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A produção de conhecimento arquivístico: perspectivas internacionais e o caso brasileiro (1990-1995)

Archival knowledge production: international perspectives and the brazilian case (1990-1995)

Resumos

As transformações em curso na produção e uso da informação vêm promovendo a emergência de novas possibilidades na gestão da informação arquivística, na configuração da arquivologia como campo de conhecimento e na atuação do arquivista. No plano internacional, estas tendências são identificadas em variadas escolas de pensamento arquivístico. Pesquisa realizada a partir de artigos publicados no Brasil, no período 1990-1995, sugere demandas para a ampliação e difusão do conhecimento na área, em consonância com as tendências observadas internacionalmente.

Gestão da informação arquivística; Arquivologia e conhecimento; Atuação do arquivista; Ampliação e difusão do conhecimento arquivístico


The ongoing transformations of information production and use have promoted a rising up of new possibilities for archivology information management and configuration as a field of knowledge and archivology performance. In the international scenario, the trends are identified in various schools of archival thought. Research carried out in Brazil from articles published from 1990 to 1995 hints demands for enlargement and diffusion of knowledge in this area, in accordance with the trends worldwide observed.

Archival information management; Archivology and knowledge; Performance of the archivist; Spreading archival knowledge


ARTIGOS

A produção de conhecimento arquivístico: perspectivas internacionais e o caso brasileiro (1990–1995)

José Maria Jardim

Resumo

As transformações em curso na produção e uso da informação vêm promovendo a emergência de novas possibilidades na gestão da informação arquivística, na configuração da arquivologia como campo de conhecimento e na atuação do arquivista.

No plano internacional, estas tendências são identificadas em variadas escolas de pensamento arquivístico. Pesquisa realizada a partir de artigos publicados no Brasil, no período 1990–1995, sugere demandas para a ampliação e difusão do conhecimento na área, em consonância com as tendências observadas internacionalmente.

Palavras–chave

Gestão da informação arquivística; Arquivologia e conhecimento; Atuação do arquivista; Ampliação e difusão do conhecimento arquivístico.

INTRODUÇÃO

O quadro atual dos estudos no campo da informação, aí incluída a arquivologia, traz implícita uma hipótese e convida–nos a debruçarmos sobre ela. Esta hipótese é a de que estamos vivenciando a emergência de novas e variadas dimensões no campo arquivístico. Quando nos referimos à palavra "dimensão", remetemo–nos à medidas, tamanhos, extensão, enfim, a espaços. No caso, a espaços de conhecimento arquivísticos. Refletirmos sobre novas dimensões da arquivologia leva–nos, portanto, à hipótese de que a área encontra–se em vias de um profundo redimensionamento, num processo reestruturador dos seus espaços. Espaços científicos, tecnológicos, sociais. Espaços de crise e crescimento.

No trabalho científico, toda hipótese é uma tentativa – nem sempre bem–sucedida – de construirmos algumas teses sobre a realidade em que nos inserimos. Hipóteses e teses, porém, são sempre provisórias. As reflexões a seguir – como não poderia deixar de ser – guardam estas características.

Ao refletirmos sob a hipótese de que novas dimensões vêm emergindo no campo arquivístico, estamos simultaneamente nos remetendo ao que designamos como arquivos, arquivistas e arquivologia. E nenhum desses três conceitos é hoje expressão de consenso. Ao contrário, convivem várias vias de entendimento sobre cada um deles. É, porém, nessa intersecção entre arquivos, arquivistas e arquivologia que ousamos construir algumas considerações sobre o arquivista como produtor de conhecimento, sujeito que intervém nos arquivos sob uma dada ordem teórica, que é a arquivologia.

Visualizarmos o arquivista como sujeito produtor de conhecimento pressupõe, portanto, um exercício de reflexão quanto ao estado–da–arte no campo da arquivologia, considerando o papel da informação e da ciência no mundo contemporâneo. Neste artigo, procura–se estender este exercício à situação brasileira, tomando–se como parâmetro o conhecimento arquivístico publicado no país entre 1990 e 1995.

A DIMENSÃO CIENTÍFICA DA ARQUIVOLOGIA

A emergência de novos padrões de produção, uso e transferência da informação, associada a um quadro de profundas alterações científicas e tecnológicas no capitalismo avançado, trouxe uma série de confrontos no campo arquivístico. Estes confrontos têm se dado, fundamentalmente, em dimensões inter–relacionadas:

• no funcionamento dos serviços de informação arquivística;

• na identidade profissional do arquivista;

• na sua formação profissional;

• na produção de conhecimento arquivístico.

