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O internalismo pode integrar uma análise correta do conceito de conhecimento?

Resumos

Este ensaio tenta mostrar, na conjuntura da disputa com o externalismo, que a proposta internalista de justificação doxástica não se mostra eficaz para a obtenção de uma análise correta do conceito de conhecimento. Para provar tal ponto, primeiro tentamos fixar um conjunto de elementos que acreditamos permitir-nos efetuar uma avaliação adequada da proposta internalista. Por isso, o ensaio tenta estabelecer, de modo mais preciso possível, a questão filosófica que, de fato, é disputada por aquelas propostas. Após determiná-la, o ensaio tenta extrair uma ou mais respostas internalistas àquela questão. Com a resposta internalista em mãos, tentamos demonstrar que ela é falsa e que, por esta razão, não serve para obtermos uma análise verdadeira do conceito de conhecimento.

Conhecimento; Justificação; Internalismo; Externalismo


This essay tries to show, inside the internalism-externalism dispute, that internalist theory of doxastic justification in useless in obtaining conceptual analysis of knowledge. To show this point, first we try to fix a basis through which we could make an adequate evaluation of the internalist proposal. So, this essay tries, in the most accurate way, to fix the philosophical question in dispute by those proposals. After enunciating it, this essay tries to draw one or more responses from the internalist proposal. With the internalist response in hands, we try to show that it is false and, therefore, that it is not useful to obtain a true analysis of the concept of knowledge.

Knowledge; Justification; Internalism; Externalism


ARTIGOS

O internalismo pode integrar uma análise correta do conceito de conhecimento?1 1 A reflexão que aqui empreenderemos em torno do problema do conhecimento estará vinculada, basicamente, ao conhecimento de proposições contingentes. A propósito, o uso que fazemos ordinariamente do termo "conhecimento" pode ser ambíguo. Mais: a ambigüidade do termo "conhecimento" pode não se restringir àqueles casos banais em que instâncias de uso desse termo significam conceitos totalmente distintos entre si. Por exemplo, quando dizemos de alguém que ele sabe fazer uma cirurgia cerebral ou que sabe como pilotar um fórmula-1 estaríamos usando o termo "saber" para significar um conceito que possui uma análise totalmente diferente de quando usamos o termo "saber" dizendo que alguém sabe que Brasília é a capital do Brasil. Nesses casos, o termo "saber" significa conceitos totalmente distintos entre si. No primeiro, "saber" está ligado à atribuição de conhecimento proposicional. No segundo, a ligação é com a atribuição de procedimento eficiente em relação a alguma ação/operação executada pelo respectivo sujeito. Nossa advertência aqui é a de que podemos deparar com uma ambigüidade diferente dessa que acabamos de exemplificar. Estamos nos referindo a casos em que um determinado termo significa conceitos diferentes, sim, mas que possuiriam uma análise apenas parcialmente diferente entre si. Em tais casos, usaríamos o termo "saber" significando, numa determinada situação, um conceito que, se analisado apresentaria, por exemplo, a composição conceitual F, G e H, e, noutra situação, o mesmo termo significaria um conceito que, se analisado, apresentaria a composição conceitual F e G. O ponto então é o seguinte: qual seria a análise correta – ou seja, verdadeira e completa – do conceito de saber? Nossa resposta é simples: se usamos ambos conceitos em nossas atribuições, então temos, pelo menos, duas diferentes análises corretas para os conceitos significados por aquele termo. Assim, se um filósofo fixasse a meta de analisar o conceito-Φ, ele poderia alcançá-la obtendo qualquer uma das propostas que analisasse corretamente um daqueles conceitos que são significados por "Φ" e que ele utiliza em suas atribuições reais ou hipotéticas.

Emerson Carlos Valcarenghi

Professor do Departamento de Filosofia da UFPI. ecvalcarenghi@yahoo.com.br

RESUMO

Este ensaio tenta mostrar, na conjuntura da disputa com o externalismo, que a proposta internalista de justificação doxástica não se mostra eficaz para a obtenção de uma análise correta do conceito de conhecimento. Para provar tal ponto, primeiro tentamos fixar um conjunto de elementos que acreditamos permitir-nos efetuar uma avaliação adequada da proposta internalista. Por isso, o ensaio tenta estabelecer, de modo mais preciso possível, a questão filosófica que, de fato, é disputada por aquelas propostas. Após determiná-la, o ensaio tenta extrair uma ou mais respostas internalistas àquela questão. Com a resposta internalista em mãos, tentamos demonstrar que ela é falsa e que, por esta razão, não serve para obtermos uma análise verdadeira do conceito de conhecimento.

Palavras-chave: Conhecimento; Justificação; Internalismo; Externalismo.

ABSTRACT

This essay tries to show, inside the internalism-externalism dispute, that internalist theory of doxastic justification in useless in obtaining conceptual analysis of knowledge. To show this point, first we try to fix a basis through which we could make an adequate evaluation of the internalist proposal. So, this essay tries, in the most accurate way, to fix the philosophical question in dispute by those proposals. After enunciating it, this essay tries to draw one or more responses from the internalist proposal. With the internalist response in hands, we try to show that it is false and, therefore, that it is not useful to obtain a true analysis of the concept of knowledge.

Keywords: Knowledge; Justification; Internalism; Externalism

1 Considerações iniciais

Para respondermos corretamente à pergunta-título, precisaremos antes fazer algumas considerações. Uma delas é a de que nossa resposta, quer seja positiva, quer negativa, será dada no âmbito da disputa internalismo vs. externalismo em relação à obtenção de uma análise correta do conceito de conhecimento. Mais especificamente ainda, nossos esforços estarão concentrados na disputa em torno da análise do conceito de justificação da crença pró-análise do conceito de conhecimento.2 2 Considerando que a disputa em questão se dá em torno do problema da justificação da crença dentro da tentativa de resolver o problema do conhecimento, não iremos examinar os problemas da justificação da dúvida ou da suspensão do juízo Por isso, aqui serão relevantes apenas propostas postulando que, se um indivíduo qualquer conhece uma determinada proposição, então esse indivíduo está justificado em crer naquela proposição. Queremos chamar tais propostas de "justificacionistas" e propor-lhes a seguinte análise parcial:

(PJ-nista) Sejam S um indivíduo e P uma sentença declarativa quaisquer, uma proposta de análise do conhecimento é justificacionista se e somente se ela postula a necessidade da ocorrência e do relacionamento de um ou mais fatores internos a S para com a crença de S de que P.3 3 Exemplo de proposta não-justificacionista na análise do conhecimento é a proposta causalista de Goldman em A Causal Theory of Knowing. Nessa obra, não é difícil constatarmos o quão irrelevante é, para a obtenção de uma análise do conhecimento, a exigência de um fator interno a S em correlação com crença de S.

