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Caracterização através de análise química da escultura portuguesa sobre madeira de produção erudita e de produção popular da época barroca

Characterization by chemical analysis of portuguese baroque polychrome wooden sculptures with erudite and popular features

Resumo

Making use of several analytical techniques, four erudite and four popular Portuguese baroque wooden sculptures were studied. The materials and techniques employed were identified and the relationship between their artistic quality and the materials used was investigated. In general, the pigments were common at the time, but one pigment discovered in the beginning of the 18th century and two rare arsenic pigments were also identified. In popular sculptures cost-saving was detected, particularly concerning the gold leaf. Regarding some technical procedures identified, recommendations found in historical documents did not seem to have been entirely followed, neither in erudite nor in popular sculptures.

polychrome sculpture; pigments; gilding


polychrome sculpture; pigments; gilding

ARTIGO

Caracterização através de análise química da escultura portuguesa sobre madeira de produção erudita e de produção popular da época barroca

Characterization by chemical analysis of portuguese baroque polychrome wooden sculptures with erudite and popular features

Carolina BarataI,* * e-mail: cbarata@porto.ucp.pt ; Jorgelina CarballoI; António João CruzII; João CoroadoIII; Maria Eduarda AraújoIIV; Maria Helena MendonçaIV

IDepartamento de Arte e Restauro, Universidade Católica Portuguesa, Rua Diogo Botelho, 1327, 4169-005 Porto / Centro de Investigação em Ciências e Tecnologias das Artes, Rua Diogo Botelho, 1327, 4169-005 Porto, Portugal

IIEscola Superior de Tecnologia de Tomar, Instituto Politécnico de Tomar, 2300-313 Tomar / Centro de Investigação em Ciências e Tecnologias das Artes, Rua Diogo Botelho, 1327, 4169-005 Porto, Portugal

IIIEscola Superior de Tecnologia de Tomar, Instituto Politécnico de Tomar, 2300-313 Tomar / Centro de Investigação em Geobiociências, Geotecnologias e Geoengenharias, Universidade de Aveiro, Portugal

IVDepartamento de Química e Bioquímica, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, 1749-016 Lisboa, Portugal

ABSTRACT

Making use of several analytical techniques, four erudite and four popular Portuguese baroque wooden sculptures were studied. The materials and techniques employed were identified and the relationship between their artistic quality and the materials used was investigated. In general, the pigments were common at the time, but one pigment discovered in the beginning of the 18th century and two rare arsenic pigments were also identified. In popular sculptures cost-saving was detected, particularly concerning the gold leaf. Regarding some technical procedures identified, recommendations found in historical documents did not seem to have been entirely followed, neither in erudite nor in popular sculptures.

Keywords: polychrome sculpture; pigments; gilding.

INTRODUÇÃO

A escultura barroca sobre madeira policromada constitui uma importante manifestação artística dos países ibero-americanos, como Portugal, Espanha e Brasil.1 O reconhecimento dessa importância tem-se vindo a evidenciar, nomeadamente através de publicações recentes surgidas fora daquelas áreas geográficas. Para o estudo dessas obras é necessária a colaboração de diferentes disciplinas como história da arte, iconografia, conservação e restauro, química, física e engenharia de materiais. As últimas são fundamentais para o conhecimento dos materiais que constituem as esculturas. O modo como esses materiais foram usados condiciona as características expressivas e estéticas das obras.

Sobre a escultura barroca em madeira policromada feita em Portugal é muito reduzida a informação disponível a respeito de materiais e de técnicas. Além disso, os poucos estudos publicados que incluem informação obtida através de análise química2 incidem apenas sobre peças isoladas ou pequenos conjuntos, em qualquer dos casos sempre com características eruditas. Por essa razão, os dados reunidos com base nos aspectos materiais ainda não permitem a caracterização de oficinas, a definição de características regionais e respectivos processos evolutivos, a compreensão da relação entre as obras e o contexto social, económico e cultural em que surgiram as encomendas ou a relação entre as esculturas produzidas em Portugal e no Brasil.

