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Imobilização de enzimas a partir de "kit" comercial: determinação de parâmetros metabólicos em sangue animal empregando multicomutação em fluxo

Enzyme immobilization using a commercial kit: determination of metabolic parameters in animal blood employing a multicommutation flow system

Resumo

Automatic flow procedures based on the multicommutation concept, dedicated to the determination of 3-hydroxybutyrate, glucose and cholesterol are proposed. The enzymes were immobilized on glass beads and packed into mini-columns that were coupled to a flow system. Sampling throughputs of 55, 40 and 40 determinations per hour, linear response from 10 to 150, 50 to 600, 25 to 125 mg L-1, detection limits of 1.5, 14 and 4 mg L-1 and relative standard deviations of 1, 2 and 2% for 3-hydroxybutyrate, glucose and cholesterol, respectively, were achieved.

enzymatic reactions; flow injection analysis; commercial kit


enzymatic reactions; flow injection analysis; commercial kit

ARTIGO

Imobilização de enzimas a partir de "kit" comercial: determinação de parâmetros metabólicos em sangue animal empregando multicomutação em fluxo

Enzyme immobilization using a commercial kit: determination of metabolic parameters in animal blood employing a multicommutation flow system

Cherrine Kelce Pires; Boaventura Freire dos Reis* * e-mail: reis@cena.usp.br

Centro de Energia Nuclear na Agricultura, Universidade de São Paulo, Av. Centenário, 303, 13400-970 Piracicaba - SP

ABSTRACT

Automatic flow procedures based on the multicommutation concept, dedicated to the determination of 3-hydroxybutyrate, glucose and cholesterol are proposed. The enzymes were immobilized on glass beads and packed into mini-columns that were coupled to a flow system. Sampling throughputs of 55, 40 and 40 determinations per hour, linear response from 10 to 150, 50 to 600, 25 to 125 mg L-1, detection limits of 1.5, 14 and 4 mg L-1 and relative standard deviations of 1, 2 and 2% for 3-hydroxybutyrate, glucose and cholesterol, respectively, were achieved.

Keywords: enzymatic reactions; flow injection analysis; commercial kit.

INTRODUÇÃO

O estado nutricional dos animais tem forte influência na produtividade e pode ser avaliado a partir de alguns constituintes bioquímicos do sangue animal. Neste sentido, Payne e Payne1 sugerem a elaboração de um perfil metabólico, o qual consiste na determinação dos teores de alguns constituintes bioquímicos encontrados no sangue dos animais. De acordo com Ekman2, através do perfil metabólico é possível investigar as possíveis relações entre alimentação, constituintes sanguíneos e performance do animal. Dentre as espécies bioquímicas necessárias para traçar o perfil metabólico do estado nutricional dos animais destacam-se 3-hidroxibutirato, glicose e colesterol3-5.

O 3-hidroxibutirato é uma das principais fontes de energia para os animais, ajudando na digestão da celulose, além do fornecimento de energia para a movimentação do animal. Assim, o 3-hidroxibutirato é um importante parâmetro no estado de desnutrição do animal6. A glicose é um indicador plasmático de metabolismo energético e, em vista disso, sua determinação tem grande importância no acompanhamento do estado de saúde do animal4. A determinação de colesterol é requerida em diagnósticos clínicos como importante parâmetro na avaliação das funções hepáticas do animal5.

Os métodos para a determinação de constituintes bioquímicos encontrados no sangue, geralmente, são baseados em "kits" disponíveis no mercado. Neste caso, as metodologias utilizadas são manuais, o que torna os procedimentos morosos e dispendiosos. Estas dificuldades podem ser minimizadas empregando procedimentos automáticos baseados no processo de análise química em fluxo (FIA)7-9.

Procedimento analítico baseado no processo FIA permite processar grande número de amostras em pouco tempo, e reduzir o emprego de vidraria. Além disso, tem a vantagem de ser um sistema fechado, o que minimiza os riscos de contaminação da amostra e, também, proporciona maior segurança para o operador10,11.

