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O estado vítreo dentro da perspectiva do curso de graduação em química (físico-química)

Glassy state on the undergraduate course in chemistry (physical chemistry)

Resumo

We consider the relevance of the study of the glassy state properties and the glass transition as important topics of the physical chemistry for undergraduate courses of Chemistry. Two of the most important theoretical approaches for the description of the glassy state, the thermodynamic and the kinetic models, are summarized with emphasis on the physical chemistry aspects. Examples illustrating the glass transition of some materials are also presented.

glassy state; phase transitions; thermodynamic and kinetic models


glassy state; phase transitions; thermodynamic and kinetic models

Educação

O ESTADO VÍTREO DENTRO DA PERSPECTIVA DO CURSO DE GRADUAÇÃO EM QUÍMICA (FÍSICO-QUÍMICA)

Sahori B. Yamaki, Andréa G. Pedroso e Teresa D. Z. Atvars*

Instituto de Química, Universidade Estadual de Campinas, CP 6154, 13083-970 Campinas - SP

*e-mail: tatvars@iqm.unicamp.br

Recebido em 30/3/01; aceito em 12/9/01

GLASSY STATE ON THE UNDERGRADUATE COURSE IN CHEMISTRY (PHYSICAL CHEMISTRY). We consider the relevance of the study of the glassy state properties and the glass transition as important topics of the physical chemistry for undergraduate courses of Chemistry. Two of the most important theoretical approaches for the description of the glassy state, the thermodynamic and the kinetic models, are summarized with emphasis on the physical chemistry aspects. Examples illustrating the glass transition of some materials are also presented.

Keywords: glassy state; phase transitions; thermodynamic and kinetic models.

INTRODUÇÃO

Diversas substâncias ou materiais se caracterizam por se solidificarem em um estado que é fundamentalmente não-cristalino e a importância destes materiais reside justamente no fato de apresentarem uma estrutura sólida desordenada. Existe um conjunto enorme de materiais e substâncias com estas características, podendo-se indicar como exemplos: vários hidrocarbonetos alifáticos (3-metil pentano), substâncias com interações intermoleculares fortes como pontes de hidrogênio (glicerol); compostos inorgânicos hidratados (Na2S2O3.5H2 O); redes tridimensionais interconectadas por ligações covalentes (BO3); resinas naturais e sintéticas; vários polímeros, etc.

A enorme quantidade de exemplos e a diversidade das aplicações tecnológicas dos diversos materiais justificam, portanto, a inclusão do tópico "Estado Vítreo" dentro do conteúdo do ensino da Química e mais especificamente de Físico-Química, área na qual os conceitos fundamentais podem ser explorados com maior profundidade. Dentro do conteúdo das disciplinas de Físico-Química dos cursos de Graduação em Química, os tópicos relativos a equilíbrio químico e transições de fase em substâncias puras estão sempre presentes1-5. Neste caso, as transições de fase de primeira e segunda ordens segundo a classificação de Ehrenfest6 são apresentadas e exemplificadas.

Entretanto, apesar da importância da transição vítrea dentro do contexto da química de materiais, a maioria dos textos de Físico-Química ignora o assunto e naqueles em que o mesmo é abordado a transição vítrea é tratada de modo simplificado como uma transição de fase de segunda ordem ou pseudo-segunda ordem1-5, segundo a classificação de Ehrenfest6. Estudos mais detalhados sobre o estado vítreo, as formas de medidas de suas propriedades e a fenomenologia da transição de fase entre os estados vítreo e líquido aparecem, em geral, detalhados em textos na área de ciência de polímeros7, 8, uma literatura que normalmente não está incluída nos cursos de Graduação em Química. Isto se deve, provavelmente, ao fato de que um grande número de sólidos poliméricos se solidifica sem se cristalizar e que, portanto, sob condições normais, se encontram no estado vítreo. Entretanto, é evidente que estes não formam a única classe de sólidos vítreos, já que vários compostos inorgânicos também se vitrificam, e o exemplo mais comum é o dos vidros utilizados em janelas.

