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Avaliação do fluxo parietal pela ultrassonografia com Doppler em cores no diagnóstico de atividade na doença inflamatória intestinal em pacientes pediátricos

Resumo

Objetivo:

Avaliar a atividade da doença inflamatória intestinal (DII) por ultrassonografia (US) com Doppler em cores, comparada à concentração de calprotectina fecal (CF) em pacientes pediátricos.

Materiais e Métodos:

Em uma série consecutiva, no período entre 2014 e 2020, foram avaliados 53 exames de 44 pacientes pediátricos: 28 casos de doença de Crohn, 15 de colite ulcerativa e um de colite indeterminada. O diagnóstico da DII foi feito pelos critérios de Porto. O fluxo parietal foi a alteração estudada mais detalhadamente e classificada pelo pesquisador principal e por dois radiologistas pediátricos cegados aos valores de CF e de US Doppler. Baixo fluxo parietal foi definido pela captação de até 2 sinais de US Doppler/cm2, fluxo moderado entre 3 e 5 sinais/cm2 e alto fluxo mais de 5 sinais/cm2.

Resultados:

Houve concordância substancial entre os radiologistas (kappa = 0,73). Nos exames com baixo fluxo parietal a CF média foi 92 μg/g (intervalo interquartil: 33-661 μg/g) e nos exames com alto fluxo a CF média foi 2.286 μg/g (intervalo interquartil: 1.728-5.612 μg/g). Na amostra total, a US demonstrou sensibilidade de 89,7% e especificidade de 92,0% para detecção da atividade inflamatória, 95,5% e 90,9% na doença de Crohn e 81,3% e 100,0% na colite ulcerativa, respectivamente.

Conclusão:

Houve forte correlação entre a US da parede intestinal e os valores da concentração de CF na avaliação da atividade inflamatória na DII de pacientes pediátricos.

Unitermos:
Doenças inflamatórias intestinais; Complexo antígeno L1 leucocitário; Doença de Crohn; Colite ulcerativa; Ultrassonografia

Abstract

Objective:

To assess inflammatory bowel disease (IBD) activity with Doppler ultrasound in pediatric patients, comparing the accuracy of the ultrasound findings with that of the concentrations of fecal calprotectin (FC).

Materials and Methods:

In a consecutive series, we evaluated 53 examinations of 44 pediatric patients seen between 2014 and 2020: 28 with Crohn’s disease, 15 with ulcerative colitis, and one with IBD unclassified. The diagnosis of IBD was made in accordance with the Porto criteria. The alteration studied in the greatest detail was bowel wall flow, which was classified by the lead investigator and two pediatric radiologists, all of whom were blinded to the FC concentrations and the other ultrasound findings. Bowel wall flow was categorized as low if there were up to 2 Doppler ultrasound signals/cm2, moderate if there were 3-5 signals/cm2, and high if there were more than 5 signals/cm2.

Results:

The agreement among the radiologists was substantial (kappa = 0.73). In cases in which ultrasound showed low bowel wall flow, the median FC concentration was 92 µg/g (interquartile range, 33-661 µg/g), whereas it was 2,286 µg/g (interquartile range, 1,728-5,612 µg/g) in those in which ultrasound showed high bowel wall flow. In the sample as a whole, the sensitivity and specificity of ultrasound was 89.7% and 92.0%, respectively, for the detection of inflammatory activity; 95.5% and 90.9%, respectively, for the detection of Crohn’s disease; and 81.3% and 100.0%, respectively, for the detection of ulcerative colitis.

Conclusion:

Ultrasound of the bowel wall showed a strong correlation with FC concentrations in the assessment of inflammatory activity in pediatric patients with IBD.

Keywords:
Inflammatory bowel diseases; Leukocyte L1 antigen complex; Crohn disease; Colitis; ulcerative; Ultrasonography

INTRODUÇÃO

A doença inflamatória intestinal (DII) é uma enfermidade inflamatória, crônica, progressiva do trato gastrointestinal, que inclui três entidades: doença de Crohn, colite ulcerativa e colite indeterminada. A prevalência e incidência aumentaram no Ocidente nas últimas décadas e até 25% dos casos ocorrem em pacientes com idade abaixo dos 18 anos(11 Sýkora J, Pomahačová R, Kreslová M, et al. Current global trends in the incidence of pediatric-onset inflammatory bowel disease. World J Gastroenterol. 2018;24:2741-63.).