Nesse caso, quer uma proposta seja internalista, quer seja externalista, sendo ela justificacionista, terá de exigir que a crença de S esteja associada a um ou mais fatores internos a S para que a crença de S esteja justificada. Nesse caso, temos uma questão para resolver: Se, para ser justificacionista, uma proposta necessita exigir que fatores internos a S estejam em correlação com a crença, poderia uma proposta externalista ser justificacionista? Uma resposta poderá ser dada através de um contraste entre postulados expressos em propostas externalistas e internalistas. Ou seja, enquanto propostas internalistas postulam que apenas fatores internos a S são relevantes para a justificação doxástica,4 4 Em rigor, mesmo entre propostas internalistas, pode haver divergência quanto ao tipo de fator interno a S que é relevante para a justificação. Por exemplo, um internalismo mentalista postula que apenas fatores mentais são relevantes à justificação. Um internalismo não-mentalista postularia que apenas fatores internos a S seriam relevantes para a justificação, porém sem exigir que sejam exclusivamente mentais. O internalismo tradicional é mentalista, como podemos constatar ao examinarmos os postulados acessibilistas dessa concepção (ver Conee e Feldman, em Internalism Defended, p. 2). O internalismo, dito "acessibilista" ou "de acesso", exige apenas fatores mentais como fatores da justificação, em razão de que seriam os únicos aos quais o sujeito tem acesso. Mas há uma ambigüidade nessa fala acessibilista. É que podemos falar tanto de uma acessibilidade ontológica, relativa a fatores que seriam ontologicamente acessíveis ao sujeito, quanto de uma acessibilidade cognitiva, ou seja, relativa a fatores que seriam cognitivamente acessíveis ao sujeito. Mas, então, qual seria o tipo de acessibilidade postulada pelo internalismo em questão? Qualquer um que tente responder a essa pergunta precisa considerar que até mesmo fatores externos seriam acessíveis a S. Sim, fatores externos, ainda que não possam ser ontologicamente acessíveis, podem ser cognitivamente acessíveis ao sujeito. Por exemplo, se S crê verdadeiramente numa proposição, então S mantém um acesso cognitivo aos fatores que tornam verdadeira a proposição objeto de sua crença. Se ele não pudesse ter um acesso cognitivo a fatores externos, o ceticismo acerca do conhecimento de proposições contingentes seria ele mesmo implicado pela análise correta do conceito de conhecimento. Ou seja, o termo "conhecimento" possuiria uma definição inconsistente, tal como a definição de "quadrado redondo", etc. Sendo assim, o tipo de acessibilismo do internalismo acessibilista só poderia ser o de tipo cognitivo. Mas, se é esse o acessibilismo do internalismo de acesso, temos de concluir que não há qualquer disputa contra o externalismo justificacionista. Isso porque a última também sustenta a possibilidade de acesso cognitivo do agente ao fator, ou fatores, que tornam sua crença justificada. Mas, se a disputa internalistas vs. externalistas não se dá em torno da questão da possibilidade do acesso cognitivo, dá-se em torno do quê? Alguém poderia sugerir que ela gira em torno da exigência de que, para estar justificado, o sujeito tem de acessar o(s) fator(es) interno(s) de sua justificação. Nós achamos que esta resposta não serve porque não faz jus à disputa internalismo-externalismo em discussão, mas à eventual disputa entre internalistas que exigiriam aquele acesso e internalistas que não o exigiriam. Tais considerações mostram que a única disputa possível entre internalistas e externalistas justificacionistas é sobre se fatores externos a S têm ou não relevância na justificação. propostas externalistas justificacionistas postulam que fatores externos a S são também relevantes para a justificação doxástica.

Conforme dissemos há pouco, é na disputa internalismo vs. externalismo em justificação doxástica pró-análise do conhecimento que estamos interessados aqui. No entanto, queremos fazer uma restrição ainda maior no exame dessa disputa. Ou seja, queremos limitar nossa preocupação neste artigo às propostas justificacionistas modais de análise do conhecimento. Mas o que seria uma proposta modal de justificação da crença pró-análise do conhecimento? Nossa resposta é a seguinte:

(PJ-nista modal) Se uma proposta justificacionista pró-análise do conhecimento é modal, então ela estabelece que, se S está justificado numa crença, S usa um ou mais de seus fatores internos como um modo para alcançar conhecimento.5 5 Em especial, as epistemologias de Sosa, Foley e Goldman exibem, pelo menos, um elemento que consideramos próprio de uma justificação modal. Sosa, por exemplo, diz que: "A adequação ("aptness") de uma crença B em relação a um ambiente E exige que B esteja numa relação com E, que provenha de uma virtude intelectual (que é um modo de obtenção de crença) cuja preponderância de verdade sobre erro, considerando-se o campo de proposições e o contexto envolvido, seja apropriada" ( Knowledge in Perspective: Selected Essays in Epistemology, p. 144, grifo nosso. Veja-se, também: Epistemic Justification: Internalism vs. Externalism, Foudations vs. Virtues, p. 104, 2º § em diante). R. Foley afirma que: "... a distinção entre razões epistêmicas e não-epistêmicas da crença se dá através dos fins, ou das metas, as quais a razão visa promover" (Epistemic Justification. In: Routledge Encyclopedia of Philosophy, CD-ROM). Quanto a Goldman, pelo menos um elemento da justificação modal está presente em sua teoria ao postular que, se S está justificado na crença de que P, então a crença foi produzida/causada por um processo cognitivo confiável, processo cuja composição é apenas de fatores internos a S (conferir em What is Justified Belief? e Epistemology and Cognition, principalmente). A propósito de Goldman, é interessante observar que ele faz uso indistinto dos termos "causar" e "produzir" quando caracteriza a relação mantida entre o processo cognitivo e a crença. Tal uso, porém, pode induzir-nos falsamente sobre suas concepções epistemológicas. Isso porque, apesar de ser verdade que, se x produz y, x causa y, os termos "produzir" e "causar" não são sinônimos. Cabe então uma pergunta acerca de como Goldman entende a questão, ou seja, de acordo com Goldman, processos produzem a crença ou causam-na? Vamos rastrear uma resposta. Em What is Justified Belief?, p. 179, Goldman diz que a justificação de uma crença é função da confiabilidade do processo, ou processos, que a causam. Diz também que o processo que justifica uma crença inclui esta crença como seu output (ver Reliabilism. In: Routledge Encyclopedia of Philosophy, CD-ROM). Com base nessas afirmações, alguém poderia ser levado a crer que Goldman se compromete com a idéia absurda de que o processo causa a crença que o constitui. Outros textos de Goldman, porém, permitem salvar, pelo menos, parcialmente a situação. Por exemplo, em What is Justified Belief?, p. 181, Goldman afirma o seguinte: "É claro, nós também queremos falar de um processo como causando uma crença. Mas, quando nós dizemos que uma crença é causada por um dado processo, tomando-o como um procedimento funcional, nós poderíamos interpretar esta declaração como significando que a crença é causada pelos inputs particulares do processo (e pela intervenção de eventos 'através dos quais' o procedimento funcional converte os inputs no output) na ocasião em questão." Agora, então, somos levados a crer que Goldman assume que o que causa a crença é o input que compõe o processo, não o próprio processo. Nesse caso, a crença-final seria o output do processo e não o item que é causado pelo processo. Porém, no mesmo texto (ver, principalmente, o fragmento entre parênteses) Goldman sugere que a crença seria causada pelo processo, pois ele alega que a crença também seria causada pela intervenção de eventos mediante os quais o procedimento funcional converteria inputs num output. Mas os eventos mediante os quais um procedimento funcional transforma inputs num output são justamente os eventos que caracterizam aquele processo. De acordo com isso, seriam o input e o processo que causariam a crença. Felizmente, ainda em What is Justified Belief?, p. 189, Goldman declara algo que, aparentemente, permite-nos desfazer a dificuldade em foco. Ao propor a adição de mais uma cláusula na análise da justificação, ele não fala mais em processos causando ou produzindo crença, mas em processos resultando crença. Bem, em que medida esta nova terminologia realmente faz diferença para a teoria de Goldman, é algo que permanece uma incógnita para nós. De qualquer modo, esse último termo nos permite acreditar que a tese de Goldman, com a qual poderíamos responder à pergunta posta anteriormente, é a de que o que causa a crença é o input do processo, não o processo.

