RESENHAS
O conceito grego de natureza
Marcelo P. Marques
Professor do Departamento de Filosofia, FAFICH UFMG, Belo Horizonte, Brasil. marquess56@yahoo.com.br
NADDAF, Gerard. The greek concept of nature. Albany: State University of New York Press, 2005.
O presente estudo sobre o conceito grego de natureza, desenvolvido pelo pesquisador canadense Gerard Naddaf, é o desdobramento de um trabalho mais amplo, publicado em 1992, L'origine et l'évolution du concept grec de phusis, que o autor decidiu aprofundar e detalhar em três etapas, sendo o presente livro a primeira delas. Os dois próximos volumes serão Plato and the peri phúseos tradition e Living in conformity with nature (cujo foco será Aristóteles e a tradição helenística). A opção por uma perspectiva histórica de pesquisa se justifica, segundo o autor, pela riqueza de fontes, primárias e secundárias, assim como pela complexidade da própria temática da natureza, que, de fato, fica evidente nas inúmeras controvérsias das quais tem sido objeto, ao longo dos séculos.
O livro de Naddaf tem como motivo propulsor a tentativa de esclarecer a passagem do livro X das Leis de Platão, no qual o Estrangeiro de Atenas critica as concepções de natureza de todos os que escreveram peri phúseos. Segundo o autor, essa crítica se justificaria por eles nunca terem admitido a noção de "intenção" (implícita na noção de tékhne) na explicação do universo, o que estaria na base do "ateísmo" da época. Permito-me lembrar que, no Timeu de Platão, essa questão se resolve "miticamente", ou seja, através de um relato que é chamado de eikós múthos ou discurso verossímil (um discurso no qual há uma prevalência do registro da semelhança, típica da representação imagética Timeu 29D2, 59D6 etc.). Através de uma grandiosa imagem narrativa, Timeu propõe que o mundo foi produzido por um artesão divino (demiourgós) que, tendo no horizonte as formas inteligíveis, infunde inteligibilidade no receptáculo (khóra) ou material do qual é feito o universo. Essa mistura resultaria no melhor arranjo cósmico possível, no qual a Inteligência (noûs) das leis da geometria imposta à Necessidade (anánke) resultaria num mundo ordenado e belo, ou seja, a natureza (phúsis) tal como a conhecemos e na qual está incluída também a pólis. Na medida em que os pensadores da natureza anteriores a Platão não postulam um tal deus inteligente, no início de tudo, eles seriam passíveis de serem criticados por ateísmo.
Naddaf pretende reconstruir o movimento de pensamento que levou Platão a formular e tentar resolver o problema do modo como o faz; por isso retoma as principais representações míticas e teorias filosóficas que, de um modo ou de outro, explicam a phúsis. Desde Hesíodo, os autores seguem um esquema em três partes, na medida em que elaboram a compreensão das coisas através da busca da origem do universo, do ser humano e da comunidade política, ou seja, cosmogonia, antropogonia e politogonia articulam-se para dar conta da totalidade da natureza. Segundo Platão, para Hesíodo, por exemplo, os deuses surgiriam depois do universo, sendo que, no relato de Timeu, a divindade está presente desde o início. De qualquer modo, investigar a phúsis significa explicar o presente, ou o universo em seu estado atual, tal como o conhecemos hoje.
Vejamos a estrutura do livro em questão. No capítulo 1, é feita uma pesquisa sobre o sentido de "natureza", através de um estudo etimológico e da análise de alguns textos fundamentais (na sua maioria, traduzidos pelo próprio autor): Odisséia X, Heráclito, alguns tratados hipocráticos, um fragmento de Eurípides, Xenofonte, Aristóteles e, finalmente, o livro X das Leis de Platão. O termo phúsis suscita diferentes camadas de significação crescimento de algo, matéria primordial (ou origem), processo e resultado que o autor vai articular numa concepção unificada, também através da análise das diferentes abordagens dos especialistas (Burnet, Gigon, Jaeger, Heidel, Kahn, Barnes, entre outros). É difícil resolver se o título historía perí phúseos, aplicado aos escritos dos diferentes pensadores, foi de fato utilizado já pelos ditos pré-socráticos, mas é certo que foi empregado no período Alexandrino, para designar uma pesquisa sobre a origem e o desenvolvimento do mundo, do começo até hoje.
