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Traqueobronquite aguda causada por Aspergillus: relato de caso e achados de imagem* * Trabalho realizado no Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), São Paulo, SP, Brasil.

Resumos

Traqueobronquite aguda é uma forma rara da aspergilose invasiva e geralmente ocorre em pacientes com imunodepressão grave. Relatamos o caso de um paciente no pós-transplante de medula óssea com a manifestação desta doença, dando ênfase aos achados tomográficos encontrados.

Aspergilose; Doença da traqueia; Hospedeiro imunocomprometido


Acute tracheobronchitis is a rare manifestation of invasive aspergillosis, generally occurring in severely immunocompromised patients. The authors report the case of a patient presenting with this condition after bone-marrow transplantation, with emphasis on tomographic findings.

Aspergillosis; Tracheal disease; Immunocompromised host


INTRODUÇÃO

A traqueobronquite aguda causada por Aspergillus sp é uma manifestação rara da forma invasiva deste fungo. Também conhecida como traqueobronquite ulcerativa e pseudomembranosa, geralmente ocorre em pacientes com imunodepressão grave(1Kang EY. Large airway diseases. J Thorac Imaging. 2011;26:249-62.,2Franquet T, Müller NL, Oikonomou A, et al. Aspergillus infection of the airways: computed tomography and pathologic findings. J Comput Assist Tomogr. 2004;28:10-6.) e apresenta alta mortalidade, relatada em mais de 70% dos casos(3Krenke R, Grabczak EM. Tracheobronchial manifestations of Aspergillus infections. ScientificWorldJournal. 2011;11:2310-29.), e até o presente foi pouco descrita e ilustrada na literatura.

Relatamos um caso de aspergilose traqueobrônquica em paciente com quadro de neutropenia febril no pós-transplante de medula óssea, sendo discutidos os principais achados tomográficos.

RELATO DO CASO

Homem de 62 anos, no 16º dia de pós-transplante autólogo de medula óssea por linfoma de células do manto, apresentando quadro de neutropenia febril associada a tosse seca e dispneia. Foi solicitada tomografia computadorizada (TC) de tórax para pesquisa de foco infeccioso, que demonstrou espessamento traqueobrônquico difuso associado a densificação da gordura mediastinal adjacente (Figura 1).

Figura 1
TC de tórax sem contraste, cortes axiais. a: Janela de mediastino – discreto espessamento traqueal (seta) associado a tênue densificação da gordura mediastinal adjacente. b: Janela de mediastino – nota-se também a presença de espessamento parietal dos brônquios principais, mais evidente à esquerda (seta). c: Janela de pulmão – espessamento parietal brônquico (seta) associado a atelectasias laminares (cabeça de seta).

O paciente já vinha fazendo uso de antibioticoterapia empírica pelo quadro febril, recebendo inclusive cobertura para infecções fúngicas com anfotericina B. Foi submetido a tomografias de controle, que não apresentaram alterações evolutivas significativas. Entretanto, o paciente referia persistência da tosse e hemoptoicos. A tomografia realizada 1 mês e 10 dias após mostrou piora nos achados de imagem, notando-se um maior espessamento da traqueia e das paredes brônquicas e aumento da densificação da gordura mediastinal adjacente (Figura 2).

Figura 2
TC de tórax sem contraste, cortes axiais, realizada 1 mês e 10 dias após a primeira. a,b: Janela de mediastino – houve aumento do espessamento difuso da parede traqueal e das paredes brônquicas (setas), principalmente à esquerda, e maior borramento da gordura mediastinal adjacente. c: Janela de pulmão – aumento do espessamento parietal brônquico e das atelectasias pulmonares no lobo inferior esquerdo (cabeça de seta), com surgimento de micronódulos centrolobulares adjacentes.

Após três semanas, o paciente foi submetido a laringotraqueobroncoscopia, sendo observadas, na traqueia e na árvore brônquica, placas esbranquiçadas aderidas à parede, porém destacáveis, com mucosa subjacente friável. Algumas dessas placas determinavam obstrução de óstios segmentares. Foi colhido lavado broncoalveolar do lobo inferior esquerdo e foram realizadas biópsias endobrônquicas.

