Acessibilidade / Reportar erro

Estudo por espectroscopia micro-Raman dos mecanismos de separação de fase em vidros fosfatos de metais de transição

Micro-Raman spectroscopy studies of the phase separation mechanisms of transition-metal phosphate glasses

Resumo

Glass-ceramics are prepared by controlled separation of crystal phases in glasses, leading to uniform and dense grain structures. On the other hand, chemical leaching of soluble crystal phases yields porous glass-ceramics with important applications. Here, glass/ceramic interfaces of niobo-, vanado- and titano-phosphate glasses were studied by micro-Raman spectroscopy, whose spatial resolution revealed the multiphase structures. Phase-separation mechanisms were also determined by this technique, revealing that interface composition remained unchanged as the crystallization front advanced for niobo- and vanadophosphate glasses (interface-controlled crystallization). For titanophosphate glasses, phase composition changed continuously with time up to the equilibrium composition, indicating a spinodal-type phase separation.

Raman spectroscopy; crystallization; phosphate glasses


Raman spectroscopy; crystallization; phosphate glasses

NOTA TÉCNICA

Estudo por espectroscopia micro-Raman dos mecanismos de separação de fase em vidros fosfatos de metais de transição

Micro-Raman spectroscopy studies of the phase separation mechanisms of transition-metal phosphate glasses

Italo Odone MazaliI,** e-mail: mazali@iqm.unicamp.br; Oswaldo Luiz AlvesI; Iara de Fátima GimenezII

I

IIDepartamento de Química, Universidade Federal de Sergipe, 49100-000 São Cristóvão - SE, Brasil

ABSTRACT

Glass-ceramics are prepared by controlled separation of crystal phases in glasses, leading to uniform and dense grain structures. On the other hand, chemical leaching of soluble crystal phases yields porous glass-ceramics with important applications. Here, glass/ceramic interfaces of niobo-, vanado- and titano-phosphate glasses were studied by micro-Raman spectroscopy, whose spatial resolution revealed the multiphase structures. Phase-separation mechanisms were also determined by this technique, revealing that interface composition remained unchanged as the crystallization front advanced for niobo- and vanadophosphate glasses (interface-controlled crystallization). For titanophosphate glasses, phase composition changed continuously with time up to the equilibrium composition, indicating a spinodal-type phase separation.

Keywords: Raman spectroscopy; crystallization; phosphate glasses.

INTRODUÇÃO

Vidro é um sólido não-cristalino, portanto, com ausência de simetria e periodicidade translacional, que exibe o fenômeno de transição vítrea, podendo ser obtido a partir de qualquer material inorgânico, orgânico ou metálico e formado através de qualquer técnica de preparação.1 O comportamento de transformação de fase em vidros, ou seja, sua transformação de sólido com ausência de periodicidade para um sólido estruturalmente organizado tem grande importância científica e tecnológica, pois, pode conduzir à obtenção de materiais cerâmicos avançados com alto valor agregado e funções específicas.

Materiais cerâmicos funcionais avançados preparados via transformação de fase de um vidro precursor oferecem vantagens sobre os métodos convencionais de sinterização de pós, pois, permitem o crescimento controlado dos cristais, com estrutura de grãos uniforme e livre de porosidade, além de evitar as variáveis intrínsecas do processo de sinterização.

A espectroscopia micro-Raman tem sido empregada de maneira sistemática no estudo de materiais vítreos, cuja caracterização por métodos de difração de raios X é prejudicada pela ausência de periodicidade a médias e longas distâncias. Na microscopia Raman ou espectroscopia micro-Raman, o espectrômetro Raman está acoplado a um microscópio óptico.2-4 Neste caso, o feixe de excitação é direcionado ao microscópio, que permite que a amostra seja examinada com base nas ampliações permitidas pela ótica do microscópio, propiciando que áreas específicas de até 1 μm de diâmetro sejam analisadas seletivamente.4 Os feixes refletidos e espalhados, elástica e inelasticamente, são coletados através da objetiva do microscópio e direcionados ao espectrômetro, no qual o espalhamento Rayleigh deve ser separado por filtros holográficos do tipo notch. Para uma revisão detalhada dos fundamentos da espectroscopia vibracional e do espalhamento Raman, recomenda-se a leitura de uma série de trabalhos publicados recentemente por Sala.5-7