Discutirmos o arquivista como produtor de conhecimento científico pressupõe reconhecermos tais confrontos e sugerirmos questões sobre a arquivologia como disciplina. Como tal, uma questão fundamental diz respeito às diversas possibilidades de compreensão desse campo de conhecimento.

• De que falamos quando falamos em arquivologia?

Estamos nos referindo a um campo de conhecimento ainda por se consolidar – no que diz respeito à sua configuração como disciplina científica – não apenas no Brasil, como no âmbito da comunidade internacional.

Conforme Delmas (1992), a configuração do que tem sido chamado de "sociedade da informação" vem conduzindo a arquivologia a passar de uma "idade empírica" para uma `idade científica": "... esta ciência arquivística ainda está por se construir".

Ao analisar o tema sob uma perspectiva francesa, Delmas situa a arquivologia ora como uma ciência já configurada, ora como uma ciência a construir. Para ele (1990), a arquivologia é "a ciência que estuda os princípios e os procedimentos metodológicos empregados na conservação dos documentos de arquivos, permitindo assegurar a preservação dos direitos, dos interesses, do saber e da memória das pessoas físicas e morais". Delmas contempla–nos ainda com algumas questões interessantes:

• na França, o termo "archivistique" aparece nos anos 30, impondo–se à "archivologie"/arquivologia e "archivonomie"/arquivonomia;

• a arquivologia ainda seria exclusivamente uma ciência auxiliar da história, da qual deveria emancipar–se sem cair sob a proteção das ciências da informação;

• os arquivos necessitariam de uma verdadeira ciência.

Para Heredia Herrera (1990) a arquivologia é "a ciência que estuda a natureza dos arquivos, os princípios de sua conservação e organização, bem como os meios para sua utilização". Ao analisar a área sob a perspectiva espanhola, comenta:

• A "archivistica"/arquivística nasce no século XIX com o nome de "archivologia"/arquivologia, com caráter fortemente historicista;

• o documento e não os arquivos ocupava então a atenção dos profissionais da área;

• A "archivistica" do século XX seria científica, diferenciada da "archivologia" do século XIX, distinta de outras disciplinas, contando atualmente com um objeto, um método e uma linguagem própria, ainda que por consolidar.

Um outro colega espanhol, Borja de Aguinagalde (1988), ressalta pontos que guardam uma certa divergência em relação a Herrera:

• a existência de uma ciência arquivística independente não seria evidente; para tal seria necessário contar com uma problemática própria, um conjunto de questões ou posicionamentos teóricos que sirvam como referência;

• faltaria acordo sobre o objeto, os métodos, a finalidade e a própria terminologia;

• conviveriam representações distintas do fenômeno arquivístico, expressando concepções de seu estudo que se sucedem, se fecundam e se atualizam sob formas diversas.

A Arquivologia, segundo Couture (1992), é atualmente uma disciplina no sentido pleno do termo. "Ela cobre o conjunto de princípios e métodos que regem a criação, a avaliação, a aquisição, a classificação, a descrição, a difusão e a conservação de arquivos. ... À conservação encontra–se definitivamente acrescentada a parte de difusão da informação. Não é suficiente mais conservar os arquivos; é preciso difundi–los"(ibid., p.85).

Visando a romper com a dicotomia gestão de documentos/arquivologia, típica dos países anglo–saxônicos, Couture propõe uma arquivologia (archivistique integrée) capaz de integrar o valor primário e secundário, ou seja todo o ciclo da informação arquivística. Para que esta arquivologia tenha reconhecido o seu lugar e estatuto, alguns requisitos se impõem:

• que a área estruture adequadamente suas atividades e delimite seu campo de atividade;

• que se libere da tutela à história e à administração;

• que busque a sua autonomia para que se torne uma verdadeira disciplina;

• que desenvolva relações interdisciplinares com diversos campos como a informática;

• a documentação, a biblioteconomia, a ciência da informação, a antropologia, a sociologia, a linguística e, é claro, a história e a administração;

• que reforce suas bases por meio da pesquisa e da formação profissional.