A biópsia revelou presença de hifas com bifurcação em 45°, coradas pelo método histoquímico de Grocott, com características de Aspergillus sp (Figuras 3a e 3b), e a TC de tórax, realizada dois dias após a laringotraqueobroncoscopia, mostrou progressão da doença (Figura 3c). A cultura do lavado broncoalveolar foi positiva para Aspergillus sp.

Figura 3
Anatomia patológica e TC de tórax quatro semanas após o primeiro exame. a,b: Estruturas fúngicas com bifurcação em 45°. b: Coloração Grocott, específica para fungos. c: TC de tórax sem contraste, corte axial, quatro semanas após o primeiro exame revela progressão da doença com maior espessamento traqueobrônquico (seta), bem como da densificação da gordura mediastinal.

Em virtude da estabilidade clínica, o paciente recebeu alta hospitalar para acompanhamento ambulatorial no hospital-dia, sendo introduzido, nesta ocasião, outro antifúngico (voriconazol via oral), com o intuito de ampliar a cobertura antifúngica.

Após dois dias, foi novamente internado por quadro de dor abdominal, diarreia, hipotensão e pico febril, com diagnóstico de choque séptico de foco abdominal, necessitando de cuidados intensivos em unidade de terapia intensiva e, a despeito do suporte clínico, o paciente faleceu em três dias.

DISCUSSÃO

O espectro do acometimento da árvore brônquica e do parênquima pulmonar causado pelo Aspergillus sp é variável de acordo com a imunidade do paciente e a preexistência de doença pulmonar. É uma infecção oportunista comum e potencialmente letal que pode se apresentar das seguintes formas: broncopulmonar alérgica, saprofítica (aspergiloma), angioinvasiva e crônica necrosante, além da forma traqueobrônquica (invasiva das vias aéreas). Esta última é uma manifestação incomum da doença, predominantemente limitada às vias aéreas, e ocorre geralmente em pacientes com imunossupressão grave ou com síndrome da imunodeficiência adquirida(1Kang EY. Large airway diseases. J Thorac Imaging. 2011;26:249-62.,2Franquet T, Müller NL, Oikonomou A, et al. Aspergillus infection of the airways: computed tomography and pathologic findings. J Comput Assist Tomogr. 2004;28:10-6.,4McGuinness G, Gruden JF, Bhalla M, et al. AIDS-related airway disease. AJR Am J Roentgenol. 1997;168:67-77.). Além desses, outros importantes fatores de risco descritos na literatura são o transplante de pulmão e a corticoterapia(5Fernández-Ruiz M, Silva JT, San-Juan R, et al. Aspergillus tracheobronchitis: report of 8 cases and review of the literature. Medicine (Baltimore). 2012;91:261-73.). A apresentação clínica é variável e inespecífica, o que mascara e atrasa o seu diagnóstico. Tosse, febre e dispneia são os sintomas mais frequentes e a hemoptise é relatada em 11,5% a 26,3% dos casos(5Fernández-Ruiz M, Silva JT, San-Juan R, et al. Aspergillus tracheobronchitis: report of 8 cases and review of the literature. Medicine (Baltimore). 2012;91:261-73.,6Wu N, Huang Y, Li Q, et al. Isolated invasive Aspergillus tracheobronchitis: a clinical study of 19 cases. Clin Microbiol Infect. 2010;16:689-95.).

Recentemente, o uso da dosagem seriada da galactomanana (polissacarídeo da parede do Aspergillus sp) tem sido proposto para o diagnóstico de aspergilose pulmonar invasiva. No entanto, apesar da sua alta especificidade (85% a 99%), alguns estudos têm demonstrado sensibilidade variável de 29% a 94%(7Weisser M, Rausch C, Droll A, et al. Galactomannan does not precede major signs on a pulmonary computerized tomographic scan suggestive of invasive aspergillosis in patients with hematological malignancies. Clin Infect Dis. 2005;41:1143-9.). Nestes casos, os achados tomográficos típicos parecem preceder as alterações laboratoriais da aspergilose pulmonar invasiva nos pacientes neutropênicos, precedendo inclusive a elevação da galactomanana sérica(7Weisser M, Rausch C, Droll A, et al. Galactomannan does not precede major signs on a pulmonary computerized tomographic scan suggestive of invasive aspergillosis in patients with hematological malignancies. Clin Infect Dis. 2005;41:1143-9.).

