Acessibilidade / Reportar erro

Químicos brasileiros esquecidos Adelino Leal: um professor que ensinava no laboratório

Forgotten brazilian chemists. Adelino Leal: a teacher that taught in the laboratory

Resumo

Chemistry is a experimental science and should be taught emphasizing the experimental work at laboratories. Brazilian teachers either in secondary level teaching as well at University gave minor attention in laboratory experiments as a tool to improve the quality of the teaching. Adelino Leal published a monograph in 1926 which emphasizes the experimental work in the teaching of Chemistry. The French chemist Jungfleisch had a important influence in the Adelino Leal's work and was the main reference for both his work and published books.

Adelino Leal; Jungfleisch; chemical education


Adelino Leal; Jungfleisch; chemical education

ASSUNTOS GERAIS

Químicos brasileiros esquecidos Adelino Leal ¾ Um professor que ensinava no laboratório

Agnieszka Pawlicka, Pedro Berci Filho e Antonio Aprigio da Silva Curvelo

Instituto de Química de São Carlos - USP - Av. Dr. Carlos Botelho 1465 - 13560-970 - São Carlos - SP

Recebido em 6/12/99; aceito em 5/4/00

Forgotten brazilian chemists. Adelino Leal ¾ A teacher that taught in the laboratory. Chemistry is a experimental science and should be taught emphasizing the experimental work at laboratories. Brazilian teachers either in secondary level teaching as well at University gave minor attention in laboratory experiments as a tool to improve the quality of the teaching. Adelino Leal published a monograph in 1926 which emphasizes the experimental work in the teaching of Chemistry. The French chemist Jungfleisch had a important influence in the Adelino Leal's work and was the main reference for both his work and published books.

Keywords: Adelino Leal; Jungfleisch; chemical education.

A Química é por natureza uma ciência experimental e sua grande beleza surge dos trabalhos realizados em laboratórios. Muitos estudantes ingressam nos cursos de Química por causa de sua grande abrangência no mercado de trabalho, como também pelas aulas práticas aplicadas durante os cursos. Entretanto, as aulas práticas de Química no ensino médio brasileiro são ainda praticamente inexistentes. Este fato, juntamente com outros não menos importantes, foi destacado como uma das deficiências do ensino médio na recente Proposta de Diretrizes Curriculares para os Cursos de Química1, a qual afirma textualmente "Parte dos problemas associados à formação/evasão, em nível superior, dos estudantes de Química começa no ensino médio, onde os currículos são inadequados, os professores, na maioria, despreparados, desatualizados, mal remunerados e desenvolvendo carga horária semanal elevada; em geral as condições de trabalho nas escolas são inapropriadas, principalmente com relação a trabalhos experimentais" (destaque nosso).

O grande educador e cientista Rheinbold, um dos pioneiros da Química na Universidade de São Paulo, já destacava2: "Não é (só) de livros nem (só) com palestras que se aprende a Química. Ainda que possua enorme conhecimento de fatos e até conheça a literatura, um indivíduo pode não ser um verdadeiro químico e não passar de lexicon ambulante. O seu saber seria morto e nunca poderia assumir de forma produtiva. A base da Química é a intuição; o aluno precisa ser educado a fim de aprender a pensar nos fenômenos. Para isto, porém, é preciso que ele mesmo tenha visto os fenômenos muitas vezes, até que se tenha familiarizado bem com eles. Este requisito determina a forma que se deve dar ao ensino da Química: nas preleções, o aluno deve ficar conhecendo, ao mesmo tempo, os fenômenos mais importantes, as leis que lhe servem de base e as ligações que entre eles existam. As principais preleções devem, pois, serem preleções experimentais. O fim de todas as preleções deve ser o de ensinar o estudante de modo sistemático, a pensar quimicamente." (destaque nosso).

Grande parte do fascínio da Química reside em seu caráter empírico, no qual os nossos órgãos do sentido muitas vezes têm um papel importante como verdadeiros instrumentos (sensoriais) auxiliares na detecção de um fenômeno natural. Por exemplo, o desenvolvimento ou mudança de cor de uma mistura reacional são indicativos da ocorrência de uma reação química3. Muitas das descobertas químicas se deram acidentalmente, a partir de observações simples e acidentais: a fotodimerização do antraceno foi descoberta pela observação de um precipitado que se forma quando uma solução benzênica de antraceno é exposta à luz solar4. Os fenômenos químicos estão em nosso dia-a-dia5: quando lavamos pratos com detergentes, temos a formação de complexos micelares que "dissolvem a sujeira"; quando tingimos o cabelo utilizando corantes naturais ou sintéticos, estamos, sem saber, lançando mão das propriedades quânticas de moléculas orgânicas que absorvem no visível; quando tomamos uma aspirina (cuja síntese para fins farmacológicos se deu a partir da identificação do princípio ativo do extrato de salgueiro6) estamos consumindo um produto industrial preparado segundo os preceitos da química orgânica sintética. No entanto, esta vivência cognoscível não faz parte da cultura brasileira, de nossa "República das Letras"7. Se fizermos um diagnóstico da origem desta situação, veremos que estas deficiências não se devem apenas ao ensino universitário, como já foi enfatizado acima, mas também ao ensino fundamental e médio, através das aulas de ciências e tópicos específicos como físico-química, química analítica, inorgânica, etc.

