Acessibilidade / Reportar erro

Peritonite esclerosante encapsulante: relato de caso* * Trabalho realizado no Hospital Felício Rocho, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Resumos

Peritonite esclerosante encapsulante, causa rara de obstrução intestinal, foi descrita como uma complicação associada à diálise peritoneal, muito temida por sua gravidade. Relata-se um caso em que os achados radiológicos associados aos sintomas clínicos permitiram o diagnóstico não invasivo de peritonite esclerosante encapsulante, destacando-se a alta sensibilidade e especificidade da tomografia computadorizada na demonstração dos achados característicos.

Peritonite esclerosante encapsulante; Diálise peritoneal; Fibrose peritoneal; Obstrução intestinal; Tomografia computadorizada; Insuficiência renal crônica


Sclerosing encapsulating peritonitis, a rare cause of bowel obstruction, was described as a complication associated with peritoneal dialysis which is much feared because of its severity. The authors report a case where radiological findings in association with clinical symptoms have allowed for a noninvasive diagnosis of sclerosing encapsulating peritonitis, emphasizing the high sensitivity and specificity of computed tomography to demonstrate the characteristic findings of such a condition.

Sclerosing encapsulating peritonitis; Peritoneal dialysis; Peritoneal fibrosis; Intestinal obstruction; Computed tomography; Chronic renal failure


INTRODUÇÃO

Peritonite esclerosante encapsulante é causa rara de obstrução intestinal e caracteriza-se por espessa membrana fibrótica envolvendo parcial ou totalmente o intestino delgado(1Xu P, Chen LH, Li YM. Idiopathic sclerosing encapsulating peritonitis (or abdominal cocoon): a report of 5 cases. World J Gastroenterol. 2007;13:3649-51.). Foi descrita como doença associada a diálise peritoneal em 1978, sendo complicação rara, temida por sua gravidade(2Machado DJB, Romão Jr JE, Sabbaga E, et al. Peritonite esclerosante e encapsulante secundária à diálise peritoneal ambulatorial contínua. J Bras Nefrol. 1999;21:112-23.).

Achados radiológicos associados a sintomas clínicos permitem o diagnóstico não invasivo, sendo a tomografia computadorizada (TC) a modalidade mais sensível e específica na demonstração de achados característicos(3Choi JH, Kim JH, Kim JJ, et al. Large bowel obstruction caused by sclerosing peritonitis: contrast-enhanced CT findings. Br J Radiol. 2004;77:344-6.,4Bargman J, Harel Z. Encapsulating peritoneal sclerosis. US Nephrol. 2011;5:71-5.).

RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino, 43 anos, transplantada renal em 2002 com perda do enxerto no pós-operatório imediato, quando foi iniciada diálise peritoneal. Em 2011 foi internada apresentando dor e distensão abdominal, redução da eficiência do processo dialítico e efluente dialítico ocasionalmente sanguinolento. Radiografia de abdome mostrou calcificações lineares discretas em áreas de alças intestinais (Figura 1). A TC de abdome revelou calcificações lineares grosseiras correspondendo a espessamento e calcificações das paredes intestinais e do peritônio associadas a alças intestinais distendidas com conteúdo líquido e aéreo localizadas na região central do abdome (Figuras 2, 3 e 4). Em 2012 a paciente retornou com quadro de vômitos, dor e distensão abdominal, sendo submetida a tratamento cirúrgico, evoluindo com fístulas, instabilidade hemodinâmica e óbito, com diagnóstico de peritonite esclerosante encapsulante presumido pelo quadro clássico clínico e radiológico.

Figura 1
Radiografia de abdome em anteroposterior mostrando estruturas radiopacas alongadas na região das alças intestinais (seta) e distensão gasosa de alças de intestino delgado em região central.
Figura 2
Corte axial de TC de abdome demonstrando espessamento e calcificação das paredes intestinais e do peritônio (seta).
Figura 3
Corte coronal de TC de abdome apresentando calcificações grosseiras nas paredes intestinais e no peritônio (seta) e alças intestinais distendidas com conteúdo líquido e aéreo localizadas na região central do abdome (cabeça de seta).
Figura 4
Corte sagital de TC de abdome mostrando espessamento e calcificação das paredes intestinais e do peritônio (seta). Presença de calcificações lineares e grosseiras.

