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Mecanismos de Separação em Eletroforese Capilar

Separation Mechanisms in Capillary Electrophoresis

Resumo

Since its inception in the 80's, capillary electrophoresis has matured into a well established technique for the separation and analysis of complex samples. One of its strongest aspects is the ability to handle materials from a diversity of chemical classes, ranging from few to millions of Daltons. This is only possible because several modes of electrophoresis can be performed in a single capillary format. In this work, relevant aspects of capillary zone electrophoresis in its three modes (free solution, micellar and gel), capillary isoelectric focusing and capillary isotachophoresis are discussed and many representative applications are presented.

free solution capillary electrophoresis; micellar electrokinetic capillary chromatography; capillary electrochromatography; capillary gel electrophoresis; capillary isoelectric focusing; capillary isotachophoresis


free solution capillary electrophoresis; micellar electrokinetic capillary chromatography; capillary electrochromatography; capillary gel electrophoresis; capillary isoelectric focusing; capillary isotachophoresis

Mecanismos de Separação em Eletroforese Capilar

Marina F. M. Tavares

Instituto de Química - Universidade de São Paulo - CP 26077 - 05599-970 São Paulo - SP

Recebido em 6/11/96; aceito em 14/4/97

Separation Mechanisms in Capillary Electrophoresis. Since its inception in the 80's, capillary electrophoresis has matured into a well established technique for the separation and analysis of complex samples. One of its strongest aspects is the ability to handle materials from a diversity of chemical classes, ranging from few to millions of Daltons. This is only possible because several modes of electrophoresis can be performed in a single capillary format. In this work, relevant aspects of capillary zone electrophoresis in its three modes (free solution, micellar and gel), capillary isoelectric focusing and capillary isotachophoresis are discussed and many representative applications are presented.

Keywords: free solution capillary electrophoresis; micellar electrokinetic capillary chromatography; capillary electrochromatography; capillary gel electrophoresis; capillary isoelectric focusing; capillary isotachophoresis.

INTRODUÇÃO

A ciência das separações, em termos de instrumentação analítica, contemplou nas últimas décadas grandes avanços tecnológicos: a década de 50 foi caracterizada pela introdução da cromatografia em fase gasosa (GC), enquanto que a década de 70 testemunhou o desenvolvimento da cromatografia em fase líquida (HPLC). Os anos 80, mais precisamente os últimos dez anos, foram marcados pela implementação da terceira grande técnica instrumental de separação, a eletroforese capilar1-8. O rápido avanço da eletroforese capilar decorre, em parte, da simplicidade instrumental, mas principalmente da variedade dos modos de separação que podem ser efetuados em uma única coluna capilar9 e da diversidade dos compostos passíveis de análise em cada modo10.

Na eletroforese capilar, a separação é conduzida em tubos com dimensões de 15 a 100 mm de diâmetro interno, e 50 a 100 cm de comprimento, preenchidos com um eletrólito condutor, e submetidos à ação de um campo elétrico. O uso do capilar oferece muitas vantagens sobre os outros meios utilizados para eletroforese (placas de gel, papel, etc). Devido a fatores geométricos (a relação entre a área superficial interna e volume é apreciavelmente grande), um capilar possibilita a dissipação eficiente do calor, gerado pela passagem da corrente elétrica (efeito Joule). Além disto, a alta resistência elétrica do capilar permite o estabelecimento de campos elétricos elevados (100 a 500 V/cm), resultando em separações de alta eficiência (geralmente excede 105 pratos teóricos), resolução inigualável e tempos de análise apreciavelmente curtos. Outras vantagens da eletroforese capilar são: pequena demanda de amostra, com volumes tipicamente da ordem de 1 a 10 nL, e a possibilidade de injeção e detecção em fluxo.

Além da migração eletroforética dos íons, outro fenômeno de migração ocorre, a eletroosmose, ou seja, fluxo de solução induzido pelo campo elétrico, o qual confere à técnica parte de suas características de alta eficiência11. Dentro do tubo capilar, o fluxo eletroosmótico é caracterizado por um perfil radial constante da velocidade, não contribuindo, portanto, para o alargamento das bandas. Esta peculiaridade distingue eletroforese capilar dos métodos cromatográficos em fase líquida, que apresentam um variação parabólica para o perfil radial da velocidade dentro da coluna, característico do fluxo induzido por pressão. Além disto, o fluxo eletroosmótico, em geral de grande magnitude, é responsável pela condução dos solutos, sem distinção de carga, na direção do detector, permitindo assim a análise simultânea de amostras contendo solutos catiônicos, neutros e aniônicos.

Em artigo de divulgação anterior1, a eletroforese capilar foi apresentada sob uma perspectiva histórica, sendo examinados os conceitos fundamentais sobre a migração eletroforética e eletroosmótica, além de aspectos instrumentais referentes à introdução de amostras e detecção. No presente trabalho, procura-se descrever, em maior detalhe, a eletroforese capilar de zona nos seus vários modos de separação (solução livre, micelar e gel), assim como a focalização isoelétrica capilar e a isotacoforese capilar, apresentando algumas de suas aplicações mais representativas.

I. ELETROFORESE DE ZONA

I.1. Eletroforese Capilar em Solução Livre

A eletroforese capilar em solução livre (free solution capillary electrophoresis, FSCE ou capillary zone electrophoresis, CZE, como é ainda comumente conhecida) é um dos modos de separação eletroforética mais usados na prática, provavelmente em razão da facilidade de sua implementação e otimização das condições experimentais12,13. Em FSCE, o tubo capilar é simplesmente preenchido com um eletrólito, geralmente com características tamponantes. A separação ocorre como resultado de duas estratégias: maximizar as diferenças entre as mobilidades efetivas dos solutos e minimizar as causas de alargamento das zonas.

A equações tradicionais que descrevem resolução, eficiência e tempo de migração em FSCE incorporam o fenômeno de difusão como única causa de alargamento das zonas1, e podem ser escritas como:

(1)

(2)

(3)

onde mi e mi+1 são as mobilidades aparentes de dois solutos eluindo em posições adjacentes, mmédia é a mobilidade média dos solutos, mef é a mobilidade eletroforética do soluto i, mosm é a mobilidade do fluxo eletroosmótico, V é a diferença de potencial aplicada, D é a média dos coeficientes de difusão dos dois solutos, Ltot é o comprimento do capilar e Ldet é a distância do ponto de injeção à posição do detector.

As equações (1) a (3) indicam que o uso de voltagens elevadas é vantajoso, pois implica em um ganho de resolução e eficiência, assim como na diminuição do tempo de análise. Outra observação pertinente é que, em separações difíceis, a resolução de pares de solutos eluindo muito próximos pode ser melhorada pelo ajuste da magnitude do fluxo eletroosmótico. Quando a mobilidade eletroosmótica for aproximadamente igual, mas de sinal oposto à mobilidade dos solutos, um ganho de resolução é alcançado (equação 1). As penalidades para este tipo de estratégia, no entanto, são: perda de eficiência (equação 2) e aumento considerável do tempo da análise (equação 3).

Soluções Tampão

Quando a separação envolve solutos com caráter ácido-base, a mobilidade eletroforética do soluto depende do pH do eletrólito. Neste caso, o termo mobilidade efetiva, o qual incorpora o produto das mobilidades eletroforéticas das espécies em equilíbrio e a distribuição das concentrações relativas de cada espécie no pH considerado, é empregado1. Assim sendo, o controle do pH é aconselhável e a escolha de uma solução tampão adequada tem implicações diretas na otimização da separação. Adicionalmente, a suscetibilidade do fluxo eletroosmótico a variações de pH requer que o tampão apresente constância no valor de pH (alta capacidade). Outras propriedades desejáveis para um sistema tampão incluem: baixo valor de absorbância no comprimento de onda selecionado para a análise, e baixa mobilidade, para minimizar a geração de calor por efeito Joule. Além disso, a escolha do tampão está vinculada a considerações sobre a forma da banda: via de regra, tampões contendo íons com mobilidade semelhante à do soluto previnem distorções no perfil da banda e minimizam o seu alargamento.