Os procedimentos mais eficientes para a determinação de 3-hidroxibutirato, glicose e colesterol em sangue de animal são baseados em reações enzimáticas em solução12,13 ou imobilizadas em esferas de vidro14-16.

Na determinação de 3-hidroxibutirato, de glicose e de colesterol, as enzimas 3-hidroxibutirato desidrogenase, glicose oxidase, colesterol esterase e oxidase são as mais utilizadas. Estas enzimas não se encontram disponíveis no mercado nacional e a aquisição via importação demora de 60 a 90 dias. Em geral, os métodos de referência empregam procedimentos manuais e utilizam "kits" comerciais, os quais compreendem a enzima e os demais componentes necessários à detecção espectrofotométrica. Estes "kits" têm um valor comercial em torno de 1/3 do preço da enzima correspondente e são encontrados no mercado nacional.

Neste trabalho foi investigada a viabilidade de imobilização das enzimas 3- hidroxibutirato desidrogenase, glicose oxidase e colesterol esterase e oxidase para a determinação de 3-hidroxibutirato, glicose e colesterol em soro de sangue de animais utilizando "kits" comerciais. Os módulos de análises para implementar os procedimentos analíticos foram baseados no processo de multicomutação em fluxo17,18, o qual apresentou meios para se desenvolver procedimentos automáticos de alto desempenho empregando instrumentação de baixo custo.

PARTE EXPERIMENTAL

Equipamentos e acessórios

Os equipamentos utilizados foram um espectrofotômetro Femto, modelo 700 Plus, equipado com uma cela para detecção quimiluminescente e outra para detecção espectrofotométrica UV-Vis; uma bomba peristáltica (Ismatec, IPC-8) equipada com tubos de bombeamento de Tygon®; quatro válvulas solenóides de três vias (Nresearch 161T031); um microcomputador 586 equipado com interface de controle (PCL-711S, American Advantech Corp); quatro mini-colunas confeccionadas em acrílico (15 mm x 5 mm); tubos de polietileno com diâmetro interno de 0,8 mm para construção de bobinas de mistura e linhas de fluxo e conectores em acrílico em formato "T".

Para o preparo de amostras e soluções de referência foram utilizados centrífuga Centra - 7R, pipetadores automáticos para micro-volumes, ponteiras de micropipetas para volumes entre 20 e 5000 µL e tubos de ensaio com volume interno de 10 mL.

Reagentes e soluções

Todas as soluções foram preparadas com reagentes de grau analítico e água purificada com condutividade < 0,1 µS cm-1. As amostras e soluções foram estocadas em frascos de polietileno.

Determinação de 3-hidroxibutirato

Solução estoque 500 mg L-1 de 3-hidroxibutirato foi preparada, dissolvendo-se 0,5 g de 3-hidroxibutirato em água. Soluções de referência contendo 10, 25, 50, 75, 100, 125 e 150 mg L-1 de 3-hidroxibutirato foram preparadas em água por diluições apropriadas da solução estoque e mantidas sob refrigeração à 5 °C.

Solução 7,0 mmol L-1 de dinucleotídeo adenina nicotinamida (NAD+) foi preparada diariamente, dissolvendo-se 0,2322 g de NAD+ em 50 mL de solução 0,1 mol L-1 contendo glicina e NaCl. O pH foi ajustado para 9,3 adicionando-se solução 0,1 mol L-1 de NaOH.

Solução 0,1 mol L-1 de glicina foi preparada dissolvendo-se 0,75 g de glicina em 100 mL de água.

Solução 0,1 mol L-1 de KH2PO4 (pH 7,0) foi preparada dissolvendo-se 13,6 g de KH2PO4 em água. O valor de pH foi ajustado com solução 0,1 mol L-1 de NaOH e o volume foi completado para 1000 mL.

Determinação de glicose

Solução estoque 2,0 g L-1 de glicose foi preparada, dissolvendo-se 2,0 g de glicose em água. Soluções de referência contendo 50, 100, 200, 300, 400, 500 e 600 mg L-1 de glicose foram preparadas em água por diluições apropriadas da solução estoque. Estas soluções foram mantidas sob refrigeração à 5 °C.

