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Contribuição da ultrassonografia para o diagnóstico das alterações histopatológicas presentes na hepatite C crônica, com ênfase na esteatose hepática: Parte I

Resumos

OBJETIVO: Avaliar a contribuição da ultrassonografia no estudo das alterações histopatológicas encontradas na hepatite crônica pelo vírus C, com ênfase para a esteatose hepática. MATERIAIS E MÉTODOS: Foram comparados os resultados dos exames ultrassonográficos do fígado de 192 pacientes portadores de hepatite crônica pelo vírus C, com os achados histopatológicos dos fragmentos obtidos por biópsia hepática. Todos os exames ultrassonográficos obedeceram a um mesmo protocolo, sendo analisados os seguintes critérios: ecogenicidade, ecotextura e atenuação. Os pacientes foram agrupados considerando-se os com alterações ultrassonográficas e os sem alterações ultrassonográficas, sendo comparados com as alterações histopatológicas presentes. RESULTADOS: Entre as alterações histopatológicas presentes, apenas os graus 0 e 3 de alteração arquitetural e a esteatose hepática apresentaram diferença estatística significante entre os dois grupos. Dentre os critérios ultrassonográficos avaliados, a atenuação foi o que apresentou melhor correlação com a esteatose hepática. CONCLUSÃO: Os resultados do trabalho demonstraram que, em pacientes com hepatite crônica pelo vírus C, a ultrassonografia apresentou limitações à caracterização das alterações histopatológicas, apresentando concordância regular com o diagnóstico de esteatose hepática. Destaca-se a capacidade do método em mostrar a probabilidade de inexistência de esteatose hepática, tendo em vista a especificidade de 77,9% e o valor preditivo negativo de 95,5%.

Ultrassonografia; Hepatite C crônica; Esteatose hepática; Biópsia hepática


OBJECTIVE: To evaluate the role of ultrasonography in the assessment of histopathological changes in patients with chronic hepatitis C, with emphasis on hepatic steatosis. MATERIALS AND METHODS: Liver ultrasonography results were compared with histopathological findings of liver biopsy of 192 patients with chronic hepatitis C virus infection. All the US examinations followed a single protocol, analyzing the following aspects: echogenicity, echotexture and attenuation. The patients sample was divided into two groups as follows: patients with sonographic changes and patients with no sonographic changes. Sonographic findings of both groups were compared with histopathological findings after liver biopsy. RESULTS: Statistically significant intergroup differences were observed just regarding architectural changes grades 0 and 3 and hepatic steatosis. Attenuation was the sonographic criterion that was best correlated with hepatic steatosis. CONCLUSION: The results of the present study demonstrate that, in patients with chronic hepatitis C, ultrasonography has limitations in the characterization of histopathological changes, with an intermediate rate of agreement with the diagnosis of hepatic steatosis. Considering the specificity of 77.9% and the negative predictive value of 95.5%, the authors highlight the capacity of the method to demonstrate the probability of absence of hepatic steatosis.

Ultrasonography; Chronic hepatitis C virus infection; Hepatic steatosis; Liver biopsy


ARTIGO ORIGINAL

Contribuição da ultrassonografia para o diagnóstico das alterações histopatológicas presentes na hepatite C crônica, com ênfase na esteatose hepática - Parte I* Endereço para correspondência: Dra. Marcia Wang Matsuoka Avenida Engenheiro Luiz Gomes Cardim Sangirardi, 770, ap. 101 Vila Mariana São Paulo, SP, Brasil, 04112-080 E-mail: mwmatsuoka@yahoo.com.br

Marcia Wang MatsuokaI; Ilka Regina Souza de OliveiraII; Azzo WidmanIII; Arnaldo ZanotoIV; Sérgio Keidi KodairaV; Leonardo Ellery MarinhoVI; Wilson Jacob FilhoVII; Giovanni Guido CerriVIII

IDoutora em Medicina, Médica Assistente do Instituto da Criança (ICr) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), São Paulo, SP, Brasil

IIDoutora em Medicina, Docente do Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), São Paulo, SP, Brasil