É universalmente aceito que existe uma transição denominada vítrea envolvendo modificações de diversas propriedades quando um sólido não-cristalino, comumente chamado de amorfo, passa para a fase líquida. Esta transição se reflete macroscopicamente através de mudanças em vários tipos de propriedades termodinâmicas, como por exemplo: capacidade calorífica; coeficiente de expansividade térmica; coeficiente de compressibilidade; e várias das propriedades mecânicas, dielétricas e viscoelásticas. É também consensual que estas modificações não ocorrem em uma temperatura específica, como é o caso do processo de fusão, mas em uma faixa de temperaturas, o que leva alguns autores a sugerirem que a melhor denominação para a temperatura de transição vítrea seria intervalo de temperatura de transformação vítrea7-9. Um outro aspecto muito típico da transição vítrea é que a temperatura (ou faixa de temperatura) na qual a mesma ocorre depende do método de medida, e, para um mesmo método (como, por exemplo, calorimetria diferencial de varredura) depende das condições em que a medida está sendo realizada7,8,10,11.

A transição vítrea é um fenômeno complexo apesar de estar sendo estudada desde os anos 30. Estes estudos se baseiam em teorias diferentes, em muitos casos antagônicas, sendo que o fenômeno ainda não está completamente entendido e teoricamente descrito7-9,12. Para se ilustrar o antagonismo destes modelos, basta se contrapor os trabalhos de Kauzmann que considera que a transição vítrea é um fenômeno puramente cinético9 com os trabalhos de Gibbs e DiMarzio que consideram a transição como puramente termodinâmica12. Wunderlich destacou que as teorias existentes não descrevem completamente a transição vítrea devido ao fato de que não encontraram uma forma de considerar a natureza cooperativa do fenômeno7. O fato de ainda não se dispor de uma teoria única para a descrição deste fenômeno talvez seja a principal razão pela qual ela é comumente omitida nos textos de Físico-Química no nível de Graduação.

Este trabalho tem como objetivo apresentar uma forma de descrever a transição vítrea dentro do contexto de uma disciplina de Físico-Química, sem ter a pretensão de se constituir em um trabalho de revisão. É um texto que está restrito à descrição não estatística da termodinâmica e, tem, portanto, todas as limitações decorrentes desta opção. Apresenta em sua parte inicial um resumo da classificação termodinâmica das transições de fase como proposto por Ehrenfest6; descreve algumas das propriedades que caracterizam um estado vítreo e mais especificamente no que elas diferem do estado líquido; mostra como as variáveis termodinâmicas de estado se modificam durante uma transição envolvendo os estados vítreo e líquido; discute exemplos das teorias cinéticas e termodinâmicas da transição vítrea; e, finalmente, mostra alguns exemplos de transição vítrea e alguns dos tipos diferentes de experimentos e suas influências nas medidas experimentais de temperaturas de transição vítrea.

TRANSIÇÕES DE FASE TERMODINÂMICAS

Ehrenfest6 classificou as transições termodinâmicas em duas categorias, que denominou de transições de fase de primeira e de segunda ordens. Para isto tomou como base o comportamento de algumas funções de estado (energia livre de Gibbs, entropia, entalpia, volume, capacidade calorífica, coeficiente de expansividade térmica, coeficiente de compressibilidade isotérmica) em função da pressão ou da temperatura. Segundo esta classificação, se um sistema estiver com suas fases em equilíbrio termodinâmico sob uma temperatura constante, os potenciais químicos ou energia livre de Gibbs das duas fases são iguais. Se as derivadas primeiras da energia livre de Gibbs com respeito à temperatura, ou à pressão, forem funções descontínuas na temperatura de transição de fase, diz-se que esta transição é de primeira ordem. Caso, entretanto, estas funções sejam contínuas, mas as derivadas segundas das mesmas sejam descontínuas, diz-se que a transição é de segunda ordem.

Usando-se as definições termodinâmicas para as variáveis de estado e assumindo-se grandezas molares sempre que for necessário, tem-se que no equilíbrio entre duas fases a e c que:

onde G é a energia livre de Gibbs. Suas derivadas primeiras em relação à temperatura, ou pressão, definem a entalpia, H, a entropia, S, e o volume, V:

que poderão, ou não, ser funções contínuas da temperatura. Como funções descontínuas estarão representando uma variação finita de entropia, de entalpia e/ou de volume e, neste caso, quando a transição de fase ocorrer a mesma será classificada de primeira ordem. Casos deste tipo são os mais freqüentemente observados, e se manifestam pelo fato de que, a transição de fase ocorrerá com variações na entropia, na entalpia (o sistema absorve ou libera calor) e no volume (o sistema aumenta ou diminui de volume).

