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Determinação da origem biossintética de ácido acético através da técnica "Site Specific Natural Isotopic Fractionation Studied by Nuclear Magnetic Resonance (SNIF-NMR)"

Biosynthetic origin of acetic acid using SNIF-NMR

Resumo

The main purpose of this work is to describe the use of the technique Site-Specific Natural Isotopic Fractionation of hydrogen (SNIF-NMR), using ²H and ¹H NMR spectroscopy, to investigate the biosynthetic origin of acetic acid in commercial samples of Brazilian vinegar. This method is based on the deuterium to hydrogen ratio at a specific position (methyl group) of acetic acid obtained by fermentation, through different biosynthetic mechanisms, which result in different isotopic ratios. We measured the isotopic ratio of vinegars obtained through C3, C4, and CAM biosynthetic mechanisms, blends of C3 and C4 (agrins) and synthetic acetic acid.

SNIF-NMR; vinegar; plant metabolism


SNIF-NMR; vinegar; plant metabolism

ARTIGO

Determinação da origem biossintética de ácido acético através da técnica "Site Specific Natural Isotopic Fractionation Studied by Nuclear Magnetic Resonance (SNIF-NMR)"

Biosynthetic origin of acetic acid using SNIF-NMR

Elisangela Fabiana Boffo; Antonio Gilberto Ferreira* * e-mail: giba_04@yahoo.com.br

Departamento de Química, Universidade Federal de São Carlos, CP 676, 13560-970, São Carlos - SP, Brasil

ABSTRACT

The main purpose of this work is to describe the use of the technique Site-Specific Natural Isotopic Fractionation of hydrogen (SNIF-NMR), using 2H and 1H NMR spectroscopy, to investigate the biosynthetic origin of acetic acid in commercial samples of Brazilian vinegar. This method is based on the deuterium to hydrogen ratio at a specific position (methyl group) of acetic acid obtained by fermentation, through different biosynthetic mechanisms, which result in different isotopic ratios. We measured the isotopic ratio of vinegars obtained through C3, C4, and CAM biosynthetic mechanisms, blends of C3 and C4 (agrins) and synthetic acetic acid.

Keywords: SNIF-NMR; vinegar; plant metabolism.

INTRODUÇÃO

A Ressonância Magnética Nuclear de alta resolução pode contribuir significativamente para a determinação da autenticidade quanto à origem geográfica e/ou biossintética de alimentos, através das medidas do conteúdo isotópico, em abundância natural, para sítios moleculares específicos.

A técnica conhecida como SNIF-NMR ("Site Specific Natural Isotopic Fractionation studied by Nuclear Magnetic Resonance"), foi desenvolvida no início dos anos 80, pelos Profs. Gérard e Maryvonne Martin na Universidade de Nantes, na França, para detectar a adição de açúcares não declarados ao processo de fermentação do vinho; procedimento esse chamado de enriquecimento ou "chaptalization"1. O enriquecimento acontece quando há necessidade da adição de açúcar ao mosto da uva antes da fermentação com objetivo de aumentar o teor alcoólico e, conseqüentemente, a qualidade do vinho. Essa adição não se configura necessariamente em uma fraude, uma vez que é permitida dependendo das condições climáticas para uma determinada safra2.

A técnica SNIF-NMR também tem sido utilizada para averiguar a adição de açúcares não declarados em outros produtos além do vinho3,4, como por ex., em sucos de frutas5-7, mel8, tequila9, entre outros10-14. Sua aplicação consiste nas medidas conjuntas de ressonância magnética nuclear e de espectrometria de massas, sendo que a primeira determina a relação isotópica 2H/1H, e a segunda 13C/12C.

A autenticidade de um suco, como por ex. o de laranja, pode ser determinada analisando-se a relação isotópica 2H/1H da metila do etanol, produzido a partir do processo de fermentação do suco, e comparada com a de outros produtos. Assim, o etanol derivado da fermentação do açúcar de beterraba é menos enriquecido em deutério que aquele fermentado a partir do suco de laranja e mais enriquecido quando é fermentado a partir do açúcar da cana-de-açúcar15.

O ácido acético, utilizado na produção do vinagre, é obtido basicamente pelos processos de oxidação do etanol (sinteticamente) ou de fermentação (biologicamente). No entanto, a fonte de etanol pode vir de várias origens, como cana-de-açúcar, uva, mel, laranja, maçã, entre outras. Desse modo, a caracterização do ácido acético nos vinagres é de grande importância para a indústria de alimentos, uma vez que os custos da matéria-prima estão diretamente relacionados à sua origem16.