Com o notável desenvolvimento da instrumentação, a espectroscopia micro-Raman adquiriu uma grande versatilidade de aplicações, de tal forma que atualmente aplica-se a amostras biológicas,8,9 peças de arte,10 amostras de origem arqueológica4,11-13 tais como vidros, cerâmicas, tecidos históricos, manuscritos e pinturas rupestres. A espectroscopia micro-Raman é apontada como uma das principais técnicas que, usadas isoladamente, permitem o estudo de misturas heterogêneas de sólidos orgânicos ou inorgânicos, sendo particularmente adequadas ao estudo de sistemas multifásicos e multicomponente, mesmo em escala nanométrica.14 Algumas vantagens da espectroscopia micro-Raman merecem destaque:14 trata-se de uma técnica não-destrutiva e que pode ser aplicada a amostras de formas irregulares e tamanhos variados; apresenta uma alta resolução espacial e espectral; permite a análise de amostras "reais", sem etapas de preparação prévia; em alguns casos, o instrumento pode apresentar portabilidade, ou seja, pode ser transportado a campo.

A evolução estrutural envolvida na transformação de um vidro em cerâmica, via tratamentos térmicos, pode ser acompanhada pela microscopia Raman, evidenciando detalhadamente a transformação de fase.15-17 A separação de fases cristalinas em vidros, induzida por irradiação com lasers, é outra linha bastante representativa do uso da espectroscopia micro-Raman ao estudo de sistemas vítreos multifásicos.18-20 A grande vantagem neste último caso é a formação das fases cristalinas restrita à superfície dos vidros, com morfologia controlada, que pode ser caracterizada com precisão com a espectroscopia micro-Raman. Por outro lado, a determinação dos mecanismos de separação de fases em vidros é uma possibilidade ainda inexplorada, diante do grande potencial da técnica. Em virtude disto, este trabalho descreve o uso da espectroscopia micro-Raman para a determinação do mecanismo de separação de fases cristalinas em vidros fosfatos.

Os processos de transformação de fase em vidros podem ser divididos em dois grupos principais:21,22 (a) decomposição espinoidal (separação de fase líquido-líquido): neste processo, uma fase simples homogênea pode separar-se em duas ou mais fases de composições diferentes, se a energia livre do sistema com duas ou mais fases distintas for menor do que aquela do sistema com uma fase simples homogênea. Na decomposição espinoidal uma mudança contínua da composição ocorre enquanto a situação de equilíbrio é atingida. A interface é inicialmente muito difusa, mas define-se gradualmente e a segunda fase é distribuída regularmente havendo uma tendência de separar-se com uma estrutura não esférica com grande conectividade; b) cristalização: a cristalização de vidros é controlada basicamente por dois fatores. O primeiro é a taxa de nucleação, isto é, o número de núcleos formados por unidade de volume por unidade de tempo; o segundo é a taxa de crescimento de cristais. Se a cristalização ocorre por núcleos dispersos por toda a matriz do vidro, esta é denominada cristalização de volume. Três tipos básicos de nucleação podem ocorrer durante a cristalização de volume: nucleação homogênea: ocorre arbitrariamente por todo o sistema sem preferência por sítios para a formação dos núcleos; nucleação heterogênea: envolve a formação de núcleos de uma nova fase na superfície de contorno de uma fase já existente. Se a nucleação ocorre no contorno de fase, por exemplo, entre a superfície do vidro e o ar, então a cristalização prossegue desta superfície em direção ao centro da matriz, sendo então denominada de cristalização de superfície; fotonucleação: a presença de pequenas quantidades de íons metálicos, tais como, cobre, ouro ou prata, sob efeito da radiação ultravioleta e tratamento térmico, induz a formação de cristalitos coloidais destes metais nas áreas irradiadas, os quais atuam como agentes de nucleação, promovendo a cristalização do vidro. A Tabela 1 traz uma comparação entre os dois principais processos de transformação de fase em vidros.