De forma geral, os sistemas tampão são eficientes em um intervalo de pH correspondente ao pKa, mais ou menos uma unidade. Na tabela 1 foram selecionados os tampões mais comumente usados em eletroforese capilar e seus respectivos pKa. Especialmente úteis para eletroforese capilar são os tampões biológicos, conhecidos como tampões de Good (Tris/borato, histidina, Caps, etc). Estes sistemas, em geral, possuem íons grandes, de baixa mobilidade e podem ser usados em altas concentrações, sem a desvantagem de gerar calor excessivo. Entretanto, os tampões de Good apresentam a inconveniência de absorver fortemente na região do UV.

Em capilares de sílica fundida, o intervalo de pH adequado para trabalho varia entre 2 e 11, mas em geral este intervalo é limitado pela estabilidade do soluto. A concentração das soluções tampões usadas em eletroforese capilar varia tipicamente entre 5 e 200 mmol L-1. Na escolha da concentração são considerados vários efeitos. Altas concentrações podem comprometer a separação, pelo excesso de calor decorrente do efeito Joule. Baixas concentrações podem aumentar a tendência de adsorção de certos solutos na parede do capilar e, portanto, ocasionar alargamento e distorção das bandas. Adicionalmente, em baixas concentrações, o fluxo eletroosmótico pode se tornar errático, o que dificulta a reprodutibilidade dos tempos de migração e conseqüentemente prejudica a identificação inequívoca dos solutos.

A FSCE é aplicável a uma grande variedade de solutos, incluindo íons inorgânicos, compostos orgânicos de baixa massa molecular e biomoléculas com alguns milhares de daltons. A figura 1 apresenta uma série de aplicações da eletroforese capilar em solução livre, em sistemas tamponados comuns. Um exemplo magistral do poder de resolução de FSCE é o apresentado na figura 1B. Nesta aplicação, a separação dos diasteroisômeros de peptídeos sintéticos, contendo 36 aminoácidos, é demonstrada. Estes peptídeos foram sintetizados de tal forma que, dos 36 aminoácidos, 35 apresentam conformação L, e apenas um apresenta conformação D, a qual é inativa biologicamente. A FSCE é capaz de distinguir tais isômeros, onde uma pequena alteração estrutural ocasiona a variação da distribuição espacial de carga da molécula, e desta forma causa diferenças de mobilidade. Outro exemplo, que demonstra a escolha adequada do sistema tampão, é o apresentado na separação de açúcares da figura 1E. Além das características tamponantes, o eletrólito escolhido, borato, possui propriedades complexantes e no caso, foi empregado para alterar a seletividade da separação.


Aditivos

Em FSCE é bastante comum o uso de eletrólitos aditivados. O uso de aditivos é indicado em quatro situações: para alterar a mobilidade do soluto, modificar o fluxo eletroosmótico, solubilizar solutos ou compostos na matriz da amostra e reduzir a interação de certos solutos com a parede do capilar (minimizar adsorção). Uma lista de vários aditivos e seus respectivos efeitos é apresentada na tabela 2.

Um dos exemplos mais interessantes da FSCE em eletrólitos aditivados é a separação de cátions inorgânicos. A separação de cátions é em geral uma prática difícil, em razão das semelhanças de raio iônico efetivo, que se refletem na similaridade da condutância equivalente e mobilidade. A figura 2 ilustra este problema, onde a condutância iônica equivalente de vários grupos de cátions é apresentada em ordem ascendente. Pela observação dos valores, conclui-se que a separação dos metais alcalinos e alcalinos terrosos é viável, enquanto que a separação de vários metais de transição é praticamente impossível. Neste caso, é então aconselhável a incorporação de agentes complexantes ao eletrólito de corrida (Figura 3A), visando uma alteração seletiva da mobilidade dos cátions e, conseqüentemente, um ganho de resolução. Outro recurso empregado na análise de cátions é o uso de um complexante auxiliar, como um composto de inserção, cuja cavidade discrimina solutos de diferentes tamanhos (Figura 3B). Em ambos os casos, como todas as espécies complexas e metal livre estão em equilíbrio dinâmico, o eletroferograma de um cátion metálico complexado apresenta uma banda única. O tempo de migração desta banda pode ser alterado, se o equilíbrio é deslocado, em razão da alteração da distribuição total de carga. Na prática, isto é feito pela modificação da concentração do complexante no eletrólito21.



A análise de cátions é em geral realizada sob detecção espectrofotométrica indireta, uma vez que a maioria dos cátions metálicos apresenta baixa absortividade na região espectral de trabalho (200 a 900 nm). Assim sendo, a absorbância de um cromóforo catiônico (em geral um cloridrato de amina) é monitorada no decorrer da análise. Quando a banda do soluto catiônico chega ao detector, o cátion do cromóforo é deslocado, e o sinal de absorbância decai, retornando a sua posição original, assim que o soluto deixa o detector. A figura 4 apresenta dois exemplos clássicos de separação de cátions por FSCE em eletrólitos aditivados. O sinal do detector foi invertido, para que o eletroferograma apresente o seu registro convencional, com picos voltados para cima. Na figura 4A, além do cromóforo e do complexante, foi empregado o solvente metanol a 5%, cujo efeito provável é o de alterar o raio iônico efetivo de alguns cátions, melhorando a seletividade da separação. Na figura 4B, a conhecida co-eluição de potássio e amônio pôde ser resolvida na presença de um éter coroa, com 6 átomos de oxigênio.


Agentes Modificadores da Superfície Capilar

Os capilares utilizados em eletroforese capilar são fabricados com sílica fundida, uma forma pura de dióxido de silício amorfo. Este material confere aos capilares muitas propriedades importantes, como dimensões precisas, alta constante dielétrica, baixa condutividade elétrica, alta condutividade térmica, resistência mecânica e particularmente, alta transmissão óptica para um intervalo apreciável do espectro (190 a 900 nm). Quimicamente, os capilares de sílica são caracterizados pela presença de vários grupos silanol (SiOH), os quais são fracamente ácidos em caráter. Em contato com o meio aquoso, alguns destes grupos dissociam, tornando a superfície negativamente carregada. Os grupos silanol são diretamente relacionados com o fenômeno da eletroosmose1,11. Além disto, estes oferecem sítios abundantes para interação coulômbica com certos solutos, e portanto por vezes têm um efeito adverso na qualidade da separação e detecção final.

Vários procedimentos têm sido introduzidos para o controle da densidade de carga na parede do capilar, visando tanto o controle do fluxo eletroosmótico quanto a eliminação da interação soluto-capilar. O uso de capilares revestidos internamente é uma prática comum. Nestes capilares, os grupos silanol são bloqueados quimicamente pela reação com ligantes polares do tipo organosilanos (trimetilclorosilano, g-metacriloxipropil-trimetoxisilano), entre outros. Este tipo de revestimento tem se mostrado efetivo por um período de tempo limitado, devido à hidrólise reversível do oxigênio silil, particularmente em valores altos de pH.

Talvez a maneira mais elegante de manipulação da carga superficial do capilar é a desativação dinâmica que decorre da adsorção física de agentes tensoativos catiônicos, tais como os alquil derivados dos sais quaternários de amônio. A escolha adequada do tamanho da cadeia do tensoativo como sua concentração permite o controle direto da magnitude do fluxo eletroosmótico e mesmo a sua inversão24.

A figura 5 ilustra as vantagens do controle de fluxo e polaridade da fonte de alta tensão, dentro do contexto da migração de ânions. Considere a introdução hidrodinâmica1 de uma amostra contendo solutos aniônicos. A figura 5A exemplifica a separação sob fluxo eletroosmótico (eof) normal, fluxo direcionado ao catodo1, e polaridade positiva na extremidade do capilar onde é feita a injeção de amostra. Este tipo de análise somente é possível no caso de ânions lentos (aromáticos, por exemplo), cuja mobilidade é menor que a mobilidade eletroosmótica. Se os ânions são rápidos ou moderadamente lentos (inorgânicos e carboxílicos alifáticos de cadeia curta), eles deixam a coluna assim que o campo elétrico é estabelecido e nunca atingem o detector, cuja posição é fixa em um ponto no final da coluna. A inversão da polaridade, figura 5B, torna viável a análise de ânions rápidos, no entanto, como estes migram em contra-fluxo, o tempo de análise pode ser consideravelmente longo. A situação ideal para a análise de qualquer ânion, seja lento ou rápido, é a demonstrada pela figura 5C. A adsorção de tensoativos catiônicos, seguida pela interação por dispersão entre as caudas (forças de London), permite o estabelecimento de uma estrutura bidimensional (semi-micelas) na superfície, onde as cabeças positivas do tensoativo estão voltadas para a solução. Desta forma, uma dupla camada elétrica constituída de ânions é então organizada na interface superfície-solução. Sob ação de um campo elétrico, uma parte dos ânions presentes na camada difusa sofre migração em direção do anodo. Esta migração é estendida a outras camadas da solução, e a solução como um todo migra na direção do anodo, processo conhecido na literatura de ânions como fluxo eletroosmótico invertido24. Uma última possibilidade de análise, que também se aplica a ânions de qualquer natureza é a representada pela figura 5D. Nesta situação, a separação é conduzida sob fluxo suprimido, em capilares especiais, com revestimento interno. Entretanto, comparativamente à análise sob fluxo invertido, o tempo de eluição é bastante longo.


