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Atividade discursiva na formação de professores de química: a construção do diálogo coletivo

Discursive activity in the training of teachers chemistry: a collective construction of the dialogue

Resumo

This research was conducted in a research network in teaching science/chemistry, as an alternative for initial and continuing teacher formation. The network is composed by teachers in initial formation, teacher trainers and teachers of basic education of the various areas of science. Assuming the socio-historical perspective, the discourse coming from the social interaction between the collective of teachers, was the object of study. We present an analysis of the interactions of the speech and reflections about the appropriation of scientific/chemical as a social practice mediated by language supplement our results.

network formation teacher; teaching chemistry; collective dialogue


network formation teacher; teaching chemistry; collective dialogue

EDUCAÇÃO

Atividade discursiva na formação de professores de química: a construção do diálogo coletivo

Discursive activity in the training of teachers chemistry: a collective construction of the dialogue

Claudio R. Machado Benite; Karla Ferreira Dias; Lidiane de L. S. Pereira; Anna M. Canavarro Benite* * e-mail: anna@quimica.ufg,br

Instituto de Química, Universidade Federal de Goiás, Campus II - Samambaia, CP 131, 74000-970 Goiânia - GO, Brasil

ABSTRACT

This research was conducted in a research network in teaching science/chemistry, as an alternative for initial and continuing teacher formation. The network is composed by teachers in initial formation, teacher trainers and teachers of basic education of the various areas of science. Assuming the socio-historical perspective, the discourse coming from the social interaction between the collective of teachers, was the object of study. We present an analysis of the interactions of the speech and reflections about the appropriation of scientific/chemical as a social practice mediated by language supplement our results.

Keywords: network formation teacher; teaching chemistry; collective dialogue.

SOBRE A ABORDAGEM DISCURSIVA NA FORMAÇÃO DOCENTE

Na última década os estudos sobre a formação de professores têm centrado sua temática em torno de questões relativas à formação de um profissional crítico-reflexivo, em oposição à concepção do professor-técnico.1

Na perspectiva da reconstrução sociocultural, se enquadra a corrente teórica que concebe o ensino como uma atividade crítica de intencionalidades dirigidas e realizadas ao longo de todo o processo ensino-aprendizagem. O professor, nesse caso:

[...] é considerado um profissional autônomo que reflete criticamente sobre a prática cotidiana para compreender tanto as características do processo de ensino-aprendizagem quanto do contexto em que o ensino ocorre, atuando de maneira reflexiva sobre a sua prática (p. 373).2

Segundo esta corrente teórica do desenvolvimento humano,3 a educação é concebida como uma prática social, na qual o professor é mediador de processos constituídos pela linguagem, processos estes que permitem ao aluno ser sujeito interativo, que "[...] elabora conhecimentos sobre os objetos em processos necessariamente mediados pelo outro [...]" (p.13).3 Portanto, o papel mediador do outro, isto é, do professor não se destaca somente nos processos de apropriação e elaboração de conhecimentos pelo aluno, mas, também, na sua constituição como sujeito/profissional.

Neste cenário, os processos de formação de professores são concebidos como experiências nas quais gêneros de discurso diferentes são colocados em contato.4 A concepção dos processos formativos, enquanto apropriação discursiva, parte da inseparabilidade entre pensamento e linguagem e da relação entre as interações sociais e os contextos sociais e culturais, dando ênfase ao discurso dos atores e em como esses discursos conformam a ação.5

Segundo Andrade,6 os saberes docentes são produzidos num movimento de retomada de conhecimentos que têm fontes diversas, pois, são gerados em instituições diversificadas:

São instâncias formadoras, nas quais os sujeitos já se encontraram anteriormente, como aprendizes, leitores, alunos. Os processos de socialização dos sujeitos professores, nestas instâncias, vão construindo a identidade profissional docente. O saber docente se constitui a partir dos múltiplos discursos enunciados nas instituições de formação, que continua sua constituição ao serem reapropriados, ressignificados e reorganizados pelo professor, em seu discurso docente. O conhecimento científico, lingüístico e educacional sofre assim deslocamentos e necessariamente são estabelecidas justaposições inusitadas. Neste movimento, as fontes discursivas situam-se umas em relação às outras (p. 7).6

É na reorganização destes diversificados saberes que se pode refletir e compreender sobre a prática docente e sobre a possibilidade deste produzir enunciados com sua voz. Portanto, os saberes docentes não são inerentes a estes profissionais, não são inatos, e sim fruto de reconstruções de saberes. O saber docente é movimento ativo e particular de cada sujeito e tão importante quanto a aquisição destes saberes é o estudo dos processos de apropriação destes.