As derivadas segundas da energia livre de Gibbs permitem que sejam definidas outras propriedades importantes do sistema, entre elas o coeficiente de expansividade térmica (a), a capacidade calorífica a pressão constante (CP) e o coeficiente de compressibilidade isotérmica (kT):

Espera-se que tanto nas transições de fase de primeira ordem quanto de segunda ordem estas derivadas segundas também sejam funções descontínuas, o que implica que existam diferenças finitas nos valores de a, CP e de kT entre as duas fases. A forma como as mesmas irão depender das variáveis de estado será, entretanto, diferente em cada caso e característica de cada substância ou material. Curvas hipotéticas ou reais mostrando as variações destas funções de estado com a temperatura podem ser encontradas em diversos livros textos para transições de fase de primeira e de segunda ordens1-5.

Uma substância ou um material no estado vítreo apresenta um conjunto de propriedades que se aproximam daquelas do estado líquido, enquanto que outras teriam valores próximos aos esperados se as mesmas pudessem se cristalizar perfeitamente7-12. De modo geral, o coeficiente de expansividade térmica, o coeficiente de compressibilidade e a capacidade calorífica de substâncias no estado vítreo são similares aos valores esperados para um sólido perfeitamente cristalino. Por outro lado, a estrutura de vidros é muito similar à de líquidos, da mesma forma que são similares os valores do volume, da entalpia e da entropia. Do ponto de vista termodinâmico significaria dizer que os valores das derivadas primeiras da energia livre de Gibbs nos estados líquido e vítreo são similares e, portanto, funções contínuas, enquanto que as derivadas segundas são descontínuas (CP, a e kT). É justamente por isto que a transição vítrea é, em alguns casos, classificada como uma transição de fase de segunda ordem ou pseudo-segunda ordem. Esquemas mostrando comportamentos hipotéticos13 ou reais (glicose)14 das funções de estado com a variação de temperatura estão descritos na literatura. Ao se considerar a transição vítrea como de segunda ordem deve-se assumir, necessariamente, que a mesma envolva os dois estados (líquido e vítreo) em equilíbrio.

Um outro aspecto da análise termodinâmica das transições de fase pode ser ainda considerado. Assumindo-se que exista um equilíbrio termodinâmico entre o estado vítreo e o estado líquido, pode-se considerar que a variação da temperatura de transição vítrea com a pressão seja dada pela equação:

que aparece muitas vezes modificada na forma da equação de Prigogine-Defay15.

As equações 4 e 5 implicam que, se uma transição termodinâmica de segunda ordem ocorrer, a magnitude de (dT/dP)tr deverá ser constante e independente das condições experimentais em que estiver sendo medida, o que efetivamente não ocorre no caso da transição vítrea13.

A controvérsia da literatura está precisamente neste ponto: é a transição vítrea um processo entre estados em equilíbrio termodinâmico ou é um processo dito de relaxação e, portanto, com caráter eminentemente cinético? Os argumentos a favor ou contra os modelos que assumem uma ou outra tese podem ser considerados dentro do escopo de uma disciplina de Graduação de Físico-Química, no qual apenas o tratamento clássico da termodinâmica está sendo aplicado. Como exemplo, pode-se considerar as argumentações sugeridas por Kauzmann9 a favor do modelo de relaxações e a de Gibbs e DiMarzio12 indicando que a transição é puramente termodinâmica. Quando o modelo termodinâmico é considerado se assume também que as condições são sempre as de equilíbrio e que quaisquer alterações nas funções de estado se dão sob esta condição. O modelo cinético de relaxações é conceitualmente diferente: o sistema é submetido a um estímulo externo e se mede, a partir do estímulo aplicado como uma certa propriedade se modifica com o tempo de medida. Se o sistema estiver em um estado de equilíbrio, suas propriedades serão invariantes com o tempo e seus valores serão independentes do tempo de duração do experimento. Se, entretanto, o sistema estiver fora do equilíbrio, o estímulo levará o sistema a relaxar para um outro estado, e suas mudanças de propriedades dependerão do tempo de duração da medida.