O comportamento de um vidro frente à separação de fases cristalinas pode ser estudado por meio de métodos cinéticos baseados, pelo menos em parte, no formalismo desenvolvido por Avrami para reações de estado sólido, utilizando-se dados provenientes de curvas de análise térmica (DTA, DSC).23

O objetivo deste trabalho é demonstrar a potencialidade da espectroscopia micro-Raman na identificação dos processos de transformação de fase em vidros fosfatos com base nas características de cada processo exposto na Tabela 1, bem como a identificação dos estágios sequenciais de separação de cada fase cristalina. As potencialidades da espectroscopia micro-Raman foram evidenciadas a partir do estudo da transformação de fase dos vidros 6Li2O-24TiO2-39CaO-31P2 O5 (LTCP) 17,24,25, 6Li2O-18Nb2O5-43CaO-33P2O 5 (LNCP) 16 e 6Li2O-18V2O3-43CaO-33P2O 5 (LVCP).15

METODOLOGIA

Os vidros LTCP, LNCP e LVCP foram preparados fundindo-se os reagentes, na forma dos seus óxidos (TiO2, Nb2O5, V2O3, P2O5) e carbonatos (Li2CO3 e CaCO3), em cadinho de platina, a 1350 °C por 1 h, utilizando um forno marca EDG, modelo F1700, em atmosfera ambiente. As misturas foram preparadas calculando-se as porcentagens em mol (mol%) dos reagentes, na forma de seus respectivos óxidos, de modo a se obter uma massa final de vidro igual a 25 g. Durante a fusão, o cadinho com o fundido foi agitado várias vezes, para assegurar a homogeneização do fundido. Após o período de refino, o fundido foi retirado rapidamente do forno e vazado sobre molde de grafite e, após alguns segundos, já tendo adquirido rigidez, foi submetido a recozimento nas temperaturas: LTCP = 630 ºC, LNCP = 550 ºC e LVCP = 530 ºC, por 2 h, sob atmosfera ambiente.

Para o estudo do mecanismo de devitrificação, discos de 25 mm de diâmetro e 2 mm de espessura foram submetidos a um patamar de nucleação nas temperaturas: LTCP = 630 ºC, LNCP = 630 ºC e LVCP = 530 ºC, por 20 h. Após resfriamento, as amostras dos diferentes sistemas vítreos foram introduzidas no forno já aquecido na temperatura de devitrificação, Tc: LTCP = 720 ºC, LNCP = 830 ºC e LVCP = 600 ºC, em intervalos de tempo de 2 a 30 min e por 12 h. Os valores de Tc foram obtidos a partir das curvas DTA.

Os espectros micro-Raman foram obtidos no equipamento Renishaw Raman Imaging Microprobe System 3000, acoplado a um microscópio óptico com resolução espacial de 1,0 μm, que permite selecionar a região de interesse da amostra para a obtenção do espectro Raman, laser de He-Ne (λ = 632,8 nm) com uma potência de 8 mW e resolução de 2 cm-1. As regiões analisadas foram selecionadas na superfície das amostras submetidas à devitrificação. Os pontos assinalados nas imagens de microscopia representam as regiões representativas investigadas e não o ponto exato analisado nas amostras.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A transformação de fase no vidro LTCP ocorre pelo processo de decomposição espinoidal.24,25 A Figura 1 mostra a transformação de fase do vidro LTCP, para diferentes tempos de tratamento térmico, onde podemos observar regiões brancas contínuas e difusas na matriz vítrea. A Figura 2 ilustra os espectros Raman das regiões assinaladas na Figura 1.



