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Escalas termoquímicas e espectroscópicas de basicidade: breve revisão

Thermochemical and spectroscopic basicity scales: a brief review

Resumo

A brief review about the main thermochemical and spectroscopic basicity scales is presented, with a discussion about the range of reliability of them. Is concluded that, as a general trend, thermochemical basicity scales are more sensitives, and so reliable, than spectroscopic ones.

thermochemistry; spectroscopy; basicity scales


thermochemistry; spectroscopy; basicity scales

REVISÃO

Escalas termoquímicas e espectroscópicas de basicidade: breve revisão

Thermochemical and spectroscopic basicity scales: a brief review

Robson Fernandes de Farias

Departamento de Química, Universidade Federal de Roraima, CP 167, 69301-970 Boa Vista, RR

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Robson Fernandes de Farias e-mail: robsonfarias@aol.com

ABSTRACT

A brief review about the main thermochemical and spectroscopic basicity scales is presented, with a discussion about the range of reliability of them. Is concluded that, as a general trend, thermochemical basicity scales are more sensitives, and so reliable, than spectroscopic ones.

Keywords: thermochemistry; spectroscopy; basicity scales.

INTRODUÇÃO

O conceito de ácidos e bases constitui-se num dos mais fundamentais em Química, tendo um grande poder na predição e racionalização de reações1. As definições do que sejam um ácido ou uma base podem ser as mais diversas, com as definições de Arhenius, Brfnsted-Lowry e Lewis estando entre as mais conhecidas e empregadas, uma vez que se aplicam grandemente às reações em solução. A despeito das diferentes definições existentes, verifica-se que, em geral, estas definições se sobrepõem e/ou englobam, conforme ilustrado pelo diagrama de Jensen2.

Contudo, para que o conceito de ácidos e bases possa ser de utilidade mais efetiva na racionalização das reações químicas, torna-se necessário o estabelecimento de dados quantitativos, ou seja, precisa-se saber o quão "forte" ou "fraco" seja um determinado ácido ou uma determinada base. Mas, como se pode medir a "força" de um determinado ácido ou base?

O procedimento geralmente utilizado é medir-se a variação de uma determinada propriedade, quando da reação de diferentes bases de Lewis com um certo ácido, que será definido como a espécie receptora de elétrons, e será sempre o mesmo em todas as reações. Contudo, espera-se que uma determinada ordem de basicidades seja mantida, independentementre da escala utilizida (embora isso nem sempre se verifique, como veremos mais adiante).

No estabelecimento quantitativo da basicidade de espécies doadoras de par(es) de elétrons (bases de Lewis), o uso da calorimetria e da espectroscopia têm se mostrado de grande utilidade. Discutem-se aqui as principais escalas de basicidade elaboradas com base em dados termoquímicos (calorimétricos) ou espectroscópicos. Para efeito de comparação/discussão, os valores de basicidade para um grupo de quinze substâncias, em algumas das escalas consideradas, são apresentados na Tabela 1. Vale a pena ressaltar que existem várias outras escalas, além das aqui apresentadas, como as escalas espectroscópicas propostas por Munakata3 e Abraham4.

O presente trabalho tem por finalidade apresentar uma breve revisão sobre as principais escalas termoquímicas e espectroscópicas de basicidade, discutindo-se as vantagens e limitações de cada uma.

ESCALAS ESPECTROSCÓPICAS DE BASICIDADE

Sandström e colaboradores5,6 utilizaram-se de dados de espectroscopia na região do infravermelho para o estabelecimento de uma escala de basicidades, apresentando o chamado DS "donor strength", que teria um valor diferente para cada base, ou seja, seria uma medida da "força" desta base. Tal escala foi estabelecida levando-se em conta a diferença na freqüência vibracional de estiramento do HgBr2 "livre" no estado gasoso, e quando complexado com uma determinada base, conforme expresso pela equação abaixo, e esquematicamente representado na Figura 1:


Neste caso, o HgBr2 foi escolhido como ácido em função de ser estável (não sofrer dissociação) propiciando, assim, a interação com substâncias com grande força de coordenação, tais como aminas e fosfinas, mantendo sua unidade estrutural, e formando compostos do tipo HgBr2.L2 de estrutura pseudotetraédrica. L é uma molécula doadora de elétrons, monodentada (possui um único sítio doador de elétrons).

Sone e Fukuda7-9 propuseram uma escala de basicidade a partir do deslocamento da banda de absorção na região do visível (Cu lmáx.) do complexo [Cu(tmen)(acac)]+ (tmen= tetrametiletilenodiamina; acac= acetilacetonato), quando solvatado por diferentes solventes (utilizando-se o solvente puro). Assim, tem-se uma escala de basicidade estabelecida com base em dados de espectroscopia na região do ultravioleta-visível (UV-VIS).