Assumidos estes pressupostos, esta investigação foi desenvolvida ao longo de três disciplinas de estágio curricular supervisionado do curso de licenciatura em Química do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás, campus I. Objetivamos desenvolver a identidade docente de futuros professores de Química e de professores de Ciências/Química em formação continuada, reunindo estes sujeitos em uma rede de pesquisa em formação de professores. É importante compreender como este ambiente de formação, por meio da promoção do discurso, pode contribuir para os processos de reflexão.

O ambiente de formação se constituiu na dinâmica interativa das relações sociais, as quais envolveram a linguagem e o funcionamento interpessoal: uma rede de pesquisas em formação de professores de Ciências/Química. Caracterizaremos a análise das atividades discursivas produzidas por um grupo de professores reunidos nessa rede de pesquisa.

CARACTERIZANDO A INVESTIGAÇÃO

Esta investigação se baseou em um trabalho sistemático junto a professores de Ciências/Química como vem sendo feito, desde 2006, no Laboratório de Pesquisas em Educação em Química e Inclusão - LPEQI, numa forma de aproximação sociedade/escola/ universidade por meio de ações na formação inicial e continuada de professores.

Assumindo o processo de reflexão sobre a prática pedagógica como ação necessária na formação inicial e continuada de professores e intencionando propiciar esses momentos é que se instituiu uma rede de pesquisas em ensino de Ciências/Química, a Rede Goiana Interdisciplinar de Pesquisa em Educação Especial/Inclusiva (RPEI) coordenada pelo LPEQI.7 A instituição desta rede de pesquisa é uma tentativa de compreender o contexto das interações sociais situadas no espaço e no tempo.

Sob a ótica da perspectiva histórico-cultural, a rede se institui como espaço de elaboração de conhecimento, que é concebido como produção material e simbólica e se constitui na dinâmica interativa das relações sociais. Pois, "é na interação com outro que o sujeito se constitui e que se dá a elaboração conceitua l (p. 50)".8,9 Aqui, as interações discursivas são consideradas como constituintes do processo de construção dos significados.10

A RPEI se organiza como um espaço de discussão conceitual entre professores de diferentes áreas e níveis: professores formadores, alunos de pós-graduação/mestrado e doutorado, alunos de graduação (professores em formação inicial) e professores da educação básica, estes atuando como gestores da Educação Especial/Inclusiva no Estado de Goiás.7 É resultado de uma parceria entre a Universidade Federal de Goiás (a perspectiva acadêmica: professores formadores, professores em formação inicial), especificamente o LPEQI; a Secretaria de Educação do Estado de Goiás por meio da Coordenação de Ensino Especial - COEE (a perspectiva política e gestora) e a Associação de Surdos de Goiânia (a perspectiva da comunidade).

A RPEI contava na época com a participação de 25 atores (atualmente são 38), representados por: 5 professores formadores - PF1, PF2, PF3, PF4 e PF5, 5 alunos de pós-graduação/mestrado e doutorado- PG1, PG2, PG3, PG4 e PG5, 4 alunos de graduação - A1, A2, A3, e A4 e 12 professores da Educação Básica - PM1, PM2, PM3, PM4, PM5, PM6, PM7, PM8, PM9, PM10, PM11 e PM12.

Os encontros do grupo acontecem desde o segundo semestre de 2007 até os dias atuais. Parte desses encontros é sediada no LPEQI e parte na COEE, em intervalos quinzenais e são gravados em áudio e vídeo, posteriormente transcritos e analisados. As discussões são orientadas por textos (contribuições atuais das pesquisas científicas na área) previamente selecionados pelos sujeitos da RPEI.