Muitos dos estudos já realizados, para vinagres e outros produtos, estão baseados na relação isotópica entre 13C e 12C obtida por meio da espectrometria de massas17. No entanto, essa técnica não é totalmente eficiente quando aplicada à detecção de adulterações que envolvam compostos oriundos de plantas que possuem o mesmo ciclo de fixação do carbono2, como por ex., de plantas C3. Por isso, tornou-se necessária a implementação de uma técnica para superar essa dificuldade e a SNIF-NMR veio suprimir essa lacuna.

No presente trabalho descrevemos o uso da técnica SNIF-NMR no estudo da origem biossintética do ácido acético, encontrado em amostras comerciais de vinagres produzidos no Brasil, classificando-os de acordo com os diferentes metabolismos biossintéticos C3, C4 e CAM; ciclos esses utilizados pelas plantas para fixação de gás carbônico18. Além disso, foram estudadas algumas amostras de agrins, que são vinagres obtidos a partir de uma mistura de ácido acético produzidos pela fermentação de açúcares da cana-de-açúcar e da uva. Nesses casos não são mencionadas, nos rótulos dos produtos comerciais, as relações das percentagens utilizadas nas misturas, constando apenas informações do grau de acidez ou se o produto é puro ou uma mistura (agrins).

PARTE EXPERIMENTAL

Extração do ácido acético

Foram utilizados 80 mL de vinagre e 150 mL de éter etílico, em um processo de extração contínua líquido/líquido por 24 h. Ao término das extrações, as amostras, em um total de 21, foram concentradas utilizando-se um evaporador rotativo.

Medidas de RMN

Todas as medidas foram realizadas em um equipamento Bruker de 9,4 Tesla (400,13 MHz para freqüência do hidrogênio), modelo DRX400, numa sonda de 5 mm para detecção direta de 31P-15N, em triplicata e mantida a temperatura constante de 298 K durante todas as análises. Essas foram feitas utilizando-se 600 µL do ácido acético extraído, contendo ainda traços de água, etanol e éter etílico, e adicionados 100 µL do padrão N,N-tetrametiluréia (TMU) 99%.

Espectros de RMN de 1H

Foram acumulados 16 espectros para cada medida, com um tempo de aquisição de 8,39 s, janela espectral de 3906 Hz, utilizando-se um pulso de 90º com duração de 8,5 µs e tempo de espera entre os pulsos de 5 s. No processamento dos dados foi utilizado o preenchimento por zeros, zero "filling", feita a correção automática da linha de base e não foi aplicado nenhum tratamento matemático no FID.

Espectros de RMN de 2H

Os espectros de deutério foram adquiridos logo após aos de hidrogênio, sem a utilização do "lock" de 19F. Foram acumulados 128 espectros, com tempo de aquisição de 8,59 s, janela espectral de 3906 Hz, utilizando-se um pulso de 90º com duração de 17,5 µs e tempo de espera entre os pulsos de 5 s. No processamento utilizou-se o mesmo número de pontos da aquisição, zero "filling", uma multiplicação exponencial sobre o FID, "Line Broadening" (LB: 3,0 Hz) e foi feita a correção automática da linha de base.

Cálculo da relação isotópica 2H/1H

Para a determinação da relação 2H/1H, utilizou-se a Equação 119

onde (2H/1H)ª: relação isotópica 2H/1H do composto de estudo, A; (2H/1H)P: relação isotópica 2H/1H do padrão, TMU; IA e IP: área dos sinais de RMN para as metilas de A e do padrão, respectivamente; NA e NP: número estequiométrico de hidrogênios das metilas de A e do padrão, respectivamente; mA e mP: massa de A e do padrão, respectivamente; MA e MP: massa molar de A e do padrão, respectivamente.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com o intuito de aumentarmos a concentração de ácido acético nas amostras, melhorando a relação sinal/ruído nos espectros de RMN de 1H e 2H e, por conseqüência, tornando as integrações desses sinais mais precisas, é que foram feitas as extrações do ácido acético nas amostras de vinagre. Além, evidentemente, de diminuirmos o tempo de máquina a ser utilizado.

Às amostras foram adicionados 100 µL de N,N-tetrametiluréia (TMU), obtendo-se uma intensidade do sinal da metila do ácido versus metila do TMU de aproximadamente 1:1. Isso para que tivéssemos uma boa visualização dos sinais, acarretando o menor erro possível na integração. Todos os espectros foram feitos nas mesmas condições para assegurarmos a reprodutibilidade das medidas.

Na Figura 1, podemos observar os espectros de RMN de a) 1H e b) 2H realizados após a extração, onde visualizamos os sinais referentes à metila do ácido acético (d 2,05 ppm), do padrão TMU (d 2,82 ppm) e da água (d 6,70 ppm). É importante que a intensidade do sinal da água seja a menor possível a fim de não saturarmos o receptor de rf ("receiver") com um sinal indesejado e conseqüentemente diminuirmos os demais. Os espectros de RMN de 1H foram calibrados utilizando-se a referência interna tetrametilsilano (TMS) e os de 2H utilizando-se o valor do deslocamento da metila do ácido acético, uma vez que o seu valor não difere do espectro de 1H para o de 2H20.


