Acessibilidade / Reportar erro

Hematoma subcapsular esplênico e hemoperitônio espontâneo em usuário de cocaína

Sr. Editor,

Paciente masculino, 23 anos, apresentando dor abdominal intensa, súbita e progressiva, de início há 36 horas, predominantemente no hipocôndrio esquerdo, com irradiação para a região infraescapular homolateral. Negava traumas prévios, febre, cefaleia, fadiga, mialgias, artralgias, alterações cutâneas e não relatava comorbidades prévias. Ainda durante a investigação clínica, referiu tabagismo moderado, uso rotineiro de drogas ilícitas (cocaína), inclusive horas antes do início do quadro álgico. Ao exame físico estava orientado, estável hemodinamicamente e afebril. Sorologias para hepatites B e C e dengue negativas, e resultados normais para ANCA, FAN, VDRL, ureia, creatinina, VHS, proteína C-reativa e coagulograma. Eletroforese de hemoglobinas sem alterações.

Exame de tomografia computadorizada (TC) demonstrou volumosa coleção espontaneamente densa, compatível com conteúdo hemático, em íntima relação com o baço, além de hemoperitônio (Figura 1). Arteriografia não revelou alterações e na laparotomia exploratória observou-se hematoma subcapsular esplênico, hemoperitônio, sem evidência de lesão na cavidade.

Figura 1
TC demonstrando hematoma subcapsular e hemoperitônio. A: Corte axial, sem contraste, demonstrando as coleções espontaneamente densas (seta) adjacentes ao baço. B: Corte axial, pós-contraste, demonstrando as coleções espontaneamente densas adjacentes ao baço (seta), sem realce pelo contraste, configurando hematoma subcapsular. C: Corte axial, sem contraste, demonstrando líquido livre espontaneamente denso na pelve (seta), configurando hemoperitônio.

Considerando a ausência de trauma e aderências periesplênicas sugestivas de trauma prévio, o aspecto macroscópico normal do baço na TC e na laparotomia exploradora, associado à exclusão de doenças que comprometem o parênquima esplênico e o uso de cocaína imediatamente anterior, a hipótese de hemorragia esplênica atraumática pós-uso de cocaína foi estabelecida. Durante o acompanhamento clínico, o paciente evoluiu bem, sem intercorrências.

A literatura radiológica brasileira vem, recentemente, ressaltando a importância dos exames de TC e RM no aprimoramento do diagnóstico em alterações abdominais não traumáticas(11 Rocha EL, Pedrassa BC, Bormann RL, et al. Abdominal tuberculosis: a radiological review with emphasis on computed tomography and magnetic resonance imaging findings. Radiol Bras. 2015;48:181-91.

2 Barros RHO, Penachim TJ, Martins DL, et al. Multidetector computed tomography in the preoperative staging of gastric adenocarcinoma. Radiol Bras. 2015;48:74-80.

3 Bormann RL, Rocha EL, Kierzenbaum ML, et al. The role of gadoxetic acid as a paramagnetic contrast medium in the characterization and detection of focal liver lesions: a review. Radiol Bras. 2015;48:43-51.

4 Fernandes DA, Kido RYZ, Barros RHO, et al. Immunoglobulin G4-related disease: autoimmune pancreatitis and extrapancreatic manifestations. Radiol Bras. 2016;49:122-5.
-55 Fajardo L, Ramin GA, Penachim TJ, et al. Abdominal manifestations of extranodal lymphoma: pictorial essay. Radiol Bras. 2016;49:397-402.). As hemorragias esplênicas são situações raramente encontradas sem que haja um traumatismo prévio, podendo apresentar consequências fatais, sendo essencial seu diagnóstico precoce. As principais situações atraumáticas incluem neoplasias, processos inflamatórios/infecciosos, iatrogenias e processos mecânicos(66 Azar F, Brownson E, Dechert T. Cocaine-associated hemoperitoneum following atraumatic splenic rupture: a case report and literature review. World J Emerg Surg. 2013;8:33.).

Os sinais clínicos das hemorragias esplênicas atraumáticas são semelhantes aos encontrados nos casos pós-trauma, os quais incluem dor no quadrante superior esquerdo, associada ou não a irradiação para o ombro esquerdo pela irritação infradiafragmática, e em casos mais graves evoluindo com instabilidade hemodinâmica. Considerando que tais manifestações são inespecíficas e não podem ser caracterizadas unicamente pelo exame físico, em pacientes hemodinamicamente estáveis, a avaliação por TC é fundamental na caracterização dos órgãos acometidos(66 Azar F, Brownson E, Dechert T. Cocaine-associated hemoperitoneum following atraumatic splenic rupture: a case report and literature review. World J Emerg Surg. 2013;8:33.,77 Lin WY, Lin GM, Chang FY. An unusual presentation of scrub typhus with atraumatic hemoperitoneum. Am J Gastroenterol. 2009;104:1067.).

