Acessibilidade / Reportar erro

A presença de mercúrio em casa constitui um risco de contaminação humana e / ou ambiental? Relato de um caso

Is the presence of mercury at home a risk of human and / or environmental contamination? A case report

Resumo

Mercury kept in a garage of a residencial building in Rio de Janeiro was accidentally released and caused local (environmental and human) contamination. The concentration of mercury in indoor air of the most critical site reached 15.5 mg/m³. Outdoor air samples showed concentrations ranging from 0.37 to 6.6 mg/m³ . Seventy five per cent of the urine samples collected from 22 residents in the contaminated building showed levels of mercury higher than those observed in non exposed individuals (>6.9 mg/L); in 30% of these samples, the concentration was higher than 20 mg/L. These values show a high level of human contamination and the final consequences were not so serious owing to the quick action taken by one of the residents.

mercury contamination; human contamination; environmental contamination


mercury contamination; human contamination; environmental contamination

A presença de mercúrio em casa constitui um risco de contaminação humana e / ou ambiental? Relato de um caso

Josino C. Moreira, Fatima R. Pivetta, Gisele S. Kuriyama, Paulo R. Barrocas, Fernando L. G. Nicola e Fernanda C. G. Rosa

Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH) - Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) - Fundação Oswaldo Cruz - Av. Brasil 4365 - 21041-210 - Rio de Janeiro - RJ

Silvana C. Jacob

Instituto Nacional de Contrôle de Qualidade em Saúde (INCQS) - Fundação Oswaldo Cruz - 21041-210 - Av. Brasil 4365 - Rio de Janeiro - RJ

Recebido em 12/7/96; aceito em 31/10/96

Is the presence of mercury at home a risk of human and / or environmental contamination? A case report. Mercury kept in a garage of a residencial building in Rio de Janeiro was accidentally released and caused local (environmental and human) contamination. The concentration of mercury in indoor air of the most critical site reached 15.5 mg/m3. Outdoor air samples showed concentrations ranging from 0.37 to 6.6 mg/m3 . Seventy five per cent of the urine samples collected from 22 residents in the contaminated building showed levels of mercury higher than those observed in non exposed individuals (>6.9 mg/L); in 30% of these samples, the concentration was higher than 20 mg/L. These values show a high level of human contamination and the final consequences were not so serious owing to the quick action taken by one of the residents.

Keywords: mercury contamination; human contamination; environmental contamination.

O mercúrio é um elemento químico considerado não essencial, ou seja, não é um componente normal dos tecidos de organismos vivos, sua concentração é muito variável de um organismo para outro, sua ausência não causa nenhuma anormalidade conhecida e não participa de nenhuma atividade indispensável ao pleno funcionamento orgânico1. Sua presença é, por outro lado, considerada danosa aos fenômenos químicos que suportam a vida.

Esse elemento possui algumas propriedades físicas, químicas e físico-químicas muito importantes sob o ponto de vista toxicológico, tais como sua elevada pressão de vapor (0,00112 mmHg a 20ºC), sua habilidade de ultrapassar as biomembranas, suas possibilidades reacionais "in vitro" e "in vivo" (oxidação com a formação de íons mercurosos e/ou mercúricos; formação de compostos organomercuriais, etc) e a afinidade de seus íons por grupamentos sulfidrila, comuns em proteínas e enzimas.

Essas propriedades fazem com que o mercúrio, mesmo quando presente em pequenas quantidades dispersas em um local (como, por exemplo, sob a forma de gotículas), sofra evaporação e torne-se capaz de ser absorvido pelo organismo através da via respiratória, possa ser acumulado no sistema nervoso e inibir uma série de sistemas enzimáticos contendo grupamentos -SH. Acredita-se que o mercúrio induz alterações na integridade das membranas biológicas através da formação de espécies contendo oxigênio reativo (ions superóxidos, radical hidroxila e peróxido de hidrogênio) e da perturbação das defesas antioxidantes orgânicas2. Sua fluidez e capacidade de penetrar pequenos espaços, como por exemplo em frestas do assoalho, fazem com que seja muito difícil sua remoção mecânica total após derramamento sendo uma importante causa de exposição de todos os indivíduos em contato com a área contaminada.

Seus vapores são incolores, invisíveis à luz visível, inodoros e são facilmente (cerca de 80%) absorvidos pelos pulmões que se constitui na principal via de introdução do mercúrio metálico no organismo.

Quando presente no meio ambiente, além da toxicidade inerente à sua forma metálica, o mercúrio pode sofrer organificação com formação de compostos organomercuriais, notadamente o metilmercúrio e ser acumulado nos organismos ao longo da cadeia alimentar podendo levar a uma série de complicações à saúde dos consumidores situados nos níveis tróficos mais elevados, como no conhecido caso de Minamata.