A proposta anterior permite-nos introduzir um novo problema, a saber: o que é um modo de S para alcançar conhecimento? Vamos responder a essa pergunta em duas etapas: primeiro, vamos oferecer uma definição geral para o conceito de modo de S. Depois, considerando que, dentre as diferentes metas/propósitos/objetivos etc. de S, as que mais nos interessam aqui são as metas/propósitos/etc. epistemológicos de S, ofereceremos uma definição específica para o conceito de modo epistemológico de S. Ou seja:

(DMS) m é um modo de S = Df m é um conjunto de procedimentos executados por S para alcançar uma determinada meta/propósito/etc. de S. (DMES) m é um modo epistemológico de S = Df m é um conjunto de procedimentos executados por S para alcançar sua meta/propósito/etc. de adquirir conhecimento.

Se considerarmos que um modo é algo que algo, ou alguém, faz no tempo-t para alcançar em t' uma determinada meta (onde t'> t), então um modo é um conjunto/seqüência de procedimentos (ações e/ou operações) que um agente executa para alcançar uma determinada meta. E, sendo assim, o conceito de modo não pode ser definido independentemente do conceito de meta. Em outras palavras, ao atribuirmos o conceito de modo a certos procedimentos de um agente, nós também atribuímos ao usuário daquele modo o conceito de posse de uma meta. Isso posto, poderíamos agora perguntar se o conceito de meta poderia ser analisado independentemente do conceito de modo. Ou, em suma, se poderíamos atribuir o conceito de meta sem atribuirmos o conceito de modo. Nós acreditamos que sim e, para prová-lo, faremos uso do seguinte exemplo: primeiro, vamos imaginar alguém – S – do qual disséssemos proceder de modo a alcançar sua meta de ter uma vida saudável. De acordo com o que enunciamos antes, quando atribuímos o conceito de modo aos procedimentos adotados por S, também atribuímos a S o conceito de ter uma meta. Nesse caso, ao dizermos de S que ele procede de modo a alcançar sua meta de ter uma vida saudável, também dizemos dele que tem como meta ter uma vida saudável. Agora vamos supor que o agente de nosso exemplo parasse de proceder tal como imaginamos no início de nossa hipótese, porém, tudo mais permanecendo o mesmo. O ponto é se deixaríamos, ou não, de atribuir a S a meta de viver uma vida saudável. Nossa resposta é a de que não deixaríamos de fazê-lo. Sendo esse o caso, estaríamos dizendo que S tem a meta de ter uma vida saudável, porém sem lhe atribuir a execução de qualquer modo para alcançar aquela meta. Em suma, isso nos permite afirmar que, se algo é uma meta, então tal coisa está correlacionada a um modo, porém não o inverso. As considerações anteriores também nos permitem concluir que: se uma proposta de análise do conhecimento é justificacionista modal, ela estabelece que, se S sabe que P, S executou um modo para alcançar sua meta de obter conhecimento.

As seguintes objeções, porém, poderiam ser efetuadas contra (DMES):

(1) (DMES) está comprometida com a tese de que justificação implica controle voluntário da crença por parte do agente; (2)

Há uma circularidade envolvendo (PJ-nista) e (DMES), em razão de que ambas utilizam os termos sinônimos "conhecimento" e "epistemológico" em ambos os lados da definição.

Tratemos, por enquanto, apenas da objeção-(2). Ela será anulada ao vermos que a circularidade definicional pode ser eliminada com razoável facilidade. Para tanto, vale lembrar que uma proposta correta de análise do conhecimento de S de que P deve expressar o fator que elimina a acidentalidade entre a crença verdadeira de S de que P e o fato ou fatos que tornam tal crença verdadeira. Se assumirmos que a justificação seria o fator que permitiria eliminar a acidentalidade entre a crença verdadeira e o fato que torna essa crença verdadeira, então a eliminação daquela circularidade se daria com a seguinte redefinição de (PJ-nista modal) e (DMES):

(PJ-nista modal') Se uma proposta justificacionista de análise do conhecimento é modal, ela estabelece que, se S está justificado, então S usa um ou mais de seus fatores internos como um modo epistemológico para alcançar sua meta de formar, ou, então, ratificar crenças.6 6 Para mais detalhes sobre a diferença entre os conceitos de formação e de ratificação da crença, ver minha tese de doutorado O confiabilismo processual de A. I. Goldman e o problema da generalidade (PUC-RS/2004). (DMES') Se m é um modo epistemológico de S = Df m é um conjunto de procedimentos executados por S para alcançar sua meta de formar, ou ratificar, crença verdadeira não acidentalmente.