MODELOS PARA O ESTADO VÍTREO

O Modelo cinético de Kauzmann

Kauzmann, ao propor o modelo de relaxações para o estado vítreo o fez com base na seguinte análise: considere que uma substância não-cristalizável esteja inicialmente à uma certa temperatura T correspondente ao seu estado líquido (segmento a-g na Figura 1)9. Imagine que esta substância possa ser vagarosamente resfriada, de modo a formar um líquido super-resfriado à uma temperatura abaixo da temperatura de transição vítrea Tg (linha g-l). Considere ainda, que sob outras condições de resfriamento, este líquido passe para o estado vítreo (linha g-c). Ao se analisar o que ocorre com o volume molar (ou a entalpia, entropia, etc) à temperatura Ti entre zero e a Tg se verifica que este é menor para o líquido super-resfriado (Vl) do que para o estado vítreo (Vd), que por sua vez, na mesma temperatura deve ser similar ao de um estado cristalino hipotético. O que se apresentou para a função de estado volume pode ser estendido, por exemplo, para a entropia, o que refletiria que a entropia de uma substância no estado líquido super-resfriado seria menor do que a entropia do estado sólido, na mesma temperatura9. Assumir, portanto, que o estado vítreo é um estado termodinâmico implica em aceitar aquilo que se chamou o paradoxo de Kauzmann, isto é que a entropia de um sólido possa ser maior que de um líquido na mesma temperatura.


Para superar este paradoxo, Kauzmann propôs o modelo cinético para a transição vítrea, no qual o estado vítreo é similar ao estado líquido, com alguns graus de liberdade congelados não contribuindo para os valores das funções de estado, entre elas a entropia. Nesta situação, os movimentos moleculares se tornam muito lentos e as propriedades permanecem praticamente constantes dentro do tempo requerido para as medidas experimentais. Devido à correlação entre o tempo de medida e a velocidade com que o sistema pode relaxar, a temperatura de transição vítrea medida experimentalmente pode ser diferente quando técnicas de medidas experimentais diferentes são empregadas ou quando as medidas são realizadas sob diferentes condições experimentais. Portanto, as condições experimentais em que foram medidas as Tg sempre precisam ser especificadas. Além disto, Kauzmann sugere que alguns graus de liberdade que se tornam congelados no estado vítreo deixam de contribuir para os valores das propriedades termodinâmicas do sistema. Estes são os chamados graus de liberdade configuracionais e que, portanto, não envolvem mudanças nas posições (momento) das moléculas9.

O modelo termodinâmico de Gibbs e DiMarzio

De modo completamente diferente, Gibbs e DiMarzio12 se propuseram a resolver o paradoxo de Kauzmann assumindo que o estado vítreo é um estado de equilíbrio termodinâmico e que, portanto, existe uma transição vítrea termodinâmica classificada como de segunda ordem. Estes autores denominaram T2 a temperatura desta transição teórica sendo, a mesma, prevista teoricamente através do modelo estatístico de um retículo, proposto por Meyer-Flory e Huggins16. No modelo do retículo se trabalha com uma distribuição estatística de probabilidades de ocupação de sítios e ao se resfriar o sistema, a uma pressão constante, o número de arranjos possíveis do sistema diminui e conseqüentemente o número de possibilidade de alterações configuracionais também se reduz. O ponto em que a entropia total configuracional atinge o valor zero define a temperatura de transição vítrea termodinâmica T2. Um comentário sempre destacado nestes trabalhos é o de que a existência de uma temperatura de transição vítrea prevista teoricamente, cuja natureza é puramente termodinâmica, não implica que o valor experimental medido seja coincidente com o mesmo. Em muitos casos, como a formação do estado de equilíbrio pode ser um processo lento, mais lento do que as medidas experimentais, e, portanto, o valor da Tg medido poderá ser diferente de T2. Neste sentido, reconheceram a natureza cinética do processo experimental da transição vítrea assumindo que T2 pode diferir da Tg medida experimentalmente. Ressaltaram e exemplificaram, entretanto, que T2 poderia coincidir com a Tg se o experimento for realizado de modo adequado, satisfazendo as condições de equilíbrio, para cada sistema12.