Trata-se de uma atividade de discussão e reflexão dos conteúdos científicos, abordando temas relacionados à educação inclusiva, à educação em Ciências/Química e formação de conceitos científicos/químicos, promovendo a troca de informações e experiências cotidianas através da articulação entre teoria e prática.7

As atividades discursivas se materializaram em meio a discussões de natureza pedagógica e de conteúdo específico relativos às propostas do cronograma de atividades elaborado conjuntamente pelos integrantes da RPEI. Assim, foram etapas de realização desta investigação: integração da tríade de professores que compõem a pesquisa; planejamento e eleição pela equipe de professores dos conceitos a serem abordados nas discussões e, elaboração dos instrumentos de avaliação - reuniões coletivas gravadas em áudio e vídeo para registrar o processo de formação de professores de Ciências/Química em ambiente de rede de pesquisa e avaliação da construção coletiva de conhecimento pedagógico e de conteúdos específicos.

A partir da análise de um dos encontros de interação entre os atores da RPEI, examinamos as características dialógicas na construção discursiva deste ambiente e exploramos características da atividade discursiva na formação de professores.

A PRODUÇÃO DO DIÁLOGO COLETIVO

A constituição discursiva de uma sociedade não emana de um livre jogo de ideias nas cabeças das pessoas, mas de uma prática social que está firmemente enraizada em estruturas sociais materiais, concretas, orientando-se para elas (p. 92).11

Conceber o discurso como prática social ao invés de atividade humana individual implica basicamente em assumir o discurso como modo de ação, de forma que é possível investigar as atividades discursivas como formas materiais de produção de significados.

Cabe, então, caracterizar que entendemos significado por sua relação com o sentido. Segundo Vygotski:

Uma palavra adquire o seu sentido no contexto em que surge [...]. O significado permanece estável ao longo de todas as alterações de sentido. O significado dicionarizado de uma palavra nada mais é do que uma pedra no edifício do sentido, não passa de uma potencialidade que se realiza de formas diversas na fala (p. 125).12

Nesta investigação admitimos as atividades discursivas como sendo constituídas pelo diálogo, sendo "este inserido em uma situação de comunicação face a face" (p. 123).13

Para se compreender a construção social de significados pelos participantes da RPEI, foi feita a análise da atividade discursiva de modo a identificar os processos por meio dos quais os participantes se apropriam de linguagens sociais. Neste trabalho por razões de espaço, abordaremos os episódios de somente um encontro que versou sobre a relação empírico-teórica no ensino de Ciências/Química. O referencial teórico utilizado para suporte da reunião foi o capítulo III da tese de doutorado de Echeverría,14 intitulado "A problemática conceitual no ensino de Ciências".

Nesse encontro foram contabilizados 314 turnos de discurso com um total de 8 participantes, sendo um professor formador (PF3), um aluno de mestrado, um aluno de doutorado (PG3), um aluno especial do mestrado (PM13), um aluno de (PG5)graduação (AG3) e cinco professores do ensino médio (PM1, PM2, PM3, PM4 e PM7).

Se para a teoria sócio-histórica a fala é ferramenta cultural primordial para o desenvolvimento humano, defendemos que em ambiente de rede é o principal instrumento para a organização das atividades por estruturar a construção do pensamento. Deste modo, apresentamos a organização do processo discursivo, quantidade de turno por categoria de participantes na Figura1 (em porcentagem de turnos).


A Tabela 1 apresenta uma breve descrição da reunião investigada, na qual apresentamos os significados que se esperava produzir.

Esta reunião teve como proposta promover uma discussão sobre a relação empírico-teórica no ensino de Ciências, focando promover a significação dos três níveis de classificação do objeto do conhecimento científico: o nível descritivo funcional/fenomenológico, o representacional e o molecular ou explanatório/teórico.

O mapa de atividades permite uma identificação panorâmica dos significados produzidos relevantes que foram caracterizados por turnos do discurso e, também, identificar as interligações entre os diferentes sujeitos.

Muitos dos significados produzidos para as classificações do conhecimento científico e suas interrelações só foram possíveis em virtude do ambiente de formação em rede. Isto não significa, de forma alguma, que estejamos atribuindo o significado à organização do ambiente. Mas, sua estrutura é um meio de expressão que favoreceu estabelecer relações entre as representações fenomenológicas e teóricas das ciências. Quando se produz a contra palavra tem que se interpretar a locução anterior e essa interpretação tem que ser negociada e ancorada nos conhecimentos que os sujeitos possuem.

Consideramos que o discurso é palavra em movimento e, segundo Orlandi,15 estudar o discurso é observar o homem falando. Dessa forma, foi preciso considerar os processos e as condições de produção do discurso pela análise da relação estabelecida entre os sujeitos que falam e a situação onde se produz o dizer. Fizemos uma tentativa de encontrar regularidades na produção do discurso, relacionando-o com sua exterioridade.