IIIDoutor em Medicina, Médico Assistente Supervisor da Divisão de Cirurgia do Aparelho Digestivo II do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), São Paulo, SP, Brasil

IVProfessor Assistente, aposentado, da Disciplina de Técnica Cirúrgica e Cirurgia Experimental do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), São Paulo, SP, Brasil

VDoutor em Medicina, Médico Assistente do Instituto de Radiologia (InRad) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), São Paulo, SP, Brasil

VIMédico Especialista em Diagnóstico por Imagem do Centro de Tomografia Computadorizada do Hospital Samaritano, São Paulo, SP, Brasil

VIIProfessor Titular, Diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), São Paulo, SP, Brasil

VIIIProfessor Titular do Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Diretor Geral do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência * Trabalho realizado no Instituto de Radiologia (InRad) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), São Paulo, SP, Brasil.

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a contribuição da ultrassonografia no estudo das alterações histopatológicas encontradas na hepatite crônica pelo vírus C, com ênfase para a esteatose hepática.

MATERIAIS E MÉTODOS: Foram comparados os resultados dos exames ultrassonográficos do fígado de 192 pacientes portadores de hepatite crônica pelo vírus C, com os achados histopatológicos dos fragmentos obtidos por biópsia hepática. Todos os exames ultrassonográficos obedeceram a um mesmo protocolo, sendo analisados os seguintes critérios: ecogenicidade, ecotextura e atenuação. Os pacientes foram agrupados considerando-se os com alterações ultrassonográficas e os sem alterações ultrassonográficas, sendo comparados com as alterações histopatológicas presentes.

RESULTADOS: Entre as alterações histopatológicas presentes, apenas os graus 0 e 3 de alteração arquitetural e a esteatose hepática apresentaram diferença estatística significante entre os dois grupos. Dentre os critérios ultrassonográficos avaliados, a atenuação foi o que apresentou melhor correlação com a esteatose hepática.

CONCLUSÃO: Os resultados do trabalho demonstraram que, em pacientes com hepatite crônica pelo vírus C, a ultrassonografia apresentou limitações à caracterização das alterações histopatológicas, apresentando concordância regular com o diagnóstico de esteatose hepática. Destaca-se a capacidade do método em mostrar a probabilidade de inexistência de esteatose hepática, tendo em vista a especificidade de 77,9% e o valor preditivo negativo de 95,5%.

Unitermos: Ultrassonografia; Hepatite C crônica; Esteatose hepática; Biópsia hepática.

INTRODUÇÃO

A ultrassonografia é um método de imagem de primeira escolha por ser não invasivo, disponível e de aplicação prática(1-3). No fígado, os aspectos avaliados são: biometria, forma, contornos, disposição dos vasos intra-hepáticos e as características ecográficas do parênquima: ecotextura, ecogenicidade e atenuação.

O parênquima hepático normal apresenta, à ultrassonografia, ecotextura homogênea e ecogenicidade intermediária, sendo geralmente iso ou hiperecogênico em relação ao córtex renal e hipoecogênico em relação ao tecido esplênico. A atenuação do feixe acústico é discreta, permitindo boa identificação dos vasos intra-hepáticos e do diafragma na região posterior do fígado(4-6).

Nas doenças hepáticas inflamatórias, os aspectos ultrassonográficos são variáveis de acordo com a fase evolutiva da doença, sendo habitualmente normais na fase aguda. Na fase crônica, com o desenvolvimento de cirrose, podem ser observadas irregularidades nos contornos hepáticos e alterações das características teciduais do parênquima(7,8).

Dentre os diferentes tipos de hepatites, a causada pelo vírus C tem sido motivo de investigação clínica e ultrassonográfica, dada sua alta prevalência na população em geral(9-11).

Esta afecção, que acomete aproximadamente 170 milhões de pessoas no mundo, pode apresentar evolução variada: 30% dos portadores terão hepatite crônica leve e estável por décadas; 40%, uma evolução com diferentes graus de fibrose, porém sem desenvolver cirrose; e 30%, progressão severa, evoluindo para cirrose(12). Dentre os pacientes que desenvolvem cirrose, 20% terão complicações decorrentes de hipertensão portal com o avançar da doença e 1% a 7% poderão apresentar carcinoma hepatocelular(10,11,13,14).