Com o objectivo de contribuir para o esclarecimento de algumas destas questões, foi desenvolvido um estudo que pretendeu identificar os materiais e caracterizar as técnicas usadas na policromia de um conjunto de esculturas datáveis dos séculos XVII e XVIII da região Norte de Portugal. Este conjunto subdivide-se em dois grupos: o primeiro com características eruditas e o segundo com características populares. Com base nos resultados obtidos, alguns dos quais já foram objecto de tratamento preliminar,3 pretendeu-se averiguar a relação entre a qualidade artística das obras, que aqui se relacionou com o trabalho de escultura da madeira, e os materiais e as técnicas aplicadas na pintura dessa mesma madeira.

PARTE EXPERIMENTAL

Foram estudadas 8 esculturas produzidas no Norte de Portugal, que foram objecto de tratamento de conservação e restauro no Departamento de Arte e Restauro da Universidade Católica do Porto (Tabela 1): 4 com características eruditas (E1-SD a E4-SA) e as restantes 4 com características populares (P1-SE a P4-SCV).

Procedeu-se à identificação dos materiais constituintes das camadas de policromia, designadamente pigmentos e cargas. Para o efeito, começou-se por efectuar a análise elementar não invasiva por espectrometria de fluorescência de raios X dispersiva de energia (EDXRF), utilizando um espectrómetro portátil constituído por um tubo de raios X com ânodo de Ag e janela de Be, um detector de Si-PIN da marca Amptek, termoelectricamente refrigerado, com uma área efectiva de 7 mm2, e um sistema multicanal MCA Pocket 8000A da mesma marca. Foi empregue a tensão de 25 kV, corrente de 9 mA e tempo de aquisição de 100 s para todos os espectros. A resolução é de 180 eV.

Nos locais analisados por EDXRF foram recolhidas amostras posteriormente incluídas em resina acrílica Tecnovit 4004 para observação por microscopia óptica de reflexão (OM) com luz polarizada e com luz não polarizada. Foi usado um microscópio binocular da marca Olympus, modelo BX41, com sistema óptico corrigido ao infinito, equipado com uma câmara fotográfica digital da mesma marca, modelo C-4040 Zoom. O erro do micrómetro ocular do microscópio é de 5 µm. Algumas destas amostras foram analisadas por microscopia electrónica de varrimento com espectrometria de raios X dispersiva de energia (SEM-EDS). Foi usado um microscópio SU-70 UHR Schottky FE-SEM com canhão com emissão por efeito de campo (FEG), potencial de aceleração de 500 V a 30 kV, resolução de 15 Å e modo de imagem por electrões secundários e electrões retrodifundidos.

A confirmação de um pigmento inesperado foi efectuada com recurso a difractometria de raios (XRD). Para o efeito utilizou-se um difractómetro Philips PW 1730 usando a radiação Kα do Cu e um monocromador de grafite. O difractograma foi obtido entre 15 e 80º (ângulo 2θ) com incrementos de 0.02º a cada 0,4 s. A identificação das fases foi realizada com o recurso à base de dados do International Center for Diffraction Data (ICDD).

Para a identificação de cargas foi também usada a espectroscopia de infravermelho com transformada de Fourier (FTIR). Os espectros, com acumulação de 100 varrimentos, foram obtidos num espectrómetro da marca Mattson Sattelite, entre 4000 e 450 cm-1, para pastilhas de KBr e com resolução de 2 cm-1. A interpretação fez-se com base em espectros obtidos com padrões preparados propositadamente para o efeito, a partir de amostras de carbonato de cálcio, sulfato de cálcio di-hidratado e "gesso estuque" (um material disponível no mercado que é uma mistura da forma hemi-hidratada e da forma anidra solúvel do sulfato de cálcio). Para se testar a presença de carbonatos nas camadas de preparação recorreu-se igualmente a testes microquímicos que envolveram a aplicação de solução de HNO3 5%, à gota, sobre os cortes estratigráficos e acompanhamento da reacção através de OM. Considerou-se que a dissolução acompanhada de efervescência dá conta da presença de carbonatos.4