Solução 2,5 mmol L-1 de 5-amino-2,3-di-hidroftolazina-1,4-diona (luminol) foi preparada, dissolvendo-se 0,0443 g de luminol em 100 mL de solução 0,2 mol L-1 K2CO3, com pH ajustado para 10,5 com solução 0,1 mol L-1 HCl. Esta solução foi armazenada em frasco âmbar e mantida sob refrigeração à 5 °C.

Solução 0,1 mol L-1 de K3Fe(CN)6 foi preparada, diariamente, dissolvendo-se 3,293 g do sal em 100 mL de água.

Solução 0,2 mol L-1 de K2CO3 (pH 10,5) foi preparada, dissolvendo-se 13,821 g de K2CO3 em água. O pH foi ajustado com solução 0,1 mol L -1 de HCl e o volume completado para 500 mL com água.

Soluções 0,1 mol L-1 de KH2PO4 foram preparadas, dissolvendo-se 13,6 g de KH2PO4 em água. Os valores de pH foram ajustados para 6,0 e 7,0 adicionando-se solução 0,1 mol L-1 de NaOH e o volume foi completado para 1000 mL com água.

Determinação de colesterol

Solução estoque 1000 mg L-1 de colesterol foi preparada, dissolvendo-se 0,5 g de colesterol em uma mistura contendo 12,5 mL isopropanol e 12,5 mL Triton X-100. A mistura foi aquecida lentamente até 40 ºC. Após a dissolução, o volume foi completado para 500 mL com água e a solução armazenada em frasco de polietileno. Mantida sob refrigeração à 5 °C, esta solução foi usada durante um mês. Soluções de referência contendo 25, 50, 75, 100 e 125 mg L-1 de colesterol foram preparadas em solução de KH2PO4 (pH 7,5), por diluições apropriadas da solução estoque. Estas soluções foram preparadas semanalmente e mantidas sob refrigeração à 5 ºC.

As soluções de luminol, hexacianoferrato (III), solução K2CO3 e solução KH2PO4 foram preparadas, conforme citadas para a determinação de glicose.

As enzimas foram imobilizadas em esferas de vidro funcionalizadas com aminopropil14,16, usando parte das soluções dos "kits" comerciais Sigma "Diagnostics"19, Labtest Diagnóstica20 e Labtest Diagnóstica21 para as determinações de 3-hidroxibutirato, glicose e colesterol, respectivamente. Para comparação dos resultados foram utilizados os mesmos "kits" e as amostras foram processadas de acordo com as instruções do fabricante.

Imobilização das enzimas

As soluções do "kit" contendo as enzimas HBDH, GOD, CE e COD foram imobilizadas "off line" em esferas de vidro tratadas com aminopropil (Sigma, G-4518), com porosidade de 170 Å e 200-400 mesh. Os procedimentos para a imobilização são descritos a seguir. Para os três analitos, a imobilização foi efetuada utilizando 2,0 mL da respectiva solução de enzima que compunha o "kit".

Imobilização do 3-hidroxibutirato desidrogenase

A solução contendo a enzima 3-hidroxibutirato desidrogenase foi imobilizada em uma massa de aproximadamente 0,1 g de esferas de vidro, seguindo procedimento relatado em trabalhos anteriores14,22. Uma solução 2% (v/v) de glutaraldeído em solução 0,1 mol L-1 de KH2PO4 (pH 7,0) foi adicionada em um béquer contendo as esferas de vidro e deixada em repouso durante 3 h em temperatura ambiente (25 °C). Após essa etapa, as esferas foram lavadas com água desgaseificada. A solução da enzima 3-hidroxibutirato desidrogenase foi colocada em contato com as esferas durante 6 h.