Na broncoscopia, a aspergilose traqueobrônquica pode se apresentar como uma forma ulcerativa focal ou difusa, ou ainda, como placas elevadas esbranquiçadas associadas a lesões inflamatórias e pseudomembranas(1Kang EY. Large airway diseases. J Thorac Imaging. 2011;26:249-62.,2Franquet T, Müller NL, Oikonomou A, et al. Aspergillus infection of the airways: computed tomography and pathologic findings. J Comput Assist Tomogr. 2004;28:10-6.), sendo historicamente classificada em três formas de acordo com tais achados: pseudomembranosa, ulcerativa e obstrutiva(4McGuinness G, Gruden JF, Bhalla M, et al. AIDS-related airway disease. AJR Am J Roentgenol. 1997;168:67-77.,5Fernández-Ruiz M, Silva JT, San-Juan R, et al. Aspergillus tracheobronchitis: report of 8 cases and review of the literature. Medicine (Baltimore). 2012;91:261-73.). No entanto, atualmente, alguns autores afirmam que tais formas representariam diferentes estágios de uma mesma doença e não entidades distintas. Uma nova classificação foi proposta: tipo I - infiltração superficial; tipo II - envolvimento mais profundo com acometimento da cartilagem e destruição das vias aéreas; tipo III - obstrutiva (com oclusão da via aérea maior ou igual a 50% por pseudomembranas, tecido de granulação polipoide ou tecido necrótico); tipo IV - forma mista (coexistência de duas ou mais formas)(6Wu N, Huang Y, Li Q, et al. Isolated invasive Aspergillus tracheobronchitis: a clinical study of 19 cases. Clin Microbiol Infect. 2010;16:689-95.). O tipo II parece estar mais relacionado a maior agressividade e pior prognóstico(6Wu N, Huang Y, Li Q, et al. Isolated invasive Aspergillus tracheobronchitis: a clinical study of 19 cases. Clin Microbiol Infect. 2010;16:689-95.).

Em relação aos achados de imagem, a literatura descreve o espessamento da parede traqueal ou brônquica como principal achado(1Kang EY. Large airway diseases. J Thorac Imaging. 2011;26:249-62.,2Franquet T, Müller NL, Oikonomou A, et al. Aspergillus infection of the airways: computed tomography and pathologic findings. J Comput Assist Tomogr. 2004;28:10-6.). Presença de placas irregulares, multifocais na parede da traqueia, que apresentam muitas vezes alta atenuação, em razão da habilidade do Aspergillus sp de fixar cálcio, também é descrita(7Weisser M, Rausch C, Droll A, et al. Galactomannan does not precede major signs on a pulmonary computerized tomographic scan suggestive of invasive aspergillosis in patients with hematological malignancies. Clin Infect Dis. 2005;41:1143-9.,8Gotway MB, Dawn SK, Caoili EM, et al. The radiologic spectrum of pulmonary Aspergillus infections. J Comput Assist Tomogr. 2002;26:159-73.). Segundo Fernández-Ruiz et al.(5Fernández-Ruiz M, Silva JT, San-Juan R, et al. Aspergillus tracheobronchitis: report of 8 cases and review of the literature. Medicine (Baltimore). 2012;91:261-73.), os sinais específicos são encontrados em apenas 25% dos casos: espessamento traqueobrônquico liso ou nodular - 14,3%; atelectasias - 8,2%; massa endobrônquica - 2,1%. No nosso caso, além do espessamento traqueobrônquico, observamos também densificação da gordura mediastinal adjacente, achado que pode estar relacionado a infiltração dos planos teciduais adjacentes.

