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DETERMINAÇÃO DE MERCÚRIO EM FÍGADO DE TETRÁPODES MARINHOS POR ESPECTROMETRIA DE FLUORESCÊNCIA ATÔMICA ACOPLADA A GERAÇÃO DE VAPOR FRIO (CV-AFS) E ESPECTROMETRIA DE MASSA COM FONTE DE PLASMA INDUTIVAMENTE ACOPLADO (ICP-MS): UMA COMPARAÇÃO SISTEMÁTICA ENTRE AS DUAS TÉCNICAS

DETERMINATION OF MERCURY IN LIVER OF MARINE TETRAPODS BY COLD VAPOR ATOMIC FLUORESCENCE SPECTROMETRY AND INDUCTIVELY COUPLED PLASMA MASS SPECTROMETRY IN BIOLOGICAL SAMPLES: A SYSTEMATIC COMPARISON BETWEEN THE TWO TECHNIQUES

Resumo

This study compares the techniques cold vapour atomic fluorescence spectrometry (CV-AFS) and inductively coupled plasma mass spectrometry (ICP-MS) for the determination of Hg in biological samples (hepatic tissue from marine tetrapods). Acid digestions were performed for the samples and aliquots of them were analysed by ICP-MS and CV-AFS. To minimize the Hg memory effect in its determination by ICP-MS, gold (200 µg L-1 in 5% v v-1 HCl) was added to the sample digests. The detection limits were 0.02 mg kg-1 for ICP-MS and 0.01 mg kg-1 for CV-AFS. Accuracy was assessed by the calculation of the recovery obtained from TORT-3 (lobster hepatopancreas) certified reference material analysis. Accurate results were obtained for both CV-AFS and ICP-MS. The comparison of the results obtained for hepatic tissue with and without lyophilization showed a significant difference among them (at 95% of confidence level), evidencing losses of Hg in the lyophilization process.

Keywords:
Mercury; Marine Tetrapod; Hg Memory Effect; ICP-MS; CV-AFS


Keywords:
Mercury; Marine Tetrapod; Hg Memory Effect; ICP-MS; CV-AFS

INTRODUÇÃO

O Hg, assim como os outros elementos estáveis constantes na tabela periódica, resiste aos processos de degradação da natureza e, como consequência, pode permanecer por vários anos no ambiente, passando por diversas transformações químicas e biológicas sem perder seu efeito tóxico.11 de Azevedo, F. A.; Toxicologia do mercúrio, RIMA: São Paulo, 2003. Devido a essas características, é um elemento que desperta grande interesse em estudos, principalmente à sua mobilidade no ambiente. Fenômenos naturais, como mudanças nas condições de temperatura, pressão atmosférica e ações antrópicas, como atividades industriais, podem modificar o ciclo natural do Hg, elevando as concentrações deste elemento nos diversos compartimentos ambientais. Dessa forma, a cadeia alimentar é afetada nos diversos níveis tróficos, sendo possível a ocorrência de bioacumulação e biomagnificação, o que aumenta o risco desse elemento para a saúde humana e ambiental.22 Bisinoti, M. C.; Jardim, W. F.; Quim. Nova 2004, 27, 593.

3 Kasper, D.; Forsberg, B. R.; Amaral, J. H. F.; Leitão, R. P.; Pie-Daniel, S. S.; Bastos, W. R. E.; Malm, O.; Envir. Sci. Techn. 2014, 48, 1032.
-44 Brito, B. C.; Forsberg, B. R.; Kasper, D.; Amaral, J. H. F.; de Vasconcelos, M. R. R.; de Sousa, O. P.; Cunha, F. A. G.; Bastos, W. R.; Hydrobiologia 2017, 790, 35.

Neste contexto a determinação de Hg é de fundamental importância para avaliar o impacto causado no meio ambiente. Portanto, o desenvolvimento de métodos para determinação de Hg em amostras biológicas é necessário, devido aos problemas relacionados à extração e preservação do analito na amostra e ao método de quantificação empregado.55 Ibáñez-Palomino, C.; López-Sánchez, J. F.; Sahuquillo, A.; Anal. Chim. Acta 2012, 720, 9.

6 Loger, M.; Horvat, M.; Akagi, H.; Ando, T.; Tomiyasu, T.; Fajon, V.; Appl. Organometal. Chem. 2001, 15, 515.
-77 Leermakers, M.; Baeyens, W.; Quevauviller, P. H.; Horvat, M.; Trends Anal. Chem. 2005, 24, 383.