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados obtidos são apresentados e discutidos de acordo com a seguinte sequência de camadas ou motivos: camada de preparação, áreas de vestes e estofado, folha de ouro, camada de bolo, áreas de carnação e áreas de cabelo e de barba.

Camada de preparação

As esculturas eruditas e as populares revelaram características semelhantes no que respeita à composição da camada de preparação aplicada sobre a madeira e ao respectivo número de estratos. O principal constituinte é o sulfato de cálcio, o que coincide com estudos científicos publicados anteriormente e a documentação histórica conhecida. Segundo essas fontes, a preparação deveria ser aplicada em vários estratos, até um número ideal de 10, com diferentes propriedades. Os primeiros estratos deveriam ser de gesso comum ou gesso grosso e os últimos de gesso mate ou gesso fino, que correspondem essencialmente a sulfato de cálcio anidro (anidrite) e a sulfato de cálcio di-hidratado (gesso), respectivamente.5,6 Nas amostras analisadas por FTIR foi identificado gesso em todas as obras, mas a anidrite apenas foi detectada nas esculturas E4-SA e P4-SCV (Tabela 2).

No que diz respeito ao número de estratos, por OM apenas foram detectados 1 ou 2 em cada obra. Nos casos em que, além do gesso, também foi detectada anidrite não foi observada qualquer diferenciação granulométrica. Com o uso de SEM-EDS foi possível distinguir mais alguns estratos nalgumas obras (Tabela 2). Ainda que estes resultados ponham em evidência algumas das limitações da OM (o método que geralmente é usado para observação de sequências estratigráficas), o facto de o número de estratos detectados não ultrapassar 3 sugere que não foram seguidas as recomendações dos tratados. No entanto, deverá considerar-se a possibilidade de os cortes nem sempre atingirem as camadas mais internas e de a sequência poder estar incompleta.

Misturadas com o sulfato de cálcio, mas sem que seja evidente qualquer relação com a qualidade das esculturas, foram detectadas diversas substâncias: cré, minerais argilosos, compostos de ferro e branco de chumbo (Tabela 2). O branco de chumbo, devido à sua origem artificial, é certamente uma adição intencional à preparação que ainda não tinha sido detectada noutros estudos. Devido à opacidade conferida pelo branco de chumbo, a sua presença poderá resultar da intenção de diminuir o número de estratos, tal como é mencionado num tratado espanhol de meados do século XVII, o que ajuda a preservar os pormenores do entalhe da madeira.6 Essa adição pode ainda estar relacionada com o tipo de preparação indicada para as carnações mate nesse mesmo tratado ou com a intenção de melhorar a aparência e a resistência do gesso quando este não é de boa qualidade.7

Quanto às restantes substâncias, algumas das quais responsáveis pela cor acastanhada da camada de preparação, a sua presença pode não ser intencional, devendo-se apenas ao uso de gesso de fraca qualidade, como, de modo geral, é o gesso de origem portuguesa.8 Nesse caso, o gesso de cor branca observado em cerca de metade das obras pode sugerir a importação do material usado nessas esculturas. No entanto, o aluminossilicato detectado por SEM-EDS na escultura E2-SFX (provavelmente caulinite, considerando a razão atómica Si/Al próxima de 1), subjacente à carnação, não parece ser impureza do gesso mas resultar de um uso intencional, dado que surge apenas no estrato mais superficial da preparação, onde, dada a sua reduzida granulometria, contribui para a obtenção de uma superfície mais polida.