A biópsia transbrônquica associada a cultura da amostra tem alta acurácia diagnóstica, no entanto, muitas vezes ela é contraindicada pela presença de trombocitopenia ou coagulopatia, observada nos pacientes com doenças hematológicas malignas.

Não há recomendações específicas para o tratamento da aspergilose traqueobrônquica. O uso de voriconazol tem sido relatado na literatura como medicamento de escolha, com a desvantagem do seu alto custo. Desta forma, outros antifúngicos ou combinações de diferentes antifúngicos também são bastante utilizados na prática clínica(5Fernández-Ruiz M, Silva JT, San-Juan R, et al. Aspergillus tracheobronchitis: report of 8 cases and review of the literature. Medicine (Baltimore). 2012;91:261-73.). No estudo realizado por Fernández-Ruiz et al.(5Fernández-Ruiz M, Silva JT, San-Juan R, et al. Aspergillus tracheobronchitis: report of 8 cases and review of the literature. Medicine (Baltimore). 2012;91:261-73.), a forma traqueobrônquica parece ser relativamente mais benigna do que as outras formas invasivas da aspergilose, sendo os principais fatores preditores de mortalidade a neutropenia e a insuficiência respiratória aguda como apresentação inicial da doença.

Apesar da raridade, ressaltamos a importância do conhecimento da traqueobronquite aguda causada pelo Aspergillus sp, uma vez que ela acomete pacientes gravemente imunocomprometidos, com altas taxas de mortalidade, e o seu prognóstico depende do tratamento adequado precoce. Neste relato de caso procuramos dar ênfase aos achados tomográficos (pouco descritos e ilustrados na literatura), os quais muitas vezes podem ser decisivos no diagnóstico desta entidade, principalmente nos pacientes em que a broncoscopia com biópsia, ainda considerada o padrão de referência para o diagnóstico, é contraindicada.

  • *
    Trabalho realizado no Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), São Paulo, SP, Brasil.
  • Nishiyama KH, Falcão EAA, Kay FU, Teles GBS, Bernardi FDC, Funari MBG. Traqueobronquite aguda causada por Aspergillus: relato de caso e achados de imagem. Radiol Bras. 2014 Set/Out;47(5):317–319.

Agradecimentos

Agradecemos aos Drs. Hamilton Shoji, Danilo Perussi Bianco e Ricardo Mazzetti Guerrini, pelo suporte durante a preparação deste manuscrito.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Kang EY. Large airway diseases. J Thorac Imaging. 2011;26:249-62.
  • 2
    Franquet T, Müller NL, Oikonomou A, et al. Aspergillus infection of the airways: computed tomography and pathologic findings. J Comput Assist Tomogr. 2004;28:10-6.
  • 3
    Krenke R, Grabczak EM. Tracheobronchial manifestations of Aspergillus infections. ScientificWorldJournal. 2011;11:2310-29.
  • 4
    McGuinness G, Gruden JF, Bhalla M, et al. AIDS-related airway disease. AJR Am J Roentgenol. 1997;168:67-77.
  • 5
    Fernández-Ruiz M, Silva JT, San-Juan R, et al. Aspergillus tracheobronchitis: report of 8 cases and review of the literature. Medicine (Baltimore). 2012;91:261-73.
  • 6
    Wu N, Huang Y, Li Q, et al. Isolated invasive Aspergillus tracheobronchitis: a clinical study of 19 cases. Clin Microbiol Infect. 2010;16:689-95.
  • 7
    Weisser M, Rausch C, Droll A, et al. Galactomannan does not precede major signs on a pulmonary computerized tomographic scan suggestive of invasive aspergillosis in patients with hematological malignancies. Clin Infect Dis. 2005;41:1143-9.
  • 8
    Gotway MB, Dawn SK, Caoili EM, et al. The radiologic spectrum of pulmonary Aspergillus infections. J Comput Assist Tomogr. 2002;26:159-73.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2014

Histórico

  • Recebido
    03 Jul 2013
  • Aceito
    22 Out 2013
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