A análise por FSCE de ânions inorgânicos ou orgânicos de baixa massa molecular, assim como a de cátions, é também realizada sob detecção indireta. Neste caso, um cromóforo aniônico, cuja absorbância é monitorada continuamente, é escolhido como eletrólito de corrida. A escolha do eletrólito e otimização das condições de análise é função do tipo de ânion a separar, se rápido ou lento25. A figura 6 ilustra várias possibilidades para a separação de ânions: a figura 6A demonstra a separação de ânions lentos, em eletrólitos não aditivados e sob fluxo normal (capilares comuns), enquanto que a Figura 6B demonstra a separação de ânions rápidos, moderadamente lentos e lentos, sob eletrólito aditivado com tensoativo catiônico e fluxo invertido. A figura 6B ilustra muitas das propriedades marcantes da eletroforese capilar: alta eficiência e poder de resolução, análises rápidas e grande capacidade de picos (36 solutos em 3 minutos). A figura 6C apresenta uma separação de ânions realizada com eletrólitos não aditivados e em colunas especiais, onde os grupos silanol da superfície foram bloqueados e, portanto, o fluxo eletroosmótico está inibido. Neste caso, a separação ocorre exclusivamente devido a diferenças intrínsecas de mobilidade eletroforética dos ânions.


Um aspecto interessante da separação de ânions, observável nos eletroferogramas da figura 6C, é o efeito do tipo do eletrólito sobre a simetria final da banda. Sempre que a mobilidade do ânion do eletrólito aproxima-se da mobilidade do ânion do soluto, a banda é simétrica. Discrepâncias de mobilidade geram bandas distorcidas, que apresentam cauda (tailing) ou cauda frontal (fronting), caso a mobilidade do ânion do eletrólito seja muito maior ou muito menor que a mobilidade do ânion do soluto, respectivamente. A figura 7 ilustra as situações de simetria (mA = mB) e assimetria (mA¹ mB) de pico, onde mA é a mobilidade do soluto aniônico e mB é a mobilidade do ânion do eletrólito. A distribuição espacial das moléculas é assimétrica quando a presença da banda gera distorções locais do campo elétrico, E. No caso mA < mB: as moléculas do soluto que estão posicionadas na interface BA, ao difundirem para a região B, sofrem uma diminuição de velocidade (EB < EA), e com o tempo tendem a afastar-se do centro da banda. Se as moléculas pertencem à interface AB, a difusão para a região B também causa retardamento, mas com o tempo, o centro da banda as alcança. No caso mA > mB, a situação é invertida: moléculas na interface BA ao penetrarem a região B são aceleradas (EB > EA) e retornam ao centro da banda, enquanto que moléculas na interface AB ao serem aceleradas na região B, afastam-se do centro da banda.


I.2. Eletrocromatografia Micelar

A limitação primária dos métodos eletroforéticos em solução livre é a impossibilidade de separar compostos neutros, a menos que existam diferenças significativas de massa molecular. Em geral, compostos neutros migram no capilar por ação exclusiva do fluxo eletroosmótico1, não havendo discriminação espacial e/ou temporal dos solutos na chegada ao detector. Em 1984, S. Terabe e colaboradores29 introduziram uma versão modificada da eletroforese capilar, a eletrocromatografia micelar ou cromatografia eletrocinética micelar (micellar electrokinetic capillary chromatography, MECC, ou micellar electrokinetic chromatography, MEKC). Nesta nova versão, agentes tensoativos iônicos, em condições apropriadas à formação de micelas, são adicionados ao eletrólito de corrida, proporcionando assim um sistema cromatográfico de duas fases. O eletrólito representa a fase primária, a qual é transportada eletroosmoticamente sob ação do campo elétrico, enquanto que as micelas representam a fase secundária, ou pseudo-estacionária, a qual é transportada por uma combinação de eletroforese e eletroosmose. A partição diferenciada de solutos neutros entre estas duas fases é responsável pela seletividade da separação. Problemas de co-eluição em MECC são em parte solucionados pela adição de uma fase complexante auxiliar. Toda uma classe de separações que faz uso de ciclodextrinas de diferentes tamanhos pertence a esta categoria, e vem sendo referida como MECC-CD. Sendo neutras, as ciclodextrinas migram com a velocidade eletroosmótica. A partição diferenciada de solutos entre a micela e a cavidade da ciclodextrina produz a seletividade extra requerida. A figura 8 esquematiza os principais mecanismos de transporte da eletrocromatografia em fase micelar e na presença de ciclodextrinas. Muito embora a eletrocromatografia micelar tenha sido idealizada para separar solutos neutros, ela pode também auxiliar a separação de compostos iônicos, e tem sido amplamente empregada como tal30.


Agentes Tensoativos

Agentes tensoativos são compostos anfifílicos, i. e., contém na mesma molécula grupamentos com caráter hidrofóbico e hidrofílico31. Compostos com estas características podem ser aniônicos, catiônicos, anfotéricos, ou ainda neutros, sem carga aparente, como moléculas com grupos fortemente polares. Em geral, o tensoativo contém um grupo polar e/ou iônico como cabeça ligado a uma cauda apolar, por exemplo, uma cadeia alifática, constituindo o monômero. Em condições apropriadas, monômeros podem agregar-se para formar entidades de tamanho coloidal, como vesículas e micelas.

Micelas são agregados organizados, de forma essencialmente esférica, em que a cauda hidrofóbica do monômero é direcionada para o centro da cavidade e a cabeça é orientada em direção à solução, definindo assim uma superfície. A natureza da micela, assim como o processo de micelização são rigorosamente dependentes das condições experimentais, tais como temperatura, tipo do solvente, etc. Micelas são formadas rapidamente quando a concentração de surfactante excede um valor específico, conhecido como concentração micelar crítica (CMC), e existem em equilíbrio dinâmico com o monômero:

onde N é definido como o número de agregação, representando o número médio de monômeros agregados. Na tabela 3 foram selecionados os surfactantes mais comumente empregados em MECC e seus respectivos número de agregação e concentração micelar crítica.

Os agentes tensoativos que apresentam altos valores de CMC são inadequados para MECC, pois as micelas formadas coexistem com grandes quantidades de monômero livre, o que representa uma sobrecarga térmica (aumento de calor a ser dissipado pelo capilar). Entre os eletrólitos estudados para eletrocromatografia micelar até a presente data, os sistemas que formam micelas cuja migração eletroforética se opõe ao fluxo eletroosmótico, embora apresentem mobilidade menor, são os que têm produzido melhores desempenhos. Exemplo típico é o dodecilsulfato de sódio (SDS). Assim, tanto a solução como as micelas migram no mesmo sentido, embora com velocidades diferentes (Figura 8A).

A associação diferenciada entre os diversos solutos e a fase micelar é obviamente um requisito básico para o sucesso da separação. Dependendo da natureza do sistema, a incorporação do soluto pela micela pode envolver diferentes regiões da micela, e pode ocorrer por uma série de mecanismos. Solutos não-polares, ou moderadamente polares se associam ao núcleo hidrofóbico da micela, através de interações dispersivas do tipo dipolo induzido-dipolo induzido, enquanto que solutos polares se associam à superfície da micela, através de interações do tipo dipolo-dipolo ou íon-dipolo com os grupos polares (ou iônicos) da cabeça do tensoativo. Fortes interações coulômbicas (atrativas ou repulsivas) podem resultar quando o soluto apresenta carga. Solutos anfifílicos tendem a se alinhar com a micela, de forma a interagir dispersivamente com o núcleo hidrofóbico e eletrostaticamente com a cabeça do tensoativo. A extensão com que a associação soluto/micela ocorre determina a ordem de eluição dos solutos.