Os três últimos congressos internacionais de arquivos

No congresso realizado, em 1988, em Paris, abordou–se o tema dos documentos produzidos pelas novas tecnologias da informação. Os variados aspectos referentes à atuação do arquivista na era da informação foram contemplados no Congresso de 1992, em Montreal. Em 1996, em Beijing, o tema central foi "Os arquivos ante o final do século: balanços e perspectivas". Em 12 anos, portanto, a comunidade arquivística internacional discutiu respectivamente os documentos, os arquivistas e os arquivos. A arquivologia – enquanto campo de conhecimento científico – tem sido alocada perifericamente como objeto de discussão, não constituindo o foco central dos temas abordados. Observa–se, portanto, que o balanço proposto pelo CIA no seu último congresso ateve–se muito mais ao percurso da profissão de arquivista do que à arquivologia como campo do conhecimento.

A conferência de Cook (1996), apresentada no Congresso de Beijing, passa ao largo da questão, embora enfatize a necessidade de uma história intelectual da profissão de arquivista e dos arquivos. Negligencia, porém, o fato de que esta história requer também um olhar epistemológico sobre a sua própria configuração como área de conhecimento. Afinal, como o próprio Cook reconhece:

"o pensamento arquivístico neste século deve considerar–se como algo em constante evolução, algo que se transforma continuamente para adaptar–se às transformações radicais que se vão produzindo na natureza dos documentos, nos organismos que os produzem, nos sistemas de gestão e tratamento de arquivos, na utilização dos arquivos e nas tendências culturais, jurídicas, tecnológicas, sociais, filosóficas e da so–ciedade" (1996, p. 6, tradução nossa).

Luigi (1996, p. 3, tradução nossa) observa que "se nota a tendência em direção a um salto qualitativo no ofício do arquivista, deixando de ser um trabalho artesão, por muito qualificado que fosse, para converter–se em uma profissão baseada em uma preparação científica que deverá ser adquirida na universidade antes de se chegar à profissão". Mas a que corpus de conhecimento científico estaria referida esta preparação científica? Esta questão – não verticalizada por Luigi – constitui uma dos aspectos fundamentais da arquivologia contemporânea hoje.

Algumas posições assumidas recentemente demonstram um debate ainda incipiente sobre a dimensão espistemológica da área. Enquanto Feh Huilin (1996) considera que, ao final deste século, a arquivologia é `uma disciplina independente, como uma entidade própria entre as demais ciências, Esse (1996) discute se a arquivologia pode ser identificada como uma "disciplina internacional" ou com "tradições nacionais e culturais". Para Esse (1996, p. 7) existe efetivamente uma ciência arquivística, objeto de visões errôneas, pois "há os que a vêem como um campo com um alcance intelectual limitado, outros a consideram uma área de conhecimento da qual não estaria orgulhoso nenhum professor universitário e também os que sustentam que os arquivos são puramente culturais". A arquivologia "seria nacional e cultural por sua natureza e orientação e, ao mesmo tempo, um conhecimento científico básico, jovem e que está florescendo, a ponto de converter–se numa aclamada disciplina internacional" (ibid). Esta distinção entre uma arquivologia como um campo cientifico ou expressão de "tradições nacionais" é, no mínimo, indicadora premente da escassa discussão sobre a arquivologia como campo do conhecimento científico e sua inserção nos modelos informacionais atuais e emergentes.

Vale observar como ainda predomina no pensamento e práticas arquivísticas a associação imediata entre arquivos e memória. Com muita freqüência, privilegia–se, nestes casos, a noção de memória como dado arqueologizável, coisa que se resgata, construção do arquivista.

Para Cook (1996), por exemplo, "a história do pensamento arquivístico neste século reflete a interação da teoria e prática desta disciplina que arquivistas de todo o mundo têm exercido para conservar a memória do mundo". Os arquivos, objeto da "ciência arquivística", continuariam ainda fortemente identificados como "sala de investigação da história".

Para Higgs (1996), "é necessário pontualizar que a prática arquivística, a gestão de documentos e a gestão da informação não são sinônimos e, inclusive, em algumas circunstâncias, incompatíveis. Ainda que possuam em comum muitos princípios, as profissões de arquivista, gestor de documentos e gestor de informação não provêm, necessariamente, de um tronco ou tradição comum e o resultado final de suas atuações pode ser muito diferente". Esta afirmação é representativa da corrente que entende a arquivologia como um campo voltado para os arquivos históricos.