O texto platônico (Leis X 889A et seq.) critica a concepção segundo a qual a ordem do universo seria estabelecida por natureza ou por acaso (phúsin kai túkhen), uma ordem na qual a arte (tékhne) teria um papel secundário. Os primeiros elementos seriam privados de vida ou sem alma (ápsukhon) e mover-se-iam arbitrariamente, devido a combinações aleatórias, ou seja, não através do intelecto (ou dià noûn) (que Naddaf traduz, com Saunders, por intelligent planning), nem através de algum deus, mas simplesmente por natureza e por acaso. É curioso observar que Naddaf (assim como a tradução francesa de Diès) introduz o termo criação, inexistente no original grego (creations of art / les créations les plus grandes). A arte teria nascido depois (a tékhne é um ser mortal, produto de mortais), incluindo a política e a legislação, cujas determinações não seriam verdadeiras. Essa visão das coisas seria imposta por homens supostamente sábios aos jovens, de modo que a impiedade acabaria por tomar conta, e prevaleceria a noção de que os deuses não são como a lei (ou o costume) prescreve que sejam. Isso explicaria as revoltas (stáseis) e o modo de vida relacionado, que consiste em dominar os outros e não em servi-los. Nessa concepção criticada pelo Estrangeiro de Atenas, a natureza seria a matéria primordial, ou seja, os elementos que, movidos por uma suposta causalidade espontânea, geram (ou movem), por sua vez, todas as coisas, segundo seus próprios poderes, sem a postulação de uma inteligência produtora, enquanto tal.
No capítulo 2, são analisadas as concepções implícitas nos mitos cosmogônicos, considerados como antecedentes importantes dos tratados peri phúseos. O autor apresenta uma noção de mito perfeitamente sintonizada com a reflexão de autores contemporâneos (como Calame, Burkert, Eliade e Nagy, entre outros), passa rapidamente pelo poema cosmogônico (épico) babilônico Enuma elish, provavelmente do século XII a.C., para se concentrar nos poemas de Hesíodo a Teogonia e os Trabalhos e os dias , que analisa de modo original e instigante, ao valorizar o contexto histórico de sua produção. Os poemas cosmogônicos e antropogônicos são associados às circunstâncias políticas de renovação e manutenção do poder na cidade. Na Teogonia e nos Trabalhos e os dias, diferentes grupos sociais encontram expressão poética e, digamos, ideológica, com seus respectivos valores e concepções de excelência. O poema sobre a natureza do cosmo e dos homens , ao se desvincular da dimensão performativa dos rituais, encontra continuidade na pesquisa cada vez mais racional da natureza, expressa nos escritos dos filósofos pré-socráticos.
Todo o Capítulo 3 é dedicado a Anaximando de Mileto (610-546 a.C.), considerado o primeiro relato racional, em prosa, do tipo peri phúseos. A análise de Naddaf renova e enriquece de modo decisivamente original a compreensão do filósofo jônico, ao recuperar as informações dos fragmentos doxográficos, sob o crivo da confrontação dos argumentos dos diferentes críticos especializados. Ele encontra um equilíbrio bastante convincente entre a conjetura especulativa e a convergência de dados historiográficos, para propor, de modo meticuloso, um pensamento articulado e surpreendentemente diversificado. No âmbito de uma investigação filosófica sobre a natureza das coisas (historía peri phúseos), Anaxágoras proporia causas racionais e naturais, já separando, de algum modo, a dimensão cosmológica da antropológica. Naddaf passa pela discussão do ápeiron como arkhé, levando em conta tanto a fonte aristotélica como a análise lingüística do termo; apresenta a cosmologia, com a descrição do surgimento e desenvolvimento dos opostos, a constituição dos círculos das estrelas, da Lua e do Sol, em volta da Terra; discute suas fontes prováveis mítica, astronômica, arquitetônica e política , mantendo a possibilidade de convivência das diferentes ordens de fatores, mas priorizando a dimensão política do pensamento filosófico emergente. Discute, ainda, as relações entre isonomia política e natureza, entre cosmologia e ordem social, entre os seres humanos e os animais, a formação da comunidade humana e, finalmente, as relações da civilização jônica com a cultura egípcia, a partir dos testemunhos de Heródoto e Hecateu. O capítulo culmina com a apresentação do mapa elaborado por Anaximandro, a primeira imagem geográfica do ecúmeno grego, que sintetiza cosmologia, geografia e política em uma filosofia tipicamente da natureza, ou seja, na qual o termo phúsis é compreendido como o processo de surgimento e de desenvolvimento da totalidade dos seres até o momento presente.