As propostas (DMS), (DMES') e (PJ-nista modal') tornam oportuna a formulação de uma série de problemas7 7 Esses problemas, os quais se relacionam de uma maneira especial com aquelas propostas, são o que gostaríamos de chamar de "problemas de micro-análise". Problemas de micro-análise têm a ver com a análise de conceitos que são veiculados numa determinada proposta de análise. A fim de tornar o ponto mais claro, vamos tomar a sentença "O que é Φ?" para ser a sentença esquemática dos problemas ou questões filosóficas (onde "Φ" é um símbolo para termos conceituais). Agora vamos supor que a seguinte proposta de análise completa para o conceito-Φ seja verdadeira: a é Φ = Def a é Ψ e a é Ω. Ora, embora uma definição encerre uma tentativa de análise completa, ainda assim poderíamos tentar dar continuidade a nossa tarefa analítica, tentando analisar, agora, os conceitos expressos no definiens de nossa proposta como, por exemplo, o conceito-Ψ. Em suma, um problema como o que é significado por "O que é Ψ?" se constitui em um problema de micro-análise do conceito-Φ por se tratar de um problema de análise relativo a um dos conceitos que constituiria aquele. Daí, podemos concluir que, somente após resolvermos também as questões de micro-análise envolvendo um determinado conceito, é que podemos dar por encerrada nossa tarefa analítica em relação ao conceito-Φ. que se relacionam de uma maneira especial com aquelas propostas. Nossa próxima tarefa será formular aqueles problemas, prover-lhes uma resposta e lidar com algumas objeções dirigidas contra tais respostas:

2 O que é um modo de S alcançar uma meta?

Para iniciarmos uma resposta à questão acima, vamos supor que S assiste ao noticiário do tempo e que esse procedimento faz com que S forme a crença de que está chovendo em Porto Alegre. Isso posto, vamos, num segundo momento, modificar nossa hipótese de modo a inverter a ordem temporal entre o evento da crença e o evento de assistir ao noticiário de S. Considerando a modificação promovida no agente de nossa hipótese, diríamos que o fato de S assistir ao noticiário foi o modo pelo qual S obteve sua crença? Não, não o faríamos. Sendo assim, podemos estabelecer que as atribuições que fazemos com o conceito de modo que alcança uma meta carregam consigo a atribuição de que o modo precede temporalmente à realização da meta. Isso nos permite a seguinte análise parcial para o conceito de modo de S que alcança uma meta de S:8 8 Aqui estamos assumindo que o conceito de alcançar é um conceito que atribuímos somente a modos de S e, sempre, numa correlação com suas metas.

(PO) Se o modo-m de S alcança a meta-µ de S, a ocorrência do modo-m é anterior à realização da meta-µ.

Apesar de verdadeira, (PO) não é correta, pois ainda não exibe o conjunto completo de cláusulas que analisam o conceito de um modo que alcança uma meta. Para constatá-lo, vamos retomar a hipótese anterior na qual a crença de S fora obtida pelo fato de ele ter assistido ao noticiário do tempo. Passemos, agora, à suposição de que o fato de S ter assistido ao noticiário do tempo não tenha causado aquela crença de S. O ponto, nesse caso, é se continuaríamos a dizer que o modo pelo qual S obteve sua crença foi o fato de ele ter assistido ao noticiário do tempo. Mas não, não o faríamos. Ou seja, num caso em relação ao qual negamos uma atribuição de causalidade entre um procedimento de S e uma crença de S tem como reação adicional de nossa parte negar a atribuição do conceito de modo que alcança uma meta. Tais considerações nos permitem melhorar (PO) para:

(PO') Se o modo-m de S alcança a meta-µ de S, então a ocorrência do modo-m de S causa uma ou mais instanciações da meta-µ de S.9 9 Por "uma ou mais instanciações de uma meta" queremos dizer algo como "uma ou mais realizações do evento que constitui o conteúdo de uma meta". Por exemplo, vamos supor que S tenha como meta escalar o Everest. A instanciação da meta de S, nesse caso, será o fato de S escalar o Everest, quantas vezes for o caso. Sendo (PO') verdadeira, torna-se verdadeiro que, se o modo-m causa a meta-µ, ele antecede à meta-µ. Nesse caso, podemos ver que, mesmo sendo verdadeira, (PO) pode ser descartada, pois foi absorvido por (PO').

E, se combinarmos (PO') com algumas das propostas já feitas anteriormente, obteremos a seguinte conclusão: se m é um modo epistemológico de S, então a execução de m por S causa a realização de uma ou mais instâncias de sua meta de formar/ratificar não acidentalmente crença verdadeira. E, sendo assim, também podemos concluir que, se uma proposta de análise do conhecimento é justificacionista e também modal, então essa proposta postula a necessidade de que o fator interno a S cause-lhe a crença para que a crença se converta em conhecimento.

O que dissemos acima expressa a base pela qual rejeitamos propostas que negam a necessidade de que o(s) fator(es) interno(s) a S cause(m)-lhe a crença de que P para que S saiba que P. No entanto, achamos que a tese anticausalista tem dificuldades suplementares. Para expressá-las, examinaremos um argumento de Sosa, autor que figura como um dos defensores do anticausalismo em teoria do conhecimento.10 10 Ginet também sustenta uma tese anticausalista (conferir em Contra Reliabilism, p. 177). Sosa diz que:

Diferentemente do confiabilismo histórico, essa visão [a dele] não exige que haja um processo cognitivo conduzindo à crença para que ela satisfaça a forte justificação requerida para que ela se constitua em conhecimento. (Knowledge in Perspective: Selected Essays in Epistemology, p. 138).

A passagem acima exibe uma posição anticausalista porque, quando fala em "processo cognitivo", Sosa se refere mais diretamente à proposta de Goldman, para a qual a exigência causal é canônica. Sosa esclarece que a eliminação da exigência causal tem como propósito garantir a justificação/conhecimento para uma espécie de crença que ele considera paradigma de conhecimento, a saber: as crenças do cogito. Sosa argumenta ainda que as crenças do cogito nos mostram porque a exigência causal é irrelevante. Tal exigência é irrelevante porque as crenças do cogito são simultâneas ao exercício das faculdades do agente daquelas crenças.11 11 Em rigor, nem mesmo o internalismo cartesiano postula, pelo menos explicitamente, a necessidade de que os fatores internos a S e a crença de S tenham uma ocorrência simultânea para que um agente esteja doxasticamente justificado (ver os primeiros parágrafos das Primeiras meditações de Descartes). Embora teorias cartesianistas postulem que o que tem relevância justificacional não é a formação da crença, mas sua revisão reflexiva, nem mesmo tais teorias afirmam, ou presumem, que os fatores justificacionais são eventos posteriores à crença. E tem que ser assim mesmo, pois, numa situação em que S revisa sua crença-P, S, ou irá ratificá-la, ou retificá-la. Ratificando, ou retificando, sua crença-P, a justificação/injustificação dessa crença de S dependerá da qualificação do modo por ele executado antes dessa ratificação/retificação. Se as crenças do cogito são simultâneas ao exercício daquelas faculdades, suas ocorrências não poderiam manter um nexo causal entre si.

