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Qual o seu diagnóstico?

Qual o seu diagnóstico?* * Trabalho realizado no Setor de Emergências do Instituto de Radiologia (InRad) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).

Angela Hissae Motoyama CaiadoI ; Marcos Roberto MenezesII; Walther Yoshiharu IshikawaIII; Gabriel GattásIII; Marcos Loreto SampaioI; Eduardo YamashiroI; Giovanni Guido CerriIV

IMédicos Residentes do Setor de Emergências do In Rad/HC-FMUSP

IIMédico Radiologista, Chefe do Setor de Emergências do InRad/HC-FMUSP

IIIMédicos Radiologistas do Setor de Emergências do InRad/HC-FMUSP

IVProfessor Titular do Departamento de Radiologia da FMUSP, Chefe do InRad/HC-FMUSP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Dra. Angela H. Motoyama Caiado Alameda Franca, 318, apto. 23, Jardim Paulista São Paulo, SP, 01422-000 E-mail: a.motoyama@uol.com.br

Paciente do sexo feminino, 17 anos de idade, procurou o serviço de pronto-atendimento com quadro progressivo de dor abdominal difusa, distensão abdominal, náuseas e vômitos há cinco dias. Ao exame físico encontrava-se afebril, em regular estado geral, com dor abdominal difusa à palpação do abdome, e descompressão brusca dolorosa. Antecedente pessoal: lúpus eritematoso sistêmico em vigência de corticoterapia.

Achados de imagem

Foram realizadas ultra-sonografia e tomografia computadorizada do abdome.

À ultra-sonografia verificou-se espessamento parietal difuso de alças delgadas e do cólon sigmóide, com estratificação das paredes, observando-se aspecto em "alvo", além de líquido livre na cavidade peritoneal e hepatoesplenomegalia homogênea.

A tomografia computadorizada revelou espessamento parietal difuso com aspecto em "alvo" e realce após a injeção intravenosa de contraste iodado, acometendo alças intestinais ileais e cólon sigmóide. Observaram-se, ainda, volumosa quantidade de líquido livre peritoneal de média densidade, sugerindo alto teor protéico (sangue, pus), e hepatoesplenomegalia.

Foi realizada laparotomia exploradora, constatando-se a presença de líquido hemático viscoso na cavidade peritoneal e numerosas petéquias em vários segmentos de alças ileais. Foi feita inspeção das alças, não se verificando, entretanto, sinais de necrose parietal ou perfuração.

Diagnóstico: Peritonite lúpica e vasculite mesentérica.

Iniciou-se pulsoterapia com corticosteróides. A paciente evoluiu com melhora da dor abdominal.

COMENTÁRIOS

As vasculites podem provocar alterações locais ou difusas no trato gastrintestinal (TGI), decorrentes de íleo paralítico, isquemia mesentérica, edema e hemorragia da submucosa, além de estenose ou perfuração intestinal(1). Enquanto a doença vascular oclusiva freqüentemente leva a isquemia, que pode resultar em ulceração e perfuração, a doença vascular não-oclusiva pode levar a extravasamento de líquido, resultando em edema e hemorragia. A extensão e gravidade da doença oclusiva dependem do tamanho e localização do vaso afetado. Quando há acometimento de vasos maiores, as manifestações abdominais da vasculite podem ser indistinguíveis das da isquemia mesentérica causada por êmbolos ou trombose, a menos que haja evidência de manifestação sistêmica associada. No envolvimento das artérias de calibre médio pode ocorrer formação de aneurismas, os quais, mais comumente, ocorrem na poliarterite nodosa. A ruptura desses aneurismas pode levar a hemorragia gastrintestinal ou intra-abdominal. No acometimento de pequenos vasos observa-se, freqüentemente, a formação de úlceras e estenoses, e menos comumente de perfurações.

O envolvimento do TGI está mais freqüentemente associado a poliarterite nodosa (50–70%)(2), púrpura de Henoch-Schönlein, poliangeíte microscópica, síndrome de Wegener e síndrome de Churg-Strauss. A vasculite do TGI pode ocorrer em outras doenças, podendo-se classificá-las de acordo com o calibre dos vasos acometidos (Tabela 1)(1,3).

A vasculite do TGI no lúpus eritematoso sistêmico (LES) é bastante rara (0,2–2%)(4,5) e na maioria das vezes acompanha doença ativa em outros órgãos.

O LES é caracterizado pela deposição de imunocomplexos que produzem vasculite necrotizante de pequenas artérias, arteríolas e vênulas(6,7).

Embora sintomas gastrintestinais inespecíficos sejam comuns em pacientes com LES, a dor abdominal aguda é a manifestação mais freqüente do envolvimento do TGI, podendo ser decorrente de peritonite lúpica, serosite, pancreatite não necrotizante, enteropatia perdedora de proteína ou de vasculite do TGI(6). A vasculite intra-abdominal resultante de isquemia e infarto do intestino é a apresentação mais comum e mais perigosa(7).

As radiografias simples ou contrastadas do abdome são comumente normais nas fases precoces da doença(7). Em alguns casos pode-se observar distensão de alças delgadas com níveis hidroaéreos e, muito raramente, pneumoperitônio decorrente de perfuração e pneumatose intestinal(6).