A DII com início na infância tem fenótipos mais agressivos do que a iniciada nos adultos(22 Kahn SA. Transition of care for adolescents and young adults with inflammatory bowel disease: the more we learn, the less we know. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2016;63:451-2.). Estudos colonoendoscópicos com biópsia nem sempre estão disponíveis na população pediátrica, em razão da sua complexidade, necessidade de indução anestésica e carência de especialistas treinados. Monitoração da atividade inflamatória da doença é crucial para a adequada tomada de decisão clínica, cenário em que os marcadores não invasivos são fundamentais. O marcador não invasivo mais frequentemente recomendado para monitorar a atividade inflamatória é a calprotectina fecal (CF)(33 Henderson P, Casey A, Lawrence SJ, et al. The diagnostic accuracy of fecal calprotectin during the investigation of suspected pediatric inflammatory bowel disease. Am J Gastroenterol. 2012;107:941-9.). Bunn et al.(44 Bunn SK, Bisset WM, Main MJ, et al. Fecal calprotectin: validation as a non invasive measure of bowel inflammation in childhood inflammatory bowel disease. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2001;33:14-22.) demonstraram forte correlação da CF com escores de atividade endoscópica e histológica, em crianças com DII. Resultados negativos em pacientes sem sintomas de alarme permitem evitar procedimentos invasivos e de alto custo. Nesse contexto, exames de imagem são cruciais para diagnóstico, seguimento e manejo de possíveis complicações. van Wassenaer et al.(55 van Wassenaer EA, de Voogd FAE, van Rijn RR, et al. Diagnostic accuracy of transabdominal ultrasound in detecting intestinal inflammation in paediatric IBD patients-a systematic review. J Crohns Colitis. 2019;13:1501-9.), analisando a acurácia diagnóstica da ultrassonografia (US) transabdominal na detecção de inflamação intestinal em crianças com DII, registraram sensibilidade e especificidade de até 93% para a US em comparação à colonoscopia e à enterografia por ressonância magnética (entero-RM). Outros estudos compararam os resultados de US Doppler e de RM na monitoração da atividade inflamatória em pacientes pediátricos(66 Barber JL, Maclachlan J, Planche K, et al. There is good agreement between MR enterography and bowel ultrasound with regards to disease location and activity in paediatric inflammatory bowel disease. Clin Radiol. 2017;72:590-7.,77 Anupindi SA, Grossman AB, Nimkin K, et al. Imaging in the evaluation of the young patient with inflammatory bowel disease: what the gastroenterologist needs to know. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2014;59:429-39.). Houve boa concordância entre a entero-RM e a US Doppler em relação a presença e localização da doença(66 Barber JL, Maclachlan J, Planche K, et al. There is good agreement between MR enterography and bowel ultrasound with regards to disease location and activity in paediatric inflammatory bowel disease. Clin Radiol. 2017;72:590-7.), no entanto, a entero-RM apresenta custos mais altos, necessidade de realização em centros especializados, jejum prolongado, longo tempo de exame e é limitada às crianças de maior idade, pois a necessidade de indução anestésica contraindica a distensão líquida gastrointestinal(77 Anupindi SA, Grossman AB, Nimkin K, et al. Imaging in the evaluation of the young patient with inflammatory bowel disease: what the gastroenterologist needs to know. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2014;59:429-39.

8 Biko DM, Rosenbaum DG, Anupindi SA. Ultrasound features of pediatric Crohn disease: a guide for case interpretation. Pediatr Radiol. 2015;45:1557-66.
-99 Cantarelli BCF, Oliveira RS, Alves AMA, et al. Evaluating inflammatory activity in Crohn’s disease by cross-sectional imaging techniques. Radiol Brasil. 2020;53:38-46.)
.

A US, sendo um método não invasivo, universal, de baixo custo, sem radiação ionizante e sobretudo quando associado ao Doppler colorido, pode constituir uma ferramenta valiosa para, na prática clínica, avaliar a atividade inflamatória da DII.

Este estudo teve como objetivo avaliar a acurácia da US Doppler no diagnóstico da atividade inflamatória, comparativamente às concentrações fecais de calprotectina na DII pediátrica.