Quais seriam, então, as dificuldades suplementares do anticausalismo? Em primeiro lugar, parece-nos que a negação pura e simples da exigência causal permite algo indesejável. Parece-nos que o anticausalismo simples permitiria que S soubesse que P, mesmo que a ocorrência de seu(s) fator(es) interno(s) fosse(m) posterior(es) à ocorrência da crença-P. Em outras palavras, se o anticausalismo sustenta não ser necessário que um ou mais fatores internos a S causem-lhe a crença, tal concepção poderia estar se comprometendo com a tese de que atribuímos conhecimento a um indivíduo cuja crença ocorrera antes da ocorrência de seu(s) fator(es) interno(s). Para tentar tornar nosso ponto ainda mais claro, vamos imaginar que S seja desafiado a formar crença verdadeira acerca de qual carta de baralho S' segura em suas mãos. Vamos supor que as cartas estejam dispostas na forma de um leque, dorso das cartas para S. Vamos supor que, a partir do desafio de S', S forme a crença, por sinal, verdadeira de que se trata de um ás de espadas e que, somente após ter formado essa crença, é que S põe em exercício sua faculdade visual e vê, enfim, um ás de espadas. Nossa reação diante de um caso assim é a de negar a S uma atribuição de conhecimento. De qualquer modo, os anticausalistas podem driblar a inconveniência em foco através da seguinte acomodação: manter a idéia anticausalista de que uma crença não necessita ser causada pelo fator, ou fatores, internos a S para constituir-se em conhecimento, contudo assumindo agora a exigência de que tais fatores sejam executados antes, ou, no máximo, simultaneamente, à ocorrência da crença. Em segundo lugar, parece-nos que não encontra êxito o argumento em favor da tese anticausalista via apelo às crenças do cogito. Parece-nos que o apelo anticausalista às crenças do cogito tem a ver com o fato de que tais crenças seriam incorrigíveis. E, se fossem incorrigíveis, crenças formadas pelo exercício das faculdades do cogito teriam suas verdades garantidas. Se estamos certos em crer que o apelo anticausalista às crenças do cogito tem a ver com a suposta incorrigibilidade de tais crenças, estamos na pista certa. Isso porque a incorrigibilidade de uma crença não garante status de conhecimento ao sujeito que nela crê. Para demonstrá-lo, vamos imaginar alguém que se põe a imaginar diversas situações possíveis. Ele imagina, por exemplo, chuva em Pequim, neve em Toronto, terremoto em Los Angeles, etc. Partindo de tais procedimentos, S seleciona, aleatoriamente, uma daquelas situações imaginadas e vem a crer na proposição a ela correspondente. Por exemplo, ele vem a crer na proposição de que existe alguém que crê. Ora, é claro que a faculdade de S, cujo exercício resultou na crença da proposição de que existe alguém que crê, é tal que lhe garante crença verdadeira. Contudo, não diremos que S sabe que existe alguém que crê. Isso porque o exercício daquela faculdade não eliminou a acidentalidade na obtenção daquela crença. Podemos, então, concluir que, se a base para a rejeição da tese causalista na análise do conhecimento tem a ver com a suposta incorrigibilidade das crenças do cogito, ela não é uma boa base.

3 O que é uma meta/propósito/objetivo/finalidade/etc. de S?

Vamos imaginar alguém do qual disséssemos ter como meta crer em proposições verdadeiras. Vamos supor, agora, que, após efetuarmos algumas modificações no agente sob nossa imaginação, negássemos a ele a atribuição de que deseja crer em proposições verdadeiras. Continuaremos a atribuir-lhe o conceito de ter como meta crer em proposições verdadeiras? Não, não continuaremos. Nesse caso, dispomos de uma prova de que as atribuições que fazemos com o conceito de posse de uma meta envolvem também a atribuição do conceito de desejo do agente em alcançar sua respectiva meta. Desse modo, podemos enunciar a seguinte proposta de análise parcial do conceito de meta/propósito/etc. de S:

(PPM) Se, em t, S tem/possui/etc. a meta tal-e-tal, então, em t, S deseja/quer/etc. tal-e-tal.

Se (PPM) é verdadeira, e se conhecimento é mesmo analisável em termos de uma justificação de tipo modal, então, se S sabe que P, S deseja/quer/etc. crer não acidentalmente em verdades. Assim, uma atribuição de conhecimento a S implica, analiticamente, que S possui como meta alcançar conhecimento e, conforme (PPM), deseja tal coisa. A meta epistemológica não é algo externo ao agente, não se trata de um parâmetro puramente regulativo a ser usado na avaliação epistemológica.

Agora, tentaremos refutar a objeção contra as propostas justificacionistas modais de análise do conhecimento de que elas exigiriam controle voluntário do agente na formação da crença. Iniciemos essa tarefa observando, de início, que essa objeção assume um compromisso com a alegação de que, quando atribuímos a S o conceito de possuir a meta tal-e-tal, também lhe atribuímos o conceito de administração voluntária da seqüência/conjunto de procedimentos executados por S para alcançar sua meta. Ora, se essa alegação fosse verdadeira, não poderíamos, por exemplo, atribuir a um cão o propósito de encontrar comida sem que lhe atribuíssemos também o controle voluntário da seleção daquele propósito e/ou o controle voluntário dos procedimentos usados a fim de realizá-los. Ora, não é o caso que, ao atribuirmos a um cão a meta/etc. de encontrar comida, atribuímos, conjuntamente, o conceito de controle voluntário no gerenciamento dos procedimentos usados a fim de realizá-los. Ao imaginarmos um cão, ao qual atribuímos os elementos de meta e desejo, poderíamos negar-lhe o conceito de administração voluntária na seleção de seus propósitos ou dos procedimentos a serem usados para alcançá-los, mas ainda assim continuaríamos a atribuir-lhe o conceito de meta e o desejo de encontrar comida. E tais considerações nos permitem concluir que a objeção sob exame é falsa.