Na escala de Sone e Fukuda explora-se o seguinte fenômeno: um íon Cu2+ "livre" apresenta a configuração (t2g)6(eg)3 (elétrons d). Devido ao efeito estabilizador dos dois ligantes quelantes, o "buraco" nos orbitais eg estará localizado no orbital dx2-y2, isto no complexo não solvatado, formando-se ligações mais fortes no plano equatorial dos ligantes. Assim, o átomo de cobre possui dois sítios receptores de elétrons na direção axial (orbital dz2). A energia deste orbital aumentará à medida que aumente o poder dos ligantes axiais (base cuja "força" será medida), causando um "deslocamento para o azul", que pode ser acompanhado utilizando-se espectroscopia na região do UV-VIS. A Figura 2 ilustra a variação na diferença de energia entre os orbitais t2g e eg quando da formação do complexo com a base desejada. Para efeito de comparação, basta destacar que o "número doador do solvente" (DN), estabelecido com base na escala de Sone e Fukuda tem os valores 4 para o nitrobenzeno, com o qual forma um composto violeta-avermelhado, 17 para a acetona (composto violeta-azulado), 27 para a formamida (composto azul) e 51 para soluções extremamente básicas de piridina (composto verde).


Hahn e colaboradores10 estabeleceram uma escala de basicidades para substâncias contendo nitrogênio ou oxigênio como átomos doadores, com base em dados de ressonância magnética nuclear protônica, RMN 1H. Nesta escala, o valor de -Dd(CHCl3), que é o deslocamento químico do clorofórmio puro (no espectro de RMN 1H) com relação ao clorofórmio como soluto numa solução diluída, tendo como solvente a base considerada, é uma medida da basicidade. Quanto maior (mais negativo) Dd(CHCl3) mais forte é a base.

ESCALAS TERMOQUÍMICAS DE BASICIDADE

Drago11,12 estabeleceu também uma escala de basicidades com base em dados termoquímicos, resumida na equação: -DH= EAEB + CACB, onde os índices A e B referem-se ao ácido e à base, respectivamente, com os fatores E e C associando-se, respectivamente, às contribuições eletrostáticas e covalentes para a entalpia de reação do par A-B. Esta escala não será aqui discutida, uma vez que existe, neste caso, uma "interpenetração" entre os valores de basicidade e acidez, com os valores de EB e CB variando, dependendo do ácido considerado. Nas próprias palavras de Drago, "as outras escalas são unidimensionais, a minha é bidimensional".

Sem dúvida, uma das mais famosas escalas de basicidade estabelecidas a partir de dados termoquímicos foi proposta por Gutmann13. Tal escala baseia-se na entalpia da reação entre um ácido, no caso SbCl5, e uma determinada base, em solução de 1,2-dicloroetano, formando um aduto de estequiometria 1:1. O chamado número doador, DN, uma medida da força da base, seria simplesmente o valor da entalpia de reação multiplicado por -1. Gutmann escolheu o SbCl5 como ácido de referência pelas seguintes características: formação de adutos de estequiometria 1:1 com todas as moléculas ligantes; apresentar energias de hibridização similares para todos os compostos formados, em função de idênticas transformações estruturais sofridas em todos os casos (de bipiramidal para octaedro distorcido); ser um ácido forte, garantindo rápida formação de um aduto, mesmo em presença de bases fracas e, finalmente, pelo fato da ligação Sb-Cl não ser facilmente hidrolizável, evitando-se assim interações indesejáveis com as espécies doadoras.

Um escala termoquímica mais moderna, e também mais precisa (consegue detectar pequenas variações nos valores de basicidade) foi proposta por Maria e Gal14. Esta escala, estabelecida para 75 substâncias não-protônicas, consiste na medida da entalpia de reação (kJ mol-1) entre a base considerada e um ácido previamente escolhido, no caso BF3, em uma solução de diclorometano, de acordo com a reação: BF3(g) + :Base(sol) ® Base:BF3(sol). Quanto maior (mais exotérmico) o valor da entalpia de reação, mais "forte" é considerada a base. A medida da basicidade neste caso seria o valor da entalpia de reação multiplicada por -1. BF3 foi escolhido como ácido por considerarem os autores que as interações BF3/soluto(base)/CH2Cl2 seriam, neste caso, proporcionais à basicidade do soluto. Assim, embora as interações com o solvente não possam ser evitadas, garante-se que as mesmas afetarão proporcionalmente todas as moléculas estudadas, estabelecendo-se uma escala relativa de basicidades.