São considerados sinais histopatológicos indicativos de hepatite C as alterações arquiteturais do lóbulo hepático, os componentes de necroinflamação e a esteatose hepática (EH), definida como distúrbio frequentemente reversível do metabolismo e caracterizada pela infiltração gordurosa do fígado, resultante do acúmulo de triglicérides no interior dos hepatócitos(7,15).

Na hepatite C, estudos de necrópsia mostraram incidência de EH em 31% a 72% dos casos e biópsias hepáticas revelaram sua presença em aproximadamente 50% dos casos(16). No entanto, o papel da EH no aparecimento, fisiopatologia e progressão da doença hepática ainda não está bem estabelecido, sendo descrita a relação entre a EH, a atividade necroinflamatória e a progressão da fibrose(17-20).

A biópsia hepática é considerada "padrão ouro" para o diagnóstico e estadiamento da hepatite C e da EH, sendo também relevante para a orientação terapêutica destas doenças(11,21,22).

A avaliação dos aspectos histopatológicos da hepatite C e da EH pode ser realizada de modo limitado pela ultrassonografia. Em relação à EH, tanto as características ecográficas do parênquima como a biometria hepática são habitualmente consideradas.

Considerando as características ecográficas do parênquima hepático, o diagnóstico da EH é baseado no aumento gradativo da ecogenicidade e da atenuação do feixe sonoro, sendo que, quando presentes, as alterações texturais são discretas e de menor relevância.

Todavia, estes sinais também podem estar presentes na fibrose e/ou nos processos inflamatórios hepáticos, limitando desta forma o desempenho do método ultrassonográfico para o diagnóstico da EH(7,23-35). Além disso, a análise dos aspectos ecográficos do parênquima hepático apresenta componente subjetivo, obtendo-se resultados conflitantes relativos ao valor específico deste método para o diagnóstico da EH, com taxas de sensibilidade que variam entre 55% e 95%(25,26,36).

Deste modo, tendo em vista os resultados controversos do diagnóstico da EH pela ultrassonografia, o presente estudo foi realizado.

Inicialmente, serão apresentados os resultados obtidos exclusivamente por meio da análise das alterações ecográficas do parênquima hepático (Parte I). Sequencialmente, serão apresentados os resultados obtidos mediante a análise conjunta entre os critérios ecográficos supracitados e os dados biométricos tanto do fígado como da camada adiposa subcutânea no hipocôndrio direito (Parte II).

MATERIAIS E MÉTODOS

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética para a Análise de Pesquisa (CAP-Pesq) da Diretoria Clínica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).

Foram estudados 192 pacientes consecutivos com diagnóstico clínico-laboratorial de hepatite crônica pelo vírus C, exclusivamente, encaminhados ao Hospital Dia desta mesma entidade para biópsia hepática sob orientação ultrassonográfica, no período de julho de 2002 a maio de 2003.

Na população estudada, a média aritmética da idade e respectivo desvio-padrão foi de 43,22 ± 13,21 anos. A distribuição da idade foi normal de acordo com a prova de Kolmogorov-Smirnov, observando-se homogeneidade da amostra, permitindo a comparação entre os grupos.

Com a finalidade de correlacionar os aspectos ultrassonográficos e as alterações histopatológicas do fígado nos pacientes com hepatite C crônica, os doentes foram divididos em dois grupos: a) com alterações ultrassonográficas; b) sem alterações ultrassonográficas.

As médias e desvios-padrão da idade entre os dois grupos foram, respectivamente, 45,03 ± 12,57 e 42,42 ± 13,46 anos, não havendo diferença estatística significante entre ambos (t não pareado = 1,27; p = 0,207050).

Dos 192 pacientes estudados, 91 (47,4%) eram masculinos com 43,05 ± 12,95 anos e 101 (52,6%) eram femininos com 43,38 ± 13,51 anos. Não houve diferença estatística significante entre a proporção de ambos os sexos nos dois grupos (Χ2c = 0,02; p = 0,88454) e entre as médias de idade (t não pareado = 0,17; p = 0,86693), evidenciando homogeneidade da amostra e permitindo, desta forma, a comparação entre eles.