MATERIAIS E MÉTODOS

Trata-se de estudo prospectivo, transversal, não intervencionista, consecutivo, realizado no período entre novembro de 2014 e dezembro de 2020. Foram avaliados 53 exames de 44 pacientes pediátricos e comparados os dados obtidos entre US Doppler e a concentração fecal da calprotectina. Em nove pacientes a US Doppler e a CF foram avaliadas em dois diferentes momentos.

Consentimentos informados foram preenchidos e assinados pelos responsáveis pelas crianças e assentimentos foram obtidos dos com mais de sete anos. O estudo foi aprovado pelo comitê institucional de ética e pesquisa do hospital (CAEE 80543417.90000.5683).

Os critérios de inclusão no estudo foram: idade inferior a 18 anos e diagnóstico de DII pelos critérios de Porto(1010 Levine A, Koletzko S, Turner D, et al. ESPGHAN revised Porto criteria for the diagnosis of inflammatory bowel disease in children and adolescents. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2014;58:795-806.). Os critérios de exclusão foram: história e dados clínicos de doenças digestivas crônicas (alergia alimentar, condições neoplásicas, doença celíaca, colite/enterite eosinofílica, síndrome do intestino irritável). Em relação à US foram: cicatriz abdominal extensa, ausência de jejum prévio e obesidade grave (definida como índice de massa corporal acima do percentil 95). O intervalo entre a dosagem de CF e a US Doppler não excedeu 14 dias. De um total de 50 pacientes, seis foram excluídos: dois por obesidade, um por extensa fibrose da parede abdominal e três por coleta inadequada das fezes.

As manifestações clínicas são variáveis, dependendo do segmento intestinal envolvido, da extensão do acometimento, do tempo de doença, entre outros aspectos. Dor abdominal e diarreia são os sintomas mais comuns, observados em 50% a 90% dos pacientes. Doença perianal fistulosa é mais comum na doença de Crohn, geralmente em fenótipos graves, e sangramento retal é mais comum na colite ulcerativa.

Pela redução absortiva intestinal, na faixa pediátrica, essas doenças podem provocar alterações nutricionais com consequente comprometimento do crescimento e desenvolvimento. Manifestações extraintestinais podem se apresentar e as mais comuns são: hepáticas (hepatite autoimune e colangite esclerosante primária), dermatológicas (eritema nodoso e pioderma gangrenoso), oftalmológicas (uveíte, ireíte), hematológicas (anemia, tromboembolismo) e as musculoesqueléticas (artrite, artralgia, osteopenia, espondilite anquilosante, alterações no ritmo de crescimento e na puberdade). Com o objetivo de avaliar a gravidade da DII, nortear o seguimento e avaliar a resposta terapêutica, existem os índices clínicos de atividade de doença, destacando-se na pediatria o Pediatric Crohn’s Disease Activity Index e o Pediatric Ulcerative Colitis Activity Index. Esses índices são escores baseados em sintomas, testes laboratoriais, exame clínico e avaliação do crescimento. Conforme pontuação dada a diversos itens, a doença será classificada como: sem atividade, atividade leve, atividade moderada e atividade acentuada.

A investigação laboratorial inicial deve avaliar as condições gerais do paciente e constar de hemograma completo com plaquetas, enzimas hepáticas (TGO, TGP), bilirrubinas, amilase, ureia, creatinina e marcadores inespecíficos de inflamação como VHS e proteína C-reativa. Os principais marcadores sorológicos considerados específicos são o anticorpo anti-Saccharomyces cerevisiae e o anticorpo antineutrófilo citoplasmático perinuclear, sendo o primeiro mais comum na doença de Crohn e o segundo na retocolite ulcerativa. A presença de proteínas derivadas dos leucócitos fecais, marcador intestinal de alta sensibilidade, é de grande valor no diagnóstico e acompanhamento da DII, destacando-se a calprotectina, sendo o teste indicado pela European Society of Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition. No seguimento da doença, valores acima de 250 µg/g demonstram doença em atividade.

US abdominal com Doppler em cores

Os pacientes foram examinados por radiologista pediátrico experiente, com mais de 15 anos de atuação. Foram analisados: fluxo Doppler parietal, espessura mural, ecoestratificação da parede e peristaltismo. Ecogenicidade da gordura mesentérica, presença de linfonodomegalias, coleções e líquido livre na cavidade também foram investigados.