DISCUSSÃO

Como podemos evidenciar, com base nas cinco escalas de basicidade apresentadas, o estabelecimento de tais escalas começa pela escolha de um ácido "ideal", ou seja, uma substância capaz de se comportar como ácido (ácido de Lewis, nas escalas consideradas), e que apresente de preferência um único sítio de coordenação (ou sítios equivalentes, caso haja mais de um), garantindo-se assim que todas as bases consideradas se coordenarão ao ácido pelo mesmo ponto, o que evita variações nos valores de basicidade que não sejam decorrência unicamente da "força" da base. A base, por sua vez, deve ser também monodentada, pela mesma razão que o ácido deve apresentar um único sítio de coordenação. Além disso, caso as reações ácido-base sejam efetuadas em solução, torna-se necessário escolher um solvente que interaja o mínimo possível, quer com o ácido, quer com a base, uma vez que o objetivo é medir a força da interação entre ambos, e não de ambos com o solvente.

Comparando-se os dados da Tabela 1, podemos comprovar que nenhuma escala de basicidades é "perfeita", não apenas por não serem completas, mas também por não serem capazes de distinguir, em termos de basicidade, duas substâncias diferentes. Como norma geral, verifica-se que as escalas termoquímicas de basicidade são mais "sensíveis" que as escalas espectroscópicas. Assim, enquanto os valores de DS não diferenciam 2-picolina de 4-picolina, a escala com base nos valores de entalpia de reação com BF3 apresenta valores bastante diferentes para as duas substâncias, o mesmo sendo válido para as basicidades do nitrometano e do nitrobenzeno. Considerando-se o conjunto benzeno, nitrometano e nitrobenzeno, verifica-se que a escala de Gutmann diferencia estas substâncias, enquanto os valores de DS apontam para um único valor de basicidade para as três moléculas.

Considerando-se apenas as escalas espectroscópicas, verifica-se que a escala de Hahn, baseada em dados de ressonância magnética nuclear protônica, é mais "sensível" que as escalas baseadas em dados de espectroscopia na região do infravermelho ou do UV-VIS. A escala de Hahn consegue, por exemplo, diferenciar dmf de dma, o que não acontece quanto se utilizam os valores de Ds. Considerando-se as moléculas de acetona, thf e água, verifica-se que os valores de basicidade fornecidos por Dd apontam, aparentemente, para uma ordem de basicidades exatamente oposta à fornecida pelos valores de Culmáx. Contudo, devemos lembrar que quanto maiores os valores de l, menor a energia (E= hc/l, onde E é energia, h é a constante de Planck, c é a velocidade da luz e l é o comprimento de onda da radiação eletromagnética considerada), associada à transição eletrônica, o que significa dizer que as bases associadas aos maiores valores de l são as mais fracas (provocam um menor desdobramento dos orbitais d, do cobre). As duas escalas, portanto, concordam entre si.

Considerando-se as escalas termoquímicas apenas, podemos constatar que a seqüência de valores de basicidade para dmf, dma e dmso são diferentes nas escalas de Gutmann e BF3, o mesmo sendo válido para o grupo nitrometano, nitrobenzeno e acetona. Assim, uma base mais "forte" numa escala, pode ser mais "fraca" na outra. Contudo, tais fatos tornam apenas evidente a relatividade envolvida no conceito de basicidade, bem como as dificuldades envolvidas no estabelecimento de uma escala que possa ser tida como definitiva (supondo que isto seja possível).

A despeito das considerações precedentes, foi recentemente demonstrado15, através de estudo comparativo entre diferentes escalas, que, de um modo geral, as escalas termoquímicas são mais sensíveis (capazes de detectar pequenas variações no valor de basicidade) que as escalas espectroscópicas sendo, portanto, em geral, mais confiáveis. Tal conclusão foi atingida tendo-se por referência os valores de entalpia de reação de diferentes bases frente ao cloreto de zinco15, ZnCl2. A título de exemplo, basta citar que as entalpias de reação da dmf e da dma com SbCl5, BF3 e ZnCl2, apontam sempre para uma maior basicidade da dma, como seria de se esperar, em função da presença de um grupo metil "extra", em comparação com a dmf. Por outro lado, o valor de basicidade para ambas as substâncias é o mesmo, se for considerada a escala espectroscópica estabelecida a partir da reação com HgBr2.

Na comparação entre as diferentes escalas de basicidade, devemos levar em conta também que outros efeitos, devidos às interações intermoleculares, não são "detectados" pela interação principal, objeto da medida, fato este que termina por determinar diferenças entre os valores de basicidade. Como exemplo típico podemos citar o valor da água na escala de Gutmann13, comparando-se os valores calorimétrico e não calorimétrico.

Recebido em 5/12/01

Aceito em 26/8/02

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  • Endereço para correspondência
    Robson Fernandes de Farias
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Abr 2003
    • Data do Fascículo
      Mar 2003

    Histórico

    • Aceito
      26 Ago 2002
    • Recebido
      05 Dez 2001
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