Do ponto de vista deste modelo, o estado vítreo pode ser considerado o quarto estado da matéria no caso de substâncias que não se cristalizam, ou como um estado metaestável no caso de substâncias que por razões cinéticas não tiveram tempo de se cristalizar13.

Outros modelos para o estado vítreo

Enquanto o modelo termodinâmico de Gibbs e DiMarzio procurou resolver o paradoxo de Kauzmann, outros modelos, utilizando-se de teorias cinéticas, também tiveram isto como objetivo. Entre estes, mas não exclusivamente, pode-se citar um que utiliza o conceito de volume livre definido por Doolittle17 e que foi, subseqüentemente, utilizado por muitos pesquisadores para descrever o efeito da temperatura sobre as propriedades viscoelásticas de líquidos e polímeros em temperaturas acima da temperatura de transição vítrea. Uma das equações mais conhecidas que se origina a partir do conceito de volume livre é a equação de Williams, Landel e Ferry, usualmente indicada por WLF18:

onde aT é um parâmetro viscoelástico, como por exemplo a viscosidade, C1g e C2g são constantes características do sistema e T0 é uma temperatura de referência. Esta equação prevê um rápido aumento da viscosidade quando o sistema se aproxima da temperatura de transição vítrea, o que é normalmente observado. Ressalta-se, entretanto, que esta equação não é universalmente seguida para os muitos sistemas estudados13.

A resolução do paradoxo de Kauzmann com base na teoria do volume livre surge do fato de que ao se diminuir a temperatura do sistema, a mobilidade das moléculas também diminui e, conseqüentemente, o tempo necessário para o rearranjo das mesmas tende a ser muito maior do que o tempo de duração do experimento. Existe, portanto, um valor de temperatura, denominado T¥ na qual a viscosidade tende a infinito, e abaixo da qual o sistema não pode mais atingir o estado configuracional de equilíbrio. Portanto, as restrições que impedem que o equilíbrio seja atingido estão relacionadas com a ausência de mobilidade e, portanto, são novamente, razões de ordem cinética.

Apesar do fato do modelo de volume livre ter várias limitações, sendo a principal delas a definição precisa do que é volume livre, o mesmo continua a ser utilizado com relativo sucesso, quer através da equação de WLF, ou de várias outras que se originaram posteriormente13.

EXEMPLOS

Do ponto de vista experimental, dentre as técnicas mais utilizadas na determinação da temperatura de transição vítrea (Tg) pode-se citar: a calorimetria diferencial de varredura (DSC; Differential Scanning Calorimetry), análise termo-mecânica (TMA; Thermal Mechanical Analysis), análise térmica dinâmico-mecânica (DMTA; Dynamic Mechanical Thermal Analysis)7,8,11-13,19. * * Nesta área de pesquisas o uso das siglas da expressão em inglês faz parte da linguagem corrente e foi adotada pelos autores.

O DSC é a técnica dominante para investigação termo-analítica de materiais. De modo simplificado, ela mede a diferença de energia entre a substância a ser analisada e um material de referência (material inerte) quando ambos estão sujeitos a um programa controlado de temperatura. A magnitude do sinal medido está diretamente relacionada com a capacidade calorífica dos compostos em análise. Uma curva de DSC fornece a variação de entalpia em função do tempo ou temperatura11,13. Como, em geral, uma transição vítrea envolve um pequeno fluxo de calor, as variações detectadas de capacidade calorífica ou de entalpia são pequenas e, por isto, em muitos casos, a determinação é bastante imprecisa. Este comportamento é bastante diferente daquele observado para uma transição de fase de primeira ordem, como é o caso do processo de fusão.

