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Decaimento de íons cianato e a formação de carbamato de etila

Cyanate ion decay and ethyl carbamate formation

Resumo

Cyanate ion stability was studied in aqueous/ethanolic solutions, pH = 4.5 (CH3COOH/NaCH3COO), at different temperatures. Following the decay [(OCN)-] versus time, in the presence of excess C2H5OH, the rate constant for this reaction (k1) was calculated as (2.5 ± 0.3) x 10-4 s-1 at 25 ºC, for 0 < [C2H5OH] < 13.7 x 10-1 mol L-1. For [C2H5OH] > 2.0 mol L-1 a decrease in the numerical value of k1 was observed, reaching 5.2 x 10-5 s-1 when [CH3CH2OH] = 13.7 mol L-1. Variations in the kinetic parameter values ΔH1‡, ΔS1‡ and ΔG1‡ for the cyanate ion decay reaction were observed for solutions at different ethanol concentrations.

cyanate ion; ethyl carbamate formation; aqueous


cyanate ion; ethyl carbamate formation; aqueous

ARTIGO

Decaimento de íons cianato e a formação de carbamato de etila

Cyanate ion decay and ethyl carbamate formation

Alexandre Ataide da Silva; Thiago Hideyuki Kobe Ohe; Douglas Wagner Franco* * e-mail: douglas@iqsc.usp.br

Instituto de Química de São Carlos, Universidade de São Paulo, CP 780, 13560-970 São Carlos - SP, Brasil

ABSTRACT

Cyanate ion stability was studied in aqueous/ethanolic solutions, pH = 4.5 (CH3COOH/NaCH3COO), at different temperatures. Following the decay [(OCN)-] versus time, in the presence of excess C2H5OH, the rate constant for this reaction (k1) was calculated as (2.5 ± 0.3) x 10-4 s-1 at 25 ºC, for 0 < [C2H5OH] < 13.7 x 10-1 mol L-1. For [C2H5OH] > 2.0 mol L-1 a decrease in the numerical value of k1 was observed, reaching 5.2 x 10-5 s-1 when [CH3CH2OH] = 13.7 mol L-1. Variations in the kinetic parameter values ΔH1‡, ΔS1‡ and ΔG1‡ for the cyanate ion decay reaction were observed for solutions at different ethanol concentrations.

Keywords: cyanate ion; ethyl carbamate formation; aqueous/ethanol solution.

INTRODUÇÃO

O carbamato de etila (NH2COOCH2CH3,) ocorre naturalmente em alimentos fermentados (pão, iogurte), bebidas alcoólicas fermentadas (vinho, cerveja) e bebidas destiladas (uísque, aguardentes).1-4 São diversos os compostos presentes em alimentos e bebidas que na presença de etanol podem levar à formação de carbamato de etila (CE) durante as etapas de processamento e de armazenamento (Esquema 1).


Uma das rotas propostas para a formação do carbamato de etila envolve a reação de decomposição de uréia (H2NCONH2) em meio ácido entre 60 ºC e 100 ºC, na presença de etanol (Esquema 1, reação I). Em presença de água a uréia decompõe-se termicamente em amônia (NH3), dióxido de carbono (CO2), ácidos ciânico (HOCN) e isociânico (HNCO). O ácido ciânico converte-se em ácido isociânico5-11 e este último reagiria com o etanol levando à formação de CE (Esquema 1, reação II e Esquema 2). Procurando contribuir para o conhecimento da formação de CE em aguardentes, descreve-se o decaimento da concentração do íon cianato (OCN)- em soluções aquo-etanólicas.


PARTE EXPERIMENTAL

Reagentes

Os reagentes e solventes utilizados, sempre de grau analítico ou cromatográfico, foram adquiridos das seguintes companhias: Sigma-Aldrich (Steinheim, Germany), Mallinckrodt Baker (Paris, United States of America), Fluka (Buchs, Switzerland), Carlo Erba (Milano, Italy) e Tedia (Phillipsburg, United States of America). A água utilizada foi previamente destilada e a seguir deionizada por um sistema Milli-Q da Millipore (Bedford, United States of America).

As soluções aquo/etanólicas foram tamponadas a pH = 4,5, valor este que corresponde ao valor mediano de pH apresentado pelas aguardentes, utilizando o sistema tampão ácido acético e acetato de sódio. Estas soluções foram fortificadas com alíquotas de solução estoque de cianato de potássio, recém-preparada. As soluções resultantes foram transferidas para frascos de vidro (vials) de 28 mL, lacrados com septos de borracha e alumínio e então acondicionados em banho termostático. Alíquotas destas soluções foram retiradas de tempos em tempos para o acompanhamento do decaimento do íon cianato.

