Acessibilidade / Reportar erro

A propósito de "possibilidade, compossibilidae e incompossibilidade em Leibniz", de Edgar Marques

ARTIGOS

A propósito de "possibilidade, compossibilidae e incompossibilidade em Leibniz", de Edgar Marques1 1 Este brevíssimo comentário foi escrito a convite de Edgar Marques, após uma conversa nossa sobre a primeira versão de seu artigo. Todas as citações que faço em meu texto referem-se a esse mesmo artigo.

Déborah Danowski

Professora do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

RESUMO

O presente texto faz uma crítica de duas teses por meio das quais É. Marques, em seu artigo "Possibilidade, compossibilidade e incompossibilidade em Leibniz", busca explicar a incompossibilidade entre substâncias: que a harmonia se dá através de uma "visão panorâmica" que reuniria os conteúdos representacionais de todas as substâncias criadas, e que as substâncias individuais se concebem independentemente da noção do mundo em que elas se atualizam.

Palavras-chave: Leibniz, compossibilidade, incompossibilidade, harmonia, representação

ABSTRACT

This paper criticizes two points made by É. Marques in "Possibilidade, compossibilidade e incompossibilidade em Leibniz" as he aims to account for incompossibility among substances: that harmony depends on a kind of panoramic view that includes the representational contents of all created substances, and that individual substances are conceived in Leibniz independently of the notion of the world in which they are to be actualized.

Key-words: Leibniz, compossibility, incompossibility, harmony, representation

Em seu artigo "Possibilidade, compossibilidade e incompossibilidade em Leibniz", publicado no presente volume, Edgar Marques se propõe a responder a esta questão básica sobre a metafísica leibniziana: como substâncias individuais absolutamente independentes e fechadas em si mesmas podem ser incompossíveis? A resposta que o autor encontra para essa questão é uma espécie de ampliação ou transposição da resposta a uma outra pergunta, com que inicia o artigo: o que nos permite dizer que predicados logicamente contraditórios tornam impossível o conceito de uma substância? Sua hipótese é que a contradição entre notas ou predicados só determina a impossibilidade da existência de uma substância individual porque essas notas ou predicados se encontram unidos nessa substância por alguma coisa que os ultrapassa, a saber, por aquilo que constitui a substância como uma unidade. A importância dessa afirmação me parece ser que ela deixa claro que uma substância não é um mero somatório de predicados, um mero conjunto lógico de atributos mutuamente não-contraditórios. Ela é também a razão que justifica a presença de cada um desses predicados dentro de seu conceito completo e a lei que rege a passagem entre eles.

O problema da compatibilidade ou incompatibilidade entre substâncias parece requerer uma solução semelhante, e é isso o que Edgar Marques faz na segunda parte de seu artigo. Se um dos traços principais da definição da substância como um ser completo é sua independência radical em relação a tudo o mais exceto Deus, o que impede a existência em um mesmo mundo de substâncias incompossíveis? A noção de incompossibilidade parece supor, como a noção de possibilidade no caso das substâncias individuais, a idéia de um campo comum transcendente, capaz de servir de medida para seu acordo ou desacordo. O autor parte da idéia de que, dada a ausência de comunicação real entre as substâncias, não seria contraditória a existência, em substâncias distintas, "de representações dotadas de conteúdos contraditórios entre si". Sendo assim, segundo ele, para explicar a contradição e a incompossibilidade é preciso buscar um princípio que efetue a relação entre os conteúdos representacionais das diferentes substâncias. Esse princípio será a harmonia: "Substâncias distintas são compossíveis (...) caso suas representações de mundo possam ser harmonicamente integradas em uma única representação panorâmica que as inclua, sendo incompossíveis quando tal não se dá."

São dois meus principais pontos de discordância em relação a essa interpretação. Em primeiro lugar, embora pense que o conceito de harmonia seja de fato fundamental para explicar as noções de compossibilidade e de incompossibilidade, não creio que seja necessário recorrer a uma representação panorâmica transcendente para explicá-la. A meu ver, a razão por que o autor precisou recorrer a essa representação panorâmica é não ter levado longe o suficiente aquilo que ele mesmo considerou como a única maneira de explicar a incompossibilidade: o exame do conteúdo representacional de cada substância. Ora, o que esse exame nos mostra é que a harmonia determina o interior mesmo de uma substância, uma vez que as substâncias do melhor dos mundos possíveis se entre-exprimem, ou seja, o conjunto das representações de cada uma inclui as representações de todas as outras. Dito de outra forma, o "espaço de atualização" em que se projetam os conteúdos intensionais das diversas representações são as próprias substâncias (motivo por que, aliás, ele não poderia ser um espaço único).

Reformulando o exemplo do autor, se tanto a mônada A como a mônada B representam a si mesmas como estando em uma relação R exclusiva (digamo-lo assim) com C, elas serão incompossíveis, não em virtude de um ponto de vista que incluísse ambas, mas simplesmente porque a mônada A, além de representar a si mesma como estando nessa relação com C, ao exprimir ou representar a mônada B exprime-a ou a representa também como estando nessa mesma relação com C (já que essa é a representação que B faz de sua relação com C). Mas como a representação por A dessa relação implica ao mesmo tempo a representação de que B não tem e não pode ter essa mesma relação com C, a presença de A e B em um mesmo mundo atualizado criaria uma contradição. Ou seja, A representaria ao mesmo tempo que B não tem essa relação e que B tem essa relação (um raciocínio semelhante valendo para as representações de B).

Isso implica, como já deve ter ficado claro — e este é meu segundo ponto de discordância —, que não vejo como se poderiam conceber substâncias independentemente do mundo possível que as conteria (em outras palavras, de seu "espaço de atualização"). Uma vez que o mundo harmônico escolhido por Deus é um mundo cujas substâncias se entre-exprimem completamente, o conceito completo de cada uma dessas substâncias contém ao mesmo tempo, como representação, todo o mundo em que ela se insere. O mundo é, portanto, concebido e criado juntamente com as substâncias individuais. Ou antes, ele é concebido nas e pelas substâncias individuais, e por isso não poderia transcender suas diversas visões perspectivas.

Artigo recebido em jan./2004 e aprovado em fev./2004.

  • 1
    Este brevíssimo comentário foi escrito a convite de Edgar Marques, após uma conversa nossa sobre a primeira versão de seu artigo. Todas as citações que faço em meu texto referem-se a esse mesmo artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
    Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG Av. Antônio Carlos, 6627 Campus Pampulha, CEP: 31270-301 Belo Horizonte MG - Brasil, Tel: (31) 3409-5025, Fax: (31) 3409-5041 - Belo Horizonte - MG - Brazil
    E-mail: kriterion@fafich.ufmg.br