A técnica de Espectrometria de Fluorescência Atômica acoplada à Geração de Vapor a Frio (CV-AFS) é considerada uma das mais sensíveis para determinação de Hg em diversos tipos de amostras, tais como ambientais, biológicas e alimentares, por ser pouco susceptível à interferência de matriz, ser de baixo custo operacional, permitir limite de detecção excelente (ao nível de ng L-1).88 Bloom, N.; Canadian Journal of Fisheries and Aquatic Sciences 1989, 46, 1131.,99 Sánchez-Rodas, D.; Corns, W. T.; Chen, B; Stockwell, P. B.; J. Anal. At. Spectrom. 2010, 25, 933. A determinação de Hg requer um limite de detecção baixo e a espectrometria de massa com fonte de plasma indutivamente acoplado (ICP-MS), em princípio, também pode ser utilizada. No entanto, na determinação desse elemento através da ICP-MS pode ocorrer efeito memória.1010 Clevenger, W. L.; Smith B. W.; Winefordner, J. D.; Crit. Rev. Anal. Chem. 1997, 27, 1.,1111 Takase, I.; Pereira, H. B.; Luna, A. S.; Grinberg, P.; Campos, R. C.; Quim. Nova 2002, 25, 1132. Lamble e Hill1212 Lamble, K. J.; Hill, S. J.; J. Anal. At. Spectrom. 1996, 11, 1099. propuseram um método para a determinação de Hg total por CV-AFS baseado em digestão on-line de amostras ambientais assistida por micro-ondas. As amostras, na forma de suspensão, foram injetadas em carregador (ácido clorídrico e soluções de brometo e bromato) para uma bobina de reação posicionada dentro de um forno micro-ondas. Foi reportado um limite de detecção (LD) de 0,013 µg L-1. Os resultados obtidos foram concordantes com os valores certificados para Hg em sedimento e músculo de cação marinhos (PACS-1 e DORM-2).

Tao et al.1313 Tao, G.; Willie, S. N.; Sturgeon, R. E.; J. Anal. At. Spectrom. 1999, 14, 1929.,1414 Tao, G.; Willie, S. N.; Sturgeon, R. E.; Analyst 1998, 123, 1215. reportaram um método simples e rápido, sem a necessidade de uma técnica cromatográfica, para a determinação de Hg inorgânico e total em amostras de peixes, utilizando a técnica de Espectrometria de Absorção Atômica com geração química de vapor frio (CV-AAS). As amostras foram solubilizadas usando hidróxido de tetrametilamônio (TMAH). O Hg inorgânico foi liberado pela injeção em fluxo de L-cisteína e depois reduzido para Hg metálico com SnCl2. O limite de detecção para o mercúrio inorgânico foi de 0,1 µg L-1 e a precisão da determinação foi caracterizada por um desvio-padrão relativo de 2% para uma solução de 20 µg L-1. O método proposto foi validado pela análise de um conjunto de materiais biológicos marinhos de referência, DORM-2 (músculo de cação), DOLT-2 (fígado de cação) e TORT-2 (hepatopâncreas de lagosta).

Park e Do1515 Park, C. J.; Hyunsu, D.; J. Anal. At. Spectrom. 2008, 23, 997. também analisaram Hg inorgânico e total em amostras de material biológico marinho (0,1 g), por meio de diluição isotópica (com 199Hg) por ICP-MS acoplado a geração de vapor frio (CV-ICP-MS) após digestão com hidróxido de tetrametilamonio (TMAH). O agente redutor SnCl2 foi utilizado para determinações de Hg inorgânico e, para Hg total, NaBH4. O método proposto foi validado a partir da análise de três materiais certificados: músculo de cação DORM-2, de ostra NIST SRM1566b e de atum CRM KRISS (numeração ainda não atribuída no período da publicação do estudo). O limite de detecção do método encontrado foi de 0,018 µg kg-1.

Barcelos1616 Barcelos, J. S.; Relatório de estágio supervisionado, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, 2015. reportou a determinação de Hg em amostra de tecido de peixe, utilizando CV-AFS. As amostras foram digeridas em forno micro-ondas (0,5 g de amostra e adição de 6 mL de HNO3 65% v v-1 e 1 mL de H2O2 30% m m-1). O LD do método foi 0,13 µg kg-1 e a precisão caracterizada por um desvio-padrão relativo de 1,8%.