Como descrito na Introdução, uma das características da decomposição espinoidal é a mudança contínua na composição enquanto a condição de equilíbrio é atingida. Para verificarmos esse efeito, submetemos o vidro LTCP a tratamento térmico a 760 °C por períodos de tempos que variaram entre 2 e 30 min, além da condição de devitrificação adotada que foi de 760 °C por 12 h. Durante os três primeiros minutos de tratamento, podemos observar duas regiões distintas na mesma peça devitrificada (Figura 1). As regiões denominadas como 1, estão relacionadas às frações menos devitrificadas, visto que entre 800 e 1400 cm-1, os espectros Raman (Figura 2, b1 e c1) ainda apresentam um perfil semelhante ao vidro as cast (Figura 2a), caracterizado por uma banda intensa em 931 cm-1, relacionada à presença de grupos TiO6 na rede formadora do vidro.26 O vidro LTCP é constituído de uma rede mista de titânio e fósforo ligados em ponte, prevalecendo uma cadeia tipo piro/ortofosfato, embora possa ser evidenciada também a presença de cadeias metafosfato remanescentes.27 Entretanto, a região entre 100 e 700 cm-1 já exibe bandas associadas às fases cristalinas formadas. As regiões denominadas como 2 (Figura 1) referem-se a frações com a devitrificação mais avançada, visto que os espectros Raman não exibem mais nenhum perfil semelhante ao do vidro (Figura 2, b2 e c2).

Para todos os tempos de tratamento, as bandas na região entre 100 e 700 cm-1 estão relacionadas à presença da fase LiTi2(PO4)3.28 A região do espectro entre 100 e 400 cm-1 está relacionada com os modos externos, translações e vibrações, as quais, em geral, só podem ser atribuídas por meio de um tratamento completo de fator grupo, o que não é o objetivo neste momento. De maneira geral, os compostos de fórmula AxB2(PO4)3 , denominados NASICON, apresentam uma estrutura romboédrica , sobre a qual é feita a grande maioria dos tratamentos de fator grupo29 (onde A = metal alcalino, B = metais de transição, tais como Ti4+, Zr4+, Nb5+, Ge4+ e 0 < x < 4). Porém, alguns compostos de lítio não são romboédricos, o que poderia dificultar ainda mais as atribuições.

Na região denominada 2, os espectros Raman já exibem o perfil da vitrocerâmica final, porém, podemos observar uma evolução no espectro com o tempo de tratamento térmico. Ao passarmos de 2 para 3 min a 760 °C (b.2 c.2, Figura 2), ocorre um aumento na intensidade das bandas em 638, 515 e 400 cm-1, além de uma grande intensificação na banda em 142 cm-1, as quais são atribuídas à fase TiO2 anatásio.30 Comparando-se as diferentes regiões 1 e 2, para um mesmo tempo de tratamento térmico (b.1 ⇔ b.2 ou c.1 ⇔ c.2, Figura 2), nota-se que essas regiões se diferem principalmente na região entre 850 e 1100 cm-1, passando de uma banda larga para uma banda com três ombros bem definidos em 968, 987 e 1008 cm-1 associadas aos modos de estiramento simétrico e assimétrico da ligação P-O, na estrutura tipo NASICON.

Entre 5 min e 12 h de tratamento térmico, não se distinguem essas duas regiões e praticamente não ocorrem mais alterações nos espectros Raman (Figura 2d). A interpretação dos espectros Raman, com base na Figura 1, seguiu a seguinte sequência de evolução: vidro as cast (a), região b.1 (760 °C/2 min), região b.2 (760 °C/2 min), região c.2 (760 °C/3 min) e vitrocerâmica a 760 °C/12 h (Figura 2d).

Em um primeiro momento, situação b.1 (Figura 2), teríamos apenas a separação de fase induzida pelos íons titânio presentes na rede como modificadores, uma vez que não verificamos alterações nas bandas entre 850 e 1100 cm-1, atribuídas ao modo P-O em uma rede tipo Ti-O-P. Na situação b.2 (Figura 2), temos o desdobramento da banda centrada em 931 cm-1 (relacionada à presença de grupos TiO6 na rede formadora do vidro LTCP) revelando que a estrutura vítrea dá lugar, gradualmente, aos arranjos ordenados típicos da fase cristalina LiTi2(PO4)3. As fases tipo NASICON possuem tetraedros PO4, conectados a octaedros TiO6, através de pontes Ti-O-P nos vértices tendo, portanto, sua formação favorecida. Nesta situação, surgem também as bandas em 1047 e 741 cm-1, que são atribuídas, de forma inequívoca, à fase β-Ca2P2O7.31 A formação dessa fase mostra-se favorável, uma vez que a formação de um ortofosfato, como o β-Ca3(PO4)2, requer a quebra das ligações em ponte P-O-P e P-O-Ti das cadeias do vidro, ou mesmo, das cadeias NASICON. A ligação P-O-P, observada no vidro em 765 cm-1, se rearranjaria formando a fase β-Ca2P2O7. Entretanto, não pode ser desconsiderada a possibilidade de ocorrência da fase β-Ca3(PO4)2, visto que suas bandas no espectro Raman são coincidentes com as demais bandas da fase β-Ca2P2O7.