Os conceitos científicos são centrais no ensino de Ciências/Química. Com eles são expressas explicações, descritas propriedades e feitas previsões para os fenômenos. Tal centralidade está reconhecida nas Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, quando estabelecem como uma das metas de ensino nessa área o saber utilizar conceitos científicos.16 Defendemos, corroborando com resultados de Teixeira17 que, se temos uma teorização sólida do que são os conceitos científicos, teremos mais subsídios para elaborar atividades que promovam o seu aprendizado. Desta forma, este é um tema de grande relevância e insistimos que deve fazer parte da formação inicial e continuada de professores de Ciências/Química e, por isso, o tema foi levado para a RPEI.

Apresentamos um extrato do início da reunião onde a enunciação de um sujeito da pesquisa parece retratar a angústia de muitos educadores em Ciências/Química frente a tal temática:

1. PM1: "Oi professores, e aí, tudo bem com vocês? Foi publicado em um jornal daqui da capital um artigo sobre como é que estão as condições de aprendizagem de ciências [...] o aluno não reconhecem as ciências/química, porque eles estão sabendo cada vez menos sobre os conceitos que estudam [...]"

2. PF3: "Olá PM1 e a todos vocês. Tudo ótimo estava ansioso por nosso encontro. É, infelizmente há um esvaziamento das salas nestas disciplinas [...]"

3. PM7: "Como já dizia o poeta eles odeiam química".

Ao considerarmos esse diálogo, vale ressaltar que é possível nos questionar sobre suas condições de produção. O contexto imediato se refere à reunião da RPEI, onde os sujeitos são convocados a refletir sobre sua profissão. O contexto amplo, por sua vez, se refere à inclusão do contexto histórico e ideológico. E, neste caso evoca os elementos que derivam de nossa sociedade, onde perdura uma visão deformada da ciência.18 Ainda perdura nas aulas de química a transmissão de uma ciência descontextualizada, que desconhece sua relação com o avanço tecnológico desta sociedade e seus impactos sociais e na natureza.

No turno 2, quando PF3 se refere ao esvaziamento das aulas de Ciências/Química revela na tessitura do discurso uma das deformações que nossa sociedade impõe à ciência, isto é, uma concepção elitista da Ciência/Química que afasta grande maioria dos jovens dessa sala de aula. Se os cientistas são gênios isolados, esse é um domínio para minorias superdotadas.

De igual modo, a memória quando relacionada com a produção do discurso pode ser tratada como o interdiscurso e definida como aquilo que fala antes, noutro lugar, independentemente, isto é, a memória discursiva. Em nosso caso, tudo aquilo que já se disse sobre o desinteresse dos jovens por ciências e o que isso significou à época e está significando aqui. A atmosfera do já dito por alguém em algum lugar tem efeito nessa produção discursiva, tal como disse o poeta a uma geração de jovens para os quais sua letra fez e ainda faz sentido.

As interações produzidas pelos atores da RPEI formaram nossa base de dados e, dessa base selecionamos o seguinte episódio para análise:

15. PG3: "PM7, só situando melhor, o que a gente está abordando aqui cai [...] justamente no que o senhor está falando [...] do ensino e aprendizagem em ciências. É! Até essa parte que eu falei para o PF3, pra gente voltar ao que estava lendo na reunião passada. A autora fala que um dos problemas do ensino de ciências, da aprendizagem e do ensino de ciências, é a falta de compreensão dos três níveis de classificação do objeto do conhecimento [...] ficando apenas no que ela chama de descritivo funcional".

16. PM3: "Tá! Um momento primeiro: tudo bem com vocês?"

17. AG3: "Bem interessante. Isso está no primeiro parágrafo".

18. PG5: "O descritivo funcional é o fenômeno, ou o que o aluno consegue enxergar sobre. O representacional, a questão das fórmulas e equações, no caso da química. E o nível molecular ou explanatório que é o conceitual. Aí ela vem falando que alunos e mesmo os professores, que deveriam fazer esse exercício, não querem sair desse nível fenomenológico, desse concreto que é a aparência do fenômeno que é [...] simplesmente, uma descrição de algum aspecto do fenômeno e ir até o conceito em si. Um dos problemas que a autora trata é esse. Eu tinha falado para o PF3 pra gente voltar pra esclarecer direitinho, porque na reunião passada paramos nesse momento da reflexão".