ICP-MS é uma técnica de elevado custo capital e operacional. Para a determinação de Hg por meio desta técnica, podem ocorrer interferências não espectrais e, menos corriqueiramente, interferências espectrais.1616 Barcelos, J. S.; Relatório de estágio supervisionado, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil, 2015. A técnica é caracterizada pela sua alta sensibilidade, com baixos LDs, além de outras vantagens como a determinação multielementar.1313 Tao, G.; Willie, S. N.; Sturgeon, R. E.; J. Anal. At. Spectrom. 1999, 14, 1929.,1717 Menegário, A. A; Giné-Rosias, M. F.; Interferências em ICP-MS: Espectrometria de massas com fonte de plasma (ICP-MS), CENA: Piracicaba, 1999.

18 Thermo Scientific, AN-E0612 X Series ICP-MS, Clinical applications note 3: Determination of Hg in urine, Application Note, 2003.

19 Hintelmann, H.; Falter, R.; Ilgen, G.; Evans, D.; Fresenius, J.; Anal. Chem. 1997, 358, 363.
-2020 Rodriguez Martin-Doimeadios, R. C.; Monperrus, M.; Krupp, E.; Amouroux, D.; Donard, O. F. X.; Anal. Chem. 2003, 75, 3202.

Para minimizar o efeito memória do Hg em suas determinações por ICP-MS, pode-se adicionar Au ou 2-mercaptoethanol na solução da amostra.22 Bisinoti, M. C.; Jardim, W. F.; Quim. Nova 2004, 27, 593. Harrington et al.2121 Harrington, C. F.; Merson, S. A.; D’ Silva, T. M.; Anal. Chim. Acta 2004, 505, 247. analisaram amostras de tecido de peixe, que foram digeridas em forno micro-ondas, mediante combinação de sistema de injeção em fluxo com o sistema de introdução de amostras do ICP-MS, utilizando 2-mercaptoethanol - 0,05% (v v-1) como solução carregadora. Com essa abordagem, o LD foi 5,1 µg L-1. Zhu e Alexandratos2222 Zhu, X.; Alexandratos, S. D.; Microchem. J. 2007, 86, 37. minimizaram o efeito memória de Hg em determinações por espectrometria de emissão óptica com plasma indutivamente acoplado com a adição de agentes complexantes (tioureia e cloreto de ouro). Segundo os autores, a utilização de Au (III) resulta em melhores resultados para o desaparecimento mais rápido do efeito de memória.

Gelaude et al.2323 Gelaude, I.; Dams, R.; Resano, M.; Vanhaecke, F.; Moens, L.; Anal. Chem. 2002, 74, 3833. utilizaram a vaporização eletrotérmica acoplada a ICP-MS (SS-ETV-ICPMS) para a determinação simultânea de metilmercúrio e Hg inorgânico em amostras biológicas (hepatopâncreas de lagosta e músculo de cação). Para quantificação, os autores utilizaram diluição isotópica, com espécie específica (enriquecido em 200Hg). Embora esse método tenha a vantagem de não requerer prévia decomposição da amostra, evitando problemas de contaminação e perda do analito, é difícil de ser implementado devido à instrumentação complexa.

Um método baseado no acoplamento CV-ICP-MS foi desenvolvido por Kenduzler et al.2424 Kenduzler, E.; Ates, M.; Arslan, Z.; McHenry, M.; Tchounwou, P. B.; Talanta 2012, 93, 404. para a determinação de Hg (II) e Hg total em otólitos de peixes. O NaBH4 foi usado como agente redutor e a solução de ferrocianeto de potássio foi utilizada para a eliminação do efeito memória. Os autores reportaram limites de detecção de 4,2 e 6,4 ng L-1 para Hg (II) e Hg total, respectivamente.

Ainda na etapa de tratamento e processamento das amostras, a influência da liofilização na integridade das espécies de Hg é pouco reportada na literatura. Amostras frescas são geralmente armazenadas, congeladas e posteriormente liofilizadas. A liofilização é frequentemente utilizada com a finalidade de pré-concentrar o analito por secagem e melhorar a preservação das amostras.2525 Wang, W.; Int. J. Pharm. 2000, 203, 1. Resultados obtidos a partir deste procedimento foram reportados, tendo sido similares aos obtidos a partir de métodos convencionais de secagem (para temperaturas abaixo de 100 ºC).2626 Schmidt, L.; Bizzi, C. A.; Duarte, F. A.; Dressler V. L.; Flores, E. M. M.; Microchem. J. 2013, 108, 53. Contudo, a utilização da liofilização deve ser avaliada com cautela, pois este procedimento pode resultar em perdas de Hg.2727 Ortiz, A. I. C.; Albarran, Y. M.; Rica, C. C.; J. Anal. At. Spectrom. 2002, 17, 1595.