Áreas de vestes e estofado

Sete das obras apresentam extensas áreas de vestes ricamente decoradas através da técnica do esgrafitado, que envolve a aplicação de tinta sobre folha de ouro e a sua raspagem parcial, depois de seca, deixando à vista o ouro nos locais correspondentes aos motivos ou padrões dourados. Sobre estes motivos foram ainda aplicadas marcas de punção. De acordo com os tratados, a pintura sobre a folha de ouro iniciava-se com uma camada intermédia de branco de chumbo que, porém, só foi detectada numa das esculturas (E1-SD). Neste caso, o branco de chumbo surge misturado com algum negro de carbono, possivelmente devido à cor preta das vestes, aplicada por cima. No entanto, na escultura P4-SCV, a única onde não há folha de ouro, na zona do cendal foi detectada uma camada análoga de branco de chumbo, entre a preparação e a camada superficial.

Por EDXRF (Tabela 3), OM e SEM-EDS identificaram-se os seguintes pigmentos nas áreas de vestes: branco de chumbo, azurite, azul da Prússia, verde com cobre (resinato de cobre ou verdigris), vermelhão, laca vermelha, mínio, realgar e negro de carbono (Tabela 4). Para essa identificação consideraram-se os elementos químicos detectados e as características físicas dos pigmentos, designadamente a cor, o tamanho e a forma das partículas. São pigmentos referidos nos documentos da época, com a excepção do realgar (As4S4), detectado na dalmática da escultura P1-SE (Figura 1), que até hoje não foi identificado em nenhuma obra portuguesa anterior ao século XIX.9 A presença deste pigmento foi confirmada por XRD de uma amostra removida dessa camada, onde também foi identificado duranusite (As4S) - um produto de alteração do realgar. O realgar é um pigmento raro, extremamente tóxico (a tal ponto que não há marcas de insectos xilófagos nas áreas onde surge) e, possivelmente, com propriedades ópticas que não eram satisfatórias. As razões que levaram ao uso deste pigmento numa área tão vasta de uma escultura popular, bem como a sua proveniência, são algumas das questões que não foi possível esclarecer. O azul da Prússia foi usado numa escultura erudita (E4-SA) e noutra popular (P2-VA) pouco depois da sua descoberta no início do século XVIII, o que sugere que os pigmentos tinham origem semelhante, independentemente da localização ou qualidade das oficinas.


O branco de chumbo usado na camada superficial das áreas de estofado surge invariavelmente misturado com uma carga de cálcio (provavelmente cré), identificada por SEM-EDS. Independentemente desta adição se destinar a permitir a economia de recursos ou a tornar menos opaca essa camada, facilitando a percepção da folha de ouro subjacente, o uso do branco de chumbo com carga na área das vestes contrasta com o uso do pigmento sem carga nas áreas de carnação e da barba, sugerindo uma atitude racional de emprego do pigmento.

Nas áreas de vestes e estofados, os pigmentos foram aplicados em camada única em todas as esculturas, à semelhança do que tem sido detectado na maior parte dos estudos publicados. As espessuras são também equivalentes, não ultrapassando, regra geral, os 50 µm.

Folha de ouro

A folha de ouro foi usada sobretudo nas áreas das vestes, de acordo com as técnicas de estofado. Em princípio, essa folha deveria estender-se a toda a superfície das vestes mas verificou-se que na maior parte dos casos o ouro surge apenas no anverso (Tabela 5). Nesses casos, o estofado não foi usado no reverso e as vestes apresentam-se aí com cor uniforme, sem os motivos dourados. Apenas em esculturas eruditas a folha de ouro foi também aplicada no reverso.