A ultra-sonografia pode revelar a presença de espessamento parietal, hepatoesplenomegalia e líquido livre peritoneal.

A tomografia computadorizada é o método de escolha para a avaliação desses pacientes(1). Os achados tomográficos mais comuns na vasculite mesentérica incluem distensão de alças, com envolvimento de segmentos relativamente longos do intestino(2), sendo que o acometimento geralmente é multifocal e não confinado a um território vascular único(7), com espessamento parietal com realce anômalo (duplo halo ou sinal do alvo). Um estudo recente mostra que na isquemia é mais freqüente o envolvimento de segmentos mais longos, com espessamento da parede inferior a 1,0 cm, enquanto na hemorragia intramural os achados mais típicos são o envolvimento de segmentos mais curtos, com espessamento da parede superior a 1,0 cm(8).

Na vasculite do TGI relacionada ao LES os sítios mais freqüentemente acometidos são o jejuno e o íleo. Embora a vasculite e a deposição de imunocomplexos sejam fenômenos sistêmicos, o envolvimento do reto é infreqüente, devido ao suprimento vascular rico em anastomoses. A pneumatose intestinal é muito rara no LES, tendo sido descrita em apenas seis casos na literatura(7).

Congestão vascular ou edema do mesentério são achados freqüentes na isquemia relacionada ao LES, além de outros como ascite, linfadenopatia retroperitoneal, hepatoesplenomegalia, hidronefrose e nefrite lúpica(1,2,7). A hepatoesplenomegalia geralmente se deve à hiperatividade do sistema imune.

A pancreatite aguda entra no diagnóstico diferencial de dor abdominal aguda no paciente com LES. Embora de etiologia desconhecida, acredita-se que as principais causas sejam a oclusão por trombos ou vasculite dos vasos pancreáticos e o uso crônico de corticosteróides.

A angiografia mesentérica é pouco útil no diagnóstico de isquemia mesentérica por LES, pois as alterações típicas ocorrem nos pequenos vasos, porém, em alguns casos pode identificar o sítio de sangramento gastrointestinal e excluir a possibilidade de poliarterite nodosa(6).

Na ausência de complicações cirúrgicas ou infecciosas, prednisona em altas doses é a terapêutica recomendada no tratamento da vasculite intestinal por LES(6).

No presente caso a paciente foi submetida a laparotomia exploradora, pois apresentava sinais de irrritação peritoneal e dor abdominal incontrolável, sendo imperativo excluir a possibilidade de perfuração intestinal. Em alguns casos, a diferenciação da dor abdominal por peritonite lúpica daquela por causas que requeiram intervenção cirúrgica é bastante difícil(9). Com base nos achados intra-operatórios, a paciente teve firmados os diagnósticos de peritonite lúpica e isquemia mesentérica, sem perfuração de alças.

REFERÊNCIAS

1.Ha HK, Lee SH, Rha SE, et al. Radiologic features of vasculitis involving the gastrointestinal tract. RadioGraphics 2000;20:779–94.

2.Rha SE, Ha HK, Lee SH, et al. CT and MR imaging findings of bowel ischemia from various primary causes. RadioGraphics 2000;20:29–42.

3.Geboes K, Dalle I. Vasculitis and the gastrointestinal tract. Acta Gastroenterol Belg 2002;65:204–12.

4.Wittenberg J, Harisinghani MG, Jhaveri K, Varghese J, Mueller PR. Algorithmic approach to CT diagnosis of the abnormal bowel wall. RadioGraphics 2002;22:1093–107.

5.Schoen FJ, Cotran RS. Blood vessels. In: Cotran RS, Kumar V, Collins T, eds. Robbins Pathologic basis of disease. 6th ed. Philadelphia, PA: Saunders, 1999:493–542.

6.Grimbacher MH, Kalden JK, Köhler G, Blum HE, Peter HH. Successful treatment of gastrointestinal vasculitis due to systemic lupus erythematosus with intravenous pulse cyclophosphamide: a clinical case report and review of the literature. Br J Rheumatol 1988;37:1023–8.

7.Byun JY, Ha HK, Yu SY, et al. CT features of systemic lupus erythematosus in patients with acute abdominal pain: emphasis on ischemic bowel disease. Radiology 1999;211:203–9.

8.Macari M, Chandarana H, Balthazar E, Babb J. Intestinal ischemia versus intramural hemorrhage: CT evaluation. AJR 2003;180:177–84.

9.Wakiyama S, Yoshimura K, Shimada M, Sugimachi K. Lupus peritonitis mimicking acute surgical abdomen in a patient with systemic lupus erythematosus: report of a case. Surg Today 1996;26:715–8.

  • Endereço para correspondência
    Dra. Angela H. Motoyama Caiado
    Alameda Franca, 318, apto. 23, Jardim Paulista
    São Paulo, SP, 01422-000
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    Trabalho realizado no Setor de Emergências do Instituto de Radiologia (InRad) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jul 2003
    • Data do Fascículo
      Jun 2003
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