O capítulo 4 vai de Xenófanes aos Atomistas, num grande panorama das pesquisas pré-socráticas sobre a natureza: Xenófanes de Colofon, Pitágoras e os pitagóricos, Heráclito, Parmênides, Empédocles, Anaxágoras, Leucipo e Demócrito. O autor apresenta cada um dos filósofos, expõe suas posições filosóficas sobre a natureza dos seres, no cosmo e na comunidade humana, levando em conta os textos, com rigor e originalidade analítica, numa profusão impressionante de fontes, tanto antigas como modernas. Todas as afirmações e opções hermenêuticas são sustentadas, seja por referências textuais, seja pela confrontação dos argumentos dos diferentes comentadores.
O livro apresenta 50 páginas de Notas, nas quais não só o autor dá as referências, mas também discute as posições contrastantes; uma Bibliografia extensa, atual e extremamente útil para o pesquisador em filosofia pré-socrática, além dos Índices, um de Conceitos e de Nomes próprios e o outro das Passagens clássicas citadas.
Sua conclusão retoma a questão inicial, pondera os resultados obtidos de fato e inicia uma discussão com os poetas (Aristófanes e Ésquilo), que mais anuncia os desdobramentos da pesquisa (previstos para o próximo livro) do que efetivamente avalia o papel das pesquisas do tipo historía perì phúseos na reação do Platão das Leis.
Fica a questão inicial, a saber, se a pesquisa efetivamente desenvolvida no livro, para além de seus méritos inerentes, é o melhor caminho para interpretarmos a crítica ao ateísmo, nas Leis, ou se a posição platônica deve ser esclarecida através dos referenciais internos ao pensamento do próprio Platão. De um modo geral, considero discutível a necessidade de se fazer um percurso histórico para esclarecer um problema claramente interno à filosofia dos diálogos. A meu ver, as concepções platônicas de intelecto (noûs) e do deus artesão (demiourgós) não se deixam traduzir facilmente por "intenção inteligente", tanto se levarmos em conta a psicologia da República, reiterada no Timeu, como se refletirmos sobre a noção de eikós mûthos que designa o estatuto do discurso cosmológico platônico. Historicamente falando, o mito cosmológico platônico não se opõe linearmente às pesquisas pré-platônicas sobre a natureza. A oposição (apontada no livro X das Leis) é um construto de Platão, que, mais uma vez, fabrica uma versão dos pensadores que lhe são anteriores, para melhor destacar sua própria posição.
Observo, também, a desigualdade do tratamento dado aos pré-socráticos, em geral. O capítulo 4, que repassa os diversos filósofos, mesmo sendo extremamente informativo, serve mais para levantar problemas do que para aprofundá-los. Talvez a decisão se justifique pelo próprio recorte global do livro; o detalhe com que é tratada a visão de Anaximandro acaba por compensar a generalidade com que são tratados os outros autores.
De qualquer modo, os méritos da pesquisa apresentada são muitos: trata-se de interpretações originais dos diversos autores estudados, de um exemplo de rigor metodológico a ser seguido, de uma referência atualizada das fontes, antigas e modernas, de valor inestimável. Em suma, o livro de Naddaf propicia ótima leitura, tanto pela leveza da redação, como pelo ritmo argumentativo, que transforma as discussões eruditas e minuciosas em reflexão instrutiva e estimulante.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Fev 2008 -
Data do Fascículo
Dez 2007