19. PM4: "É foi o que perguntei, agora entendi!".

20. PM13: "Eu entendi o contrário, eu entendi assim: que o primeiro nível de acesso ao objeto científico é o conceitual, segundo [...] o molecular, aí apreendemos o fenômeno".

21. PG3: " PF3 poderia dar uns exemplos específicos de objetos científicos da química e PG5 que é bióloga, também. Já que temos diferentes representantes das ciências, poderíamos fazer este exercício".

22. PF3: "A AG3, nossa futura professora de química também pode participar mais".

23. PG5: "É AG3".

24. PF3: "Então, por exemplo, com relação ao nível descritivo funcional que é um nível, assim... de abordagem macroscópica, a gente pode citar como exemplo... as passagens de estados físicos. Como o nível descritivo funcional ele se remete ao aspecto fenomenológico do objeto, quando você identifica a passagem de estado físico: gelo, água no estado de agregação sólido passando para o estado líquido, nós temos uma abordagem que nos remete a operar na dimensão do concreto, do sensível que consegue ver, consegue identificar visualmente... gelo derretendo, passando para água no estado líquido.

Vamos à questão microscópica, ou segundo a autora, molecular explanatória: quando a água no estado sólido passa para o estado líquido... ela absorve energia na forma de calor... Por que acontece a passagem de estado físico?"Devido à absorção de energia em forma de calor. Porém, como isso acontece? Acontece porque... há absorção de energia, a estrutura que está organizada... seu conjunto de átomos vibra mais intensamente por causa da energia absorvida, com o aumento das vibrações, elas começam... tendem a... se afastarem uma das outras devido à energia acumulada e, automaticamente, esse afastamento produz desorganização da ordenação da estrutura e culmina na passagem de estado físico. Este é o nível mais abstrato que encerra o conceito propriamente dito.

Já o nível representacional, este diz respeito aos signos da linguagem química, então, por exemplo: como é que eu represento o gelo derretendo? A letra H, o número dois subscrito e a letra O, entre parênteses "s" de sólido, uma seta com um triângulo em cima representando a absorção de calor e do outro lado da seta, H2O, e entre parênteses, a letra "l" de líquido. Então, essa é a forma de representar, seja ela por equação matemática, seja ela por uma reação química, como no caso que citei e assim por diante.

25. PM13: "Ah, ficou mais compreensível agora. Obrigada PF3, nada como um especialista falando. Bem, eu gostaria de voltar ao que a autora levanta: que alunos e professores não estão dispostos a migrar do nível fenomenológico".

26. AG3: "Então, não querem entender de um conceito, não querem entender representações, basta acessar a dimensão... como o autor Mortimer, num artigo que eu li da Química Nova, diz a dimensão concreta do objeto científico. Esse é um problema mesmo da aprendizagem e do ensino de ciências. Porque, se você não conseguir chegar até o nível conceitual, então, você fica com uma visão o quê? Superficial! Você não sai daquele senso comum, você só vai conseguir o quê? Simplesmente, fazer com que seus alunos e você possam descrever aquilo que lhes é sensível e não compreender o que está acontecendo. Aí, voltando ao exemplo do fazer sabão: não adianta saber como fazer o sabão se não entender as propriedades do sabão, as reações que estão envolvidas na fabricação do sabão, a gente só vai aprender fazer o quê? Fazer o sabão, sem saber nada".

27. PM3:"É, me parece que este é um conhecimento só utilitário".

28. AG3: "Só!".

29. PF3: "Na verdade, qual é a principal função do professor de ciências, ou seja, nossa? Não é tentar aproximar a dimensão concreta do conhecimento científico, neste caso a produção do sabão, da dimensão teórica? Aí, onde o professor esbarra? Onde fica a dificuldade? Na questão da abstração!".

30. PM3: "Abstrair é uma coisa muito complexa, você sair do concreto, do sensível, e acessar os modelos da ciência que são eles próprios construídos... Isso é uma coisa muito complicada".

31. PM2: "Então, a tendência mesmo da educação de ciências, hoje, é permanecer no nível fenomenológico. É a pessoa ver o fenômeno acontecer porque aquilo ali concreto é mais fácil, e fica naquilo ali mesmo e a complexidade, que é o real trabalho do professor né, nada! Pegar todo aquele concreto e levar para o abstrato, né! Dar condições que o aluno visualize aquilo de uma forma abstrata é muito complexo e depende do professor. Já que o aluno é apresentado à ciência, segundo Driver, num artigo da Química Nova na Escola, por um membro mais experiente que é o professor, se ele não fizer o aluno não vai chegar no nível conceitual e no nível representacional".