As análises realizadas por SEM-EDS (Figura 2) revelaram que a folha de ouro é constituída por uma liga de Au, Ag e Cu, sendo que o teor de Au é, em média, de 91% - correspondente a cerca de 22 quilates. Este teor é inferior ao teor da folha de ouro de várias estruturas retabulares (talha dourada), onde foi usado praticamente ouro puro,10 e também é inferior ao teor da folha de ouro aplicada nalgumas esculturas, onde foram usadas ligas de Au e Ag em que o Cu surge, ou em concentração vestigial, ou abaixo do limite de detecção.11 No entanto, há também diversas esculturas do período barroco em que foram usadas ligas com menor concentração de Au.11 As análises mostraram também que o teor médio de Au nas esculturas populares (89%) é ligeiramente inferior ao do conjunto de obras eruditas (93%). Este facto e a inexistência de folha de ouro no reverso das esculturas populares sugerem que na execução destas houve maior preocupação com a economia de meios.


Tal como é indicado pela existência da camada de bolo, o ouro foi brunido. Não foram detectadas folhas de prata ou de qualquer outro metal além do ouro.

Camada de bolo

De acordo com as fontes históricas, nas esculturas policromadas sobre madeira a folha de ouro era geralmente aplicada sobre uma camada de bolo, isto é, um material argiloso com elevado teor de compostos de ferro. Isso acontecia quando o douramento era feito a água e o ouro brunido. Tradicionalmente o bolo era designado por bolo arménio ou bolo da Arménia, devido à sua origem na Arménia. Provavelmente devido ao seu elevado custo, com frequência era falsificado.12 Além disso, há referências claras à extracção de bolo noutras regiões, nomeadamente em Portugal.13

Tal como esperado, por OM e SEM-EDS, verificou-se a existência dessa camada argilosa em todas as áreas onde foi aplicada folha de ouro, com a excepção da escultura P1-SE, onde o bolo foi aplicado no reverso, ainda que aí não existam áreas douradas (Tabela 5). Por outro lado, na escultura E4-SA o bolo foi aplicado em toda a superfície, inclusivamente nas áreas de carnação e de cabelo. Esta prática parece ser mais frequente em retábulos em talha dourada e policromada, provavelmente com o objectivo de abreviar o processo de aplicação do bolo, evitando delinear com pormenor as pequenas áreas que não se destinavam a ser douradas.14

A camada de bolo geralmente é fina e o número de estratos detectado é reduzido - apenas 1 ou 2 (Tabela 5), quando os tratados referiam 3 ou 4.15

Na maioria das esculturas o bolo é de cor vermelha ou laranja, o que corresponde, quer ao material de melhor qualidade, quer ao bolo mais frequentemente usado em escultura policromada.16 No caso das áreas de carnação e cabelo da escultura E4-SA, a que corresponde um erro técnico, esta camada aparenta estar misturada com pigmentos. Bolo de tonalidade amarelada, possivelmente de menor qualidade, foi utilizado na escultura P3-SJE e no estrato superior do reverso da escultura P1-SE. Neste caso, a opção de utilizar duas qualidades de bolo no reverso da escultura parece relacionar-se não apenas com a intenção de reservar o material de melhor qualidade para as áreas a dourar, mas também com a necessidade de proporcionar uma superfície de cor semelhante à do ouro, de maneira a minimizar as diferenças de tonalidade que poderiam ocorrer entre a policromia laranja do anverso e do reverso.

Nas obras E1-SD e E2-SFX por OM foram observados na camada de bolo grãos brancos translúcidos, que eventualmente podem ser de uma carga e resultar de uma medida de contenção de custos.