Vantagens e Limitações

A MECC oferece várias vantagens em relação a outras técnicas alternativas de separação. A instrumentação básica é idêntica à empregada em eletroforese de zona em solução livre1, no entanto a MECC é mais versátil. Em MECC, diferenças de mobilidade eletroforética podem ser exploradas para separar solutos iônicos, ao mesmo tempo que, diferenças de distribuição entre a fase micelar e o eletrólito podem ser usadas para separar solutos neutros. A MECC apresenta uma eficiência muito maior, quando comparada às técnicas cromatográficas similares (pareamento iônico, por exemplo), em decorrência das características inerentes ao fluxo eletroosmótico, particularmente do caráter linear do perfil radial da velocidade1. Além disso, a uniformidade das micelas, em termos de distribuição de tamanho, minimiza os problemas associados com a resistência à transferência de massa (vide próxima seção).

Apesar de ser uma técnica eletroforética com extensa variedade de aplicações, a MECC apresenta algumas limitações de ordem prática e teórica. Em eletrocromatografia micelar, a razão entre o volume das fases (Vmicela/Vsolução ) é relativamente grande: uma solução 0,5 mol L-1 de dodecilsulfato de sódio, por exemplo, apresenta uma razão de fases maior que 0,01. Este fator, considerando que micelas são instáveis em soluções aquosas contendo altos teores de solventes orgânicos, em geral, impossibilita o uso de MECC para solutos com forte caráter apolar. Nestas condições, tais solutos são completamente retidos pela micela, e portanto, não são diferenciados quando atingem o detector. Além disso, em razão da velocidade e do volume efetivo das micelas dependerem criticamente das condições da separação, a reprodutibilidade do tempo de eluição exige um controle cuidadoso das condições experimentais. Comparativamente a outras técnicas eletroforéticas, a MECC possui uma baixa capacidade de picos, o que limita seu uso a misturas não muito complexas. Esta característica está diretamente relacionada ao fato de que em MECC, a fase secundária (micelas) está em movimento e, conseqüentemente, todos os solutos, mesmo os totalmente retidos pela micela, são eluídos. Isto limita o tempo em que a separação deve ocorrer a um intervalo característico. De acordo com a figura 9, os solutos só podem eluir entre os tempos t0 (soluto não-retido pela micela, ou simplesmente um soluto neutro, que migra apenas por ação do fluxo eletroosmótico), e tM (tempo de migração da micela). Assim, o fator t0/tM expressa convenientemente o intervalo útil de separação em MECC.


Equações Fundamentais

Em decorrência do intervalo limitado de tempos de eluição, as equações fundamentais da cromatografia não são estritamente aplicáveis à eletrocromatografia micelar. Em eletrocromatografia, o fator de capacidade de um soluto (quantidade de soluto presente na fase estacionária em relação à presente na fase móvel), k', é expresso como:

(5)

onde tR é o tempo de retenção do soluto. Note que, quando tM tende ao infinito, o termo entre parênteses se aproxima da unidade e a expressão (5) se torna idêntica à da cromatografia. O cálculo do fator de capacidade de um determinado soluto depende do conhecimento de t0 e tM. A avaliação de t0 envolve a determinação do tempo de migração de um soluto neutro, não-retido pela micela: metanol, acetona ou formamida são, em geral, selecionados para esta finalidade. Já para a medida de tM, se faz necessário determinar o tempo de migração de um soluto permanentemente retido no interior da micela: Sudan III, um corante solúvel em água, tem sido bastante utilizado como soluto de prova.

O intervalo limitado dos tempos de eluição em MECC também altera a expressão para a resolução:

(6)

onde N é o número de pratos, k'1 e k'2 são os fatores de capacidade para dois solutos eluindo adjacentemente e a é o fator de seletividade, definido pela razão:

(7)

Novamente, quando o valor de tM tende ao infinito, o último termo da expressão (6) se aproxima da unidade, e a expressão da resolução é simplificada para aquela convencionalmente definida em separações cromatográficas.

Em cromatografia, a resolução aumenta com o aumento do fator de capacidade. Em MECC entretanto, a relação entre Rs e k' não é intuitiva, devido ao último termo da equação (6), que de fato, diminui com o aumento de k'. A resolução passa por um máximo, para valores de k' entre 1 e 5. O valor ótimo depende do intervalo de eluição. Quando a velocidade de migração da micela e a velocidade eletroosmótica têm magnitudes aproximadas, mas direções opostas, o intervalo de eluição pode ser estendido e o valor ótimo de k' aumentado. No entanto, sob estas condições, a reprodutibilidade dos tempos de eluição pode ser comprometida.

Em geral, a redução dos valores de k' dos últimos componentes da mistura é necessária para melhorar a resolução. Um aumento de tM relativo a tR é suficiente para diminuir k'. O tempo de eluição da fase micelar é determinado pela velocidade aparente da micela, vM, que por sua vez, é a soma vetorial das velocidade eletroosmótica, vosm, e eletroforética da micela, ve,M:

(8)

(9)

(10)

onde z é o potencial zeta1 da superfície capilar, zm é o potencial zeta da superfície micelar, f (ka) é uma função do tamanho e forma da micela, e0 é a permitividade do vácuo, e e h são, respectivamente, a constante dielétrica e viscosidade do meio, e E é o campo elétrico. Em condições de rotina (micela aniônica, pH > 5), vosm é maior que ve,M. Desta forma, uma diminuição do potencial zeta do capilar irá reduzir tanto vosm quanto vM. Isto produz o efeito desejado de aumento de tM relativo a tR. Além disto, desde que o fator t0/tM diminui, o valor de resolução ótima aumenta, deslocando-se para valores maiores de k'. Estratégias para a diminuição do potencial zeta do capilar, e conseqüentemente do fluxo eletroosmótico, já foram discutidas previamente, quais sejam, revestimento do capilar (silanização, etc), assim como alteração das propriedade físico-químicas da solução (pH, força iônica, viscosidade e constante dielétrica).

O fator de capacidade de um soluto é o produto do coeficiente de partição, K, e a razão entre as fases, b (razão entre os volumes da fase estacionária e fase móvel):

(11)

Em cromatografia líquida de fase reversa, a incorporação de solventes na fase móvel afeta os valores de k', pois altera o coeficiente de partição. Em MECC, a situação é complicada pelo fato de que os solventes orgânicos afetam não só K, mas também b. Solventes orgânicos alteram a concentração crítica da micela (CMC) e, portanto, o volume micelar. Além disso, a adição de solventes orgânicos altera a viscosidade e a constante dielétrica da fase móvel e, conseqüentemente, o potencial zeta do capilar, resultando na variação da velocidade eletroosmótica. Metanol, isopropanol e acetonitrila são alguns dos solventes testados para a extensão do intervalo de tempos de eluição. Em geral, a redução do fator capacidade dos solutos que eluem por último é conseguida às custas de longos tempos de análise.

Em MECC, a capacidade de picos (n) é dada pela seguinte expressão:

(12)

onde tn é o tempo de retenção do n-ésimo componente, no caso tn = tM, e t1 é o tempo de retenção do primeiro componente a eluir do capilar, t1 = tosm.

Em geral, se nenhum procedimento é usado para estender o intervalo de eluição, o fator t0/tM varia entre 0,2 e 0,5 (valores típicos obtidos em soluções de SDS tamponadas com fosfato e borato). Assumindo um fator t0/tM = 0,3 e N = 105, o número máximo de solutos que podem ser separados em uma única corrida é de aproximadamente 100. Considerando neste exemplo, que a eficiência da separação é bastante elevada (105 pratos), 100 solutos é um número muito menor do que poderia ser separado em outras técnicas correlatas, que não exibem esta limitação do intervalo de eluição.

Causas de Alargamento de Bandas

Além das causas convencionais discutidas anteriormente para eletroforese de zona1 existem algumas particularidades em MECC, como também processos distintos, que contribuem para a dispersão das zonas. Por exemplo, foi demonstrado que a variância da zona resultante de difusão longitudinal é proporcional ao coeficiente de difusão do soluto e ao tempo de migração. Em MECC, esta contribuição depende não somente da difusão do soluto na fase móvel, como também de sua difusão na fase micelar. Adicionalmente, os solutos que apresentam altos valores de k' despendem muito tempo no interior da micela, que por sua vez migra lentamente. Assim sendo, tais solutos requerem mais tempo para eluir do capilar e as bandas são mais vulneráveis ao alargamento gerado por difusão.