O pesquisador principal, o único a realizar as USs, adquiriu as imagens com destaque e individualização daquelas com amostragem de fluxo Doppler. Logo após, o pesquisador e outros dois radiologistas pediátricos, em posse das imagens em estações de trabalho individuais, cegados aos resultados da US dos demais colegas e aos valores da CF, classificaram cada exame, respondendo aos seguintes quesitos: 1) Nas imagens apresentadas, você identifica sinais de fluxo ao Doppler em cores? ( ) Sim ( ) Não; 2) Se marcou Sim, como classificar o caso conforme os critérios de fluxo descritos por Spalinger et al.(1111 Spalinger J, Patriquin H, Miron MC, et al. Doppler US in patients with Crohn disease: vessel density in the diseased bowel reflects disease activity. Radiology. 2000;217:787-91.)? a) baixo: até 2 sinais/Doppler; b) moderado: 3 a 5 sinais; c) alto: mais que 5 sinais; 3) Quantos sinais Doppler você identifica no box com maior captação de fluxo?

A US Doppler foi realizada com transdutor convexo e linear, com frequência entre 3 e 12 MHz (HDX11 XE, Philips Healthcare, Best, Holanda), sem uso de contraste. Inicialmente, o paciente, com discreta repleção vesical, foi examinado com transdutor convexo de baixa frequência para avaliação dos órgãos abdominais e para uma visão panorâmica inicial da pelve e retossigmoide. Depois, com o transdutor linear de alta frequência, o intestino grosso foi avaliado no eixo axial e longitudinal, iniciando pelo retossigmoide. No sentido anti-horário foram observados o cólon descendente, o cólon transverso, o cólon ascendente e o ceco. Após, o intestino delgado foi examinado no eixo longitudinal e axial. Na fossa ilíaca direita foi realizada compressão gradual utilizando como referência os vasos ilíacos e o músculo psoas para identificação da transição ileocecal. Ao dividir o abdome em quatro quadrantes, as alças delgadas foram examinadas pela técnica descrita por Elliot Maclachlan e Beal, conhecida como lawnmower(1212 Elliott CL, Maclachlan J, Beal I. Paediatric bowel ultrasound in inflammatory bowel disease. Eur J Radiol. 2018;108:21-7.).

A espessura mural das alças intestinais foi realizada na escala de cinza, com transdutor linear, da serosa à mucosa, por três vezes, considerando a medida de maior valor. van Wassernaer et al., em recente revisão sistemática e metanálise descrevendo a espessura da parede intestinal em crianças saudáveis, demostraram limite superior de 1,9 mm no intestino delgado e o mesmo valor no cólon(1313 van Wassenaer EA, de Voogd FAE, van Rijn RR et al. Bowel ultrasound measurements in healthy children - systematic review and meta-analysis. Pediatr Radiol. 2020;50:501-8.). No presente estudo consideramos alterados os valores de espessura mural maiores que 2 mm no intestino delgado e no cólon.

A avaliação por Doppler colorido foi realizada com ajuste de filtro, o maior ganho de cor possível e a menor frequência de repetição de pulso antes do aparecimento dos artefatos de fluxo e aliasing. No segmento de maior espessura parietal foi realizada avaliação com Doppler colorido de acordo com Spalinger et al.(1111 Spalinger J, Patriquin H, Miron MC, et al. Doppler US in patients with Crohn disease: vessel density in the diseased bowel reflects disease activity. Radiology. 2000;217:787-91.), usando um box Doppler de 1-2 cm2, e o número de sinais foi contado. Essa determinação serviu como estimativa da hiperemia inflamatória e foi classificada como segue: baixa, até 2 sinais Doppler/cm2; moderada, entre 3 e 5 sinais Doppler/cm2; alta, mais de 5 sinais Doppler/cm2.

