, dos ornatos, das amenizações, das peculiaridades dispensáveis, decota o folheto e as flores, e deixa o tronco. (Castilho, 1909Castilho, A. F. de. (1909). Método português Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler, escrever e bem falar. In A. F. de Castilho, Obras completas de Antônio Feliciano de Castilho (v. 6, pp. 15-25). Empresa da História de Portugal., pp. 17-18, grifos dos editores).

Entretanto, mesmo distante de São Miguel, Castilho continuou a manter vínculos com as autoridades locais, em especial com os membros da Sociedade por ele criada, inclusive reivindicando às autoridades a concessão de um terreno para a sua instalação. Para tanto, publicou Estreias poético-musicais (Castilho & Pinto, 1853Castilho, A. F. de, & Pinto, F. N. dos S. (1853). Estreias poético-musicais para o ano de 1853. Tipografia Universal.), obra dedicada a Dona Maria II, em que descreve as atividades realizadas pela Sociedade em prol da indústria e da instrução em São Miguel. A finalidade era obter junto ao reino apoio financeiro e a concessão de um terreno para construir um espaço amplo e abrigar as escolas gratuitas, a biblioteca, o museu, os gabinetes de física e química, as salas de concertos, o teatro e outras ações desenvolvidas ou a serem promovidas pela agremiação (Castilho & Pinto, 1853Castilho, A. F. de, & Pinto, F. N. dos S. (1853). Estreias poético-musicais para o ano de 1853. Tipografia Universal., p. 21).

As reivindicações de Castilho junto ao parlamento e à Coroa foram atendidas em 1851, quando já havia retornado a Lisboa, o que pode ter colaborado para o alcance do seu objetivo, por se encontrar mais próximo do poder decisório do governo. Em carta enviada a José Pereira Botelho, que o substituiu na presidência da agremiação, informou que:

Concedida a graça desta maneira, torna-se um estimulo permanente e perpétuo a nossa atividade [e que, mesmo passado] cem anos e a duzentos anos, uma nascente de ilustração e moralidade para a Ilha, um exemplo e um incentivo para a Monarquia. (Castilho & Pinto, 1853Castilho, A. F. de, & Pinto, F. N. dos S. (1853). Estreias poético-musicais para o ano de 1853. Tipografia Universal., p. 21).

Todavia, mesmo após o retorno de Castilho para Lisboa, as atividades educativas e artísticas da Sociedade foram mantidas e expandidas até 1870, quando foi extinta; contudo, entendemos que a sua contribuição para as letras e as artes em São Miguel à época auxiliou no desenvolvimento cultural e instrutivo, presente vivamente na memória dos micaelenses.

Castilho (1853Castilho, A. F. de. (1853). Método Castilho para o ensino rápido e aprazível do ler impresso, manuscrito, e numeração e do escrever. Imprensa Nacional., p. XIV-XV), ao descrever as mudanças ocorridas em São Miguel quando da sua estada, descreve que:

Nessa terra de natureza dadivosa, onde os homens, favorecidos pelo torrão, e pelo clima, poderiam . . . dormitar a vida ao som das vogais, e à sombra das suas bananeiras, e dos seus laranjais, levantou-se, ao lado de uma ASSOCIAÇÃO PROMOTORA DA AGRICULTURA, outra associação empenhada no progresso das LETRAS E DAS ARTES; uma e outra animada na prática do espírito do cristianismo, puseram peito a contrastar a descuriosa inércia dos habitantes, frutos das grandes, antigas, e mal repartidas opulências, e de antigos, e injustos desamores da metrópole também. Começou-se a escrever para os lavradores; entrarem a fazer exposições, dos frutos da terra, por uma parte, dos produtos da indústria, por outra . . . abriram-se escolas gratuitas, a brilharem, todas as noites, na cidade, pelas vilas, até nos montes mais desconversáveis. Nessas escolas, povoadas de crianças, de mancebos robustos, e de velhos, mestres mais antigos de sua consciência que de fama, ensinaram ao longo do ano, o ler, e o escrever, com uma abnegação com um zelo, com uma facilidade, com um contentamento mútuo, talvez sem exemplo antes deles. . . . Por entre essas escolas, outras, em casas também de esmola, com bancos, com livros, com papéis também gratuitos, com iluminação, também dada, com mestres não menos oficiosos e insaciáveis . . . quisera que lançasse raízes no solo, que se perpetuasse; quiseram uma edificação nova e magnífica, feita para todos, à custa de todos, ficasse ali como aulas permanentes, com oficinas, com ginásio, com biblioteca, atraindo os pobres para a instrução, recordando os ricos a beneficência, aos instruídos os prazeres de ensinar. . . . Destes exemplos, sem a ostentação apresentados na Ilha de São Miguel, mas já ao longe conhecidos pela fama, saiu para o tráfego, que já vai para este reino, de escolas noturnas e gratuitas de ler escrever. (Castilho & Pinto, 1853Castilho, A. F. de, & Pinto, F. N. dos S. (1853). Estreias poético-musicais para o ano de 1853. Tipografia Universal., p. 21).

Portanto essa citação (mesmo que longa) traduz as ações realizadas por Castilho no período de 1847 a 1850, quando fixou residência nos Açores, de onde emergiu o seu interesse pela instrução do povo pobre, de todas as idades e gêneros, como forma de, através das práticas da leitura, da escrita e do contar, fazer com que assumissem uma “identidade de sujeitos” capazes de intervir na realidade, de estimular o comércio, a indústria e a agricultura, de transformar Portugal em uma nação moderna e civilizada, igualando-se ou superando as desenvolvidas da Europa. No caso do Brasil, por ser um país recente, de grandes dimensões e com um futuro promissor, seu objetivo era que se transformasse em um centro de referência para o “novo mundo” (Revista de Instrução Pública para Portugal e Brasil, 1857Revista de Instrução Pública para Portugal e Brasil. (1857). (3)., p. 21).