Micelas são estruturas dinâmicas e, por conseguinte, estão sujeitas à polidispersão: variação de tamanho com o tempo, em decorrência do equilíbrio de troca entre o monômero e o N-mero. A polidispersão micelar gera uma distribuição relativa de massas moleculares ou tamanhos e, portanto, é um fator importante a considerar na escolha de uma fase pseudo-estacionária para MECC. A mobilidade eletroforética da micela é determinada por fatores como tamanho e forma (termo f (ka) da equação (10), os quais, por sua vez, dependem do número de agregação, N. Agentes tensoativos, que inerentemente geram micelas em um amplo intervalo de tamanhos e formas, podem não ser adequados para MECC. Solutos interagindo com micelas de diferentes tamanhos exibem um amplo intervalo de velocidades de migração e podem produzir bandas largas. Um aumento da concentração do tensoativo, assim como um aumento de temperatura, podem contribuir para acelerar o processo de troca entre micela e monômero, melhorando a eficiência da separação.

Efeitos adversos relacionados com a resistência à transferência de massa entre as fases pseudo-estacionária e móvel também podem ocorrer em MECC. Em geral, baixas voltagens e altos coeficientes de difusão do soluto minimizam estes efeitos. A contribuição da resistência à transferência de massa na fase pseudo-estacionária é em geral de pequena magnitude para solutos não-polares, em decorrência do tamanho das micelas (» 40 Angstrons para SDS) e da cinética rápida da interação soluto/micela. No entanto, devido à natureza das forças envolvidas, o processo de partição entre solutos polares ou iônicos e a micela pode apresentar uma cinética lenta, e causar o alargamento das bandas.

Resistência à transferência de massa na fase móvel envolve dois processos distintos: difusão intermicelar e intracoluna. O efeito intermicelar ocorre porque a difusão do soluto entre as micelas é um processo lento. Este processo é análogo ao que ocorre em colunas empacotadas usadas em cromatografia à líquido, onde a difusão rápida do soluto entre as partículas do recheio é de extrema importância. Mesmo em concentrações moderadas de tensoativo, a distância entre as micelas é extremamente pequena, dificultando a passagem do soluto. No entanto, verifica-se em MECC, uma menor resistência à transferência de massa na fase móvel quando comparada à cromatografia à líquido em colunas empacotadas. As micelas constituem uma fase secundária mais uniforme e homogeneamente dispersa (devido à repulsão coulômbica entre as micelas) e têm dimensões menores que as partículas usadas nas colunas empacotadas. Devido à quase perfeita distribuição de micelas e sua natureza fluídica, diferenças de percurso na migração dos solutos são praticamente eliminadas, explicando-se assim a maior eficiência obtida nas separações por MECC.

Em cromatografia, a resistência à transferência de massa intracoluna é conseqüência do perfil de velocidade parabólico da fase móvel. Moléculas do soluto localizadas no centro da coluna movem-se mais rapidamente que as moléculas próximas à parede. Um efeito semelhante ocorre em colunas empacotadas, no qual as moléculas localizadas entre as partículas do recheio experimentam um fluxo parabólico local. Em MECC, a lenta transferência de massa intracoluna irá contribuir para o alargamento das bandas somente se existir um gradiente de velocidade radial no capilar. Tais gradientes podem ser originados por efeitos térmicos apenas, já que a natureza do fluxo eletroosmótico, constância do perfil radial da velocidade, minimiza esta fonte de dispersão.

Aplicações

A figura 10 apresenta uma série de aplicações representativas de MECC, exemplificando a separação de drogas de uso farmacêutico e compostos de interesse ambiental. Vários aditivos que encontram aplicação prática em eletrocromatografia micelar estão compilados na tabela 4. O surfactante mais comumente empregado em separações micelares é sem dúvida, o dodecil sulfato de sódio (Figura 10 A, C e D). Misturas de tensoativos podem ser empregadas para gerar micelas mistas. Surfactantes não-iônicos, como Brij-35 ou Triton X-100, podem ser usados para diminuir a carga efetiva do SDS. Como resultado, é possível modular o tempo de análise pela escolha da concentração do surfactante não-iônico, sem recorrer a um aumento de campo elétrico. Outros surfactantes são escolhidos tendo em vista determinados efeitos. Um exemplo relevante é o uso dos sais de bile. A estrutura molecular destes agregados difere grandemente da proporcionada pelos surfactantes de cadeia alifática longa. Além de apresentarem uma cavidade menos hidrofóbica que as de SDS, o que é particularmente interessante para a separação de solutos fortemente apolares, as micelas de sais de bile são úteis nas separações quirais. A separação de corticoesteróides em micelas de sais de bile é apresentada na figura 10B. Um exemplo importante do poder de resolução obtido pelo uso de ciclodextrinas é ilustrado pela figura 10D, que mostra a separação MECC-CD de hidrocarbonetos aromáticos polinucleares (PAH), compostos de grande impacto ambiental.


I.3. Eletroforese Capilar em Gel

A eletroforese capilar em gel (capillary gel electrophoresis, CGE) tem sido extensivamente utilizada na separação de compostos de caráter iônico e alta massa molecular4,8. Neste tipo de eletroforese, os solutos migram através de uma estrutura polimérica, sendo mais ou menos impedidos em seu percurso, de acordo com o seu tamanho, processo este conhecido como peneiramento (Figura 11). Macromoléculas, tais como oligonucleotídeos, fragmentos de DNA e proteínas de alta massa molecular, não podem, de fato, ser separadas sem este tipo de matriz. Nestas moléculas, a razão entre a massa e a carga (m/z) não varia com o aumento da massa molecular. Sendo assim, a mobilidade permanece a mesma, não havendo discriminação temporal e/ou espacial dos oligômeros em um sistema de eletroforese em solução livre. A restrição seletiva na passagem de moléculas de diferentes tamanhos pela matriz polimérica é portanto condição necessária para a separação ocorrer.


Géis são estruturas porosas, em que um componente fluido é imobilizado numa rede polimérica. As cadeias de um polímero podem ser interligadas por processos físico-químicos (ligações covalentes, interações de Van de Waals) definindo os géis químicos, e/ou emaranhadas mecanicamente (géis físicos ou polímeros enovelados). Numa classificação mais rigorosa, os géis químicos são compostos apenas de partículas coloidais liofílicas, e.g. poliacrilamida, enquanto que os colóides liofóbicos são melhor designados como sóis, e.g. agarose. A distância média entre as ligações, distribuição dos pontos de ligação e conteúdo líquido governam o tamanho e a distribuição dos poros no gel. Uma vez formados, os géis são estruturas delicadas, sujeitas a mudanças de morfologia pela ação da temperatura, pH, força iônica e concentração do meio. Portanto, as condições em que um gel é preparado e manipulado devem ser rigorosamente controladas, pois afetam não só a diferenciação de moléculas com diferentes massas moleculares, como também a consistência dos resultados analíticos.

Tradicionalmente, os géis empregados em eletroforese de placa (slab gel) eram produzidos in situ pela polimerização de poliacrilamida com um agente apropriado, ou pela gelatinização de uma solução aquecida de agarose, em meio tamponado. Estes géis eram então moldados em blocos de aproximadamente 0,2 a 5 mm de espessura ou colocados em tubos com 0,5 a 10 mm de diâmetro. Durante a eletroforese, os solutos eram separados em bandas, sendo que moléculas pequenas percorriam distâncias maiores. Após a separação, as bandas eram visualizadas através de técnicas de tingimento.

No formato capilar, a eletroforese em gel faz uso de polímeros lineares (poliacrilamida, metilcelulose, derivados de celulose hidroxilada, polivinilálcool, dextran), polímeros com ligações cruzadas, do tipo covalente (poliacrilamida, bis-acrilamida) ou pontes de hidrogênio (agarose) e polímeros enovelados (óxido de polietileno). Apesar do uso indiscriminado de géis de poliacrilamida, é importante observar que na prática, tais géis exibem como inconveniente, a instabilidade hidrolítica. Por esta razão, o uso destes géis é limitado a intervalos restritos de pH, e mesmo em pH relativamente moderados, a hidrólise ocorre, limitando a vida útil do capilar.