32. PM7: "Hoje, a geração da internet quer acesso imediato à informação, mas com o conhecimento não é assim. Para eles é muito mais fácil digitar lá e aparecer tudo pronto já resolvido. Isso eu acho que é muito negativo".

33. AG3: "Ah, claro que sim"!

34. PG3: "Bem gente até agora só recuperamos o que já tinha sido dito em nosso último encontro. Agora, vamos ao texto, à relação empírico-teórica no ensino de ciências".

35. PM2:"E é nesse sentido que... no que PF3 estava falando, a gente vai pensar no papel do professor mesmo. Porque se nós não compreendemos os três níveis, não ensinaremos o conceito científico e correremos o risco de ficarmos no senso comum".

36. PF3: "Mas a tendência é essa. Porque é mais fácil. Lembra? A gente comentou até na... penúltima reunião, que a gente pode trabalhar o mesmo conceito tanto no sexto ano quanto no terceiro ano do ensino médio ou numa turma de ensino superior e tudo depende de quê? Depende da abordagem que daremos ao assunto. Só que quanto mais complexa a abordagem, mais difícil de ser feita".

Os turnos 1, 2, 15 e 16 demonstram a receptividade dos atores da rede, já os turnos 3 e 15 a demarcação temática e a acentuação revelando a ocorrência do dialogismo e da polifonia propostos por Bakthin.13 Consideramos as formas regulares pelas quais se configuram o discurso, e também a dimensão enunciativa, tal como o dialogismo, as formas de figuração dos sujeitos, bem como os processos referenciais de construção do discurso, isto é, as questões gramaticais e lexicais.

Os turnos 22 e 23 convocam ao diálogo. Convocar ao diálogo é convocar a réplica e apoiamo-nos em Bakhtin para afirmar que "compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra" (p. 132).13

Por sua vez, no turno 25, o discurso citado "especialista" imprime um caráter de autoridade à enunciação. Pensado como práxis (sujeitos históricos em ação), o discurso é o lugar onde sentidos se produzem e onde os sujeitos atuam. Desta forma, este turno nos remete ao papel da universidade e este ultrapassa as relações sociais, precisando ser compreendido em sua concretude histórica: entidade produtora de conhecimento científico.

O reconhecimento da função da universidade também localiza o discurso produzido por ela: embora os vários participantes do diálogo tenham supostamente o mesmo direito à palavra, um destes (a universidade) tem o direito de iniciar, orientar, dirigir e concluir as interações, revelando a assimetria na produção do discurso.

O discurso dos atores revela a existência de outras vozes, tal como a enunciação 26 que faz referência às pesquisas de Mortimer,10,19 e a enunciação 31 que faz referência à Driver et al.20 Esta presença nos permite observar como um enunciado construído está sempre relacionado com enunciados já produzidos. Segundo Bakthin,13 todo discurso é permeado pelo discurso do outro.

O processo de significação conduzido pelo professor formador no turno 24 é marcado pela demarcação do tema. Por sua vez, a produção do discurso envolve o planejamento de ações orientadas para um fim, tal como o enunciado 35 quando PM2 afirma que "se nós não compreendemos os três níveis não ensinamos o conceito científico e corremos o risco de ficarmos senso comum". Também, implica a projeção e a identificação de significados e sentidos à materialidade. A atividade discursiva revela as condições específicas em que esta ocorre, esses professores procuram uma possibilidade de formação continuada como projeção da necessidade de ir além das barreiras impostas pela prática.

Os turnos 15 e 18 enunciados pelos alunos de pós-graduação apresentam questionamentos com a função principal de elicitar ideias sobre o assunto. No turno 15, antes de introduzir a discussão do interesse do grupo, PG3 forneceu o contexto situacional no qual o grupo estava inserido. Esta descrição compreendeu diferentes funções: localizou o grupo, expôs o argumento do texto de apoio e introduziu um tema à discussão. Tudo isto num único enunciado, numa única locução, o que sugere que as locuções desse episódio foram de caráter condensado.