Para assegurar a qualidade da análise, parâmetros importantes, tais como sensibilidade, possíveis interferentes e efeito memória devem ser examinados.2828 Li, Y.; Yan, X.-P.; Dong, L.-M.; Wang, S.-W.; Yan, J.; Jiang, D.-Q.; J. Anal. At. Spectrom. 2005, 21, 94.,2929 Gonzales, A.; Herrador, M.; Trends Anal. Chem. 2007, 26, 227. Nesse trabalho, fez-se uma comparação sistemática entre as duas técnicas analíticas (ICP-MS e CV-AFS) que podem ser utilizadas para a determinação de Hg total em amostras de fígado de tetrápodes marinhos. Avaliou-se ainda o efeito memória do Hg em ICP-MS e também a potencial perda do analito durante o processo de liofilização de amostras de tetrápodes marinhos.

PARTE EXPERIMENTAL

Equipamentos e acessórios

As amostras foram analisadas por ICP-MS (modelo X series 2-Thermo Scientific) e por CV-AFS (modelo Millennium System-PS Analytical), ambos os equipamentos operados de acordo com as especificações constantes na Tabela 1. Os demais equipamentos e acessórios utilizados foram: balança analítica (AB204 - Mettler Toledo, EUA); pipetas automáticas (Gilson, França; Boeco, Alemanha); digestor de amostras por micro-ondas (Speedwave four SW4 - Berghof - Alemanha) e vidrarias de uso rotineiro em laboratório de análises químicas.

Tabela 1
Parâmetros de operação dos equipamentos de ICP-MS e CV-AFS

Amostras

Todas as amostras analisadas foram de tecido hepático de tetrápodes marinhos em estágio 2 de decomposição (por morte natural), encontrados em regiões costeiras do Brasil e, posteriormente, preservadas a -80 ºC em ultrafreezer. As coletas foram realizadas pela Petrobrás e autorizadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).

Para comparar os resultados obtidos por ICP-MS e CV-AFS, analisaram-se 20 amostras in natura, sendo 14 de Chelonia mydas (tartaruga-verde), 4 de Larus dominicanus (gaivotão), 1 de Sotalia guianensis (boto-cinza), e 1 de Spheniscus magellanicus (pinguim-de-magalhães).

Outras 15 amostras, divididas em duas frações, in natura e com prévia liofilização foram analisadas por CV-AFS, sendo 9 Chelonia mydas, 4 Sotalia guianensis e 2 Sula leucogaster (atobá-marrom), e os resultados utilizados para comparação das análises das amostras in natura e liofilizadas.

Para avaliação da exatidão dos métodos foram analisadas uma amostra de referência (fígado bovino) e uma amostra de material de referência certificado (TORT-3, produzido pelo National Research Council of Canadá).

Reagentes e soluções

Foram utilizados reagentes de grau analítico e água ultrapura do sistema de purificação Milli-Q Direct-Q® 5 UV, com resistividade de 18,2 MΩ cm-1 para o preparo das amostras, padrões e soluções. Os ácidos HNO3 e HCl foram previamente purificados pelo processo de destilação abaixo do ponto de ebulição, duas vezes (bidestilados), para evitar contaminação por Hg. Todos os materiais utilizados foram previamente descontaminados por imersão em HNO3 10% (v v-1) durante quatro horas, em seguida lavados cinco vezes com água ultrapura e secos em capela de fluxo laminar antes do uso.

Foram preparadas soluções de calibração com concentrações de 0,0; 0,1; 0,25; 0,5; 1,0 e 2,0 µg L-1 de Hg, obtidas a partir de diluições da solução padrão estoque certificada G1467V - 100 mg L-1 (SpecSol, Brasil), para a construção das curvas de calibração para ambas as técnicas CV-AFS e ICP-MS.