Na Figura 2 estão mostradas as segundas varreduras de três curvas de DSC. A parte a da figura mostra uma curva típica para um material cristalino, no caso o índio, que é um dos padrões de calibração do DSC. Pelo fato do índio ser um material completamente cristalino ele apresenta um pico de fusão bem definido, correspondente à transição entre as fases sólida e líquida, o que corresponde neste caso a uma transição de primeira ordem com uma temperatura de fusão 156,6 °C. O segundo exemplo é de um material semicristalino, no caso uma amostra de polietileno de alta densidade (Figura 2b). Por ser um material semicristalino, apresenta uma morfologia bastante complexa formada por pelo menos duas fases: uma região cristalina e uma região amorfa20,21. A região cristalina apresenta uma transição de fase sólido-líquido, que também é uma transição de fase de primeira ordem. Nas medidas de DSC esta transição é visualizada pelo pico endotérmico na temperatura de fusão de 136 oC. Apresenta, também, a região amorfa, para a qual deve exibir uma transição entre as fases do sólido-vítreo e a do líquido. Verifica-se neste caso que a técnica de DSC não foi adequada para registrar esta transição. Finalmente, a Figura 2c mostra um exemplo da transição de fase sólido vítreo-líquido de material completamente amorfo, o poli(acetato de vinila). Esta curva corresponde à segunda varredura, a qual foi obtida com as finalidades de apagar a história térmica do material e de remover o pico de histerese, comumente associado com a transição vítrea. Neste caso pode-se observar uma mudança no coeficiente angular da curva do DSC, a qual está associada com a transição vítrea do material. Nenhum pico endotérmico é observado, evidenciando que não existe um processo de fusão do material. A temperatura de transição vítrea ocorre por volta de 30 °C.




A técnica de DMA envolve a aplicação de uma pequena tensão (ou deformação) oscilatória em um sólido ou líquido viscoso, medindo-se a tensão (deformação) sofrida por este, sob uma variação de freqüência ou de temperatura. Obtém-se, através desta técnica, nos seus módulos de medidas da tensão (ou da deformação), o chamado comportamento dinâmico¾mecânico de um material. Esta técnica é, na maioria dos casos, mais sensível para o estudo de transições vítreas do que o DSC convencional, e pode, também, ser usada para medir transições termodinâmicas de primeira ordem (fusão, cristalização) ou outros tipos de processos, tais como a reticulação, cura de resinas, etc19. Finalmente, a técnica de TMA mede o coeficiente de expansividade térmica e a variação de volume de uma amostra em função da temperatura8,11.

Para ilustrar as diferenças entre as diversas técnicas na determinação da temperatura de transição vítrea, apresenta-se, como exemplo, a utilização das três técnicas (DSC, DMA e TMA) no estudo da transição vítrea de uma resina de poliéster insaturado. As curvas obtidas estão mostradas na Figura 3. Para a determinação da temperatura de transição por DSC e por TMA foi utilizado o ponto de inflexão nas curvas7,11 e para a determinação da temperatura de transição por DMA, utilizou-se o valor máximo de tand7,19. Se outros critérios de tratamento de dados forem empregados, valores diferentes podem ser determinados7.


CONCLUSÕES

Este trabalho mostrou de modo qualitativo algumas formas de se definir as propriedades do estado vítreo e alguns dos modelos que podem ser utilizados para descrevê-lo. Mostrou também que a escolha do modelo cinético ou termodinâmico para descrever de modo preciso o fenômeno de transição vítrea ainda não pode ser estabelecida seguramente. Os trabalhos teóricos e experimentais envolvendo este fenômeno demonstram que existem fortes restrições cinéticas para que se considere o estado vítreo como um estado termodinâmico de equilíbrio, o qual só pode ser atingido sob condições experimentais bastante especiais. Quando o estado vítreo é considerado um estado de equilíbrio, as suas propriedades de estado se modificam com a temperatura e com a pressão de modo similar a transições de fase de segunda ordem na classificação de Ehrenfest.

A introdução deste tópico entre os temas abordados nas disciplinas de Físico-Química dos cursos de Química se justifica plenamente pelo número de sistemas que apresentam transições vítreas e pela importância tecnológica dos mesmos, além da forte correlação que existe entre os tópicos abordados nestas disciplinas e os conceitos envolvidos nas teorias para explicar o processo de transição vítrea.

AGRADECIMENTOS

T. D. Z. Atvars agradece à FAPESP pelos auxílios à Pesquisa e ao CNPq pela bolsa de produtividade em pesquisas. S. B. Y. agradece a FAPESP pela bolsa de doutorado. A. G. P. agradece ao CNPq pela bolsa de doutorado.

REFERÊNCIAS

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  • *
    Nesta área de pesquisas o uso das siglas da expressão em inglês faz parte da linguagem corrente e foi adotada pelos autores.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Jul 2002
    • Data do Fascículo
      Maio 2002

    Histórico

    • Aceito
      12 Set 2001
    • Recebido
      30 Mar 2001
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