Sem dúvida, a memória é uma dimensão inerente ao campo arquivístico, mas os arquivos não são apenas lugares de memória. Boa parte da literatura arquivística (sobretudo a norte–americana/canadense) tem insistido na ruptura com esta visão, apesar da dicotomia entre Arquivologia e Gestão de Documentos. A memória no espaço arquivístico só é ativada, porém, se em tais lugares de memória forem gerenciados também lugares de informação, onde esta não é apenas ordenada, mas também transferida. Se a memória não é neutra, muito menos a informação. É enquanto lugares de informação – espaços (às vezes virtuais) caracterizados pelo fluxo informacional – que os arquivos se configuram hoje, provocando redimensionamentos na arquivologia. Estes redimensionamentos colidem frontalmente com uma arquivologia entendida como uma disciplina auxiliar da história. Neste caso, este arquivista encontraria na história, e não na arquivologia, o seu corpus teórico. A arquivologia seria, quando muito, um método.

Esta perspectiva parece ser ainda hegemônica no campo internacional, mesmo entre muitos dos que reconhecem a teoria do ciclo vital da informação arquivística.

A formação de um pensamento arquivístico contra–hegemônico, relativizante do saber convencional dominante na área, vem aparecendo fortemente no centros de formação profissional. A abordagem de Thomassem (1996) é expressiva neste sentido. Para ele, há uma série de conseqüências para a formação das novas gerações de arquivistas, já que, "entre as mudanças provocadas pelos avanços tecnológicos, a mais estimulante é que a arquivologia deixou de ser uma ciência auxiliar da história para converter–se em uma disciplina autônoma no campo das ciências da informação". Autonomia esta marcada por uma forte interdisciplinaridade no ensino e na pesquisa arquivísticos, e um ensino cada vez mais harmonizado com as demais ciências da informação. E, por consequência, uma reprofissionalização do arquivista. Em um quadro de profundas transformações, o arquivista deve ser formado sobre o paradigma do "aprender a aprender" . "Aprender a fazer" não é mais suficiente para o arquivista da era da informação. Como tal, não pode ser apenas um reprodutor de conhecimento, mas um produtor de conhecimento.

É significativo que, do último Congresso Internacional de Arquivos, figurem as recomendações:

• o reconhecimento do "rápido desenvolvimento do campo da gestão da informação", do qual a gestão de documentos e administração de arquivos são partes integradas e integrantes;

• o estímulo ao "estudo dos arquivos" como disciplina específica, mas considerando o papel do arquivista no campo da gestão da informação, interagindo com outros profissionais da informação.

Apesar de não se referir à arquivologia como campo específico, mas à gestão e estudo dos seus objetos – os arquivos e seus documentos –, esta perspectiva explicita a área como uma campo situado no âmbito da gestão da informação, o que significa um avanço em torno dos redimensionamentos vivenciados pela área.

A pesquisa acadêmica – no sentido de investigação concebida e elaborada a partir dos espaços acadêmicos – foi e ainda é residual na área. No entanto, decorre das pesquisas nas universidades, em particular das norte–americanas e canadenses, os ventos mais renovadores da área. Nomes como David Bearman, David Gracy, Carol Couture, Luciana Duranti, Charles Dollar, Richard Cox (nos EUA e Canadá), Angelika Menne–Haritz (na Europa), Ann Pederson (na Austrália) são expressivos da vanguarda intelectual da arquivologia. Todos estão nas universidades, associando pesquisa e ensino arquivísticos de qualidade.

O ensino de pós–graduação – território privilegiado da pesquisa – é, portanto, um espaço fundamental (embora não exclusivo) para o arquivista como produtor de conhecimento. A iniciação à pesquisa pode e deve ter início na graduação. Os trabalhos de conclusão de curso constituem uma oportunidade para tal, além dos programas de pesquisa desenvolvidos pelo corpo docente. Esta não é, em absoluto, uma ação exclusiva do arquivista docente. Projetos de pesquisa integrando serviços arquivísticos do setor público e privado e a universidade podem também resultar em uma significativa contribuição ao conhecimento arquivístico.

A arquivologia e a arquivística no Brasil

No Brasil, o campo arquivístico encontra uma das suas referências básicas na coexistência de dois conceitos: arquivologia e arquivística.