Ao passarmos para a situação c.2 (Figura 2), verificamos uma melhor definição de todas as bandas, principalmente aquelas relacionadas à presença da fase TiO2 anatásio, indicando um processo de rearranjo das fases cristalinas. Observa-se, também, que a banda em 1185 cm-1, verificada nas situações a, b.1, b.2 e c.1 (Figura 2) e atribuída a cadeias metafosfato, não ocorre mais na situação c.2 (Figura 2). Este fato evidencia a fragmentação da cadeia do vidro, à medida que ocorre a transformação de fase via decomposição espinoidal.

Com relação à banda observada em 637 cm-1, que surge com forte intensidade na situação c.2 (Figura 2) e também se manifesta na vitrocerâmica final, esta foi atribuída à ocorrência da fase Li(TiO)PO4,32 em detrimento da fase TiO2 anatásio, em decorrência da reação de estado sólido LiTi2(PO4)3 + 2 β-Ca3(PO4)2→ Li(TiO)PO4 + TiO2 + 3 β-Ca2P2O7. Vale destacar que a fase β-Ca3(PO4)2, estudada por Aza e colaboradores33 por espectroscopia Raman, não apresenta nenhuma banda no intervalo de 650 a 900 cm-1, o mesmo ocorrendo para a fase LiTi2(PO4)3, que não apresenta nenhuma banda no intervalo de 550 a 900 cm-1.28

A espectroscopia micro-Raman possibilitou a identificação das fases LiTi2(PO4)3, β-Ca3(PO4)2, Li(TiO)PO4, TiO2, β-Ca2P2O7 no processo de devitrificação do vidro LTCP. A partir desses resultados e mantendo a proporção estequiométrica entre os componentes do vidro e da vitrocerâmica, podemos propor uma equação para descrever o processo de devitrificação do vidro LTCP, onde x varia em função das condições do tratamento térmico:

Comparando-se os espectros Raman c.2 e d, da Figura 2, podemos observar uma alteração na intensidade relativa das bandas em 638 e 741 cm-1. Como proposto pela Equação 1, o início do processo de devitrificação é caracterizado por x = 0 (situação representada pelo espectro c.2, da Figura 2). Podemos observar pela Equação 1, que para cada incremento de x, temos a formação de 1 mol de Li(TiO)PO4 e 3 mols de β-Ca2P2O7. Consequentemente, com o avanço do processo de devitrificação, temos uma intensificação da banda em 741 cm-1 em relação à banda em 638 cm-1 (representado pelo espectro d da Figura 2). Da mesma maneira, observamos uma intensificação da banda em 142 cm-1 (atribuída ao TiO2 anatásio) em comparação às bandas entre 968-1080 cm-1 atribuídas à fase LiTi2(PO4)3. Tal argumento também se sustenta, ao observamos que ocorre uma intensificação da banda em 1047 cm-1 (atribuída ao β-Ca2P2O7) em relação às bandas da fase NASICON.

As Figuras 3a e 3b ilustram a evolução do processo de transformação de fase no vidro LNCP em função do tempo de tratamento térmico (2 e 5 min, respectivamente, a 830 ºC), onde se constata que a devitrificação tem início na superfície, em sítios de baixa energia, por nucleação heterogênea e o crescimento da fase cristalina ocorre, inicialmente ao longo da superfície, em duas dimensões, seguido por um crescimento em direção ao centro da peça.34 A Figura 3c ilustra a interface vidro-cerâmica formado no vidro LNCP após tratamento térmico a 830 ºC e é representativa dos dois tempos de tratamento térmico. Na Figura 3c estão indicadas as regiões analisadas utilizando-se espectroscopia Raman com resolução espacial,16 e os respectivos espectros Raman estão ilustrados na Figura 3d.