DISCUSSÃO

A peritonite esclerosante encapsulante, descrita por Owtschinnikow em 1907, é classificada em idiopática ou secundária. A forma secundária tem sido relatada principalmente em associação com diálise peritoneal contínua(1Xu P, Chen LH, Li YM. Idiopathic sclerosing encapsulating peritonitis (or abdominal cocoon): a report of 5 cases. World J Gastroenterol. 2007;13:3649-51.).

A diálise peritoneal é uma modalidade terapêutica para insuficiência renal que possui várias vantagens. Entretanto, sua eficácia em longo prazo é limitada por complicações, desde a mais comum, a peritonite bacteriana, até a mais grave, a peritonite esclerosante encapsulante, cuja incidência varia de 0,9% a 7,3%(5Stuart S, Booth TC, Cash CJC, et al. Complications of continuous ambulatory peritoneal dialysis. Radiographics. 2009;29:441-60.).

Os principais fatores de risco potenciais para o desenvolvimento de peritonite esclerosante encapsulante são a duração da diálise peritoneal e episódios repetidos de peritonite(3Choi JH, Kim JH, Kim JJ, et al. Large bowel obstruction caused by sclerosing peritonitis: contrast-enhanced CT findings. Br J Radiol. 2004;77:344-6.,5Stuart S, Booth TC, Cash CJC, et al. Complications of continuous ambulatory peritoneal dialysis. Radiographics. 2009;29:441-60.,6Habib AM, Preston E, Davenport A. Risk factors for developing encapsulating peritoneal sclerosis in the icodextrin era of peritoneal dialysis prescription. Nephrol Dial Transplant. 2010;25:1633-8.). Apesar do declínio de sua incidência nas duas últimas décadas, principalmente pela utilização de soluções mais biocompatíveis, a sobrevivência associada à peritonite esclerosante encapsulante permanece extremamente baixa(4Bargman J, Harel Z. Encapsulating peritoneal sclerosis. US Nephrol. 2011;5:71-5.).

O sistema de classificação proposto por Kawanishi et al., com base em achados clínicos e patológicos, divide a peritonite esclerosante encapsulante em quatro fases: pré-peritonite esclerosante encapsulante, inflamatória, progressiva e fibrótica. Inicialmente, os sintomas são inespecíficos (febre, ascite, perda ponderal, anorexia e alteração do hábito intestinal), indicando processo inflamatório inicial. Com a progressão da doença, sinais e sintomas de íleo surgirão(4Bargman J, Harel Z. Encapsulating peritoneal sclerosis. US Nephrol. 2011;5:71-5.). Caso a peritonite esclerosante encapsulante desenvolva-se ainda em diálise peritoneal, sinais como hemorragia de efluentes, episódios recorrentes de peritonite e problemas com a ultrafiltração podem ocorrer. O surgimento de episódios frequentes de obstrução intestinal anunciam o aparecimento da fase fibrótica(4Bargman J, Harel Z. Encapsulating peritoneal sclerosis. US Nephrol. 2011;5:71-5.).

Embora seja complicação rara, a obstrução intestinal decorrente da peritonite esclerosante encapsulante deve ser considerada em qualquer paciente em diálise peritoneal de longa data, com dor abdominal recorrente(3Choi JH, Kim JH, Kim JJ, et al. Large bowel obstruction caused by sclerosing peritonitis: contrast-enhanced CT findings. Br J Radiol. 2004;77:344-6.). A mortalidade associada à peritonite esclerosante encapsulante varia entre 43,5% e 78% e depende da existência de complicações(2Machado DJB, Romão Jr JE, Sabbaga E, et al. Peritonite esclerosante e encapsulante secundária à diálise peritoneal ambulatorial contínua. J Bras Nefrol. 1999;21:112-23.), sendo as mais comuns obstrução parcial ou total do intestino delgado, necrose do intestino delgado e fístula enterocutânea, as quais necessitam de intervenção cirúrgica e possuem alta mortalidade(3Choi JH, Kim JH, Kim JJ, et al. Large bowel obstruction caused by sclerosing peritonitis: contrast-enhanced CT findings. Br J Radiol. 2004;77:344-6.).