Para as determinações por CV-AFS, as amostras e as soluções de calibração foram preparadas em meio KBr (1,19% m v-1) / KBrO3 (0,28% m v-1), HCl bidestilado (concentrado) e cloridrato de hidroxilamina (5% m v-1). O íon Hg (II) foi reduzido a Hg0 com o uso do agente redutor SnCl2 em solução 2% (m v-1), segundo os métodos EPA 245.7 (águas) e EPA 7474 (sedimentos e tecidos).

Para as determinações por ICP-MS, as amostras e as soluções de calibração foram preparadas em HCl (5%, v v-1) e Au (200 µg L-1).

Comparação entre determinações por CV-AFS e ICP-MS

Pré-tratamento de liofilização

Para o processamento das amostras submetidas ao tratamento de liofilização, foi pesada uma alíquota de aproximadamente 5 g para cada amostra congelada (-80 ºC). As alíquotas foram inseridas no liofilizador (Alpha 1-2 LDplus CHRIST, Holanda) sob as condições -40 ºC e 0,11 mbar por 72 horas. Finalizado o procedimento de liofilização, as amostras foram maceradas e homogeneizadas para posteriormente serem digeridas.

Digestão das amostras

Uma massa de 1 g de cada amostra in natura e 0,125 g de cada alíquota liofilizada foi pesada em frascos para digestão em forno micro-ondas fornecidos pelo fabricante, adicionados 2 mL de HNO3 concentrado (65% v v-1), 6 mL de HCl concentrado (37% v v-1), e deixada em repouso por uma noite em temperatura ambiente para uma digestão prévia. Em seguida, os frascos foram inseridos no rotor e transferidos para o forno micro-ondas, para a digestão final das amostras. Ao final do procedimento, o extrato foi transferido quantitativamente para tubo centrífuga por meio da lavagem do conteúdo com água ultrapura, no mínimo três vezes, sendo avolumado para o volume final de 15 mL. Para cada amostra, foi realizado um procedimento de digestão.

Determinações por ICP-MS

Uma alíquota de 0,3 mL do digerido de cada amostra foi transferida para tubo centrífuga de 15 mL e adicionado 0,03 mL da solução de Au, 0,75 mL de HCl concentrado e o volume completado com água ultrapura. Três réplicas de diluições foram preparadas e analisadas por ICP-MS.

Determinações por CV-AFS

Uma segunda alíquota de 1 mL do digerido de cada amostra foi transferida para tubos centrífuga de 50 mL e adicionados 2 mL de uma solução contendo KBr (1,19% m v-1) e KBrO3 (0,28% m v-1), previamente preparada. Em seguida, foram adicionados 2,5 mL de HCl concentrado e o volume elevado para 50 mL com água ultrapura. Três réplicas de diluições foram preparadas e analisadas por CV-AFS.

Comparação entre amostras in natura e liofilizada

Com o intuito de comparar os resultados obtidos entre as amostras in natura (em base úmida, mg L-1) e liofilizadas, o teor de umidade de cada amostra foi estabelecido através da diferença de massa antes e depois do procedimento de liofilizaçao. Dessa forma, o teor de umidade de cada amostra foi utilizado para converter a concentração de Hg para base seca (mg kg-1) por meio da equação 1:

(1) C sec a = C ú mida / 100 Um amostras / 100

em que: Cseca = concentração em base seca (mg kg-1); Cúmida= concentração em base úmida (mg L-1); Umamostras = umidade das amostras (%).

Limites de detecção e limites de quantificação

Os limites de detecção (LD) e quantificação (LQ) foram calculados mediante as equações 2 e 3.3030 Rice, E. W. Em Standard methods for the examination of water and wastewater; Rice, E. W., Bridgewater, L., eds.; American Water Works Association: Washington, DC, 2012. O desvio-padrão foi calculado com base em 9 determinações consecutivas do analito no branco analítico.3131 Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia, Orientação sobre validação de métodos analíticos - DOQ-CGCRE-008 - Revisão 5, INMETRO: Rio de Janeiro, 2016.

(2) LD = t x s

(3) LQ = 10 x s

em que: t = t (Student) tabelado, valor de 3,355 (nível de confiança de 99,5%); s = desvio padrão das 9 determinações consecutivas do analito (em µg L-1 ou mg kg -1).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Inicialmente foram realizadas análises das amostras de fígado bovino in natura (adicionada concentração conhecida de Hg, i.e., spike) e do material de referência certificado (TORT-3) por CV-AFS. Os resultados obtidos foram bastante satisfatórios, com recuperações entre 93 e 96% para a amostra de fígado bovino e 107 ± 13% para a amostra certificada.