O Dicionário de Termos Arquivísticos do Arquivo Nacional (1992) distingue arquivologia e arquivística:

Arquivologia – disciplina que tem por objeto o conhecimento dos arquivos e da arquivística.

Arquivística – princípios e técnicas a serem observados na produção, organização, guarda, preservação e utilização dos arquivos.

A coexistência destes dois termos não aparece problematizada na literatura arquivística brasileira. A opção por ambos os conceitos não parece ter sido acompanhada, entre nós, de suficiente reflexão teórica. E, se tal ocorreu, os resultados desta discussão provavelmente não foram plenamente comunicados. Como tal, lidamos com dois conceitos inter–relacionados cuja estrutura teórica parece única no mundo ou pelo menos na literatura mais conhecida na área em nível internacional. Utilizando a própria lógica conceitual presente nesta distinção, observam–se alguns aspectos:

• a arquivologia teria dois objetos: o conhecimento dos arquivos e o conhecimento da arquivística;

• a arquivística diria respeito a princípios e técnicas pelos quais se "administram" os arquivos ou seja, é um conhecimento também e, implicitamente, seu objeto são os arquivos;

• ambos os conceitos referem–se ao mesmo objeto, os arquivos, em níveis de conhecimentos distintos, sendo a arquivística um subcampo da arquivologia;

• dado que o conhecimento dos arquivos pressupõe a arquivística, a arquivologia seria, no Brasil, uma espécie de metaconhecimento.

Qualquer uma dessas quatro leituras não se sustenta nem do ponto de vista das ciências sociais em geral, nem à luz da própria arquivologia, inclusive sob os pontos de vista mais tradicionais.

O Dicionário de Terminologia Arquivística, elaborado pelo Núcleo da Associação dos Arquivistas Brasileiros de São Paulo, sugere outra perspectiva ao definir arquivística como " disciplina – também conhecida como arquivologia – que tem por objeto o conhecimento da natureza dos arquivos e das teorias, métodos e técnicas a serem observados na sua constituição, organização, desenvolvimento e utilização" (1996).

Constatam–se, portanto, dois conceitos distintos de arquivologia no Brasil: um legitimado pelo principal arquivo público do país, o Arquivo Nacional, e outro pela Associação dos Arquivistas Brasileiros. Todas as diferenças são estimulantes em qualquer campo de conhecimento. No Brasil, a área ampliou–se significativamente nos últimos 30 anos, e talvez a comunidade arquivística esteja começando a aprender com suas divergências, mas para isso é preciso reconhecê–las e relacioná–las. Neste caso, parece fundamental a discussão a respeito – não com o objetivo de eliminar um dos conceitos, mas de se aprofundar o fato de que os ambos conceitos representam pontos de divergências, de convergência e, sobretudo, escolhas teóricas distintas. Cabe, inclusive, a contextualização de tais opções dadas as repercussões que acarretam na produção, difusão e ensino da arquivologia no país.

PRODUÇÃO E COMUNICAÇÃO DO CONHECIMENTO ARQUIVÍSTICO NO BRASIL

O conhecimento publicado constitui um dos elementos de análise da produtividade científica. Entre os indicadores mais utilizados na medida da produção científica está o número e diversidade de publicações de um país, região, universidade, unidade acadêmica, grupo de pesquisa ou cientista individual.

Há um razoável consenso nos meios científicos em torno de que todo produto da ciência acaba comunicado de forma escrita, seja qual for a mídia em que isto ocorra atualmente. Conforme Castro (1985, p. 57–58),

"Produzir pesquisa é uma coisa, publicar é outra. Não obstante, qual o significado de uma atividade científica que mais adiante não é escrita e comunicada?... A idéia de avaliar produção científica pela contagem de publicações é algo que ainda encontra fortes resistências na comunidade acadêmica. Todavia, há ampla evidência mostrando a elevada associação estatística entre contagem de publicações e outras maneiras de se avaliar a excelência de um grupo ou de sua ciência. Mais ainda, mesmo a nível individual há uma elevada correlação entre qualidade e quantidade de publicações."

No sentido de visualizarmos o quadro brasileiro a este respeito no campo da arquivologia, procedeu–se ao levantamento do materialII publicado no país de 1990 a 1995 em periódicos de ciência da informação, biblioteconomia, administração e história, considerando que não há atualmente nenhum periódico específico na área no país.