A implementação da tecnologia para fabricação de capilares preenchidos com gel confrontou-se com vários problemas. Primeiramente, ocorria o fenômeno de encolhimento do polímero durante o processo de fabricação no interior do capilar, o que gerava rupturas na estrutura final do gel. Estas rupturas estruturais formavam bolhas de ar, que eventualmente causavam interrupção da corrente elétrica durante a eletroforese. Outro aspecto relacionava-se com o uso de altas voltagens. Nestas condições, o fluxo eletroosmótico era suficientemente forte para arrastar o gel para fora do capilar. Por este motivo, o uso de agarose na fabricação de capilares foi logo descartado, porque além do baixo ponto de fusão, agarose contém grupos ionizáveis, capazes de gerar fluxo eletroosmótico.

Em 1987, B. L. Karger e A. S. Cohen36,37 apresentaram soluções para ambos os problemas, descrevendo, em duas patentes, a fabricação detalhada de capilares preenchidos com gel. O método de Karger e Cohen consiste num pré-tratamento do capilar com o reagente 3-metacriloxi-propil-trimetoxi-silano. Este reagente tem dupla finalidade: elimina o fluxo eletroosmótico através de uma ligação covalente com os grupos silanol da superfície capilar e evita a extrusão do gel durante operação do sistema, através da ligação covalente com o gel a ser formado na etapa seguinte. O capilar é então preenchido com uma solução tamponada do monômero (acrilamida e N,N-metilenobisacrilamida), catalisador (persulfato de amônio) e N,N,N',N'-tetrametiletilenodiamina. As extremidades do capilar são imersas em solução tampão e a polimerização do gel ocorre in situ, após algumas horas. Outras variações deste procedimento de polimerização e revestimento do capilar foram desenvolvidas posteriormente. É interessante mencionar um procedimento que envolve a aplicação de pressão para comprimir a solução polimerizante dentro do capilar e evitar a formação de bolhas e fraturas na estrutura polimérica final38.

De forma geral, os capilares empregados em eletroforese com gel estão limitados a diâmetros de 50 a 100 mm e comprimentos de 15 a 40 cm. A introdução de amostra é feita exclusivamente pelo método eletrocinético1 e o uso de um padrão interno é recomendável durante análise. A restrição de diâmetro é devida a aspectos práticos da fabricação dos capilares contendo gel. O comprimento do capilar é escolhido em função da concentração do polímero. Um aumento da concentração do polímero permite o uso de capilares mais curtos. No entanto, esta prática diminui o intervalo efetivo para a separação ocorrer. Numa placa de gel, os solutos percorrem uma distância característica, inversamente proporcional à massa molecular, em um tempo pré-estabelecido. Contrariamente, em um capilar, todos os solutos devem percorrer uma distância fixa, para efeito de detecção, e espera-se que isto ocorra em tempos distintos. Desta forma, se a velocidade dos solutos é diminuída pelo aumento da resistência do gel, o tempo de análise pode se tornar inconvenientemente longo. Por outro lado, se o comprimento do capilar é diminuído consideravelmente, os solutos podem atingir o detector sem que a separação tenha ocorrido.

Conforme discutido anteriormente, uma das principais vantagens de realizar separações eletroforéticas em um capilar é que o seu formato possibilita a dissipação eficiente do calor gerado pelo efeito Joule. Em CGE, esta vantagem é duplamente verificada, em razão da geometria do capilar e das propriedades anti-convectivas do gel. O limite prático do uso de altas voltagens é a própria integridade físico-química do gel. A operação prolongada sob altas tensões pode levar a rupturas da rede polimérica, ocasionando a formação de bolhas de ar e, eventualmente, a interrupção da corrente elétrica. A vida útil dos capilares preenchidos com gel está em torno de 20 h a 300 V cm-1. Para muitas aplicações isto equivale a 50 injeções de amostra. Para melhores resultados, a extremidade do capilar preenchido com gel deve ser cortada uniformemente e também deve-se evitar a desidratação do gel, quando o capilar não estiver em uso.

Outra dificuldade associada com os capilares preenchidos com gel é a diferença de coeficientes de expansão térmica entre o gel e a sílica fundida, material comumente usado na fabricação de capilares. Com o aumento da temperatura interna no capilar, durante a operação do sistema, ocorre uma expansão de volume do gel. Nestas condições, um grande stress pode ocorrer, com possível destruição da integridade do gel, inclusive provocando o deslizamento do material, criando lacunas no interior do capilar. Este fato limita a temperatura de operação de capilares preenchidos com gel a valores inferiores a 40ºC.

A figura 12 apresenta uma série de aplicações representativas da eletroforese capilar em gel. Um exemplo interessante deste tipo de eletroforese é a possibilidade de determinação da massa molecular. Na separação apresentada pela figura 12A, proteínas, independentemente de sua forma inicial, são previamente denaturadas com dodecilsulfato de sódio (SDS) e se transformam em bastões alongados. Uma vez que uma quantidade constante de SDS é introduzida por unidade de massa molecular, a razão m/z de cada proteína é idêntica. Assim sendo, a discriminação das proteínas durante a migração eletroforética é baseada apenas em diferenças de tamanho. É possível construir uma curva de calibração com padrões de proteínas de massa molecular conhecida, onde o logaritmo da massa molecular varia com o tempo de migração. A massa molecular de uma proteína pode então ser obtida, pela medida do seu tempo de migração no mesmo eletrólito e nas condições de operação em que as proteínas padrão foram determinadas, e posterior interpolação na curva de calibração.


II. FOCALIZAÇÃO ISOELÉTRICA CAPILAR

A eletroforese capilar por focalização isoelétrica (capillary isoelectric focusing, CIEF) é limitada à separação de compostos anfotéricos em um gradiente de pH8,42. Compostos anfotéricos possuem em sua estrutura grupos funcionais com caráter ácido e básico. A protonação e/ou dissociação destes grupos é responsável pela variação da carga efetiva da molécula em função do pH e, portanto, o pH do meio governa a magnitude da mobilidade eletroforética. Compostos deste tipo são caracterizados por um ponto isoelétrico (pI), que corresponde ao valor de pH em que a carga efetiva do composto é nula. A figura 13 ilustra a migração de compostos anfotéricos com pI distintos, em um gradiente de pH.


Para gerar um gradiente de pH no interior do capilar é utilizada uma mistura de compostos anfotéricos (denominados aqui simplesmente anfólitos, para distinguir dos solutos da amostra), contendo grupos ácidos, HA, onde A- = -COO-, -SO3-, etc, e básicos, B, onde BH+ = -NH3+, etc.). Quanto maior o número de componentes na mistura, e quanto mais uniformemente os anfólitos estiverem espaçados em termos de pI, melhor será o gradiente criado. O pH do anólito (solução contida no reservatório do anodo) deve ser menor que o pI do anfólito mais ácido. Desta forma, se o anfólito mais ácido difundir para o reservatório contendo o anólito, este se torna positivamente carregado e retorna ao capilar pela ação do campo elétrico. Pela mesma razão, o católito (solução contida no reservatório do catodo) deve ter um pH superior ao pI do anfólito mais básico. Soluções de hidróxido de sódio (20 mmol L-1) e ácido fosfórico (10-20 mmol L-1) são freqüentemente usadas como católito e anólito, respectivamente, particularmente no gradiente de pH 3-10. Gradientes menos extensos, pH 6-8, empregam bases e ácidos mais fracos, como arginina 40 mmol L-1 (católito) e ácido glutâmico 40 mmol L-1 (anólito).