Imobilização da glicose oxidase, colesterol esterase e colesterol oxidase

As enzimas glicose oxidase, colesterol esterase e colesterol oxidase foram imobilizadas separadamente em esferas de vidro, conforme descrito na literatura15,16,23. Uma massa de aproximadamente 0,1 g de esferas de vidro foi lavada com água e, posteriormente, com solução 0,2 mol L-1 de K2CO3 (pH 10,5). Após esta etapa, as esferas de vidro foram mantidas em solução 5% (v/v) de glutaraldeído durante 2 h sob agitação. Em seguida, as esferas foram filtradas e lavadas seqüencialmente com água e solução de KH2PO4 (pH 6,0).

Posteriormente, as esferas de vidro foram mantidas em 2,0 mL de solução contendo as enzimas colesterol esterase e colesterol oxidase, durante 2 h à 5 °C. Após esta etapa, as esferas foram mantidas durante 2 h em solução de cianoboroidreto de sódio à temperatura de 5 °C, e durante 1 h em solução 0,1 mol L-1 de glicina à 25 °C. Em seguida, as esferas foram lavadas com água e solução KH2PO4 (pH 7,5). O mesmo procedimento foi seguido para a imobilização da glicose oxidase utilizando 2 mL da solução do "kit".

Após a imobilização, as esferas de vidro foram acondicionadas em mini-colunas de acrílico (15 mm x 5 mm d.i.), utilizando-se uma seringa. Após o preenchimento, a coluna foi imersa em solução 0,1 mol L-1 de KH2PO4 (pH 7,0) e mantida sob refrigeração à 5 °C.

Preparo das amostras

Para a obtenção do soro, as amostras de sangue foram coletadas da veia jugular dos animais, utilizando-se agulhas de calibre 18 para prevenir hemólise. As amostras foram recolhidas em tubos de ensaio tipo Vacutainer® (10 mL). Após a coleta, o tubo foi invertido cuidadosamente e deixado em repouso durante 24 h à temperatura ambiente (25 ºC), para que ocorresse a coagulação e a separação do soro. Após essa etapa, um volume de 4 mL de soro sanguíneo foi transferido para outro tubo, utilizando-se um pipetador automático. Os tubos contendo o soro foram centrifugados durante 10 min a 2500 rpm. Estas amostras foram mantidas sob refrigeração.

Descrição dos procedimentos propostos

Determinação de 3-hidroxibutirato

Na Figura 1 é mostrado o diagrama de fluxos do módulo de análises empregado para a determinação de 3-hidroxibutirato. Nesta configuração as válvulas solenóides V1, V2 e V3 estão desligadas e a solução transportadora (C) está fluindo através da bobina de mistura (B) e da coluna enzimática (Ce), em direção ao espectrofotômetro (DET). As soluções da amostra (A) e do reagente (R1) estão sendo bombeadas para os respectivos reservatórios (Ra, Rr).


O módulo de análises foi projetado para implementar o processo de multicomutação em fluxo, e o programa de controle e aquisição de dados foi desenvolvido baseado neste conceito. Assim, quando o programa foi iniciado, o computador enviava através da porta de saída da interface PCL711S uma seqüência de pulsos elétricos para acionar as válvulas V1, V2 e V3. A seqüência de acionamento das válvulas é mostrada no diagrama de tempos da Figura 1.

O diagrama de tempos da Figura 1 mostra que na etapa de amostragem as válvulas V1, V2 e V3 foram acionadas simultaneamente. Nesta configuração, a solução transportadora foi desviada do percurso analítico para seu reservatório (Rc), enquanto que as soluções da amostra (A) e do reagente (R1) fluíam através das válvulas V2 e V3, misturando-se a partir da confluência (x). Neste módulo de análises, os volumes das soluções da amostra e do reagente inseridos na bobina de mistura foram em função dos tempos de acionamento das válvulas e das vazões de bombeamento. As vazões foram mantidas constantes (Figura 1), e o intervalo de tempo de acionamento simultâneo foi fixado em 10 s. Após a introdução das soluções, as válvulas foram desligadas e as soluções voltavam à condição inicial. A solução transportadora deslocava a zona da amostra através da bobina de mistura (B) e da coluna enzimática (Ce) para o detector (DET). As reações de oxidação do 3-hidroxibutirato e redução do NAD+ (R1) ocorriam durante a passagem da zona da amostra pela coluna enzimática. A concentração de NADH gerada pela reação enzimática é proporcional à concentração de 3-hidroxibutirato, que foi monitorada em 340 nm.