Os valores da relação isotópica encontrados para as amostras analisadas estão mostrados na Tabela 1.

A amostra de ácido acético sintético foi analisada com o intuito de verificar se o valor da relação isotópica 2H/1H da literatura e por nós obtido estavam condizentes21. Porém, encontramos um valor superior, não só para o ácido acético sintético, como também para as amostras com origem biossintética C3 e C4. Infelizmente não dispomos de dados na literatura para compararmos os valores quando se utilizam plantas com origem biossintética CAM.

As amostras analisadas e que serviram para posterior comparação foram as quatro amostras autênticas de vinagres de vinho (padrão), onde obtivemos os valores 110,7, 109,2, 110,2 e 109,5 ppm. Essa aparente discrepância quando comparada com os valores encontrados na literatura, de aproximadamente 100 ppm, pode ser atribuída à variação isotópica devido às diferenças geográficas e/ou da influência da sazonalidade das plantas que deram origem aos açúcares22.

Para os vinagres obtidos a partir da fermentação dos açúcares oriundos de plantas C3: maçã, vinho, arroz e laranja, encontramos valores da relação isotópica na faixa de 98,6 a 111,8 ppm. Esses valores estão próximos aos obtidos para as amostras autênticas de vinho e, portanto, podemos supor que não contêm adulterações.

Para os vinagres de mel e abacaxi, verificamos que o conteúdo isotópico do ácido acético em nossas amostras é semelhante ao do etanol originado da fermentação desses produtos, confirmando sua autenticidade8,16,22. No entanto, o valor obtido para o vinagre de mel, se assemelhou ao dos vinagres oriundos de plantas C3, isso provavelmente porque o néctar colhido pela abelha foi das flores de plantas que seguem esse mecanismo de fixação de CO28. Já para o abacaxi, oriundo de plantas CAM, os valores da relação isotópica são intermediários entre os valores dos grupos C3 e C422. O valor por nós obtido, 106 ppm, não nos permite classificá-lo como pertencente ao grupo CAM e sim como C3. Isso porque a faixa obtida para C3 abrange os valores de 99,8 a 111,8 ppm. Portanto, a técnica SNIF-NMR sozinha não permite distinguir corretamente o vinagre de abacaxi. Provavelmente, com um número maior de amostras e de diferentes regiões, talvez possamos estabelecer um banco de dados que possibilite essa distinção.

Os vinagres oriundos de plantas C4 apresentaram valores para a relação isotópica 2H/1H superiores aos das plantas C3, como esperado12, e estando próximos a 130 ppm. Além disso, essas amostras não devem ter sido adulteradas, pois o etanol obtido da cana-de-açúcar é uma das matérias-primas mais baratas em nosso país. A causa mais provável da elevação nos valores da razão isotópica em relação aos da literatura deve-se, novamente, à influência geográfica e/ou da sazonalidade.

Na análise dos vinagres conhecidos como agrins, foi construída uma curva de calibração com amostras autênticas de vinagres de vinho e de álcool. As proporções e os respectivos valores da relação isotópica 2H/1H estão mostrados na Tabela 2. O coeficiente angular (R = - 0,996) obtido a partir da equação da reta é bastante satisfatório.

Analisando-se os valores da relação isotópica 2H/1H apresentados na Tabela 3, podemos verificar que a amostra agrin 1 apresenta 95% de ácido acético proveniente da oxidação do etanol oriundo da cana-de-açúcar. Já a amostra agrin 4 apresentou uma porcentagem maior de vinagre de vinho, 76%. Para as demais amostras obtivemos valores intermediários da relação isotópica e, conseqüentemente, da percentagem de vinagre de cana-de-açúcar e de vinho.

CONCLUSÕES

Para as amostras dos agrins analisadas fica evidente que existe uma variação muito grande na sua composição quanto à origem biossintética (vinho versus cana-de-açucar), refletindo tanto na qualidade quanto no preço final ao consumidor. Além disso, as informações descritas nos rótulos não certificam sua origem biossintética.

Foi possível estabelecer a origem biossintética para os vinagres oriundos de plantas que utilizam os metabolismos biossintéticos C3 e C4, mas não para os originados de plantas CAM.

AGRADECIMENTOS

Aos órgãos financiadores CAPES, CNPq e FAPESP.

Recebido em 15/2/05; aceito em 19/8/05; publicado na web em 8/2/06

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      19 Ago 2005
    • Recebido
      12 Fev 2005
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