CF

A coleta das primeiras fezes do dia foi feita nos domicílios dos pacientes em coletor especial, e se o material era coletado no dia anterior, a amostra deveria ser refrigerada. A extração e quantificação de CF foram realizadas usando o método de imunoensaio enzimático, seguindo as diretrizes do fabricante (ELISA Calprotectin-Phadia/Termo-Fisher, Uppsala, Suécia). Foi definida como manifestação de atividade inflamatória a concentração maior de 250 µg/g(1414 Bressler B, Panaccione R, Fedorak RN, et al. Clinicians’ guide to the use of fecal calprotectin to identify and monitor disease activity in inflammatory bowel disease. Can J Gastroenterol Hepatol. 2015;29:369-72.).

Análise estatística

Variáveis contínuas foram descritas por meio de média e desvio-padrão, e nas suposições distributivas foram usados mediana e intervalo interquartil (IIQ). Dados categóricos foram apresentados como contagens e porcentagens. A concordância entre os radiologistas foi avaliada pela estatística kappa ponderada e a correlação entre calprotectina e Doppler colorido foi avaliada pelo coeficiente de correlação de Spearman. Capacidade da US Doppler em demonstrar atividade inflamatória foi descrita por sensibilidade, especificidade e razão de verossimilhança, com respectivos intervalos de confiança de 95% (IC 95%). Comparações adicionais entre os grupos foram realizadas por meio de testes de classificação. Valor de p inferior a 0,05 foi considerado estatisticamente significante. Os dados foram processados e analisados no software SPSS versão 22.0 (IBM Corp., Armonk, NY, EUA).

RESULTADOS

Foram identificados 44 pacientes com DII, com idade igual ou inferior a 18 anos (média: 12,9 ± 3,8 anos), todos brancos/caucasoides, a maioria com idade superior a 10 anos (idade média: 12,9 ± 3,8 anos), 24 (54,5%) do sexo masculino. Doença de Crohn foi a entidade mais frequente (63,6%). Estratificado por tipo de DII, na doença de Crohn 18 eram meninos (64,3%), na colite ulcerativa 10 eram meninas (66,7%) e no caso de colite indeterminada o paciente era do sexo masculino. A Tabela 1 apresenta os dados demográficos e clínicos.

Tabela 1
Características demográficas e clínicas dos pacientes.

Nas 53 dosagens realizadas, a CF apresentou valor mediano de 997 µg/g (IIQ: 217-1.897 µg/g). Em 10 ocasiões os valores estiveram na faixa < 50 a 100 µg/g, em quatro exames, entre 100 µg/g e 250 µg/g, em 39 casos os níveis eram > 250 µg/g. O menor valor encontrado foi 9 µg/g e o maior foi 6.000 µg/g.

Houve concordância substancial entre os três radiologistas (kappa ponderado = 0,73) em relação à classificação dos parâmetros de US Doppler. O padrão parietal de fluxo ao Doppler em cores foi definido como baixo (até 2 sinais Doppler/cm2) em 17 casos, moderado (3 a 5 sinais Doppler/cm2) em 19 casos e alto (mais de 5 sinais Doppler/cm2) em 17 dos 53 exames (Figura 1).

Figura 1
Correlação entre a concentração da CF e fluxo parietal no Doppler em cores (Spearman 0,72).

Forte correlação foi identificada entre os exames de US Doppler e os valores de CF (rs = 0,72; p < 0,001). Nos casos com baixo fluxo (até 2 sinais Doppler/cm2) foi encontrada mediana da CF de 92 µg/g (IQR: 33-661 µg/g). Nos casos com alto fluxo (mais de 5 sinais Doppler/cm2), a mediana da CF foi 2.286 µg/g (IIQ: 1.728-5.612 µg/g) (Figuras 2, 3 e 4).

Figura 2
Menina, 9 anos, doença de Crohn. Baixa atividade inflamatória no segmento ileal, traduzida por mínima captação parietal de fluxo no Doppler em cores. CF: 9,9 μg/g.

Figura 3
Menina, 12 anos, colite ulcerativa. Moderada atividade inflamatória no cólon descendente. Observar 3 a 5 sinais Doppler/cm2 na parede intestinal. CF: 1.733 μg/g.

Figura 4
Menino, 13 anos, doença de Crohn. Acentuada atividade inflamatória no segmento ileal. Observar hiperfluxo parietal no Doppler em cores. CF: 1.800 μg/g.