Esta tendência foi observada e analisada por Roseli Pacheco Schnetzler8. Esta autora constatou que "...o ensino secundário de Química brasileiro tem sido eminentemente teórico, centrado na veiculação de conhecimentos dissolvidos da sua própria natureza experimental, negligenciando desta forma, o seu caráter investigativo, a sua importante aplicação à sociedade e, consequentemente, a sua potencialidade para desenvolver espírito crítico nos alunos". A pesquisadora analisou vários livros didáticos publicados a partir do 1875, o ano de publicação do primeiro livro didático brasileiro e constatou que "...a análise do capítulo de reações químicas dos livros evidenciou uma quase total ausência de experimentação e de relação daquele conhecimento com a vida cotidiana". Entretanto, o período de 1875 a 1941 mostrou-se mais adequado para o ensino. Para comprovar isso analisamos com detalhes uma obra rara, de autoria de Adelino Leal, "Pontos de Chimica Pratica (methodo de Jungfleisch)" datado de 1926 (Figura 1)9. Este livro foi doado ao Prof. Pedro Berci Filho, pela senhora Jacyra Duarte, ex-aluna do professor Oswaldo Quirino Simões, do Liceu Eduardo Prado10. Na verdade é uma apostila no formato de 15x10cm com 130 páginas recobertas em grande parte por equações de reações químicas inorgânicas e poucas descrições de reações orgânicas (Figura 2). Isto parece ser inovador já que naquela época os experimentos químicos descreviam-se mais com palavras e menos por equações. O subtítulo desta apostila "methodo Jungfleisch" indica que este trabalho se inspirou na escola francesa, o que é comprovado não somente pela nacionalidade de Èmile Jungfleisch, como também pela forma de apresentação das equações químicas, utilizando expoentes, ao invés de índices, para indicar os números de átomos nas fórmulas.



Èmile Clement Jungfleisch (1839-1916), (Figura 3), era um biólogo-químico nascido em Paris, tendo se doutorado com trabalho "Os derivados clorados de benzina". Contemporâneo de Berthelot (1827-1907), embora 12 anos mais novo, ele desenvolveu um método de obtenção de gálio em quantidades relativamente consideráveis e propôs a produção industrial de guta-percha11. Além de vários trabalhos científicos, escreveu livros como "Traité de chimie organique", em colaboração com Berthelot, "Manipulations de chimie"(Paris 1886)12, "Notice sur E. M. Péligo"(1891) entre outros11.


A palavra "methodo" usada como subtítulo da apostila de Adelino Leal, pode também significar a adoção de procedimentos descritos por Jungfleisch em vários de seus livros, dentre os quais citamos "Manipulations de chimie" e o capítulo "Sur la synthèse des matières organiques douées du pouvoir rotatoire..." do livro "La synthèse total em chimie organique"(1937)13. Aliás, um fato interessante verificado nestes livros e também em outro livro de Adelino Leal ("Estudo physico-chimico da essencia do chenopodium ambrosioides, L.")14 é a clareza e precisão com que os procedimentos experimentais e as reações químicas são descritos, ainda que com o uso de poucas ou mesmo nenhuma fórmula química. Marcel Delépine, responsável pela apresentação da obra "La synthèse totale en chimie organique", destaca no final do capítulo escrito por Jungfleisch13 que: "como Jungfleisch não empregou nenhuma fórmula química, apresentamos as reações descritas na forma de fórmulas atuais". O fato curioso é que, embora Jungfleisch não empregasse fórmulas químicas, Berthelot e seus contemporâneos já as utilizavam, embora nem sempre corretamente, tanto que o próprio Marcel Delépine corrige as equações apresentadas por Berthelot neste mesmo livro. Vale a pena lembrar que naquela época existiam duas notações distintas para as fórmulas químicas: a de fórmulas equivalentes (empregada por alguns químicos franceses) e notação atômica. Além disso, empregavam-se duas diferentes maneiras para indicar os números de átomos nas fórmulas: como índice e como expoente (adotado pelos franceses).