No processo de transformação de fase por cristalização com o crescimento controlado por interface, a concentração de soluto inicial na matriz e a concentração próxima da interface permanecem constantes durante o processo de crescimento.35,36 Na Figura 3c, a região (i) apresenta um espectro Raman igual ao do vidro original (Figura 3d-i), confirmando tratar-se de uma região vítrea. Na região (ii) da Figura 3c, denominada de região nucleada, observamos a ocorrência da banda em 914 cm-1 (típica da ligação Nb-O na estrutura vítrea) e uma banda em 1047 cm-1, atribuída ao [νs(PO32-)] da fase β-Ca2P2O7 (Figura 3d-ii).31 Na interface, região (iii) da Figura 3c, verificamos uma redução da intensidade da banda em 914 cm-1 e a intensificação da banda em 1047 cm-1, além do surgimento de outras duas bandas: uma em 739 cm-1, atribuída ao [νs(POP)] e outra em 487 cm-1, atribuída a [δs(PO32-)], ambas também associadas à fase β-Ca2P2O7 (Figura 3d-iii). Na região (iv) da Figura 3c, correspondente à região cristalizada próxima a interface, não se observa a banda em 914 cm-1, apenas as bandas típicas da fase β-Ca2P2O7 (Figura 3d-iv). Na região (v), Figura 3c, correspondente a uma região cristalizada mais distante da interface, obtém-se um espectro Raman (Figura 3d-v) completamente diferente da região (iv). As bandas em 1016 cm-1 [ν(P-O)], 990 cm-1 [ν(P-O)], 805 cm-1 [ν(Nb-O) curta distância], 462, 376 e 293 cm-1, estas últimas três atribuídas a [δ(O-P-O)+δ(O-Nb-O)], estão associadas aos modos vibracionais da fase α-NbPO5.37,38 Apenas as bandas mais intensas da fase β-Ca2P2O7 (1047 e 739 cm-1) manifestam-se como bandas de baixa intensidade no espectro Raman da região (v). Isso ocorre porque a banda do grupo niobila (Nb=O), em 805 cm-1, é extremamente intensa (Figura 3d-v). Esse resultado mostra que a nucleação tem início com a formação de núcleos da fase β-Ca2P2O7, os quais induzem uma separação de fases na matriz vítrea, levando à formação de uma segunda fase, formada pelo α-NbPO5.

Com o avanço da frente de cristalização, a concentração da interface permanece constante, sendo portanto, uma evidência de que o crescimento é controlado por um processo de interface.

O vidro LVCP apresenta processo de transformação de fase semelhante ao apresentado pelo vidro LNCP. A Figura 4a apresenta a interface vidro/cerâmica, que foi analisada utilizando-se espectroscopia Raman com resolução espacial. Os espectros Raman estão ilustrados na Figura 4b.



A interface vidro/cerâmica observada na Figura 4a é similar à obtida para o vidro LNCP após tratamento térmico a 600 ºC por 5 min. O espectro Raman da região (i) na Figura 4 é similar ao reportado para o vidro LVCP original, caracterizado pela banda centrada em 930 cm-1, atribuída às ligações V-O e a fosfatos de cadeias curtas na rede do vidro.39 O espectro Raman da região (ii) indica um processo de nucleação de fases cristalinas e a manutenção da rede vítrea evidenciada pela banda em 930 cm-1 (Figura 4b-ii). Os espectros Raman das regiões (iii) e (iv) apresentam duas bandas em 880 e 900 cm-1 atribuídas às fases β-Ca2V2O7 (grupos V2O74-) e β-Ca3(VO4)2 (grupos VO43-), respectivamente.40,41 Na região (iii), a banda atribuída aos grupos V2O74- é mais intensa, enquanto na região (iv) a banda atribuída ao grupo VO43- é a mais intensa, indicando uma transição de fase (Figuras 4b, iii e iv, respectivamente). O espectro Raman da vitrocerâmica obtida após 12 h de devitrificação do vidro LVCP indica a banda atribuída ao grupo VO43- como sendo a mais intensa. Tal evolução estrutural, observada na interface vidro/cerâmica que se estende por alguns micrometros, não poderia ser evidenciada por técnicas cuja amostragem exigisse destruição da amostra (como XRD e FTIR).