Decaimento do íon cianato (OCN)-

Foram preparadas soluções nas seguintes concentrações (mol L-1) de etanol: 1,0 x 10-2, 2,0 x 10-2, 4,0 x 10-2, 8,0 x 10-2, 2, 4, 8, 13,7. A concentração do íon cianato (KOCN) escolhida experimentalmente foi constante e igual a 1,0 x 10-3 mol L-1. A partir destas soluções, acompanhou-se o decaimento da concentração do íon (OCN)- em função do tempo, utilizando-se a metodologia baseada na reação de ciclização do ácido 2-aminobenzóico.12

Alíquotas de 3,0 mL das soluções aquo/etanólicas contendo KOCN foram misturadas com 3,0 mL de uma solução 0,010 mol L-1 de ácido 2-aminobenzóico. A solução obtida foi acondicionada em frascos de vidro (envoltos com papel alumínio) e aquecidas a 37 ± 0,5 oC em banho seco por 10 minutos. Posteriormente, adicionou-se a esta solução aproximadamente 6,0 mL de uma solução de ácido clorídrico (4,1 mol L-1) seguindo-se seu aquecimento a 65 ± 0,5 ºC (banho seco) por 10 minutos. A benzoiluréia assim obtida foi resfriada à temperatura ambiente e a absorbância da solução determinada a 310 nm (ε = 412 L mol-1 cm-1)6 utilizando espectrofotômetro UV-visível Hitachi modelo U-3501(Tokio, Japan). A solução de ácido 2-aminobenzóico foi sempre preparada no mesmo dia do seu uso e antes da realização dos experimentos, sendo sempre mantida ao abrigo da luz.

Formação de carbamato de etila

A formação de carbamato de etila foi acompanhada utilizando-se cromatógrafo para fase gasosa Shimadzu GC-17A acoplado a espectrômetro de massas GCMS-QP5050 operando no modo SIM (monitoramento de íon seletivo com razão m/z = 62) usando impacto eletrônico de 70 eV. Foi dada preferência ao monitoramento do íon m/z = 62 ([M-C2H3]) com respeito ao íon m/z = 44, apesar deste último sinal ser o mais abundante nos espectros de massas de substancias orgânicas, quando se utiliza ionização por impacto eletrônico. Assim, este sinal estaria, em tese, mais suscetível a interferências.13,14 As amostras foram quantificadas por meio de adição de padrão, utilizando como padrão interno carbamato de propila. Os limites de detecção (LD) e quantificação (LQ) para o CE foram de 10 e 30 µg L-1, respectivamente. A separação cromatográfica foi realizada em uma coluna capilar de fase polar, HP-FFAP, com filme de polietilenoglicol esterificado, seguindo metodologia descrita na literarura.15,16

Experimentos cinéticos

As constantes k1 foram calculadas por meio de gráficos ln ([(OCN)-] - [(OCN)-]t) versus tempo e ln ([CE] - [CE]t) versus tempo, respectivamente, onde [(OCN)-] e [CE] referem-se às concentrações do íon cianato e do carbamato de etila, respectivamente. Os símbolos ∞ e t se referem respectivamente ao final da reação e ao tempo em que a medida se realizou. Segundo cálculos utilizando método INDO (Intermediate Neglect of Differential Overlap) a distribuição da carga é igual sobre os átomos de oxigênio e nitrogênio17 no íon (OCN)-, notação esta que é utilizada no presente trabalho para expressar a soma das concentrações dos íons cianato e isocianato.17,18 Considerou-se que a concentração [(OCN)-]t quando t = 0 é igual à concentração analítica de cianato de potássio (KOCN) utilizada. Como a metodologia analítica, que permite determinar a variação da concentração do pseudo-haleto ao longo do tempo (t), não faz distinção entre cianato e isocianato e estes estão em rápido equilíbrio, os resultados são interpretados como a soma destes dois ânions. Em se tratando dos ácidos correspondentes: HNCO (isociânico) e HOCN (ciânico), as duas formas existem em equilíbrio com a predominância do primeiro.17,18 Cálculos quânticos (DFT- Density Functional Theory) indicam que a reação de formação de carbamato de etila a partir de etanol e ácido isociânico é favorecida com respeito à reação com ácido ciânico.6 As reações foram estudadas sempre em condições de pseudo-primeira ordem (excesso de etanol).

Os parâmetros de ativação (ΔH1‡, ΔS1‡ e ΔG1‡) para a reação:

foram calculados, a partir dos valores de k1, para a mesma concentração de KOCN e/ou etanol, a diferentes temperaturas, utilizando as Equações de 1-4.19 O valor da energia de ativação (Ea) foi calculado graficamente lançando log k1 versus 1/T (equação 1). A Entropia de ativação (ΔS1‡) foi calculada para a temperatura de 25 ºC (298 K), inserindo-se k1 = 2,3 x 10-4 s-1, na equação (2) calculado a partir da equação (3) e utilizando a equação (4).

Nestas equações A é a constante pré-exponencial, k a constante de Boltzmann (1,381 x 10-23 J K-1), h a constante de Planck (6,626 x 10-34 J s), T é a temperatura (Kelvin, K), ΔH1‡ variação de entalpia de ativação, ΔS1‡ é a variação de entropia de ativação, ΔG1‡ é a energia livre de ativação de Gibbs e R é a constante universal dos gases (1,987 cal K-1 mol-1).5,6

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O perfil típico das curvas absorbância versus tempo, para o decaimento do íon cianato, bem como para os gráficos ln ([(OCN)-] - [(OCN)-]t) versus tempo, estão ilustrados na Figura 1 e os dados experimentais reunidos na Tabela 1. Estes resultados indicam que a constante de velocidade para esta reação (k1 = 2,3 ± 0,3 × 10-4 s-1), não varia dentro do erro experimental no intervalo de concentração de etanol de 0 a 8,0 x 10-1 mol L-1.