Outra objeção contra (PPM), e contra outras propostas aqui apresentadas, diz respeito à acusação de que é errônea qualquer proposta de análise do conhecimento que postula a necessidade da ocorrência em S de elementos não-cognitivos, tais como desejo, vontade etc. Porém, parece-nos que não há qualquer impedimento à participação de determinados elementos não-cognitivos numa correta análise do conceito de conhecimento. Na verdade, a objeção em questão será uma oportunidade de provarmos o contrário. Se não, vejamos: supondo-se que conhecimento implica, pelo menos, crença verdadeira, então, quando atribuímos conhecimento a alguém, atribuímos também o conceito de verdade a sua crença. Dado que o conceito de verdade não se trata de um conceito cognitivo, então, ao atribuirmos conhecimento a alguém, estamos desde sempre atribuindo conceitos não-cognitivos. Mas, mesmo que esse argumento não tenha sido suficiente para concluirmos pela falsidade da objeção em jogo, acreditamos que a hipótese a seguir liquidará o assunto: vamos imaginar alguém a quem atribuiríamos saber que P. Isso posto, vamos imaginar que, após efetuarmos algumas modificações no agente sob nossa imaginação, atribuíssemos a ele a meta de formar/ratificar12 12 Daqui em diante, passaremos a usar apenas o termo "formar", ou correlatos, em vez da combinação "formar/ratificar". No entanto, a segunda, ou correlatas, deverão estar subentendidas sempre que usarmos a primeira ou correlatas. somente crenças falsas. Nossa pergunta é: continuaríamos atribuindo o conhecimento de que P ao agente de nossa hipótese mesmo sendo o caso de que passamos a atribuir-lhe a meta de formar só crenças falsas? A resposta é a de que não atribuiríamos. Sendo assim, temos um teste de atribuições que nos permite concluir que, se S sabe que P, então é falso que S tem como meta crer que não-P. Podemos ir além. Para vê-lo, vamos imaginar alguém de quem dissemos saber que P e, após efetuarmos algumas modificações em nosso indivíduo hipotético, passemos a atribuir-lhe a meta de formar apenas crenças ignorantes. Continuaríamos a atribuir-lhe conhecimento de P? Não, não o faríamos. Sendo assim, estamos aptos a crer que: se S sabe que P, então não é o caso que S tem como meta algo que seja conceitualmente incompatível com a meta de alcançar conhecimento.13 13 Em Epistemology and Cognition, p. 63, Goldman oferece uma cláusula anulatória segundo a qual agentes apresentando estados cognitivos incompatíveis não estariam justificados em suas crenças. O que estamos propondo acima é, no entanto, diferente do que Goldman propôs. Mas, ainda que pudesse participar de uma análise verdadeira da justificação, a cláusula anulatória de Goldman permaneceria incapaz de explicar a incompatibilidade ocorrente na hipótese que exibimos acima. Isso porque a cláusula por ele oferecida é tal que encontra aplicação apenas nos casos em que a incompatibilidade manifestada pelo agente é cognitiva e, portanto, não se aplica ao caso daquela hipótese. Mas podemos ir ainda além. Para vê-lo, vamos supor que S ou simplesmente não tem metas, ou tem uma meta que, apesar de não ser conceitualmente incompatível com a meta de alcançar conhecimento, não mantém qualquer vínculo conceitual com ela. Por exemplo, vamos supor que S tenha, em t0, como única meta, a meta de obter conhecimento. Vamos supor ainda que, a partir da execução de procedimentos assim-e-assim, S vem, em t1, a saber que P. Para terminar nossa hipótese, vamos agora supor que, da meta de obter conhecimento, S passe, em t2, para a meta única de comer batata frita no almoço, procedendo, no entanto, exatamente como procedera em t1, vindo, portanto, a crer verdadeiramente que P em t3. Dada a hipótese em jogo, nossa questão é: diríamos de S que ele sabe que P em t3? Não, na verdade, negamos a S que ele saiba que P. Sendo assim, cabe perguntarmos o que deixamos de atribuir a S quando passamos de uma atribuição de conhecimento de que P para uma atribuição de ignorância de que P. A única resposta possível é a de que deixamos de atribuir a S a meta de obter conhecimento. Nesse caso, podemos dizer um pouco mais do que dissemos no início desta seção. Ou seja, agora podemos dizer que, independentemente do conhecimento ser, ou não, analisável em termos de justificação modal, se S sabe que p, então S tem como meta obter conhecimento. E, assim, podemos concluir que não apenas podemos anexar elementos não-cognitivos a uma proposta de análise do conhecimento, mas que devemos fazê-lo, caso tenhamos assumido a meta de analisar aquele conceito.

4 O que é S proceder assim-e-assim para alcançar uma meta que possui?

Embora a pergunta acima solicite uma resposta que expresse a análise do conceito de proceder assim-e-assim etc., nosso trabalho vai limitar-se apenas a enunciar alguns dos conceitos que não fariam parte daquela resposta. Um dos conceitos que queremos mostrar que não pertence a uma proposta correta de análise do conceito em jogo é o conceito de eficácia, ou ineficácia, do modo que S executa para alcançar sua meta. Para provarmos o ponto, vamos imaginar um agente do qual diríamos não apenas possuir a meta de formar somente crenças verdadeiras, mas do qual também diríamos proceder assim-e-assim para alcançá-la. Vamos também imaginar que os procedimentos que constituem o modo que S executa para alcançar sua meta sejam ineficazes para alcançá-la. O ponto agora é: persistiríamos nós em dizer de S que ele procede assim-e-assim para alcançar sua meta? Sim, persistimos em fazê-lo. Ao persistirmos em atribuir-lhe o conceito aqui em jogo, dispomos de um teste atributivo-hipotético que nos dá prova de que o conceito de eficácia de um modo em alcançar uma meta não integra a análise do conceito de S proceder assim-e-assim para alcançar uma meta que possui. Mas tampouco o conceito de ineficácia seria necessário a uma análise correta daquele conceito, pois se, em vez de atribuirmos ineficácia aos procedimentos que constituem o modo de S para alcançar sua meta de crer somente em verdades, atribuíssemos eficácia àqueles procedimentos, nós, ainda assim, continuaríamos a atribuir a S o conceito de que procede assim-e-assim para alcançar sua meta.14 14 Se juntarmos (PPM), (PO') e (DMS), poderemos montar o seguinte condicional: Se a meta de S é, por exemplo, a de obter mais crenças verdadeiras que falsas, então quaisquer procedimentos executados por S, após a fixação dessa meta, serão procedimentos de S para alcançar aquela meta. Em outras palavras, uma vez fixada uma determinada meta por parte de S, qualquer procedimento posterior a tal fixação será, de acordo com o condicional em questão, um procedimento de S para alcançar a meta por ele fixada, independentemente da questão de se os procedimentos executados por S são ou não procedimentos que alcançam aquela meta.

Outro ponto ligado à questão 3 é se as expressões "para alcançar", "para tentar alcançar" e "de alcançar" são sinônimas, quando inseridas no lugar de "..." na expressão "modo ... a meta tal-e-tal". Nosso entendimento é de que não são e pretendemos mostrá-lo através da seguinte hipótese: imaginemos alguém de quem disséssemos ter como meta vencer a prova dos cem metros rasos. Vamos supor também que atribuíssemos, ao modo por ele empregado, jamais alcançar vitória naquela prova, qualquer que fosse a circunstância de seu emprego.15 15 Por exemplo, ao ser dada a largada, o atleta procederia de modo a manter-se sempre ao lado de pelo menos um de seus adversários, ou correria em círculos, ou correria para trás, etc. Mais: poderíamos enfeitar um pouco mais nossa hipótese sugerindo que os procedimentos contra-producentes do atleta seriam motivados por crenças falsas que ele possui, mas que sequer suspeita, acerca dos que envolvem a disputa na qual ele participa. Por exemplo, ele pensa estar correndo para frente quando, por conta de uma alucinação que dura o exato tempo da corrida, corre, na verdade, para trás, etc. O ponto, então, é se continuaríamos a atribuir àquele atleta o conceito de estar executando um modo para vencer a disputa ou para tentar vencer a disputa independentemente do fato de vermos, ou não, nosso atleta hipotético cruzar a linha de chegada em primeiro. Nossa resposta é que continuaríamos a fazê-lo, e, se esse é o caso, temos à disposição um exemplo que nos dá prova de que as expressões "para alcançar" ou "para tentar alcançar", se não são totalmente sinônimas, são intercambiáveis na situação específica que acabamos de descrever. Resta-nos tratar da expressão "de alcançar". Imaginemos, então, outro atleta, atleta de quem diríamos proceder assim-e-assim como sendo um modo de alcançar a vitória daquela prova. Agora vamos imaginar que também atribuíssemos ao modo empregado por esse atleta jamais alcançar vitória da prova dos cem metros rasos, qualquer circunstância em que fosse empregado. O ponto é: continuaríamos a dizer do modo empregado por esse atleta que é um modo de alcançar a vitória dos cem metros rasos? Nossa resposta é negativa e nos permite concluir que nossas atribuições do conceito de modo de alcançar uma meta carregam a atribuição de que o modo causa pelo menos uma instanciação da respectiva meta.