Os exames ultrassonográficos e as biópsias hepáticas foram realizados cada qual por um médico especialista e sempre o mesmo.

No presente estudo, a EH foi classificada ultrassonograficamente em:

- leve: parênquima hepático com aumento discreto da ecogenicidade e da atenuação do feixe sonoro, com redução discreta da visualização do diafragma e da vascularização intra-hepática;

- moderada: parênquima hepático com aumento moderado da ecogenicidade e da atenuação do feixe sonoro, com redução moderada da visualização do diafragma e da vascularização intra-hepática;

- acentuada: parênquima hepático com aumento acentuado da ecogenicidade e da atenuação do feixe sonoro, com perda acentuada ou completa da visualização do diafragma e da vascularização intra-hepática(5,7).

Adicionalmente, a ecotextura do parênquima hepático foi avaliada, sendo classificada em homogênea ou heterogênea.

O grupo de pacientes com padrão ultrassonográfico do parênquima hepático alterado foi definido pela presença conjunta de pelo menos dois dos parâmetros analisados:

a) ecogenicidade aumentada (discreta, moderada ou acentuadamente);

b) ecotextura heterogênea;

c) atenuação do feixe sonoro aumentada (discreta, moderada ou acentuadamente).

Os pacientes biopsiados foram submetidos ao exame ultrassonográfico previamente à biópsia hepática, com o intuito de delimitar o melhor local para a punção.

Os exames ultrassonográficos foram realizados com equipamento Toshiba modelo SSA-240A® (Toshiba; Tóquio, Japão), com transdutor convexo de 3,5 MHz, respeitando-se o seguinte protocolo:

a) ganho total: ajustado de modo que o conteúdo líquido da vesícula biliar e o sangue no interior da veia cava inferior se apresentassem anecogênicos. Curva de ganho calibrada na posição neutra;

b) posicionamento do paciente: decúbito dorsal horizontal;

c) varredura do transdutor realizada no hipocôndrio direito nos eixos longitudinal, transversal e oblíquo.

Os pacientes com características de esteatose focal não foram incluídos na amostra da população estudada.

Os fragmentos hepáticos obtidos nas biópsias foram analisados obedecendo aos critérios do Consenso Nacional de Patologia de 1999 da Sociedade Brasileira de Patologia. Este Consenso avalia as hepatites crônicas, mediante o estadiamento das alterações arquiteturais presentes, gradua a atividade da afecção em curso, através da avaliação da atividade necroinflamatória, e descreve alterações concomitantes, tais como: EH, infiltrado linfoide, agressão ductal, depósito de ferro. Além disso, de acordo com a classificação adotada pelo Consenso Brasileiro de Patologia de 2002, o comprometimento hepático pelo vírus C é graduado em fígado reacional, hepatite crônica propriamente dita e cirrose(15).

Para permitir a análise estatística, os grupos que traduzem a atividade necroinflamatória (atividade portal, atividade periportal e atividade parenquimatosa), habitualmente graduados de 0 a 4 separadamente, foram agrupados através da somatória da graduação de cada um destes fatores conferida pela anatomia patológica, estabelecendo-se 13 grupos (0 a 12). Posteriormente, estes grupos foram reagrupados em quatro grupos, para que fosse possível a comparação com uma mesma escala, entre a atividade necroinflamatória, EH e as alterações arquiteturais presentes.

A presença de EH também foi graduada entre 0, 1, 2, 3 e 4, correspondendo à intensidade crescente de infiltração das partículas de gordura no fígado, de leve a acentuada.

O nível de significância adotado foi de 5% (α = 0,05) para a análise estatística.

RESULTADOS

Entre os 192 pacientes estudados, 59 (30,7%) apresentaram padrão ultrassonográfico alterado e 133 (69,3%), padrão ultrassonográfico sem alterações.