Atualmente, o Brasil é o segundo maior consumidor de cocaína e seus derivados no mundo, ficando apenas atrás dos Estados Unidos(88 Laranjeira R, Madruga CS, Pinsky I, et al. II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) - 2012. São Paulo: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas (INPAD), Unifesp; 2014.). O mecanismo suposto para desencadear hemorragias com o uso de cocaína deve-se à estimulação de receptores alfa-adrenérgicos, os quais produzem vasoconstrição com consequente aumento da pressão sanguínea abdominal e redução esplênica de até 20% do seu volume, promovendo fluxo sanguíneo de alta pressão em um parênquima retraído e com baixa concentração de tecido conectivo de suporte, tornando este órgão mais propenso a sangramentos, os quais podem ser desencadeados até mesmo por tosse(66 Azar F, Brownson E, Dechert T. Cocaine-associated hemoperitoneum following atraumatic splenic rupture: a case report and literature review. World J Emerg Surg. 2013;8:33.,99 Carlin F, Walker AB, Pappachan JM. Spontaneous splenic rupture in an intravenous drug abuser. Am J Med. 2014;127:e7-8.).

Dentre os diagnósticos diferenciais nas causas atraumáticas destacam-se dengue, mononucleose infecciosa, poliarterite nodosa, mediólise arterial segmentar, neoplasias, coagulopatia e hemoglobinopatias(66 Azar F, Brownson E, Dechert T. Cocaine-associated hemoperitoneum following atraumatic splenic rupture: a case report and literature review. World J Emerg Surg. 2013;8:33.,77 Lin WY, Lin GM, Chang FY. An unusual presentation of scrub typhus with atraumatic hemoperitoneum. Am J Gastroenterol. 2009;104:1067.,99 Carlin F, Walker AB, Pappachan JM. Spontaneous splenic rupture in an intravenous drug abuser. Am J Med. 2014;127:e7-8.

10 Mukhopadhyay M, Chatterjee N, Maity P, et al. Spontaneous splenic rupture: a rare presentation of dengue fever. Indian J Crit Care Med. 2014;18:110-2.

11 Michael M, Widmer U, Wildermuth S, et al. Segmental arterial mediolysis: CTA findings at presentation and follow-up. AJR Am J Roentgenol. 2006;187:1463-9.
-1212 Redondo MC, Ríos A, Cohen R, et al. Hemorrhagic dengue with spontaneous splenic rupture: case report and review. Clin Infect Dis. 1997; 25:1262-3.).

Concluindo, apesar de ser incomum a ocorrência de hemorragias esplênicas atraumáticas, devemos considerar a possibilidade de uso de cocaína como evento desencadeador, principalmente em pacientes jovens, previamente hígidos e sem comorbidades que justifiquem tal evento.

REFERENCES

  • 1
    Rocha EL, Pedrassa BC, Bormann RL, et al. Abdominal tuberculosis: a radiological review with emphasis on computed tomography and magnetic resonance imaging findings. Radiol Bras. 2015;48:181-91.
  • 2
    Barros RHO, Penachim TJ, Martins DL, et al. Multidetector computed tomography in the preoperative staging of gastric adenocarcinoma. Radiol Bras. 2015;48:74-80.
  • 3
    Bormann RL, Rocha EL, Kierzenbaum ML, et al. The role of gadoxetic acid as a paramagnetic contrast medium in the characterization and detection of focal liver lesions: a review. Radiol Bras. 2015;48:43-51.
  • 4
    Fernandes DA, Kido RYZ, Barros RHO, et al. Immunoglobulin G4-related disease: autoimmune pancreatitis and extrapancreatic manifestations. Radiol Bras. 2016;49:122-5.
  • 5
    Fajardo L, Ramin GA, Penachim TJ, et al. Abdominal manifestations of extranodal lymphoma: pictorial essay. Radiol Bras. 2016;49:397-402.
  • 6
    Azar F, Brownson E, Dechert T. Cocaine-associated hemoperitoneum following atraumatic splenic rupture: a case report and literature review. World J Emerg Surg. 2013;8:33.
  • 7
    Lin WY, Lin GM, Chang FY. An unusual presentation of scrub typhus with atraumatic hemoperitoneum. Am J Gastroenterol. 2009;104:1067.
  • 8
    Laranjeira R, Madruga CS, Pinsky I, et al. II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD) - 2012. São Paulo: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas (INPAD), Unifesp; 2014.
  • 9
    Carlin F, Walker AB, Pappachan JM. Spontaneous splenic rupture in an intravenous drug abuser. Am J Med. 2014;127:e7-8.
  • 10
    Mukhopadhyay M, Chatterjee N, Maity P, et al. Spontaneous splenic rupture: a rare presentation of dengue fever. Indian J Crit Care Med. 2014;18:110-2.
  • 11
    Michael M, Widmer U, Wildermuth S, et al. Segmental arterial mediolysis: CTA findings at presentation and follow-up. AJR Am J Roentgenol. 2006;187:1463-9.
  • 12
    Redondo MC, Ríos A, Cohen R, et al. Hemorrhagic dengue with spontaneous splenic rupture: case report and review. Clin Infect Dis. 1997; 25:1262-3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2017
Publicação do Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem Av. Paulista, 37 - 7º andar - conjunto 71, 01311-902 - São Paulo - SP, Tel.: +55 11 3372-4541, Fax: 3285-1690, Fax: +55 11 3285-1690 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: radiologiabrasileira@cbr.org.br