Quando comparadas à concentração de CF, as USs Doppler da amostra total de DII mostraram sensibilidade de 89,7% (IC 95%: 75,8-97,1) e especificidade de 92,9% (IC 95%: 66,1-99,8) para detecção da atividade inflamatória. As razões de verossimilhança positiva e negativa foram 12,6 (IC 95%: 1,9-38,3) e 0,11 (IC 95%: 0,04-0,28), respectivamente. Entre os pacientes com DC, a sensibilidade da US Doppler foi 95,5% e a especificidade foi 90,9%. Para pacientes com colite ulcerativa, a sensibilidade e a especificidade foram 81,3% e 100,0%, respectivamente (Tabela 2).

Tabela 2
Acurácia da US Doppler no diagnóstico de atividade inflamatória na DII pediátrica.

Os valores de CF foram associados à medida da espessura parietal intestinal. Nos indivíduos com CF abaixo de 250 µg/g registramos mediana de 1,85 mm (IIQ: 1,30-2,40 mm) e nos pacientes com CF acima de 250 µg/g encontramos mediana de 4,2 mm (IQR: 3,15-5 mm).

DISCUSSÃO

Este é um estudo prospectivo cujo objetivo foi comparar os achados na US Doppler com os resultados de CF em pacientes pediátricos com DII. Observamos uma boa correlação entre os altos valores da proteína e o fluxo parietal na atividade inflamatória de casos de DII pediátrica.

Na avaliação de pacientes pediátricos com DII é aconselhado pela Sociedade Europeia de Gastroenterologia e Hepatologia Pediátrica incluir a CF como marcador de atividade inflamatória(1515 Levine A, Griffiths A, Markowitz J, et al. Pediatric modification of the Montreal classification for inflammatory bowel disease: the Paris classification. Inflamm Bowel Dis. 2011;17:1314-21.). O nível de calprotectina nas fezes é aproximadamente seis vezes maior do que no soro, tornando o teste útil nas doenças intestinais(1616 Fagerberg UL, Lööf L, Merzoug RD, et al. Fecal calprotectin levels in healthy children studied with an improved essay. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2003;37:468-72.). A calprotectina é uma proteína complexa, correspondendo a 60% das proteínas citoplasmáticas dos neutrófilos humanos e encontrada em menores concentrações em monócitos e macrófagos. Possui propriedades fungicidas e bactericidas(1717 Røseth AG, Fagerhol MK, Aadland E, et al. Assessment of the neutrophil dominating protein calprotectin in feces. A methodologic study. Scand J Gastroenterol. 1992;27:793-8.) e é resistente à proteólise intestinal. A concentração fecal de calprotectina reflete a migração de neutrófilos através da mucosa inflamada, sendo eliminada nas fezes durante a inflamação ativa. Revisão sistemática com metanálise demonstrou ser a CF mais sensível do que proteína C-reativa e lactoferrina fecal como biomarcador não invasivo de atividade inflamatória(1818 Mosli MH, Zou G, Garg SK, et al. C-reactive protein, fecal calprotectin, and stool lactoferrin for detection of endoscopic activity in symptomatic inflammatory bowel disease patients: a systematic review and meta-analysis. Am J Gastroenterol. 2015;110:802-19.). Correlação entre altas concentrações de CF e medidas da atividade de inflamação do cólon e do intestino delgado já foi demonstrada por vários autores(44 Bunn SK, Bisset WM, Main MJ, et al. Fecal calprotectin: validation as a non invasive measure of bowel inflammation in childhood inflammatory bowel disease. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2001;33:14-22.,1919 Lin JF, Chen JM, Zuo JH, et al. Meta-analysis: fecal calprotectin for assessment of inflammatory bowel disease activity. Inflamm Bowel Dis. 2014;20:1407-15.). Valores de CF > 250 µg/g foram recomendados como indicativo de doença ativa(1414 Bressler B, Panaccione R, Fedorak RN, et al. Clinicians’ guide to the use of fecal calprotectin to identify and monitor disease activity in inflammatory bowel disease. Can J Gastroenterol Hepatol. 2015;29:369-72.,1919 Lin JF, Chen JM, Zuo JH, et al. Meta-analysis: fecal calprotectin for assessment of inflammatory bowel disease activity. Inflamm Bowel Dis. 2014;20:1407-15.) e o mesmo nível de concentração foi sugerido, mais recentemente, por Haisma et al. para indicar prognóstico(2020 Haisma SM, Verkade HJ, Scheenstra R, et al. Time-to-reach target calprotectin level in newly diagnosed patients with inflammatory bowel disease. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2019;69:466-73.).