Assim, sua utilização em processos industriais, como por exemplo, na produção de cloro/soda através do uso de células com catodo de mercúrio, na fabricação de lâmpadas, de material elétrico, etc, ou extrativistas, como na extração de ouro, tem causado vários danos não somente à saúde dos trabalhadores diretamente expostos como também ao meio ambiente e à população em geral.

Em virtude de seu potencial tóxico, a utilização e estocagem desse elemento têm sido objeto de grande preocupação por parte das autoridades governamentais. Mesmo assim, devido à displicência e/ou ao desconhecimento dos riscos à saúde provocados por esse elemento químico, alguns acidentes têm sido causados pela sua estocagem ou uso domiciliares.

Embora raros, casos de contaminação humana por mercúrio têm sido relatados como resultado de acidentes domésticos tais como a quebra de termômetros3 ou o derramamento desse metal com contaminação de carpetes e mobiliário4. Em todos os casos citados a descoberta da contaminação deu-se através de sintomas de intoxicação mercurial apresentados pelos moradores das casas contaminadas e mostram a seriedade que esse tipo de exposição pode adquirir quando não constatada de imediato.

Um caso recente ocorreu na cidade do Rio de Janeiro causando a contaminação de toda a área de um prédio residencial e de vários moradores.

Nesse acidente,um dos moradores de um edifício residencial localizado em Cascadura, região urbana da Cidade do Rio de Janeiro, mantinha em sua garagem, cerca de 4 kg de mercúrio metálico acondicionado em frascos de polietileno. Essa garagem era aberta e as crianças residentes frequentemente utilizavam a área em frente à mesma para fins recreativos. No dia 23/12/95, numa das vezes em que isso acontecia, a bola de futebol utilizada caiu dentro da garagem derrubando o recipiente onde o mercúrio era guardado, sem que entretanto houvesse qualquer derramamento. Movido pela curiosidade e achando interessante o conteúdo daquele frasco, guardado sem nenhuma precaução maior, as crianças o transportaram para cima da cisterna e abriram-no. O mercúrio foi então derramado sobre a tampa da mesma e as crianças começaram a brincar com as gotículas formadas.

Sabendo do ocorrido e sendo constatado o derramamento, alguns moradores cataram as gotículas possíveis encontradas e as jogaram no canteiro do jardim. Um desses moradores, conhecendo os problemas que poderiam advir dessa contaminação, colheu amostras de água da cisterna, da caixa dágua geral do prédio e da torneira de seu apartamento trazendo-as para serem analizadas no Laboratório de Toxicologia do CESTEH, onde estagiava.

Essas análises apontaram a contaminação da água da cisterna sendo que a caixa dágua central e a água distribuída aos apartamentos ainda não haviam sido atingidas. A partir dessa constatação, foi feito o isolamento da cisterna do prédio e chamado o Órgão Estadual competente (FEEMA), que confirmou a contaminação encontrada e interditou a área "até segunda ordem". (Pelo menos até o dia 17/5/96 nada mais havia sido feito por esse Órgão).

Para avaliar a extensão dos problemas causados por essa contaminação bem como pela exposição à área contaminada, foi elaborado um programa de acompanhamento pelo Laboratório de Toxicologia do CESTEH. Esse programa constituia na coleta periódica e análise de amostras de água e ar locais e de urina dos moradores do prédio.

EXPERIMENTAL

As amostras de água, ar e urina foram coletadas no período entre dezembro/95 e março/96.

As amostras de água foram coletadas em recipientes plásticos previamente descontaminados por tratamento com solução de ácido nítrico a 10%. As amostra de ar foram coletadas através do uso de bombas para amostragem de ar marca SKC 224-PCXR4 e de "impingers" com a utilização de solução de permanganato de potássio a 0,5%.

Amostras de urina, a primeira urina da manhã, foram coletadas a partir de cerca de vinte dias do acidente.

Todas as amostras foram transferidas imediatamente ao Laboratório de Toxicologia do CESTEH e analisadas por espectrofotometria de absorção atômica, pela técnica de vapor frio, em um equipamento Perkin Elmer Zeeman 5100 equipado com um sistema para a geração de vapor frio Perkin Elmer modelo MHS-20, de acordo com metodologia já padronizada nesse Laboratório. As leituras de absorção foram feitas em 253,6 nm e a abertura da fenda utilizada foi de 0,7 nm.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Além das amostras de água recolhidas imediatamente após o acidente, quatro outras amostras (cisterna, caixa dágua e de torneiras) foram coletadas em dias diferentes.