Podemos resumir a etapa anterior dizendo que, ao elaborarmos (PO') e (PPM), pudemos propor a análise de alguns dos conceitos expressos nas propostas (DMES'), (PJ-nista modal') e (DMS), as quais, por sua vez, foram elaboradas com o objetivo de prover subsídios para tratarmos adequadamente da disputa internalismo-externalismo em epistemologia. Na etapa que se segue, vamos fazer uso dos resultados até aqui obtidos para tratarmos daquela disputa.

5 Um exame da disputa internalismo-externalismo

Afirmamos, no início, que, no tratamento da disputa internalismo vs. externalismo, iríamos limitar-nos às propostas modais de justificação pró-análise do conhecimento, deixando intocadas as propostas não-modais. Agora, essa estratégia de redução de escopo irá perder completamente a utilidade, pois, abaixo, mostraremos que:

(PMC) Se S sabe que P em t', então, em t (onde t'>t), S executa um modo para alcançar sua meta de obter conhecimento.

Se (PMC) é verdadeira, como pensamos, não há espaço para propostas não-modais de conhecimento, dado que somente propostas justificacionistas modais passariam aprovadas diante de nossas intuições de conhecimento. Para prová-lo, consideremos o que segue: vamos supor que S sabe que P. Há pouco vimos que, se S sabe que P, S tem como meta obter conhecimento. Ora, se S sabe que P, S também está justificado na crença de que P. E, se S está justificado na crença de que P, então a crença-P de S foi acompanhada por um ou mais fatores internos a S. Agora, o ponto crucial: o que nos faz dizer que tais fatores internos de S são procedimentos que, em conjunto, constituem o modo de S para formar a crença-P? A resposta: o fato de dizermos de S que ele possui a meta de obter conhecimento. Ou seja, a partir de uma atribuição do conceito de meta de obter conhecimento, diremos, acerca de qualquer procedimento adotado por S após aquela atribuição, que se trata de um modo de S para alcançar sua(s) meta(s). Em outras palavras, a partir da fixação de uma ou mais metas por parte de S, todo e qualquer procedimento posterior de S se torna um modo para atingi-la(s).

(PMC) talvez seja o resultado mais relevante que obtivemos até aqui. E, partindo disso, podemos dizer que todas as nossas avaliações epistemológicas estão ligadas às nossas atribuições dos conceitos de modo e de meta. Podemos, então, dizer que qualquer atribuição epistemológica se dá sob uma meta-padrão, que gostaríamos de chamar "meta epistemológica máxima", e que é a meta de alcançar conhecimento. Agora, se considerarmos que "conhecimento" significa, ou também significa, crença não acidentalmente verdadeira, podemos dizer, tanto da meta de formar crença, quanto da meta de formar crença verdadeira, que são submetas da meta epistemológica máxima.16 16 A relação entre uma meta e uma submeta não é de prioridade da primeira em relação à última. Ou seja, uma submeta não será uma meta secundária, terciária,... n-ária em relação a uma certa meta. A relação entre elas é de ordem analítica. Nesse caso, se a meta de S fosse a de obter M, e a análise do conceito significado por "M" veiculasse os conceitos F e G como seus constituintes conceituais, as submetas de S seriam a de obter F e a de obter G. Um exemplo poderá tornar o ponto mais claro. Vamos supor que S detenha a meta de alcançar conhecimento, mas, ao proceder assim-e-assim, acaba formando a crença falsa de que P. Nesse caso, S alcançou apenas uma das submetas da meta epistemológica máxima. Se P fosse, no entanto, verdadeira, S teria alcançado duas das submetas da meta epistemológica máxima. Se, agora, além da crença-P de S ser verdadeira, S a tivesse formado com um modo capaz de eliminar a acidentalidade anticonhecimento, S teria atingido todas as submetas da meta epistemológica máxima e, ao alcançar todas as submetas da meta epistemológica máxima, S teria, conseqüentemente, alcançado a meta epistemológica máxima. Com as últimas considerações em mente, avancemos um pouco mais em nosso exame da disputa internalismo-externalismo.

Para tratarmos adequadamente daquela disputa, precisamos identificar, dentro da discussão em torno da justificação pró-análise do conhecimento, a questão mais específica em disputa por aquelas propostas. Nós poderíamos ariscar um começo com a seguinte:

(Q): Quais são os atributos necessários de um modo que, ao ser executado por S,17 17 É interessante observamos que há uma diferença de significado entre as expressões "modo executado em S" e "modo executado por S". Quando dizemos que um modo é executado por S, o que estamos querendo dizer é que um ou mais fatores internos a S causam a execução daquele modo. Assim, o modo de S poderia ser acionado pela célula tal-e-tal de S, pela enzima tal-e-tal de S, pela crença tal-e-tal de S, ou, até mesmo, acionado por uma decisão autônoma de S. Em suma, se o modo de S fosse acionado por um fator externo a S, não diríamos que o modo foi executado por S. É ligeiramente diferente quando falamos que o modo foi executado em S. Nesse caso, deixamos aberta a possibilidade de que o modo tenha sido acionado por fatores externos a S. Em suma, poderíamos assumir que eles tenham sido externos e, mesmo assim, continuarmos falando que o modo foi executado em S. Nossa preferência por por S, em vez de em S, nada tem a ver, porém, com a tese de que justificação doxástica depende do controle voluntário no acionamento do modo (confira a crítica de W. Alston contra o voluntarismo doxástico em Epistemic Justification: Essays in the Theory of Knowledge). Essa preferência nos permite, sim, preservar aquela possibilidade já que o modo de S também pode ser acionado pela vontade autônoma de S. E parece-nos ser importante preservar aquela possibilidade. Isso porque, num determinado mundo, crenças estariam sob o controle voluntário do agente, mesmo que num outro não o estivessem, ou que, num dado mundo, parte de seus habitantes dispusessem de tal capacidade e parte não, ou, ainda, que, num mundo, eles a tivessem em algumas circunstâncias, mas não em outras, etc. obtém-se conhecimento?