Padrões histopatológicos

Foram relacionados os padrões histopatológicos (alterações arquiteturais, atividade necroinflamatória e EH) encontrados nos grupos com e sem alterações ultrassonográficas. Houve diferença estatisticamente significante entre estes grupos para alterações arquiteturais e EH e não para necroinflamação (prova não paramétrica de Mann-Whitney).

1. Alteração arquitetural (estrutural)

A quantificação das alterações histopatológicas estruturais nos grupos com e sem alterações ultrassonográficas são mostradas na Tabela 1.

Realizou-se a prova estatística do qui-quadrado (Χ2) para análise da variação conjunta das proporções (0, 1, 2, 3 e 4) entre os dois grupos (Χ2 = 13,40; p = 0,00949*).

As proporções de cada quantificação entre os grupos com e sem alterações ultrassonográficas foram analisadas pelo teste de diferença entre porcentuais, sendo observada diferença significante no grau 0 (normal) e no grau 3 (pré-cirrose).

Não houve diferença na quantificação 1 e 2 e também na 4, que representa a cirrose.

2. Necroinflamação

As médias das alterações necroinflamatórias foram analisadas, não havendo diferença estatística na quantificação da atividade necroinflamatória entre os grupos com e sem alterações ultrassonográficas (prova não paramétrica de Mann-Whitney).

3. Esteatose

Dos 192 pacientes estudados, 81 (42,2%) apresentaram esteatose ao resultado histopatológico e 111 (57,8%) não apresentaram esteatose.

Na casuística estudada observou-se número reduzido de pacientes classificados em cada um dos graus de EH (0, 1, 2, 3 e 4).

Os resultados demonstraram predomínio do grau leve de EH nos dois grupos de pacientes (com e sem alterações ultrassonográficas), sendo prevalente no grupo sem alterações ultrassonográficas, com prevalência estimada em 95,5% de pacientes.

Considerando os resultados acima, que caracterizam a dificuldade do método para o diagnóstico do grau leve de EH, e com o objetivo de viabilizar a análise estatística, os diferentes graus de EH resultantes da análise histopatológica da presente casuística foram divididos em dois subgrupos: I) graus 0 e 1; II) graus 2, 3 e 4 (Tabela 2).

Deste modo, com relação à presença de EH graus 2, 3 e 4 (moderada e acentuada), a análise da amostra evidencia haver diferença estatisticamente significante entre os grupos com e sem alterações ultrassonográficas, sendo maior no grupo com alterações.

Observou-se diferença significante entre as proporções de EH nos grupos com e sem alterações ultrassonográficas e entre as proporções de EH nos subgrupos I e II (Χ2c = 35,23; p = 0,00001*), com sensibilidade de 79,3%, especificidade de 77,9%, valor preditivo positivo de 39,0%, valor preditivo negativo de 95,5%, nível de concordância de 78,1% e coeficiente kappa de Cohen (Κ) = 0,4015, com concordância regular.

Parâmetros ultrassonográficos

Dentre os três componentes ultrassonográficos avaliados (ecotextura, ecogenicidade e atenuação do feixe sonoro), a atenuação apresentou maior correlação com a EH, quando comparada à análise conjunta dos mesmos pela correlação não paramétrica de Spearman (Tabela 3).

As Figuras 1, 2 e 3 ilustram os diferentes graus de EH pela ultrassonografia.




DISCUSSÃO

A literatura tem apresentado referências conflitantes no que diz respeito à correlação entre os aspectos ultrassonográficos e os achados histopatológicos da cirrose hepática e da EH.

A realização do presente estudo foi favorecida pela possibilidade de se comparar os aspectos ultrassonográficos do fígado com os achados histopatológicos, no instante da biópsia hepática percutânea orientada pela ultrassonografia, numa população de pacientes com hepatite C.

Entre os dois grupos de pacientes estabelecidos, com alterações e sem alterações ultrassonográficas, observou-se diferença estatisticamente significante entre as alterações arquiteturais e a EH e diferença não significante em relação à atividade necroinflamatória. Na literatura consultada não há estudos correlacionando este método e a necroinflamação isoladamente.