É interessante ressaltar que em meio aquoso e na ausência de etanol, a concentração de (OCN)- decai com k1 = 2,9 x 10-4 s-1, (Tabela 1) e que nestas condições não ocorre a formação de carbamato de etila.

Os valores de k1 para o decaimento de íons (OCN)- em soluções aquosas na ausência de etanol, são concordantes dentro do erro experimental com os valores calculados para soluções aquo-etanólicas de mesma concentração hidrogeniônica e concentrações de etanol na faixa de 1,0 x 10-2 a 8,0 x 10-1 mol L-1.

A reação de formação de carbamato de etila foi acompanhada nas mesmas condições experimentais ([CH3CH2OH] = 8,0 x 10-2 mol L-1). O valor de k'1 para a formação de CE (2,3 x 10-4 s-1) é da mesma ordem de grandeza, dos valores de k1 (2,5 ± 0,3) x 10-4 s-1, para o decaimento da concentração de íons cianato em soluções onde as concentrações de etanol são iguais ou inferiores a 8,0 x 10-1 mol L-1 (Tabela 1).

Em soluções em que a concentração de etanol é superior a 8,0 x 10-1 mol L-1 (ver Tabela 1), a constante de velocidade para o decaimento do íon cianato diminui à medida que o teor alcoólico aumenta, atingindo o valor de 5,2 x 10-5 s-1 quando a concentração de [CH3CH2OH] é de 13,7 mol L-1, (80 ºGL). A Tabela 2 apresenta os valores dos parâmetros de ativação, para a reação de decaimento de íons cianato, em diferentes concentrações alcoólicas. Coerentemente com as considerações acima, nota-se uma variação de 7 kcal mol-1, -21 cal mol-1 e 5 kcal mol-1 K-1 nos valores de ΔH1‡, ΔS11‡ e ΔG1‡ respectivamente, quando a concentração de etanol varia de 2,0 x 10-2 para 6,8 mol L-1.

O rendimento químico de carbamato de etila também varia em função da concentração de etanol atingindo os valores de 9,1% para [CH3CH2OH] = 8,0 x 10-2 mol L-1 e 35% para [CH3CH2OH] igual a 10,3 mol L-1.6 Estas observações podem ser tentativamente explicadas com base no conjunto de reações simultâneas que podem estar ocorrendo:20,21

O ácido ciânico possui uma constante de dissociação de 2,0 x 10-4 a 28 ºC e apresenta duas formas tautoméricas: o ácido ciânico (HOCN) e o ácido isociânico (HNCO), com predominância do segundo (97%).17,18 O ácido isociânico reagiria com a água originando ácido carbâmico (NH2COOH), o qual pode reagir com etanol originando carbamato de etila ou decompor-se em NH3 e CO2 (Esquema 3).20,21 Trata-se de duas reações competitivas, e os rendimentos dos respectivos produtos irão depender das concentrações relativas de água e etanol. Assim, diminuindo a concentração (atividade) da água e aumentando a concentração (atividade) do etanol, a formação de carbamato de etila é favorecida aumentando o seu rendimento. O inverso ocorre com o aumento da concentração (atividade) da água e a diminuição da concentração (atividade) do etanol. Estas considerações, aliadas aos valores numéricos das constantes de decaimento de íons (OCN)- na presença e na ausência de etanol, sugerem que o decaimento de íons cianato e não a formação de carbamato de etila, pelo menos nas condições dos experimentos, é a etapa determinante do processo de consumo de (OCN)- .


CONCLUSÃO

Embora mais experimentos sejam necessários para melhor esclarecer o(s) mecanismo(s) da(s) reação(ões) de formação de CE em aguardentes, envolvendo íons cianato, é razoável supor que isto envolve a reação de ácido carbâmico com etanol gerando carbamato de etila.20,21

Existe uma diferença substancial entre os parâmetros de ativação ΔH1‡, ΔS1‡ e ΔG1‡ para a reação de decaimento de íons (OCN)- em função das condições experimentais. Nas soluções onde a concentração de etanol é superior a 8,0 x 10-1 mol L-1, a constante de velocidade para esta reação diminui com o aumento da concentração de etanol. O inverso é observado quando ocorre o aumento da concentração de água. As alterações nas concentrações da água e do etanol afetariam as constantes de velocidade de formação de carbamato de etila e de decomposição do íon (OCN)-, favorecendo de forma diversa estas reações competitivas. Este tema esta sendo investigado em nosso Laboratório.

AGRADECIMENTOS

CNPq, Capes e FAPESP pelo auxílio financeiro.

Recebido em 12/11/12; aceito em 3/5/13; publicado na web em 1/7/13

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  • *
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Out 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      12 Nov 2012
    • Aceito
      03 Maio 2013
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