CONCLUSÃO

A partir de medidas de espectroscopia micro-Raman em pontos distintos da superfície de vidros LTCP, LNCP e LVCP, tratados termicamente por diferentes intervalos de tempo nas temperaturas de devitrificação, obtiveram-se evidências que permitiram determinar os mecanismos de devitrificação. Para o vidro LTCP, com o tempo de tratamento térmico, a estrutura vítrea gradualmente se converte nos arranjos ordenados típicos das fases cristalinas LiTi2(PO4)3, β-Ca2P2O7 e TiO2. Posteriormente, a quebra de ligações em ponte de cadeias residuais do vidro e da própria fase LiTi2(PO4)3 forma as fases β-Ca3(PO4)2 e Li(TiO)PO4. Estas modificações graduais são compatíveis com a separação de fases por decomposição espinoidal, visto que as composições das fases inicialmente separadas variam em função do tempo. Para o vidro LNCP, observa-se uma interface relativamente bem definida entre a região vítrea e a região cristalizada (caracterizada pelas fases α-NbPO5 e β-Ca2P2O7). Nas regiões próximas à interface, observam-se diferenças nas razões de intensidade das bandas atribuídas a estas fases, indicando mudanças nas proporções relativas das fases, porém a composição das mesmas não varia, em função do tempo, com o progresso da devitrificação. Observações semelhantes foram realizadas para o vidro LVCP, de modo que para os vidros LNCP e LVCP o mecanismo proposto é de cristalização controlada por interface.

Tal evolução estrutural, observada na interface vidro/cerâmica que se estende por alguns micrometros, não poderia ser evidenciada por técnicas cuja amostragem exigisse destruição da amostra, evidenciando a potencialidade da espectroscopia micro-Raman como ferramenta analítica para a investigação da variação composicional no processo de transformação de fase em materiais vítreos.

AGRADECIMENTOS

Ao Laboratório de Espectroscopia Molecular (LEM - IQ/USP) pela possibilidade de utilização do espectrômetro micro-Raman e suporte na realização das medidas, à FAPESP e ao CNPq.