Para efetuar a separação, o capilar é inicialmente preenchido como uma mistura de anfólitos, geradores do gradiente no intervalo de pH apropriado, e também dos solutos sob investigação. A evolução do gradiente de pH e perfil de concentração dos anfólitos ao longo do capilar é ilustrada na figura 14. Inicialmente, a solução contida no capilar está uniformemente distribuída e possui um pH único (Figura 14A). Uma voltagem pequena, geralmente de 4 a 6 kV, é então aplicada ao sistema. Por ação do campo elétrico, solutos e anfólitos sofrem alteração de carga ao atravessar regiões de diferentes pH, e eventualmente começam a separar-se em bandas individuais. A migração dos anfólitos causa um aumento de pH do eletrólito próximo ao catodo, enquanto que o pH da região anódica declina, assim que os anfólitos de baixo pI (negativamente carregados) migram naquela direção (Figura 14B). A migração individual prossegue até que um estado estacionário é estabelecido, onde cada composto adquire carga efetiva nula, e atinge sua posição final. O pH equivalente a esta posição é igual ao pI do composto em questão. Neste ponto, o composto cessa de migrar eletroforeticamente. Esta etapa é conhecida como focalização. O sistema não distingue entre o anfólito e o soluto, ambos são compostos anfóteros e portanto migram enquanto tiverem carga, e focalizam de acordo com o pI. Embora os solutos sejam separados em bandas distintas, a completa separação de anfólitos adjacentes nunca é obtida, pois isto causaria uma descontinuidade no gradiente de pH. O status da focalização é monitorado através da corrente. Quando a corrente decai para 10 a 25% de seu valor inicial, a voltagem aplicada ao sistema é interrompida, denotando assim, o final da etapa de focalização. Uma característica importante desta etapa é o estabelecimento de um estado estacionário, no qual os componentes da amostra são focalizados em bandas de espessura reduzida. Estas bandas irão permanecer como tal, enquanto o campo elétrico existir. Se uma molécula do soluto (representada pelo símbolo · na Figura 15), pertencente a uma banda já focalizada, difunde em direção à solução circunvizinha ela imediatamente adquire carga, perdendo ou ganhando prótons. Adquirindo carga, a molécula novamente migra, por eletroforese, em direção ao eletrodo de carga oposta, retornando portanto à banda original. Este efeito de auto-focalização gera bandas extremamente finas, conferindo à focalização isoelétrica altíssima eficiência e um grande poder de resolução.



Uma vez que os solutos só podem ser monitorados durante sua passagem pelo detector, e a posição do detector é fixa, é preciso mobilizar as bandas estacionárias até o detector, sem que haja perda da resolução obtida durante a etapa prévia de focalização. A mobilização pode ser conseguida através da aplicação de pressão (mobilização hidrodinâmica) ou de voltagem (mobilização eletroforética). Neste último caso, a adição de um sal ao reservatório contendo o anólito ou católito se faz necessária. A mobilização eletroforética é em geral preferida porque perda de resolução das bandas pré-focalizadas é comparativamente menor.

A figura 16 ilustra a etapa de mobilização eletroforética nas direções catódica e anódica. A mobilização catódica é usualmente selecionada, a menos que na amostra existam compostos muito ácidos. O processo de mobilização ocorre por imposição da eletroneutralidade. No estado estacionário, a seguinte condição é satisfeita:

CH+ + S CBH+ = COH- + S CA- (13)

onde CH+, COH-, CBH+ e CA- representam as concentrações molares de todas as espécies iônicas presentes na mistura de anfólitos. Se um sal do tipo XmYn é adicionado ao católito, a equação de balanço de massa é alterada para:

CH+ + S CBH+ = COH- + S CA- + CYm- (14)

onde CYm- é a concentração molar do ânion e m- representa sua carga. O ânion adicionado compete com OH- em sua eletromigração para o interior do capilar. Em decorrência desta competição, uma quantidade menor de hidroxilas entra no capilar, e portanto o pH decai. Solutos que já estavam focalizados no pH igual ao pI tornam-se catiônicos com a diminuição local de pH, e começam a migrar na direção do catodo. Para mobilização anódica, a seguinte expressão é válida:

CXn+ + CH+ + S CBH+ = COH- + S CA- (15)

onde CXn+ é a concentração molar do cátion adicionado e n+ representa sua carga. Aqui, o cátion Xn+ compete com H+ durante eletromigração para o interior do capilar, e, conseqüentemente, o pH aumenta. Solutos previamente focalizados tornam-se aniônicos e migram na direção do anodo. O contra-íon do sal usado na mobilização eletroforética, o cátion sódio no exemplo da mobilização catódica e o ânion cloreto no exemplo da mobilização anódica, não influencia o processo de mobilização, porque ele permanece no reservatório do católito e anólito, respectivamente, sob a ação do campo elétrico. Aumentando-se a concentração do sal, o processo de mobilização é acelerado, com o prejuízo de que as bandas podem ser deformadas em razão do calor gerado pelo efeito Joule.


Um aspecto operacional interessante da focalização isoelétrica decorre da maneira pela qual os solutos são introduzidos no capilar. Uma vez que os solutos são dissolvidos na solução de anfólitos, é possível introduzir grandes volumes de amostra, comparativamente a outras técnicas eletroforéticas. O único fator limitante é a solubilidade do soluto nestas soluções. Este procedimento permite a análise de amostras bem diluídas, o que faz da focalização isoelétrica um método especialmente atrativo para a análise de quantidades minutas. Em geral, na prática de CIEF, capilares revestidos são empregados, com duas finalidades principais: supressão do fluxo eletroosmótico, que perturbaria a etapa de focalização e, para minimizar a adsorção de proteínas, solutos alvo deste tipo de separação.

A figura 17 apresenta duas aplicações representativas da eletroforese capilar por focalização isoelétrica: a separação de variantes da hemoglobina em dois gradientes de pH. A hemoglobina total de uma pessoa adulta é geralmente composta de 98% hemoglobina tipo A, 2-3% tipo A2 e 1% tipo F. Uma série de patologias têm sido relacionadas com mutações genéticas que geram diferentes tipos de hemoglobinas (S e C) e/ou alteram as porcentagens normalmente encontradas para os tipos A e F. A eletroforese capilar por focalização isoelétrica é uma técnica poderosa, que pode fornecer informação tanto sobre a pureza da hemoglobina, como auxiliar na sua tipagem através da indicação do ponto isoelétrico. O ponto isoelétrico de uma proteína pode ser determinado pela comparação de seu tempo de mobilização com os tempos de mobilização de proteínas de pI conhecidos. No exemplo da figura 17A os pI são: hemoglobina tipo A2 = 7,37, tipo S = 7,12, tipo A = 6,94, e na figura 17B, hemoglobina tipo A = 6,99, tipo F = 7,05, tipo S = 7,17 e tipo C =7,40.


III. ISOTACOFORESE CAPILAR

A instrumentação necessária para a realização de isotacoforese capilar (capillary isotachophoresis, CITP) é comercializada desde os meados dos anos 70. A literatura na área é vasta, contando com vários livros, inúmeros artigos de revisão e diversas compilações de simpósios44-47. Apesar de todo este suporte teórico e instrumental, a isotacoforese não tem sido elegida, nos laboratórios mundiais, como uma técnica de rotina, especialmente nos Estados Unidos, onde é muito pouco difundida. Em certas partes da Europa, como na República Tcheca, e em menor extensão na Holanda, a isotacoforese é uma ferramenta analítica importante, tendo sido empregada na separação e preparo de drogas, na avaliação de alimentos e amostras ambientais, além de muitas outras aplicações significativas. No Japão, a utilização mais comum da isotacoforese é de caráter acadêmico, como na determinação de mobilidades eletroforéticas e constantes de equilíbrio, fornecendo extensas compilações de dados48, bastante úteis em estudos de otimização de condições analíticas.

Ao contrário da eletroforese de zona, em isotacoforese, o sistema de eletrólito é heterogêneo. A amostra é inserida entre duas soluções, cuja mobilidade iônica é criteriosamente selecionada, o eletrólito líder e o eletrólito terminador. Tanto solutos catiônicos como aniônicos podem ser analisados por esta técnica, desde que em misturas distintas, definindo assim, a chamada CITP catiônica e a CITP aniônica, respectivamente. Para os solutos básicos, com pKa elevados, o modo catiônico é o mais indicado, enquanto que o modo aniônico é recomendado para solutos ácidos.