Adelino Leal adota em sua apostila a representação francesa, talvez por influência de Jungfleisch. Na tentativa de se verificar o significado exato do subtítulo "methodo Jungfleisch" foi escolhido e analisado o livro "Manipulations de chimie", de Jungfleisch. A comparação de alguns trechos deste livro com o conteúdo da apostila de Adelino Leal, torna evidente que o livro do autor francês foi consultado para a preparação da apostila. Em uma análise mais detalhada destas duas obras, foram encontradas transcrições exatas do livro de Jungfleisch, como por exemplo, as páginas 3 a 9, da apostila de Adelino Leal, correspondem às páginas 846-847 do livro de Jungfleisch. A apresentação dos dois livros é também quase a mesma, na forma de tabelas, como mostra a Figura 4. Entretanto, não foram encontrados capítulos ou fragmentos similares ao livro de Jungfleisch correspondentes à parte principal do livro de Adelino Leal, onde se encontram as reações de sais de vários elementos químicos. Estas reações estão apresentadas na forma de texto com as equações químicas correspondentes (Figura 5). Vale a pena ressaltar que somente poucas destas reações estão descritas, principalmente através de palavras, no livro de Jungfleisch. Este fato pode indicar a própria contribuição de Adelino Leal ou simplesmente uso de outras publicações, de Jungfleisch ou de outros autores. Na parte relativa à descrição, preparação e algumas propriedades de gases também foram observadas diferenças com o livro de referência. Parece que algumas das informações foram obtidas da obra de Jungfleisch e outras adicionadas pelo próprio Adelino Leal.



Outra característica interessante da apostila de Adelino Leal é a sua apresentação na forma de manual, indicando o seu uso em cursos de Química experimental. Sem dúvida, Jungfleisch era um químico devotado que gostava de experiências laboratoriais, o que ele próprio menciona no prefácio de um de seus livros "..Adotando o ponto de vista exclusivamente prático, eu quis colocar à disposição de estudantes a exposição das condições nas quais cada experiência deve ser realizada, as dificuldades que ela apresenta, os acidentes que elas podem provocar, as causas de insucessos que podem ocorrer e os meios utilizados para assegurar o resultado..."

A partir destas poucas observações, pode-se verificar que Adelino Leal também considerava o ensino experimental como fundamental para o ensino de Química. Este fato torna-se importante já que a tendência do ensino brasileiro sempre foi o de dar um destaque maior à teoria. Exceção feita aos indícios de ensino prático, já naquela mesma época, destacados pela pesquisadora Roseli Pacheco Schnetzler8.

O fato de não se conhecer maiores detalhes sobre a vida e a obra de Adelino Leal, deixa ainda muitas dúvidas a respeito de seu trabalho, embora os dois livros de sua autoria, tanto a apostila como o livro, indiquem que ele também era um químico dedicado aos trabalhos práticos e enfatizava o ensino experimental de Química.

9. Acervo particular do Prof. Pedro Berci Filho; Instituto de Química de São Carlos-USP.

10. O professor Oswaldo Quirino Simões era formado em Letras e foi sócio proprietário do Liceu Eduardo Prado. Adquiriu o Ginásio Oswaldo Cruz em 1954 e fundou a Escola Técnica Oswaldo Cruz dois anos mais tarade.

  • 1. Proposta de Diretrizes Curriculares para os Cursos de Química ž MEC. Consultada em: www.mec.gov.br/Destaq/ds_frm.htm
  • 2. Mathias, S. In Cem Anos de Química no Brasil; Paula, E. S., Ed.; Universidade de Săo Paulo, Săo Paulo, 1975, pp 21-22.
  • 3. Campbell, J. A.; Por quę ocorrem Reaçőes Químicas; Edgard Blücher Ltda., Săo Paulo, 1965, p 3.
  • 4. Cowan, D. O. e Drisko, R. L.; Elements of Organic Photochemistry; Plenun, New York, 1978.
  • 5. Snyder, C. H.; The Extraordinary Chemistry of Ordinary Things; John Wiley & Sons, 1995.
  • 6
    Tudo ¾ O Livro do Conhecimento, Editora Três, São Paulo, 1966, pp 156-157.
  • 7. Machado Neto, A. L.; Estrutura Social da República das Letras; Grijalbo ž EDUSP, Săo Paulo, 1973, p 119.
  • 8. Schnetzler; R. P.; Quim. Nova 1981, 4, 6.
  • 11. Enciclopedia Universal Ilustrada ¾ Europeo-Americana; tomo XXVIII, segunda parte, Madrid: Rio Rosas, 26.
  • 12. Jungfleisch, É.; Manipulations de Chimie ž guide pour les travaux pratiques de chimie; acervo da biblioteca do Conjunto das Químicas, USP, S. Paulo.
  • 13. Delépine, M.; La synthčse totale en chimie organique ž mémoires de MM. Wöhler, Gerhard, M. Berthelot, Le Bel, Van't Hoff, Jungfleisch, Ladenburg, Pasteur, Paris, 1937, pp 121-127 acervo da biblioteca de Química ž Instituto de Química de Săo Carlos ž USP.
  • 14. Leal, A.; Estudo physico-chimico da essencia do chenopodium ambrosioides, L. ž (herva de Santa Maria), Săo Paulo, 1920.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2006
  • Data do Fascículo
    Ago 2000
Sociedade Brasileira de Química Secretaria Executiva, Av. Prof. Lineu Prestes, 748 - bloco 3 - Superior, 05508-000 São Paulo SP - Brazil, C.P. 26.037 - 05599-970, Tel.: +55 11 3032.2299, Fax: +55 11 3814.3602 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: quimicanova@sbq.org.br