A associação entre análise do fluxo mural intestinal por US Doppler e atividade inflamatória endoscópica também já foi relatada. Metanálise envolvendo 1.558 pacientes adultos sugeriu que a US tem alta precisão diagnóstica na detecção de doença de Crohn ativa(2121 Dong J, Wang H, Zhao J, et al. Ultrasound as a diagnostic tool in detecting active Crohn’s disease: a meta-analysis of prospective studies. Eur Radiol. 2014;24:26-33.). Novak et al. consideraram até que a US pode ser um “substituto da endoscopia para orientar o manejo da doença” em adultos(2222 Novak KL, Kaplan GG, Panaccione R, et al. A simple ultrasound score for the accurate detection of inflammatory activity in Crohn’s disease. Inflamm Bowel Dis. 2017;23:2001-10.). Porém, são raros os estudos pediátricos(2323 Quillin SP, Siegel MJ. Gastrointestinal inflammation in children: color Doppler ultrasonography. J Ultrasound Med. 1994;13:751-6.). Fodor et al.(2424 Fodor I, Serban O, Serban D, et al. The value of abdominal ultrasonography compared to colonoscopy and faecal calprotectin in following up paediatric patients with ulcerative colitis. Med Ultrason. 2021;23:153-60.) avaliaram o desempenho da US abdominal no acompanhamento de 30 crianças com colite ulcerativa e compararam US com CF e colonoscopia, demonstrando boa concordância com o exame endoscópico e altos níveis de CF. Dolinger et al.(2525 Dolinger MT, Choi JJ, Phan BL, et al. Use of small bowel ultrasound to predict response to infliximab induction in pediatric Crohn’s disease. J Clin Gastroenterol. 2021;55:429-32.) exploraram a utilidade da US do intestino delgado para avaliar a resposta precoce ao tratamento com infliximabe em 13 pacientes pediátricos com DC e relataram ser a hiperemia o primeiro parâmetro alterado.

A originalidade do nosso estudo foi demonstrar a atividade inflamatória fazendo comparação entre a US e a CF. A European Society of Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition recomenda a US como ferramenta valiosa no seguimento da doença. Atualmente, em nossa instituição, na avaliação da presença ou não da atividade inflamatória, a US é utilizada para a rápida tomada de decisão clínica, por sua acurácia e resultado imediato.

Recentemente, um novo escore para avaliação de DII pediátrica foi desenvolvido por Kellar et al.(2626 Kellar A, Wilson S, Kaplan G, et al. The Simple Pediatric Activity Ultrasound Score (SPAUSS) for the accurate detection of pediatric inflammatory bowel disease. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2019;69:e1-e6.). Os autores consideraram a espessura da parede intestinal e a gordura inflamatória mesentérica como os parâmetros ultrassonográficos mais importantes. Descreveram a presença de hiperemia, mas o fluxo parietal intestinal não foi quantificado, e consideraram como normal espessuras parietais de até 3,9 mm. Ao contrário desses autores, no presente estudo observamos espessura parietal com mediana de 4,2 mm apenas nos casos com CF > 250 µg/g, para nós um indicativo de doença ativa. Além disso, comparando o padrão de fluxo mural intestinal com as concentrações de CF, observamos altas sensibilidade e especificidade e correlação forte entre espessura da parede e concentração de CF. Quanto maior a espessura parietal, maior a concentração da proteína fecal. Nos casos de CF < 250 µg/g, a mediana foi inferior a 2 mm, e nos casos de CF > 250 µg/g, a mediana da espessura parietal foi de 4,2 mm.

Há limitações no nosso estudo: ter sido realizado em um único centro, a amostra ser relativamente modesta e heterogênea e, sobretudo, não ter havido comparação com os achados endoscópicos. Todavia, nossos resultados mostram que foi possível reconhecer padrões de fluxo mural intestinal que apresentaram correlação com os níveis de CF.

CONCLUSÃO

A US se mostrou um exame útil na avaliação da atividade inflamatória na DII, tendo mostrado boa correlação com as concentrações de CF.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2023
  • Revisado
    29 Maio 2023
  • Aceito
    27 Jul 2023
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