No turno 18, PG5 também enunciou construção condensada para situar os participantes: colocando em evidência os níveis do conhecimento científico, marcando as diferenças entre esses níveis e restringiu à discussão à exemplificação dos níveis do conhecimento científico. Esta restrição foi endereçada a convocação de PF3 à contra palavra para abrir a negociação de significados como requisito estratégico para obter as enunciações sobre a temática.

Este diálogo é um exemplo de gênero de discurso que inventaria as concepções dos sujeitos quanto à formalização do conceito. Neste caso particular, parece-nos revelar que os professores compartilhavam de uma mesma concepção de que o nível fenomenológico associado ao aprendizado de um conceito químico não pode estar desvinculado dos níveis representacional e conceitual. Aprender um conceito químico não implica em aprender sua definição.

As convergências do coletivo expressas, particularmente, nos turnos 25, 26, 27, 28, 29 e 30 nos levam a um consenso quanto ao porquê de professores de Ciências/Química apresentarem os conceitos científicos/químicos como rótulos que nomeiam conjuntos de atributos ou propriedades perceptíveis encontrados no mundo.

O turno 30 refere-se às dificuldades de se relacionar a dimensão concreta com a teórica do objeto científico, o emprego da conjunção "mas" expressou a adversidade da situação.

Já os turnos 21 e 36 apresentam função elicitativa, porém convocam os atores da rede a completar sua exposição sobre o nível fenomenológico que aqui é compreendido como aquilo que o aluno pode ver, ou seja, como o conhecimento sensível (o qual eu acesso pelos sentidos) ou concreto e o conceito em si podem ser compreendidos a partir de uma interação empírico-teórica.

As atividades discursivas enunciadas em ambientes como a RPEI são complexas por dois motivos: o primeiro considera suas bases estruturais, ou seja, o número de participantes e os diferentes papéis sociais exercidos por estes participantes; o segundo, seus aspectos dinâmicos, ou seja, o fluxo de ocorrência de episódios interativos. Os episódios como eventos discursivos podem ser definidos aqui como pequenos fragmentos do discurso constituídos por um ou mais enunciados que contêm uma sequência temática capaz de permitir a identificação dos objetos e conceitos inscritos no discurso.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Formar professores de Ciências/Química em rede significou uma alternativa para a instituição de espaços onde professores possam refletir e analisar suas próprias condições de trabalho e vivências, com a possibilidade de estabelecerem relações entre a sua ação pedagógica e os pressupostos teóricos que estão subjacentes a ela.

Nesta investigação foi possível caracterizar que o processo de elaboração de conhecimentos é concebido como produção material e simbólica. Também, considerar o processo de apropriação do conhecimento científico/químico como uma prática social mediada pela linguagem, isto é, dialógica e mediada pelo outro. Resumidamente, concluímos com base na considerável experiência prática dos professores do ensino básico somada ao apoio teórico da Universidade, que esses aspectos são essenciais para a análise do processo de elaboração/compreensão de conceitos, pois é o diálogo o principal modo de ação pedagógica do professor e de elaboração de conhecimentos.

Entendemos que a participação de professores em grupos que possibilitam um diálogo com sua realidade pode oferecer momentos de recuperação da prática para a iniciação de uma reflexão sobre esta, contribuindo para o exercício da metacognição sobre suas ações ao discutir criticamente sobre o que sabem, o que sentem, o que fazem e porque o fazem.

As interações discursivas proporcionaram a oportunidade dos professores utilizarem sua prática para construção de conhecimento na forma de análise crítica da reflexão sobre a realidade. Em ambientes de rede o diálogo coletivo é central no processo de formação, pois contribui para a elaboração de significados oriundos das vozes representadas em cada enunciação. Ser sujeito na produção de diálogo pressupõe o posicionamento e reposicionamento conceitual frente ao outro.

Finalmente, parece que esta estratégia permitiu conhecer sobre a identidade docente coletiva dos sujeitos envolvidos na busca de mais uma alternativa para a reflexão sobre o exercício da profissão docente.

AGRADECIMENTOS

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás - FAPEG, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPQ pelo fomento concedido ao desenvolvimento desta pesquisa e à Secretaria de Educação do Estado de Goiás - SEE-GO.

Recebido em 31/8/10; aceito em 14/2/11; publicado na web em 15/4/11

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Set 2011
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Aceito
      14 Fev 2011
    • Recebido
      31 Ago 2010
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