Considerações finais

Ao tecermos a trajetória de António Feliciano de Castilho na Ilha de São Miguel, é possível afirmar que suas ações, depois de superar as primeiras objeções, que em princípio estavam relacionadas a organizar sua estrutura financeira, dedicaram-se a desenvolver atividades culturais, artísticas e educativas durante a sua estadia de 1847 a 1850. Essas atividades oportunizaram à comunidade local o acesso à música, literatura e teatro, assim como às exposições da Sociedade dos Amigos das Letras e das Artes, coletivo que oferecia cursos de geometria, desenho, aritmética e versificação, com a finalidade de formar nos jovens micaelenses o interesse pela poesia. Entre esses jovens, destaca-se Luís Filipe Leite, que se tornou um dos maiores aliados de Castilho na defesa da instrução pública. Redator da Revista para a Instrução da Instrução para Portugal e Brasil (1857-1858), Leite objetivara estreitar relações pedagógicas entre Brasil e Portugal.

Entre as suas ações, destacamos a criação de um método de ensino voltado para atender as classes menos favorecidas, crianças e adultos, por meio da aprendizagem da leitura de forma rápida e aprazível. Para tanto, Castilho empreendeu a formação de “decuriões”, que tinham a finalidade de capacitar os professores que desejassem abrir salas de aula para a aplicação do seu Método Português. Isso posto, o cargo de comissário do ensino assumido em Ponta Delgada contribuiu para que fossem abertas salas de aula em diversas localidades, privilegiando a presença de crianças e adultos das mais diferentes faixas etárias e profissões. Portanto, Castilho, no nosso entender, não foi um homem cujas limitações físicas o impedissem de construir uma história de superação, enfrentar os seus opositores e percorrer lugares, como os Açores e o Brasil, na busca por materializar suas utopias de instrução popular, acesso à leitura e melhoria das camadas desfavorecidas pelo cultivo à terra, pelo ensino e pela arte; tais nuances estão presentes em suas obras educativas, em especial, na Felicidade pela agricultura (Castilho, 1849Castilho, A. F. de. (1849, 6 outubro). Segunda exposição industrial micaelense. O Correio Michaelense, (158).) e na Felicidade pela instrução (Castilho, 1854bCastilho, A. F. de. (1854b). Felicidade pela instrução. Tipografia da Academia Real das Ciências.), o que nos leva a compará-lo com Jorge Luís Borges, que considerava que todos alcançariam uma felicidade extravagante pela educação e pelo acesso ao livro e à leitura.

O ostracismo com que Castilho foi recebido em 1847, ao desembarcar em São Miguel, até o seu retorno para Lisboa, em 1850, deixou plantadas na história da cultura e da educação do lugar as suas marcas até a presente data, como pudemos constatar em visita à Ilha quando buscamos vestígios da sua estada, já que ele contribuiu para marcar de forma definitiva as letras, a cultura e a instrução primária nos oitocentos. Nessa lógica, entender a trajetória desse intelectual e de suas ações educativas é adentrar um universo pouco estudado no seu país de origem e no Brasil, onde Castilho lutou para implantar o seu método de ensino e combater os opositores. Apesar das limitações físicas, dificuldades financeiras e arengas políticas e literárias da época, essas prerrogativas não se constituíram em entraves para Castilho defender seu método e instaurar escolas em função dele, para ser reconhecido como um dos mais eminentes escritores da língua portuguesa do século XIX e admirado como intelectual, visionário e pedagogo. Dessa forma, compreendê-lo para além do poeta consiste em trazer à tona as múltiplas facetas de um homem que fez da instrução o seu desafio e o seu ideal para transformar a escola em lugar em que os atos aprazíveis e rápidos de aprender e ensinar a ler e escrever se concretizassem.

  • 1
    Inicialmente o método criado por Castilho foi denominado de Leitura Repentina (1ª edição); em seguida, de Método Castilho (2ª edição); e, na 3ª e 4ª edições, de Método Português. Portanto, neste texto, as diversas expressões são usadas com o mesmo sentido.
  • 2
    A primeira fase compreende de 1843 a 1845, e a segunda, de 1848 a 1852.
  • 3
    Essa sociedade, criada em São Miguel, vinha ao encontro de outras criadas por Castilho, como a Sociedade dos Amigos da Primavera e da Arcádia Lusitana. Seu interesse por esse tipo de agremiação foi inspirado em seu pai, Dr. José Feliciano de Castilho, que havia fundado a Sociedade dos Amigos das Letras e das Artes de Coimbra.
  • 4
    Movimento de tendência mais conservadora do iluminismo português, que surgiu depois da revolução de 1820, centrado na Carta Constitucional de 1826 e aprovado por D. Pedro IV.
  • 5
    Esse jornal é o mais antigo em circulação em Portugal e um dos dez de todo o mundo em publicação contínua e regular com o mesmo nome.
  • 6
    Partido de oposição ao cartismo que se constituiu na corrente mais de esquerda do movimento liberal em Portugal, cujo nome origina-se no grupo que apoiou a Revolução de Setembro.

Agradecimentos

Agradecemos aos bibliotecários da Biblioteca e Arquivo Público de Ponta Delgada.

Disponibilidade de dados

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2023
  • Aceito
    14 Set 2023
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