Esta pesquisa procurou observar algumas características, privilegiando especificamente os artigos de divulgação científica sobre arquivologia publicados em periódicos brasileiros de 1990 a 1995. Dada a importância deste tipo de comunicação científica, estima–se que o quadro configurado, embora não exaustivo, represente uma amostra significativa do que tem sido produzido e divulgado em arquivologia no Brasil dos últimos anos. Não foram, portanto, considerados os artigos de profissionais brasileiros em revistas internacionais, relatórios de pesquisa e trabalhos apresentados em eventos e não publicados em periódicos; dissertações de mestrado de profissionais da área, livros publicadosIII. Da mesma forma, não pretendeu–se a uma análise qualitativa do material publicado.

A pesquisa foi realizada em agosto e setembro de 1996, na cidade do Rio de Janeiro. Os dados foram coletados nas seguintes bibliotecas: Biblioteca do Arquivo Nacional, Biblioteca da Fundação Getúlio Vargas, Biblioteca da Escola de Comunicação da UFRJ, Biblioteca Central do Gragoatá–UFF, Acervo Bibliográfico da AAB.

Os periódicos investigados foram os seguintes:

• Acervo;

• Anais do Arquivo Público do Pará;

• Arquivo e Administração;

• Arquivo e História;

• Boletim da Associação de Amigos do Arquivo Público do Paraná;

• Boletim da Associação dos Arquivistas Brasileiros (AAB);

• Boletim do Arquivo do Estado de São Paulo;

• Boletim do Núcleo da AAB/SP;

• Boletim do Arquivo Municipal de Rio Claro;

• Ciência da Informação;

• Estudos Históricos;

• Informare;

• Revista da Escola de Biblioteconomia da UFMG;

• Revista do Serviço Público.

Algumas coleções de periódicos não foram exaustivamente analisadas, seja por não estarem completas, seja por não se encontrarem disponíveis para a consulta quando da pesquisaIV.

Foram identificadas as formas de comunicação (artigos, comunicações, relatos de experiência), além dos seguintes tópicos:

• autor/vínculo institucional/data de publicação e temas dos títulos publicados.

Análise dos dados

A inexistência de um periódico dedicado exclusivamente à arquivologia no Brasil – regularmente publicado – sinaliza, por si só, um grave problema de comunicação científica no campo arquivístico na país. Não há periódicos específicos para a área no Brasil por que não há suficiente produção de artigos ou não se produzem artigos por que não há veículos de comunicação científica suficientes? O que justifica este quadro? Ausência de pesquisas nas universidades ou nas instituições arquivísticas? Escassez de experiências arquivísticas inovadoras ou consideradas objeto de uma reflexão a ser divulgada? Ausência de uma cultura científica na área? Enfim, neste caso, o que explicaria este escassa cultura científica? Uma visão predominante da arquivologia como um campo não científico?

Provavelmente todas estas perguntas encontram alguma dose de respostas afirmativas, formando uma teia de aspectos inter–relacionados. A cultura científica da arquivologia no país não parece suficientemente estruturada para valorizar a comunicação científica e sustentar meios de divulgação específicos para tal, em que pesem as dificuldades de se editar uma revista dessa natureza no Brasil. No entanto, outras áreas o fazem, gerando prestígio para os seus respectivos campos.

A média anual de publicação de artigos, comunicações e relatos de experiência de autores nacionais é extremamente baixa (7.8) e, como tal um aspecto indicador da pequena produtividade da área. Estima–se, porém, que a quantidade de trabalhos apresentados nos eventos da área nos últimos cinco anos superam em muito os 47 trabalhos (70% da totalidade de títulos identificados) publicados por profissionais brasileiros. Dadas as conhecidas dificuldades na publicação de anais dos eventos, vários trabalhos não são divulgados nem chegam aos periódicos existentes. A significativa quantidade de artigos estrangeiros (30%) – em que pese a contribuição que possa daí decorrer – talvez esteja se dando em detrimento de autores brasileiros. Não é, porém, desprezível a hipótese de que a publicação desses artigos também se explique pela pequena quantidade de títulos brasileiros encaminhados à publicação.