No final do mês de janeiro/96 os moradores decidiram contratar uma empresa particular especializada em limpeza de cisternas que fez a retirada de toda a água e a descontaminação das paredes da cisterna e removeram toda a camada superficial, contaminada, dos canteiros.

Era passado um mês da contaminação inicial e a água da cisterna estava sendo utilizada apenas nos sanitários.

Depois de realizada essa operação de "descontaminação" foram feitas mais três coletas de amostras das águas. Os resultados obtidos nessas análises são mostrados na tabela 1.

Como pode ser observado, a contaminação da água da cisterna foi elevada e atingiu valores muito superiores àquele considerado como limite máximo admissível para água destinada ao abastecimento doméstico (2 mg/L)5. Entretanto a limpeza feita foi eficiente uma vez que a concentração de mercúrio observada após a mesma ficou sempre abaixo do limite máximo recomendado para uso domiciliar.

Foram realizadas duas coletas de amostras de ar: uma antes da limpeza e outra após a mesma. Durante a primeira coleta, foram encontradas ainda gotículas de mercúrio na casa de bombas (ponto assinalado com a letra B na Figura 1). A localização dos pontos de amostragem bem como os resultados obtidos em ambas as análises estão mostrados na figura 1.


Os valores encontrados mostram uma diminuição significativa da concentração de mercúrio no ar após a limpeza do local, embora valores relativamente elevados ainda tenham sido observados na casa de bombas. Deve-se ressaltar que esse ponto de amostragem é interno e que essa área foi a mais contaminada.

Os resultados das análises das amostras de urina de 22 moradores do edifício atingido são mostrados na tabela 2.

A maioria (70%) dos moradores estudados apresentavam, na época da primeira coleta, níveis de mercúrio superiores àqueles encontrados em populações não expostas ambientalmente (<6,9 mg/L)6. Valores superiores a 10 mg/L, considerados como suspeitos de intoxicação mercurial de acordo com a Resolução 838 de 30 de março de 1993 da Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Rio de Janeiro, foram observados em 10 moradores sendo que em um deles esse valor foi superior a 50 mg/L. Observa-se claramente que esses valores decairam com o tempo uma vez que a fonte de exposição foi controlada.

Nenhum dos moradores estudados apresentava na época desse estudo qualquer sintoma de contaminação mercurial observável. Devido ao tempo decorrido, hoje em dia é praticamente impossível se determinar a existência e/ou a extensão do comprometimento de quaisquer funções vitais associado com essa exposição, embora acredite-se que a contaminação por níveis menores do que aqueles observados nesse trabalho possa ser responsável por pequenas alterações em algumas funções orgânicas.

A pronta ação de um dos moradores que fortuitamente conhecia os problemas causados pela exposição ao mercúrio, possibilitou uma ação mais ou menos coordenada e a consequente diminuição da seriedade que esse acidente poderia ter adquirido. Entretanto, nem sempre se dispõe de pesssoas com esse grau de esclarecimento de modo que o risco à saude geralmente é muito maior que o aqui relatado passando a ser uma exposição muitas das vezes crônica e capaz de conduzir a patologias.

Esse caso, certamente não é único mas coloca em evidência a necessidade de uma campanha de esclarecimento junto à população sobre os perigos associados à manutenção e ao manejo descuidado de substâncias químicas, que podem ter consequências altamente danosas à saúde pessoal e de toda uma comunidade.

AGRADECIMENTO

Os autores gostariam de agradecer ao CNPq pelo apoio recebido.

  • 1. Horovitz, C. T., J Trace Elem. Electrolytes Health Dis. 1988, 2, 135.
  • 2. Stohs, S. J. and Bagchi, D.; Free Rad. Biol. Med. 1995, 18, 321.
  • 3. Mohlendahl, K. E., Lancet 1990, 336, 1578.
  • 4. McNeil, N. I., Issler, H. C., Olver, R. E. and Wrong, O. M., Lancet 1984, 269.
  • 5. Brasil, Resolução CONAMA nş 20 (18/6/76), em Brito, E. N. (Ed.): Coletânea de Legislação Ambiental Básica Federal e Estadual, FEEMA, RJ 1992,p. 178.
  • 6. Minoia, C., Sabbioni, E., Apostoli, P., Sci. Tot. Environ. 1990, 95, 89.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Set 2008
  • Data do Fascículo
    Ago 1997

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 1996
  • Aceito
    31 Out 1996
Sociedade Brasileira de Química Secretaria Executiva, Av. Prof. Lineu Prestes, 748 - bloco 3 - Superior, 05508-000 São Paulo SP - Brazil, C.P. 26.037 - 05599-970, Tel.: +55 11 3032.2299, Fax: +55 11 3814.3602 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: quimicanova@sbq.org.br