Os experimentos foram realizados usando soluções de referência entre 10 e 150 mg L-1 de 3-hidroxibutirato e amostras de soro sanguíneo. Estes foram repetidos durante vários dias para verificar a resposta da enzima e avaliar a vida útil da coluna. As amostras também foram analisadas empregando-se o procedimento manual para permitir a verificação da exatidão dos resultados obtidos com o procedimento proposto.

Determinação de glicose e colesterol

Os procedimentos para determinação de glicose e colesterol foram baseados em detecção por quimiluminescência15,16, empregando-se módulo de análises baseado em multicomutação, mostrado no diagrama da Figura 2. Nesta configuração, as válvulas V1, V2, V3 e V4 estão desligadas, e a solução transportadora (C) está fluindo através da bobina de reação (B) e da coluna enzimática (Ce) em direção ao detector (DET).


Para a detecção quimiluminescente foi utilizado um espectrofotômetro convencional, onde o feixe de radiação foi bloqueado e uma cela de fluxo para quimiluminescência24 foi posicionada a 2 mm da fenda de entrada do detector.

O módulo de análises foi controlado pelo computador empregando um "software" escrito em linguagem Quick BASIC 4.5. O acionamento das válvulas solenóides para inserção das soluções segue a estratégia esquematizada no diagrama de tempos de acionamento das válvulas (Figura 2). Durante o acionamento das válvulas V1 e V2, o fluxo da solução transportadora foi interrompido, e a solução da amostra foi introduzida no percurso analítico no ponto de confluência (x). Após a etapa de inserção da alíquota da solução da amostra, as válvulas V1 e V2 foram desligadas e a solução da amostra foi transportada através da coluna enzimática (Ce) onde ocorria a reação. Em seguida, a inserção dos reagentes R1 e R2 na zona da amostra foi efetuada, acionando as válvulas V3 e V4 na seqüência indicada no diagrama de tempo de acionamento destas duas válvulas. A reação entre o luminol e o produto da reação enzimática ocorreu durante o transporte da zona da amostra através do reator B. O ponto de confluência para adição da solução do catalisador (R2) foi instalado a 10 mm da entrada da cela de fluxo. Esta montagem visava um melhor aproveitamento da radiação emitida, em vista disso, a válvula V4 foi acionada com um retardo de 5 s após o acionamento de V3.

O módulo de análises foi desenvolvido para permitir a determinação de glicose e de colesterol, necessitando apenas a troca da coluna enzimática, assim, a forma de funcionamento foi a mesma para ambos analitos. Os experimentos para definir os tempos de acionamento das válvulas foram realizados usando soluções de referência entre 50 e 600 mg L-1 de glicose, e entre 25 e 125 mg L-1 de colesterol.

Para verificar o desempenho do sistema, a vida útil das colunas de enzimas, a precisão e a exatidão dos resultados foram determinadas concentrações de glicose e de colesterol em amostras de soro animal.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para verificar a possibilidade de imobilização das enzimas a partir de "kits" comercias, foram efetuados estudos empregando módulos de análises baseados em multicomutação. As vazões das soluções, as dimensões do reator e da coluna enzimática foram mantidas constantes.

3-hidroxibutirato

Na determinação de 3-hidroxibutirato, a influência do volume da amostra foi avaliada variando-se o tempo de acionamento da válvula V2 (Figura 1) e os resultados são mostrados na Tabela 1. Observou-se que os sinais aumentavam até o intervalo de tempo de 10 s, decrescendo para tempos maiores. O tempo de 10 s foi selecionado, tendo em vista que, além de fornecer a melhor magnitude de sinal, os resultados apresentavam o menor erro relativo (0,5%).