Recebido em 17/10/08; aceito em 12/3/09; publicado na web em 10/8/09

  • 1. Alves, O. L.; Gimenez, I. F.; Mazali, I. O.; Química Nova na Escola, Caderno Temático - Materiais, 2001.
  • 2. Turrell, G.; Corset, J., eds.; Raman Microscopy: Developments and Applications, Academic Press: London, 1996.
  • 3. Anderson, M. E.; Mugli, R. Z.; Anal. Chem 1981, 53, 1772.
  • 4. Smith, G. D.; Clark, R. J. H.; J. Archaeol. Sci 2004, 31, 1137.
  • 5. Sala, O.; Quim. Nova 2007, 30, 1773.
  • 6. Sala, O.; Quim. Nova 2007, 30, 2057.
  • 7. Sala, O.; Quim. Nova 2008, 31, 914.
  • 8. Faria, D. L. A.; Souza, M. A.; J. Raman Spectrosc. 1999, 30, 169.
  • 9. Kalasinsky, K. S.; Kalasinsky, V. F.; Spectrochim. Acta A 2005, 61, 1707.
  • 10. Vandenabeele, P.; Castro, K.; Hargreaves, M.; Moens, L.; Madariaga, J. M.; Edwards, H.G. M.; Anal. Chimn. Acta 2007, 588, 108.
  • 11. Maier, M. S.; Faria, D. L. A.; Boschin, M.; Parera, S. D.; Bernal, M. F. D.; Vibrat. Spectrosc. 2007, 44, 182.
  • 12. Faria, D. L. A.; Edwards, H. G. M.; Villar, S .J.; David, A. R.; Anal. Chim. Acta 2004, 503, 223.
  • 13. Colomban, P.; Appl. Phys. A 2004, 79, 167.
  • 14. Gouadec, G.; Colomban, P.; Prog. Crys. Growth Charact. Mater 2007, 53, 1.
  • 15. Mazali, I. O.; Alves, O. L.; J. Braz. Chem. Soc 2004, 15, 464.
  • 16. Mazali, I. O.; Alves, O. L.; J. Mater. Sci. Lett 2001, 20, 2113.
  • 17. Gimenez, I. F.; Mazali, I. O.; Alves, O. L.; J. Phys. Chem. Solids 2001, 62, 1251.
  • 18. Sugita, H.; Tomna, T.; Benino, Y.; Tomatsu, T.; Solid State Commun 2007, 143, 280.
  • 19. Koshiba, K.; Tomna, T.; Benino, Y.; Tomatsu, T.; Appl. Phys. A 2007, 89, 981.
  • 20. Avansi, W.; Mastelaro, V. R.; Andreeta, M. R. B.; J. Non-Cryst. Solids 2008, 354, 279.
  • 21. Strnad, Z.; Glass-Ceramic Materials Elsevier: Amsterdam, 1986.
  • 22. Mazurin, O. V.; Phase Separation in Glass Elsevier: Amsterdam, 1984.
  • 23. Avrami, M.; J. Chem. Phys. 1939, 7, 1103.
  • 24. Hosono, H.; Abe, Y.; J. Non-Cryst. Solids 1995, 190, 185.
  • 25. Yamamoto, K.; Kasuga, T.; Abe, Y.; J. Am. Ceram. Soc. 1997, 80, 822.
  • 26. Brow, R. K.; Tallant, D. R.; Warren, W. L.; McIntyre, A.; Day, D. E; Phys. Chem. Glasses 1997, 38, 300.
  • 27. Krimi, S.; El Jazouli, A.; Rabardel, L.; Couzi, M.; Mansouri, I.; Le Flem, G.; J. Solid State Chem 1993, 102, 400.
  • 28. Tarte, P.; Rulmont, A.; Merckaert-Ansay, C.; Spectrochim. Acta 1986, 42A, 1009.
  • 29. Barj, M.; Lucazeau, G.; Delmas, C. J.; Solid State Chem 1992, 100, 141.
  • 30. Mazali, I. O.; Alves, O. L. J. Phys. Chem. Solids 2005, 66, 37.
  • 31. Waal, D.; Hutter, C.; Mater. Res. Bull 1994, 29, 1129.
  • 32. Bamberger, C. E.; Begun, G.; Cavin, O. B.; J. Solid State Chem 1988, 73, 317.
  • 33. Aza, P. N.; Santos, C.; Pazo, A.; Aza, S.; Cuscó, R.; Artús, L.; Chem. Mater. 1997, 9, 912.
  • 34. Beall, G. H.; MacDowell, J. F.; Chemtech 1988, 11, 673.
  • 35. MacMillan, P. W.; Glass-Ceramics, 2nd ed., Academic: London, 1979.
  • 36. Doremus, R. H.; Glass Science, 2nd ed., Wiley: New York, 1994.
  • 37. El Jazouli, A.; Parent, C.; Dance, J. M.; Le Flem, G.; Hagenmuller, P.; J. Solid State Chem. 1988, 74, 377.
  • 38. El Jazouli, A.; Parent, C.; Viala, J. C.; Le Flem, G.; Hagenmuller, P.; J. Solid State Chem. 1988, 74, 433.
  • 39. Vedeanu, N.; Cozar, O.; Ardelean, I.; Magdas, D. A.; Vib. Spectrosc. 2008, 48, 259.
  • 40. Kristallov, L. V.; Fotiev, A. A.; Tsvetkova, M. P.; Russ J. Inorg. Chem. 1982, 27, 1714.
  • 41. Grzechnik, A.; Chem. Mater. 1998, 10, 1034.
  • *
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Out 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Aceito
      12 Mar 2009
    • Recebido
      17 Out 2008
    Sociedade Brasileira de Química Secretaria Executiva, Av. Prof. Lineu Prestes, 748 - bloco 3 - Superior, 05508-000 São Paulo SP - Brazil, C.P. 26.037 - 05599-970, Tel.: +55 11 3032.2299, Fax: +55 11 3814.3602 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: quimicanova@sbq.org.br