Os indicadores geográficos revelam que a maioria dos periódicos (40%), artigos (61%) e autores (67%) procedem do Rio de Janeiro, uma espécie de capital arquivística do Brasil. Esta hegemonia do Rio de Janeiro talvez se explique pela existência de diversas instituições arquivísticas e acadêmicas ligadas à área no estado. Em termos regionais, Rio e São Paulo respondem, portanto, por 67% dos periódicos, 88% dos artigos e 89% dos autores. Estes dados indicam a importância de se desenvolverem mecanismos de estímulo à produção e difusão de conhecimento arquivístico em outras áreas do país. Revelam também a falta de densidade do campo arquivístico para além do eixo Rio–São Paulo.

A maioria dos títulos publicados (51%) se deu em periódicos de organizações arquivísticas, sendo que 30% especificamente dos arquivos públicos. Isto sugere a importância das instituições arquivísticas na comunicação científica, apesar desse esforço não plasmar–se em um periódico específico do campo regularmente publicado. A maioria dos artigos brasileiros publicados procede, porém, das universidades (47%), que, por sua vez, ainda não conseguiram liderar nenhum projeto de um periódico na área. Apesar do papel dos arquivos públicos na comunicação científica na área, apenas 30% do material publicado referem–se às suas experiências arquivísticas. No entanto, 70% dos títulos estrangeiros são produzidos por arquivistas de arquivos públicos.

Constata–se, entre os autores brasileiros, que os produtores de mais de um título (35%) foram responsáveis por 58% do universo publicado. Verifica–se, portanto, que um pequeno núcleo de autores aparece com maior índice de produtividade, enquanto a maioria (65%) publicou apenas um título, totalizando 42% do universo de títulos publicados. Em termos absolutos, este núcleo é formado por apenas dez profissionais (sendo cinco de universidades, dois de serviços arquivísticos privados e três de serviços arquivísticos públicos). Talvez a preocupação por publicar, resultante dos critérios de avaliação e promoção na carreira docente, explique esta incidência da universidade (não especificamente dos cursos de arquivologia, como veremos, a seguir), além de o próprio ambiente acadêmico favorecer esta perspectiva em diversos níveis.

Entre os autores brasileiros, apenas três são graduados em arquivologia com um total de quatro títulos, ou seja, representam apenas 14% dos autores e 8% do universo publicado. Estes autores têm dupla formação em arquivologia e história. O arquivista graduado, portanto, tem uma participação muito aquém daquela que se esperaria e talvez isto se dê pelas falhas na sua formação profissional. Efetivamente, os cursos de arquivologia no Brasil estão longe de formar um profissional capaz de produzir conhecimento arquivístico. Por outro lado, apesar do predomínio da universidade nos títulos publicados, a contribuição de professores de cursos de graduação em arquivologia chega apenas a 19% do total de autores e a 11% do total dos artigos. As dissertações apresentadas por professores dos cursos de arquivologia nos últimos anos não foram publicadas integralmente nem resultaram em artigos publicados. Talvez este dado reflita a quase inexistência de pesquisa nos cursos de arquivologia, ou, no mínimo, um pequeno índice de comunicação das pesquisas que por acaso existam. Esta situação talvez seja uma das razões para uma escassa participação do arquivista graduado na produção de conhecimento na área.

A procedência dos artigos estrangeiros revela uma possível influência de duas correntes distintas de pensamento arquivístico: de um lado, a européia (45% dos títulos) e a norte–americana (45%). Estados Unidos e Espanha (30% dos títulos cada um) são as duas maiores fontes de influência. A relação com outros países da América Latina é, porém, insignificante (10%). A ausência de literatura francesa parece indicar um descenso na influência do pensamento arquivístico da França entre nós.

Em relação aos temas mais freqüentes, há um predomínio de títulos relacionados às tecnologias aplicadas aos arquivos e à legislação (25%). O tema das políticas arquivísticas (13%) talvez reflita o quadro emergente, resultante da Lei de Arquivos em 1991. No mesmo patamar (13%) encontram–se temas como `classificação, arranjo e descrição" e "formação profissional". A discussão sobre rumos e aspectos da teoria arquivística alcança 11% dos títulos e tende a estar vinculada aos impactos destas tecnologias no corpus teórico da área. Chama atenção, porém, a escassa presença de temas como avaliação e seleção (2%), além da ausência de reflexões sobre estudos de usuários, interdisciplinaridade da área, funções sociais do arquivista no Brasil e outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A arquivologia só alcançará a condição de uma disciplina científica se forem realizados investimentos na pesquisa como estratégia de produção de conhecimento, base essencial para uma formação profissional, e uma gestão da informação em altos níveis. Como tal, reconhecermos sob que paradigmas e parâmetros conceituais atuamos é algo inerente ao fazer arquivístico. Por isso, é mais do que relevante discutirmos o que estamos hoje entendendo por arquivologia em nível internacional e no Brasil.