Avaliação do Efeito Memória de Hg

Inicialmente foram realizados testes com soluções de Hg contendo 200 µg L-1 Au (III) para diferentes intervalos de concentração de Hg (cada intervalo representou uma curva de calibração), a fim de avaliar a eficiência do Au na diminuição do efeito memória nas determinações e estabelecer em que faixa de concentração de Hg esse método é eficiente. A primeira curva foi construída com soluções de calibração contendo Hg entre 0-2 µg L-1, com 10 s para limpeza do sistema de introdução de amostra no ICP-MS (HNO3 2% v v-1), entre uma solução e outra; a segunda com soluções contendo concentrações entre 0-3 µg L-1 de Hg, também usando um tempo de limpeza de 10 s e, por fim, a terceira foi construída com soluções contendo concentrações entre 0-5 µg L-1, com tempo de limpeza de 15 s. Após a injeção de todas as soluções de calibração, ao término da análise da solução de maior concentração para cada curva, foi analisado novamente o branco da curva de calibração (0 µg L-1) repetidas vezes, para avaliar a limpeza do sistema.

Por meio da Figura 1 pode-se observar o efeito memória do Hg após a construção da curva de calibração, com soluções entre 0-5 µg L-1, caracterizado pelo aumento da concentração de Hg determinada no branco. Para as outras duas curvas (0 - 2 µg L-1 e 0 - 3 µg L-1), não há evidências de efeito memória.

Figura 1
Avaliação do efeito memória do Hg em ICP-MS; branco inicial: concentração de Hg no branco da curva de calibração antes da análise das soluções de calibração; branco final: concentração de Hg no mesmo branco após a análise das soluções de calibração

Chen3232 Chen, J.; Determination of mercury in wastewater by inductively coupled plasma-mass spectrometry, Application Note, PerkinElmer, 2009. também avaliou o efeito de memória do Hg, lavando com HNO3 2% o sistema de introdução de amostras e com 200 µg L-1 de Au entre as amostras (curva analítica de 0 - 1 µg L-1). A concentração de Hg retornou ao valor inicial em cerca de 60 s, tempo bastante superior ao observado no presente trabalho, em que soluções de calibração com concentração maior (até 3 µg L-1) não causaram o efeito memória após 10 s de lavagem do sistema.

Limites de detecção

Para os métodos do ICP-MS e CV-AFS, foi calculado o LD instrumental considerando-se o branco da curva de calibração. Para o cálculo, foi utilizada a equação 2, obtendo-se 0,009, 0,010 e 0,011 µg L-1 para as curvas 0 - 2 µg L-1, 0 - 3 µg L-1 e 0-5 µg L-1, respectivamente. Atribuímos o discreto aumento no valor do LD, para curvas de calibração com maior faixa de concentração, ao ajuste de pontos de cada curva.

Harrington et al.2121 Harrington, C. F.; Merson, S. A.; D’ Silva, T. M.; Anal. Chim. Acta 2004, 505, 247., em sua metodologia para reduzir o efeito memória na determinação de Hg por ICP-MS (solução carregadora contendo 2-mercaptoethanol, com injeção em fluxo), reportaram um valor de LD de 5,1 µg L-1, muito superior ao obtido neste trabalho (entre 0,009 e 0,011 µg L-1). Em outro estudo, Allibone et al.,3333 Allibone, J.; Fatemian, E.; Walker, P. J.; J. Anal. At. Spectrom. 1999, 14, 235. desenvolveram um método para a determinação rotineira de Hg em amostras de água potável por ICP-MS. Com a finalidade de minimizar o efeito de memória e preservar o Hg na solução, foram adicionados, em modo off-line 5 mg L-1 de Au e HNO3 2% às amostras, soluções de calibração e água de lavagem do sistema de introdução das mesmas no ICP-MS. A adição de Au à água de lavagem evitou a retenção de Hg no sistema. Os autores reportaram um LD de 0,032 µg L-1, também superior aos obtidos neste trabalho.

A Tabela 2 apresenta os valores de LD e LQ do presente método para ICP-MS e CV-AFS calculados a partir do branco analítico - vide item Digestão das amostras -.

Tabela 2
Limite de detecção (LD) e limite de quantificação (LQ) do método para ambas as técnicas

A análise estatística para comparação entre as duas técnica analíticas mostra que os valores médios de LD e LQ não foram significativamente diferentes (tcalculado = 0,2952, ttabelado=2, n=2, t de Student pareado).