O diagnóstico tem sido baseado nos critérios recomendados pelo Comitê da Sociedade Internacional de Diálise Peritoneal em 2005, cujos elementos-chave são a presença de sintomas de obstrução ileal com ou sem reação inflamatória sistêmica, associados a achados característicos na investigação radiológica(7Kawanishi H, Moriishi M. Encapsulating peritoneal sclerosis: prevention and treatment. Perit Dial Int. 2007;27 Suppl 2:S289-92.).

Achados radiológicos associados aos sintomas clínicos constituem método não invasivo para confirmar essa condição(4Bargman J, Harel Z. Encapsulating peritoneal sclerosis. US Nephrol. 2011;5:71-5.). Entre as técnicas disponíveis, a TC é a modalidade mais sensível e específica para demonstrar achados característicos(3Choi JH, Kim JH, Kim JJ, et al. Large bowel obstruction caused by sclerosing peritonitis: contrast-enhanced CT findings. Br J Radiol. 2004;77:344-6.,4Bargman J, Harel Z. Encapsulating peritoneal sclerosis. US Nephrol. 2011;5:71-5.), os quais incluem espessamento peritoneal (100%), calcificações (70%), realce peritoneal (50%), alças de intestino delgado congregadas no centro do abdome (60%) e coleções líquidas loculadas (90%)(3Choi JH, Kim JH, Kim JJ, et al. Large bowel obstruction caused by sclerosing peritonitis: contrast-enhanced CT findings. Br J Radiol. 2004;77:344-6.

Bargman J, Harel Z. Encapsulating peritoneal sclerosis. US Nephrol. 2011;5:71-5.
-5Stuart S, Booth TC, Cash CJC, et al. Complications of continuous ambulatory peritoneal dialysis. Radiographics. 2009;29:441-60.). Apesar de a TC ser uma ferramenta valiosa no diagnóstico, verificou-se não ser muito útil como rastreamento.

Outros métodos de imagem também podem auxiliar no diagnóstico, como a radiografia de abdome apresentando achados semelhantes aos da nossa paciente(2Machado DJB, Romão Jr JE, Sabbaga E, et al. Peritonite esclerosante e encapsulante secundária à diálise peritoneal ambulatorial contínua. J Bras Nefrol. 1999;21:112-23.,5Stuart S, Booth TC, Cash CJC, et al. Complications of continuous ambulatory peritoneal dialysis. Radiographics. 2009;29:441-60.), o estudo contrastado baritado revelando alças distendidas com peristalse reduzida e desordenada(2Machado DJB, Romão Jr JE, Sabbaga E, et al. Peritonite esclerosante e encapsulante secundária à diálise peritoneal ambulatorial contínua. J Bras Nefrol. 1999;21:112-23.,5Stuart S, Booth TC, Cash CJC, et al. Complications of continuous ambulatory peritoneal dialysis. Radiographics. 2009;29:441-60.) e o ultrassom identificando ascite loculada(1Xu P, Chen LH, Li YM. Idiopathic sclerosing encapsulating peritonitis (or abdominal cocoon): a report of 5 cases. World J Gastroenterol. 2007;13:3649-51.,2Machado DJB, Romão Jr JE, Sabbaga E, et al. Peritonite esclerosante e encapsulante secundária à diálise peritoneal ambulatorial contínua. J Bras Nefrol. 1999;21:112-23.) e uma membrana pré-visceral característica, uniformemente ecogênica, anterior às alças intestinais(5Stuart S, Booth TC, Cash CJC, et al. Complications of continuous ambulatory peritoneal dialysis. Radiographics. 2009;29:441-60.). O papel da ressonância magnética ainda está sendo avaliado, porém, dados preliminares sugerem resultados semelhantes aos da TC(8Guest S. Hypothesis: gender and encapsulating peritoneal sclerosis. Perit Dial Int. 2009;29:489-91.).