A escolha dos eletrólitos é de importância crítica para o sucesso das separações isotacoforéticas. Na análise de cátions, como esquematizado na figura 18, o eletrólito líder deve conter um cátion cuja mobilidade seja superior à mobilidade de qualquer cátion presente na amostra. Já o eletrólito terminador deve conter o cátion de menor mobilidade. Na análise de ânions, o mesmo critério deve ser praticado, sendo que, neste caso, é a mobilidade do ânion, o fator a ser considerado na escolha dos eletrólitos líder e terminador. Solutos com mobilidade superior à do líder não são separados por CITP; estes migram mais rapidamente que o líder e seguem portanto, o mecanismo de separação por eletroforese de zona. Por outro lado, a escolha de um terminador moderadamente rápido remove, do isotacoferograma, os componentes da amostra com mobilidade inferior, sendo assim, uma maneira elegante de discriminar, na amostra, os solutos indesejáveis. A tabela 5 apresenta a composição de alguns sistemas de eletrólitos comumente empregados em CITP. Alguns aditivos como hidroxi-isopropilmetilcelulose (HPMC), polietileno glicol (PEG), polivinil álcool, Triton X-100 e Brij 35 são em geral escolhidos para auxiliar a solubilização de certos solutos, ou como modificadores do fluxo eletroosmótico.


vitp = mL EL = mS1 ES1 = mS2 ES2 = mS3 ES3 = ...... = mT ET(16)

A isotacoforese possui duas características marcantes: a existência de um estado estacionário, em que todas as bandas migram com a mesma velocidade, e o fato de que cada banda é essencialmente focalizada. Quando o campo elétrico é aplicado, diferentes gradientes de potencial evolvem em cada banda (Fig. 18, traçado inferior), de tal forma que todos os solutos eventualmente migram com velocidades idênticas, i.e., com a velocidade isotacoforética, vitp. Em regiões onde cátions de menor mobilidade estão presentes, o campo elétrico é mais intenso. Estes solutos, entretanto, movem-se com a mesma velocidade que os solutos de maior mobilidade, submetidos a campos elétricos mais fracos. Portanto, as velocidades das bandas individuais são auto-normalizadas:

onde os índices L, S e T denotam os íons do líder, solutos e teminador, respectivamente. A capacidade de picos das separações isotacoforéticas é apreciavelmente grande, uma conseqüência da maneira pela qual as bandas migram, adjacentes uma às outras, mantendo a continuidade elétrica.

A focalização das bandas em isotacoforese é também resultante da normalização da velocidade. Se uma molécula do soluto atinge, por difusão, uma banda subseqüente, onde prevalece um campo elétrico menor, sua velocidade é decrescida e a molécula retorna à banda original. Da mesma forma, se uma molécula difunde para a banda precedente, onde existe um campo elétrico mais intenso, sua velocidade de migração é momentaneamente aumentada e a molécula alcança a banda de origem. Na figura 18, a auto-focalização da banda S2 é representada por duas flechas diametralmente opostas.

Em CITP é comum a eliminação do fluxo eletroosmótico, embora não necessária. Os capilares tipicamente usados são de sílica fundida ou teflon, com diâmetros apreciavelmente maiores que os empregados em eletroforese de zona (c.a. 500-800 mm), dado o aspecto focalizante da técnica. A injeção de amostra pode ser realizada tanto pelo método hidrodinâmico quanto eletrocinético1. A análise isotacoforética é em geral realizada sob corrente constante. Nestas condições, quando os solutos de menor mobilidade são introduzidos no capilar, a voltagem aumenta proporcionalmente, permitindo assim análises rápidas, sem os problemas relacionados com o aquecimento pelo efeito Joule. Alternativamente, a separação pode ser conduzida sob voltagem constante, no entanto, com o prejuízo de um tempo de análise prolongado.

A figura 19 apresenta esquemas de separação para cátions e ânions por isotacoforese capilar. Na CITP catiônica, a ordem de migração dos solutos é idêntica, seja na presença (Fig. 19A) ou ausência de fluxo (Fig. 19B). O capilar é inicialmente preenchido com o eletrólito líder e, após injeção da amostra, a separação é efetuada com o eletrólito terminador. A polaridade da fonte de alta tensão é positiva na extremidade do capilar onde é feita a injeção de amostra. Nestas condições, a velocidade isotacoforética e velocidade eletroosmótica, se existir, são direcionadas ao catodo (aterrado). Na separação de ânions em presença de fluxo (Fig. 19C), a situação é diferente: o fluxo eletroosmótico continua direcionado ao catodo, mas a velocidade isotacoforética é dirigida ao polo oposto. Neste caso, o capilar deve ser preenchido inicialmente com o eletrólito terminador, sendo a corrida feita com o líder. A polaridade permanece positiva na extremidade de injeção. Uma vez que a velocidade eletroosmótica ultrapassa a velocidade isotacoforética, os solutos, embora aniônicos, migram em direção ao catodo, atingindo o detector, em ordem decrescente de mobilidade. Na CITP aniônica sob fluxo suprimido (Fig. 19D), a amostra é injetada na coluna já preenchida com o eletrólito líder. Apenas a polaridade da fonte deve ser invertida, isto é, negativa na extremidade de injeção, para que os solutos sejam conduzidos ao detector.


Muito embora existam instrumentos especiais para isotacoforese, esta pode ser praticada em equipamentos convencionais de eletroforese capilar, que na maioria utilizam detectores ópticos baseados na medida de absorbância na região do UV-Vis. Cabe salientar aqui, que recentemente foi introduzido no mercado, um equipamento para eletroforese capilar com detecção em linha por condutividade elétrica50, que portanto, também pode ser utilizado para isotacoforese.

Eletroferogramas gerados por isotacoforese capilar diferem dos traçados tipicamente obtidos por outros métodos eletroforéticos. Quando a detecção por condutividade é empregada (Figura 20), o registro do sinal decresce por degraus, onde cada plateau representa uma das bandas. Assim, no início da corrida, a condutividade é alta devido à presença do eletrólito líder, que contém os íons de maior mobilidade, decresce com a passagem dos solutos, e finalmente estabiliza em um valor mínimo, correspondente à condutividade do eletrólito terminador, que no final da corrida preenche totalmente o capilar. A informação analítica provém da largura da banda, que é proporcional à concentração original do soluto na amostra, e não da altura ou área dos picos como nos demais métodos de separação análogos. Um aspecto interessante da isotacoforese sob corrente constante é que, cada banda, ao atingir o estado estacionário, apresenta a concentração do eletrólito líder. Assim, solutos inicialmente menos concentrados na amostra apresentam, no capilar, bandas contraídas, enquanto que os mais concentrados apresentam bandas expandidas. Uma vantagem proeminente da isotacoforese capilar é a pré-concentração de amostras diluídas, capacitando a técnica para a análise de traços.


O traçado não usual dos isotacoferogramas pode gerar equívocos na identificação dos solutos. Aqui, o tempo de migração não é informativo da identidade provável do soluto, outra diferença marcante em relação aos outros métodos eletroforéticos. Desta forma, a ordem de passagem dos solutos pelo detector não se relaciona com a composição qualitativa da amostra. Por exemplo, quando componentes que não estão presentes no padrão, aparecem na amostra, a ordem relativa das bandas é alterada. Este fato contribui para que o desenvolvimento de metodologia em isotacoforese seja considerado mais complexo, quando comparado à eletroforese de zona em solução livre, onde o conhecimento da composição da amostra não é tão crítico.

A figura 21 apresenta um isotacoferograma típico de uma mistura de amino-ácidos, mostrando dois traçados, o de condutividade e o de absorbância. É interessante observar que apenas dois dos solutos da mistura são visualizados no registro de absorbância: N-benzoil-alanina e ácido benzóico. Assim sendo, os demais solutos podem ser usados como espaçadores. Espaçadores são compostos que não apresentam absorbância no comprimento de onda selecionado para a análise, e possuem uma mobilidade intermediária à dos solutos que se deseja separar. Além de auxiliar a resolução de compostos de mobilidade semelhante, um espaçador pode facilitar a detecção dos solutos de interesse e viabilizar a coleta de frações. Cabe ressaltar que, durante a coleta de frações, os solutos estão isentos do eletrólito, aspecto bastante vantajoso no preparo de drogas, por exemplo.


CONCLUSÃO

As análises por eletroforese capilar estão fundamentadas em mecanismos diversos de separação. A implicação direta desta versatilidade define o aspecto mais impressionante da técnica: a possibilidade de analisar, desde íons tão pequenos como lítio ou fluoreto, até estruturas de dimensões macromoleculares, como proteínas e fragmentos de DNA, em uma única coluna capilar, desde que o eletrólito seja criteriosamente escolhido.

AGRADECIMENTOS

Ao CNPq (bolsa de recém-doutor) e FAPESP (processos 94/4440-2 e 95/2396-9) pelos auxílios concedidos. Um agradecimento especial à Sra Eliana Viana Prado, desenhista do IQ-USP, pelo trabalho impecável no traçado dos eletroferogramas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2008
  • Data do Fascículo
    Out 1997

Histórico

  • Aceito
    14 Abr 1997
  • Recebido
    06 Nov 1996
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