Claro está que o trabalho arquivístico, em si mesmo, já implica pesquisa. Atividades como avaliação, descrição, estudos de usuários, entre outras, pressupõem uma abordagem investigativa. O conhecimento arquivístico disponível tem resultado da nossa capacidade em relacionar dialeticamente estas práticas com suas conseqüências e pressupostos teóricos. Esta é a diferença entre um arquivista e um "guardador de documentos", entre gerenciar a informação e ordenar documentos, entre uma prática teórica e cientificamente construída e um fazer calcado em um bem intencionado senso–comum. Ter em conta tais diferenças implica a postura pela qual o arquivista aborda diversos aspectos da sua atividade. E isto significa um diferencial de qualidade. Gerenciar arquivos com "qualidade total" pressupõe cientificidade.

Não há qualidade total nos arquivos sem conhecimento teórico de qualidade. Como sujeito produtor de conhecimento, teoricamente sustentado na prática arquivística, é que o arquivista produz qualidade. Não há política nacional de arquivos, por exemplo, sem conhecimento político e sem uma política de conhecimento arquivístico.

A vocação do arquivista como produtor de conhecimento encontra–se diretamente relacionada com as dimensões emergentes na área. No caso brasileiro, isto implica:

• vinculação entre ensino e pesquisa;

• interação entre serviços arquivísticos públicos e privados e a universidade;

• melhoria dos padrões de ensino de arquivologia;

• formação contínua dos profissionais em atuação;

• participação de autores brasileiros nos periódicos que publicam temas sobre arquivologia;

• estímulo à existência de periódicos voltados especificamente para o campo arquivístico;

• participação mais ativa das editoras universitárias na publicação de anais de eventos da área e outras formas de publicação;

• implementação de uma bibliografia brasileira de arquivologia.

Trata–se, portanto, da construção de uma cultura científica, considerando, como sugere Demo (1994), que a ciência é um processo de inovação permanente pela via do questionamento sistemático, crítico e criativo, não podendo, portanto, ser compreendida como estoque de conhecimentos. Isto pressupõe uma comunidade heterogênea de cientistas que aprecie a democracia da comunicação crítica: a democracia é parte necessária do processo científico.

Afinal de contas, como nos ensinou Nietszche, "tudo o que é decisivo, só nasce apesar de".

Archival knowledge production: international perspectives and the brazilian case (1990–1995)

Abstract

The ongoing transformations of information production and use have promoted a rising up of new possibilities for archivology information management and configuration as a field of knowledge and archivology performance. In the international scenario, the trends are identified in various schools of archival thought. Research carried out in Brazil from articles published from 1990 to 1995 hints demands for enlargement and diffusion of knowledge in this area, in accordance with the trends worldwide observed.

Keywords

Archival information management; Archivology and knowledge; Performance of the archivist; Spreading archival knowledge.

José Maria Jardim

Doutor em Ciência da informação

Diretor do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Informação da UFF

jmjardim@cruiser.com.br

ANEXOS

* Artigos, comunicações ou relatos de experiência

II Esta pesquisa contou com a colaboração da arquivista Jailza de Souza Queiroz, na coleta de dados.

III Durante o período abordado, foram publicados dois livros: BELLOTTO, Heloísa. Arquivos permanentes e JARDIM, José Maria. Sistemas e políticas públicas de arquivos no Brasil.

IV Apesar de proposto pelo Arquivo Nacional na década passada, o país não dispõe de um centro nacional de referência arquivística que favoreça o controle sobre a bibliografia relativa à arquivologia no Brasil. Cabe observar, porém, a importância do Boletim de Informação Bibliográfica em Arquivos, desenvolvido pelo Arquivo Nacional.

  • 1. BORJA DE AGUINALGADE, F. Elementos para una historia de los Archivos y de la Archivistica desde una perspectiva interdisciplinar. IRARGI, VitoriaGasteiz, n.1, 1988.
  • 2. BUCCI, Odo (ed.). Archival science on threshold of the year 2000 Macerata: Universitá degli Studi di Macerata.1992
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Nov 1999
    • Data do Fascículo
      Set 1998
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