No plano terapêutico, as condutas são dependentes do estágio da doença(2Machado DJB, Romão Jr JE, Sabbaga E, et al. Peritonite esclerosante e encapsulante secundária à diálise peritoneal ambulatorial contínua. J Bras Nefrol. 1999;21:112-23.). Vários tratamentos têm sido propostos, incluindo opções farmacológicas e cirúrgicas, sendo esta última necessária em casos de obstrução intestinal(1Xu P, Chen LH, Li YM. Idiopathic sclerosing encapsulating peritonitis (or abdominal cocoon): a report of 5 cases. World J Gastroenterol. 2007;13:3649-51.

Machado DJB, Romão Jr JE, Sabbaga E, et al. Peritonite esclerosante e encapsulante secundária à diálise peritoneal ambulatorial contínua. J Bras Nefrol. 1999;21:112-23.

Choi JH, Kim JH, Kim JJ, et al. Large bowel obstruction caused by sclerosing peritonitis: contrast-enhanced CT findings. Br J Radiol. 2004;77:344-6.

Bargman J, Harel Z. Encapsulating peritoneal sclerosis. US Nephrol. 2011;5:71-5.

Stuart S, Booth TC, Cash CJC, et al. Complications of continuous ambulatory peritoneal dialysis. Radiographics. 2009;29:441-60.

Habib AM, Preston E, Davenport A. Risk factors for developing encapsulating peritoneal sclerosis in the icodextrin era of peritoneal dialysis prescription. Nephrol Dial Transplant. 2010;25:1633-8.

Kawanishi H, Moriishi M. Encapsulating peritoneal sclerosis: prevention and treatment. Perit Dial Int. 2007;27 Suppl 2:S289-92.
-8Guest S. Hypothesis: gender and encapsulating peritoneal sclerosis. Perit Dial Int. 2009;29:489-91.). A recorrência dos sintomas ocorre em até 25% dos pacientes, normalmente dentro de 12 a 24 meses(4Bargman J, Harel Z. Encapsulating peritoneal sclerosis. US Nephrol. 2011;5:71-5.).

REFERENCES

  • 1
    Xu P, Chen LH, Li YM. Idiopathic sclerosing encapsulating peritonitis (or abdominal cocoon): a report of 5 cases. World J Gastroenterol. 2007;13:3649-51.
  • 2
    Machado DJB, Romão Jr JE, Sabbaga E, et al. Peritonite esclerosante e encapsulante secundária à diálise peritoneal ambulatorial contínua. J Bras Nefrol. 1999;21:112-23.
  • 3
    Choi JH, Kim JH, Kim JJ, et al. Large bowel obstruction caused by sclerosing peritonitis: contrast-enhanced CT findings. Br J Radiol. 2004;77:344-6.
  • 4
    Bargman J, Harel Z. Encapsulating peritoneal sclerosis. US Nephrol. 2011;5:71-5.
  • 5
    Stuart S, Booth TC, Cash CJC, et al. Complications of continuous ambulatory peritoneal dialysis. Radiographics. 2009;29:441-60.
  • 6
    Habib AM, Preston E, Davenport A. Risk factors for developing encapsulating peritoneal sclerosis in the icodextrin era of peritoneal dialysis prescription. Nephrol Dial Transplant. 2010;25:1633-8.
  • 7
    Kawanishi H, Moriishi M. Encapsulating peritoneal sclerosis: prevention and treatment. Perit Dial Int. 2007;27 Suppl 2:S289-92.
  • 8
    Guest S. Hypothesis: gender and encapsulating peritoneal sclerosis. Perit Dial Int. 2009;29:489-91.
  • Candido PCM, Werner AF, Pereira IMF, Matos BA, Pfeilsticker RM, Silva Filho R. Peritonite esclerosante encapsulante: relato de caso. Radiol Bras. 2015 Jan/Fev;48(1):56–58.
  • *
    Trabalho realizado no Hospital Felício Rocho, Belo Horizonte, MG, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2015

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2013
  • Aceito
    22 Jan 2014
Publicação do Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem Av. Paulista, 37 - 7º andar - conjunto 71, 01311-902 - São Paulo - SP, Tel.: +55 11 3372-4541, Fax: 3285-1690, Fax: +55 11 3285-1690 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: radiologiabrasileira@cbr.org.br