Considerando as alterações arquiteturais, os pacientes com alterações ultrassonográficas e os pacientes sem alterações ultrassonográficas apresentaram diferença estatisticamente significante nas graduações de fibrose 0 e 3. Não houve diferença significante nos graus 1, 2 e 4 de alterações arquiteturais. A comparação integral entre estes resultados e aqueles da literatura não foi factível devido à ausência de outros estudos sistematizados de correlação ultrassonográfica e histopatológica, com relação às alterações arquiteturais e seus diferentes graus. No entanto, considerando exclusivamente as alterações arquiteturais grau 4 (cirrose), os resultados obtidos concordam com observações encontradas na literatura, de que não há diferença ultrassonográfica estatisticamente significativa neste grau de alteração arquitetural(23,25,26,29,34,35,37-39).

Assim, este estudo demonstrou que a caracterização dos diferentes graus de alteração arquitetural do parênquima hepático apresenta limitações à ultrassonografia.

Com relação à EH, a análise histopatológica mostrou sua presença em 42,2% dos pacientes estudados, concordando com a literatura que cita a sua presença em aproximadamente 50% dos casos de hepatite crônica pelo vírus C(19,20,39).

Houve diferença estatisticamente significante entre os grupos com e sem alterações ultrassonográficas, exclusivamente com relação à proporção de EH moderada e acentuada, sendo maior no grupo com alterações ultrassonográficas, demonstrando a capacidade do método em identificar estes graus de esteatose (graus 2, 3 e 4).

A dificuldade do método ultrassonográfico em realizar o diagnóstico do grau leve de EH foi demonstrada no presente estudo pelo predomínio do grau leve de EH tanto no grupo de pacientes com alterações ultrassonográficas como naquele sem alterações.

Os resultados do presente estudo concordam com os de autores que afirmam a sensibilidade elevada da ultrassonografia para o diagnóstico dos graus moderados e severos da EH e reduzida para os graus leves(7,24-33). No entanto, outros estudos afirmam não ser possível diagnosticar a EH por ultrassonografia, diferindo desta forma dos resultados obtidos(25,32,35).

Ressalta-se que, dos critérios ultrassonográficos avaliados, a atenuação do feixe sonoro foi o que apresentou maior correlação com a EH. Por sua vez, a ecogenicidade apresentou correlação com a EH, porém menos significativa, enquanto a ecotextura não apresentou correlação com a EH (Tabela 3).

Na literatura os dados relacionados à ecogenicidade para o diagnóstico de EH são conflitantes. Alguns autores associam o aumento da ecogenicidade ao diagnóstico desta afecção(40,41), enquanto outros afirmam haver correlação entre a hiperecogenicidade e a fibrose ou necroinflamação(32,35) . Com relação à atenuação, autores afirmam que a atenuação seria um bom critério para o diagnóstico da EH(22,38,42).

Finalizando, observa-se que o resultado da aplicação da ultrassonografia no diagnóstico da EH pode variar em função do desempenho de cada um dos parâmetros utilizados: ecotextura, ecogenicidade e atenuação. Neste trabalho, a atenuação foi o parâmetro que apresentou importância maior para o diagnóstico da EH.

CONCLUSÕES

Os resultados do presente estudo demonstraram que, considerando as alterações histopatológicas presentes na hepatite por vírus C, a ultrassonografia apresentou ausência de capacidade de diferenciar a necroinflamação, assim como limitações ao diagnóstico das alterações arquiteturais. Em relação à EH, a análise estatística demonstrou concordância regular com a presença de EH à análise histopatológica. Destaca-se a capacidade do método para mostrar a probabilidade de inexistência de EH, tendo em vista a especificidade de 77,9% e, principalmente, o valor preditivo negativo de 95,5%.

Recebido para publicação em 29/11/2010. Aceito, após revisão, em 17/5/2011.

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  • Endereço para correspondência:
    Dra. Marcia Wang Matsuoka
    Avenida Engenheiro Luiz Gomes Cardim Sangirardi, 770, ap. 101 Vila Mariana
    São Paulo, SP, Brasil, 04112-080
    E-mail:
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    Trabalho realizado no Instituto de Radiologia (InRad) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), São Paulo, SP, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011
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