Áreas de carnação

Nas áreas do rosto e das mãos, isto é, nas áreas de carnação, a camada superficial é constituída por branco de chumbo e um ou dois pigmentos vermelhos (Tabela 6). Excepto na obra E1-SD, o branco de chumbo surge sempre misturado com uma carga de Ca, à semelhança do que seria prática corrente.14 Quanto aos pigmentos vermelhos, nas 4 esculturas eruditas e numa popular foi detectada uma laca vermelha que não foi possível identificar. Sendo as lacas materiais muito dispendiosos, esta distribuição sugere que o seu uso, por razões económicas, estava reservado sobretudo para as obras eruditas, provavelmente mais dispendiosas. Porém, contraditoriamente, foi detectado o uso de laca vermelha em áreas de grande extensão (vestes das esculturas E3-SP e P3-SJE), nomeadamente numa escultura popular em que não foi detectada laca na carnação (P3-SJE). No entanto, nenhuma observação sugere a possibilidade de não serem originais as camadas onde se detectou a laca. Salvo nas esculturas E1-SD e P4-SCV, foi identificado sempre um pigmento inorgânico. Nuns casos trata-se de vermelhão e noutros de mínio, por vezes misturados com a laca.

À semelhança do que foi encontrado em estudos anteriormente publicados,14,16,17 em 3 esculturas eruditas (E1-SD, E2-SFX e E3-SP) e 2 populares (P2-VA e P3-SJE) foi observada uma camada intermédia de branco de chumbo (nalguns casos misturado com uma carga) entre a camada de preparação e a camada superficial de carnação, o que sugere tratar-se de uma prática frequente. No caso da escultura E4-SA, e uma vez que a camada de bolo, tal como já foi referido, se estende a toda a superfície da escultura, a camada de carnação assenta sobre uma segunda camada de preparação aplicada sobre o bolo.

Áreas de cabelo e de barba

Os pigmentos identificados na camada superficial de cor castanha das áreas de cabelo e de barba foram a umbra, os ocres, o mínio, o vermelhão, o negro de carbono e o ouropigmento (Tabela 6), os quais, salvo este último, contam-se entre os mais comuns na época. O ouropigmento (As2S3), detectado numa obra popular (P2-VA), é, de certa forma, inesperado mas já tinha sido identificado nalgumas esculturas eruditas.18

Nas esculturas E1-SD e P2-VA a tinta castanha foi aplicada sobre uma camada branca semelhante à que existe sob a camada de carnação, enquanto nas obras E2- SFX, E4-SA e P4-SCV a camada castanha foi aplicada sobre a camada de carnação, que nestes casos acabou por desempenhar uma função semelhante à do branco de chumbo. Nas restantes esculturas, a camada castanha dos cabelos foi directamente aplicada sobre a preparação, mesmo no caso das esculturas E3-SP e P3-SJE em que a camada intermédia de branco de chumbo existe sob a carnação. Estes resultados, além de mostrarem que o cabelo era pintado depois da carnação, põem em evidência a diversidade de processos seguidos na pintura daquele motivo.

CONCLUSÃO

Os materiais identificados estão de acordo com o que era habitual na época, salvo dois pigmentos detectados em obras populares: o ouropigmento e, de forma mais inesperada, o realgar. Com excepção destes dois pigmentos de arsénio, os materiais são comuns aos dois conjuntos de esculturas, inclusivamente sucedendo que em ambos foi usado azul da Prússia, um pigmento novo, descoberto em 1704, mas sem significativa distribuição comercial antes de 1724.

No entanto, parece haver algumas diferenças de qualidade entre os materiais identificados nos dois conjuntos ou entre as formas de os utilizar, notando-se uma tendência de uso de soluções mais económicas nas obras populares. Com efeito, verificou-se que a concentração de ouro na folha metálica é menor nas obras populares do que nas obras eruditas e, por outro lado, observou-se que só nas obras eruditas a folha de ouro foi aplicada no reverso das obras onde, em princípio, não era vista. De forma semelhante, o uso de laca vermelha nas áreas de carnação foi identificado apenas nas esculturas eruditas, ainda que, por outro lado, o mesmo material tenha sido detectado numa extensa área de vestes de uma escultura popular. A identificação de cargas em esculturas eruditas sugere, no entanto, que medidas de economia também foram adoptadas no caso dessas obras.