A concentração do reagente NAD+ foi estudada na faixa entre 4 e 8 mmol L-1 e os resultados estão mostrados na Figura 3. Pode-se observar nesta figura o aumento da magnitude do sinal até a concentração de 7 mmol L-1 e posteriormente, o decréscimo do sinal analítico. A diminuição do sinal para a concentração de 8 mmol L-1 nos leva à suposição de que o excesso da coenzima inibe a atividade da enzima imobilizada. Este resultado é concordante ao observado por Pires e colaboradores14 e Kiba e colaboradores22, onde a imobilização foi efetuada a partir de enzima pura.


De acordo com a literatura25,26, o pH e a temperatura influenciam fortemente o desenvolvimento das reações enzimáticas. A influência da concentração hidrogeniônica na atividade enzimática foi avaliada pela mudança de pH da solução do reagente NAD+ na faixa entre 7,5 e 11,0 usando solução de glicina. Na Figura 4 pode-se observar um aumento do sinal até pH 9,3. Deste modo, este pH foi selecionado para posteriores estudos.


A influência da temperatura na reação enzimática foi avaliada mantendo-se a coluna enzimática imersa em banho térmico, variando-se a temperatura entre 19 e 50 °C. Observou-se que a partir de 25 °C ocorria diminuição do sinal, chegando a uma redução de 25% quando a temperatura atingia 50 °C. Em vista disso, selecionou-se a temperatura de 25 °C (temperatura do ambiente), agregando como vantagem adicional a dispensa do banho térmico.

A estabilidade da coluna enzimática é um parâmetro importante, e foi avaliada usando solução 75 mg L-1 de 3-hidroxibutirato, processando–se 8 replicatas em intervalos de 2 h. Nestas condições foram efetuadas 40 determinações por dia, e após 5 dias (200 determinações) foi observado um decréscimo de 20% na magnitude dos sinais. Inicialmente, o sinal obtido foi em torno de 0,9 abs (absorbância), portanto, após 5 dias de trabalho a enzima ainda apresentava condições de uso.

Visando comprovar a viabilidade de uso do "kit" comercial para imobilizar a enzima, analisou-se um conjunto de amostra de soro sanguíneo empregando o procedimento proposto e o manual19 e os resultados são mostrados na Tabela 2. Com a análise estatística dos resultados, empregando-se o teste-t27, verificou-se que não houve diferença significativa entre os resultados em nível de confiança de 95%. O limite de detecção calculado foi de 1,5 mg L-1 e desvio padrão relativo de 1,0% (n=20). Outras características favoráveis obtidas foram freqüência de amostragem de 55 determinações por hora, consumo do reagente NAD+, da enzima HBDH e da amostra de 0,9 mg, 8 µg, 200 µL, respectivamente, por determinação, e geração de efluente 1,7 mL por determinação.

Glicose e colesterol

Em trabalhos anteriores15,16 observou-se que a temperatura ótima para o desenvolvimento da reação para os dois analitos foi em torno de 25 ºC, então, foi mantido este valor para a temperatura do laboratório.

Os procedimentos para a determinação de glicose e de colesterol foram implementados empregando-se o módulo de análises representado na Figura 2. Os efeitos dos volumes das soluções da amostra e dos reagentes hexacianoferrato (III) e luminol foram avaliados variando os intervalos de tempos de acionamento das válvulas V2, V3 e V4. Para estes testes foram usadas soluções de referência de 300 mg L-1 de glicose e 75 mg L-1 de colesterol, e os resultados são mostrados na Tabela 3. A partir destes resultados selecionou-se os intervalos de tempos de 2, 18 e 16 s para acionamento das válvulas V2, V3 e V4, respectivamente, que correspondem aos volumes de 46, 360 e 320 µL. Estes valores foram escolhidos considerando-se o compromisso entre a magnitude do sinal e a precisão das medidas.