Comparação dos resultados: ICP-MS e CV-AFS

Os resultados das análises por CV-AFS e ICP-MS são apresentados na Tabela 3. Foi realizado o teste F para verificar se os resultados poderiam ser considerados comparáveis. O teste F indicou que os resultados não são significativamente diferentes entre si, os dois conjuntos de dados foram avaliados mediante o teste t de Student pareado, para o conjunto de dados obtidos para as amostras in natura. O valor de t calculado (0,1703) foi menor que o tabelado (2,09; n=20), indicando que não houve diferença significativa (com 95% de confiança) entre os resultados.

Tabela 3
Concentração de Hg (em base úmida) nas amostras de fígado de tetrápodes marinhos in natura analisadas por ICP-MS e CV-AFS

Visando comparar melhor os dados obtidos para as amostras in natura, esses também foram avaliados mediante correlação linear, conforme mostrado na Figura 2. O erro sistemático foi < 1% e a correlação boa, com R2 = 0,9781 (y = 0,9915x + 0,0016), confirmado os resultados obtidos mediante o teste t. Assim sendo, ICP-MS pode ser uma alternativa para determinação de Hg, possibilitando uma análise mais rápida que a CV-AFS.

Figura 2
Correlação entre os valores de concentração de Hg encontrados em amostra de fígado de tetrápodes marinhos in natura por espectrometria de massa com fonte de plasma indutivamente acoplado (ICP-MS) e espectrometria de fluorescência atômica acoplada a geração de vapor frio (CV-AFS)

Comparação dos resultados para amostras liofilizadas e amostras in natura

Para avaliar a perda de Hg durante o processo de liofilização, foram analisadas amostras in natura e liofilizadas por CV-AFS. Os resultados das análises são apresentados na Tabela 4. Para efeito de comparação entre as amostras, os resultados foram normalizados em base seca (equação 1) e posteriormente foi aplicado o teste t de Student pareado. O valor calculado de t foi -4,3274 e indicou que houve diferença significativa (ao nível de confiança de 95%) entre os resultados, sugerindo que há perda de Hg durante o processo de liofilização.

Tabela 4
Concentração de Hg em amostra de fígado de tetrápodes marinhos in natura e liofilizadas analisadas por CV-AFS. Valores normalizados em base seca

A Figura 3 exibe a correlação dos valores de concentração de Hg em amostras in natura e liofilizadas analisadas por CV-AFS, nas quais foram observados erros sistemáticos (cerca de 10%) para os dois conjuntos de dados (y = 1,1093x + 0,3165), conforme evidenciado pelo valor de inclinação da reta nesse conjunto, confirmando perda de Hg durante o processo de liofilização.

Figura 3
Correlação entre os valores de concentração de Hg encontrados in natura e liofilizadas por espectrometria de fluorescência atômica acoplada a geração de vapor frio (CV-AFS) em amostras de fígado de tetrápodes marinhos

CONCLUSÕES

As análises mostraram que a determinação de Hg em tecido hepático de tetrápodes marinhos é possível por ICP-MS desde que sejam seguidas as condições de contorno para minimizar o efeito memória do Hg (concentração de Hg até 3 µg L-1). Os limites de detecção obtidos foram semelhantes para métodos baseados em ICP-MS e CV-AFS.

A avaliação da perda de Hg durante o processo de liofilização mostrou diferença significativa (nível de confiança de 95%), evidenciando perda de Hg, em média, de 10% no processo.

Os métodos utilizados para determinação de Hg, tanto por CV-AFS quanto por ICP-MS, podem ser considerados semelhantes, sendo possível a aplicação de ambos em determinações rotineiras de Hg.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao CNPq, à CAPES pelas bolsas de estudo concedidas e à Petróleo Brasileiro S. A. - Petrobras pelos recursos finaceiros. Este trabalho é uma das consequências dos Projetos de Monitoramento de Praias da Bacia de Santos (PMP-BS fase 1 e fase 2) exigidos pelo IBAMA para o licenciamento ambiental da Atividade de Produção e Escoamento de Petróleo e Gás Natural no Pré-sal.

REFERÊNCIAS

  • 1
    de Azevedo, F. A.; Toxicologia do mercúrio, RIMA: São Paulo, 2003.
  • 2
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan 2021

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2020
  • Aceito
    13 Out 2020
  • Publicado
    20 Nov 2020
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