Independentemente da qualidade das esculturas, as recomendações a respeito do número de estratos de algumas camadas não terão sido seguidas, eventualmente com a intenção de preservar os detalhes escultóricos. Em contrapartida, parece terem sido tomadas algumas medidas com o objectivo de solucionar os problemas que um reduzido número de estratos poderia envolver, como é exemplo a adição de branco de chumbo em algumas preparações. Nas obras eruditas a estratigrafia parece ser um pouco mais complexa.

De forma geral, a extensão das diversas camadas, bem como as medidas de contenção de custos, dão conta da adopção de procedimentos racionais, provavelmente inerentes a uma divisão do trabalho entre o escultor e o pintor.

Estes resultados, que contribuem para o esclarecimento de uma questão colocada pela história da arte a respeito da relação entre obras eruditas e obras populares, ilustram a importância que a análise química pode ter em situações semelhantes.

REFERÊNCIAS

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17. K4; Monumentos 2001,14,107.

18. Seruya, A. I., ed.; Presépio da Estrela, IPCR: Lisboa, 2004, p. 58 e 62.

Recebido em 29/1/12; aceito em 18/7/12; publicado na web em 26/11/12

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  • 1. Bray, X., ed.; The Sacred Made Real. Spanish Painting and Sculpture 1600-1700, National Gallery Company: London, 2009.
  • 2. Seruya, A. I., ed.; Policromia. A Escultura Policromada Religiosa dos Séculos XVII e XVIII. Estudo Comparativo das Técnicas, Alterações e Conservação em Portugal, Espanha e Bélgica, IPCR: Lisboa, 2002.
  • 3. Barata, C.; Cruz, A. J.; Carballo, J.; Araújo, M. E.; Conservar Património 2008,6,21;
  • Barata, C.; Cruz, A. J.; Carballo, J.; Araújo, M. E.; Teixeira, V.; Imagem Brasileira 2009,6,203;
  • Barata, C.; Cruz, A. J.; Carballo, J.; Araújo, M. E.; Int. J. Conservation Sci. 2010,1,19.
  • 4. Casas, A. P.; IdentificaciónQuímica de Pigmentos Artísticos, Ediciones Universitat de Barcelona: Barcelona, 1997.
  • 5. Nunes, F.; Arte da Pintura, Symmetria e Perspectiva, Lisboa, 1615;
  • Alves, N. M. F.; A Arte da Talha no Porto na Época Barroca - Artistas e Clientela, Materiais e Técnicas, Arquivo Histórico da Câmara Municipal do Porto: Porto, 1989.
  • 6. Pacheco, F.; El Arte de la Pintura, Ediciones Cátedra: Madrid, 2001.
  • 7. Stephenson, J.; The Materials and Techniques of Painting, Thames and Hudson: London, 1989.
  • 8. Costa, J. R. G.; Estudos, Notas e Trabalhos - DGGM 1986,28,93.
  • 9. Cruz, A. J.; Artis 2007,6,139;
  • Correia, A. M.; Oliveira, M. J. V.; Clark, R. J. H.; Ribeiro, M. I.; Duarte, M. L.; Anal. Chem. 2008,80,1482.
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  • 13. Biringuccio, V.; The Pirotechnia, Dover Publications: New York, 1990, p. 117;
  • Costa, E. M.; A Natural History of Fossils, London, 1757, p. 20.
  • 14. Cardoso, I. P.; Infocus 2006,41,64.
  • 15. González-Alonso Martínez, E.; Tratado del Dorado, Plateado y Su Policromía. Tecnología, Conservación y Restauración, 2Ş ed., Universidad Politécnica de Valencia: Valencia, 1977, p. 157.
  • 17. K4; Monumentos 2001,14,107.
  • 18. Seruya, A. I., ed.; Presépio da Estrela, IPCR: Lisboa, 2004, p. 58 e 62.
  • *
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      29 Jan 2012
    • Aceito
      18 Jul 2012
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