Os efeitos relacionados às concentrações dos reagentes luminol e hexacianoferrato (III) e acidez do meio foram avaliados e os resultados são mostrados nas Figuras 5, 6 e 7, respectivamente. Na Figura 5 observa-se que a partir da concentração de 2,5 mmol L-1de luminol o sinal permaneceu constante. Então, considerou-se que esta concentração foi suficiente para atender à estequiometria da reação. Observou-se na Figura 6 que o máximo de sinal foi obtido quando a concentração de hexacianoferrato (III) foi de 0,1 mol L-1. Quanto ao efeito do pH do meio reacional, a Figura 7 mostrou-se que o ótimo ocorreu em uma faixa bem estreita em torno de 7,5. Os resultados referentes aos efeitos da concentração do catalisador e da acidez do meio estão de acordo com os dados da literatura25,28. A partir destes resultados, foram selecionados como valores ótimos: pH 7,5, concentração 2,5 mmol L-1 de luminol, e concentração 0,1 mol L-1 de hexacianoferrato (III).




Visando averiguar o desempenho e a vida útil da coluna de enzima imobilizada a partir de "kit" comercial, analisou-se um conjunto de amostras de soro de sangue animal, sem tratamento prévio. Estas amostras também foram analisadas empregando os procedimentos manuais Labtest Diagnóstica20 e Labtest Diagnóstica21 para as determinações de glicose e de colesterol, respectivamente, e os resultados são apresentados na Tabela 4. Com o resultado da análise estatística pode-se observar que não houve diferença significativa entre os resultados, em nível de confiança de 95% para os dois analitos.

A estabilidade das colunas enzimáticas para os dois analitos foi avaliada usando soluções de referência de 300 mg L-1 de glicose e 75 mg L-1 de colesterol. Em ambos casos, as soluções foram processadas em intervalos de 2 h e em cada teste foram efetuadas 8 determinações. Após efetuar 200 determinações foi observado um decréscimo de 18% na magnitude dos sinais, sendo que o desvio padrão relativo das medidas permanecia inferior a 2%.

Outras características analíticas tais como freqüência de amostragem de 40 determinações por hora, desvio padrão relativo de 2,0% (n=20) para os dois analitos, e consumo de reagentes de 0,2 mg de luminol e 10 mg de hexacianoferrato (III), por determinação, foram observadas.

Os volumes das soluções enzimáticas que constituíam os "kits" para determinação de glicose e colesterol foram de 500 mL e de 200 mL, respectivamente. Na parte experimental foi indicado o uso de 2,0 mL das soluções das enzimas para efetuar cada imobilização. Desse modo, seria possível efetuar 250 e 100 imobilizações para glicose e colesterol, respectivamente, enquanto que preparando as soluções enzimáticas a partir das enzimas puras foi possível efetuar apenas 66 e 4 imobilizações para glicose e colesterol, respectivamente.

Na Tabela 5 estão reunidos os parâmetros que compõem as figuras de mérito dos três procedimentos. Estes parâmetros são comparáveis aos obtidos em trabalhos anteriores, onde a imobilização das enzimas foi efetuada usando soluções preparadas a partir de enzimas puras14-16.

CONCLUSÃO

Os métodos automatizados propostos demonstraram que para a determinação de 3-hidroxibutirato, glicose e colesterol em soro de sangue animal, a imobilização das enzimas pode ser implementada usando-se soluções presentes em "kits" comerciais.

O período de vida útil da enzima imobilizada a partir dos "kits" foi em torno de 70% menor, em relação às enzimas preparadas a partir da enzima pura. Entretanto, a quantidade de imobilizações que podem ser feitas a partir do "kit" é significante (100 para o colesterol e 250 para a glicose), o que é bastante compensador. Mesmo no caso do 3-hidroxibutirato em que não houve ganho na quantidade de imobilizações, houve ganho no custo de aquisição em torno de 30%. Além disso, a aquisição do "kit" enzimático no mercado nacional é uma vantagem operacional, considerando-se que o tempo de importação da enzima pode chegar a 90 dias.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao Laboratório de Nutrição Animal (CENA/USP) pela concessão das amostras de sangue, à CAPES, ao CNPq e à FAPESP pelo suporte financeiro.

Recebido em 23/3/04; aceito em 4/10/04; publicado na web em 2/2/05

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jun 2005
    • Data do Fascículo
      Jun 2005

    Histórico

    • Recebido
      23 Mar 2004
    • Aceito
      04 Out 2004
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