Bem, embora (Q) tenha relevância no debate internalismo-externalismo, ela não representa ainda a questão-núcleo daquele debate. Isso porque ele gira em torno da questão acerca do que é um modo que alcança crença justificada, não em torno da questão acerca do que é um modo que alcança conhecimento. Isso pode ser confirmado ao examinarmos o debate específico que se dá entre propostas internalistas e externalistas falibilistas em torno da obtenção de conhecimento.18 18 Uma proposta justificacionista falibilista é aquela que admite que uma crença justificada pode ser falsa. Para tanto, também precisamos determinar a questão-núcleo desse debate, o que pode ser feito mediante um exame dos diferentes tratamentos que teorias justificacionistas modais dão, ou poderiam dar, aos casos de tipo-Gettier.19 19 Ver E. Gettier em Is Justified True Belief Knowledge?. Vamos caracterizar os casos do tipo-Gettier como aqueles casos nos quais S forma uma crença verdadeira através da execução de um modo o qual, embora seja capaz de tornar aquela crença justificada, não é capaz de eliminar a mera coincidência entre o fato de sua crença e o fato que torna tal crença verdadeira. Perante casos do tipo-Gettier, propostas justificacionistas fazem, ou podem fazer, uma das seguintes opções:

Opção-1: Os agentes de casos de tipo-Gettier não estão justificados em suas crenças porque os modos executados por aqueles agentes não eliminam aquela acidentalidade; Opção-2: Dado que o modo executado pelos agentes daqueles casos não foi capaz de eliminar aquela acidentalidade, os agentes dos casos de tipo-Gettier não possuem uma justificação de tipo absoluto, mas, sim, uma justificação de tipo elementar, que faz parte da primeira e é, assim, menos sofisticada que aquela.20 20 Para um levantamento de propostas com esse perfil, confira-se R. K. Shope ( The Analysis of Knowing: a Decade of Research). Nessa obra, o leitor ainda poderá conferir que o número de propostas que se encaixam na Opção-2 é esmagadoramente maior que o número de propostas que se encaixam na Opção-1.

A Opção-1 é própria de propostas que postulam que, se a crença está justificada, ela é conhecimento. Ou seja, a Opção-1 é própria das propostas infalibilistas. A Opção-2, porém, é própria de propostas falibilistas. É através dela que conseguiremos estabelecer a questão-núcleo do debate internalismo-externalismo. Isso porque, ao assumirem o postulado de que a justificação se divide em justificação absoluta e elementar, ou coisa equivalente, propostas que fazem a Opção-2 pressupõe que uma das submetas do agente em relação à meta epistemológica máxima seja a de obter crença justificada elementar. Nesse caso, poderíamos dizer que a questão-núcleo do debate internalismo vs. externalismo falibilista em justificação demanda respostas que assumam, implícita ou explicitamente, a tese de que a meta de obter justificação elementar ("elr" daqui por diante) seja uma das submetas da meta de alcançar conhecimento. Nesse caso, a questão-núcleo daquela disputa seria a seguinte:

(Q'): Quais são os atributos necessários de um modo que, quando executado por S, obtém-se crença justificada-elr?

Nossa idéia de que (Q') expressa a questão-núcleo do debate internalismo-externalismo falibilista está, no entanto, sujeita a uma objeção. Alguém poderia argumentar que (Q') tem uma resposta trivial e, em razão disso, não pode ser a questão-núcleo do respectivo debate. A objeção segue com a alegação de que a resposta para a questão acerca de qual seria a qualidade requerida para que um modo viesse a obter crença justificada-elr seria, simplesmente, a qualidade de obter uma crença que está justificada-elr. Para tornar a objeção mais clara, notemos o seguinte: (Q') permite-nos deduzir que, se S tem justificação-elr para uma crença, então um modo qualquer de formação de crença obteve aquela crença para S. Sendo assim, o foco da objeção é a sugestão de que a adição da expressão "justificada-elr", no devido lugar dentro do conseqüente desse último condicional, seria suficiente para converter (Q') numa definição resolvendo, de vez, o problema filosófico veiculado em (Q'). Mas essa objeção não funciona. Ela não funciona, primeiro, porque pressupõe falsamente que não se possa mais continuar a análise dos conceitos que constam em (Q'). Para mostrar que esse pressuposto é falso, basta mostrar que, se outras exigências conceituais pudessem ser adicionadas àquela proposta de análise do conceito de modo justificador-elr de S, o pressuposto da objeção seria falso. Ora, uma das exigências que poderíamos adicionar seria a de que, para ser um justificador-elr doxástico, o modo teria que causar a crença obtida e não apenas antecedê-la temporalmente. Uma outra exigência, que pode ser combinada com a exigência causal anterior, seria a de que o modo implicasse a crença obtida para que ela fosse justificada-elr.21 21 Exigência assim só poderia ser feita por uma teoria da justificação/conhecimento que assumisse que apenas procedimentos inferenciais de formação de crença obtêm crença justificada-elr, caso das teorias coerentistas. Outras exigências ainda poderiam ser adicionadas. Por exemplo, vamos supor que, além de obter crenças, um dado modo também obtém não-crenças para S. Nesse caso, nossas intuições poderiam exigir que um modo que obtém crença justificada-elr seja um modo que só obtenha crenças. Outro exemplo de exigência pode ser extraído a partir disto: vamos supor que nossas atribuições de justificação-elr exijam que os modos obtenham crenças possuindo o atributo-a. Vamos supor que o modo-m obtém, em t, uma crença com o atributo-a, não o fazendo, porém, em t'. Nesse caso, nossas intuições do conceito de justificação poderiam ser tais que exigiriam que o modo-m obtivesse crenças com o atributo-a em todas as circunstâncias para que a crença estivesse justificada. O ponto, agora, é: se as hipóteses acima não são absurdas, então a análise de (Q') poderia não estar liquidada conforme sugerira aquela objeção.22 22 Nós acreditamos que, sob circunstâncias análogas, tal conclusão se aplica a qualquer outro problema filosófico. Tomemos, como exemplo, o problema do conhecimento. Sua resolução está intrinsecamente ligada à resolução do problema da eliminação da acidentalidade. Porém, dizer que S sabe que P se e somente se não existe qualquer acidentalidade envolvendo o fato da crença de S e o fato que seria correlato àquela crença certamente ainda não nos fornece uma análise completa do conceito de conhecimento e, por conseguinte, não resolve o nosso problema. E não o resolve, não por conta de microanálises ainda por fazer, mas porque aquela proposta contém a cláusula da não-acidentalidade, que é uma cláusula negativa. Ora, não podemos conceder que uma cláusula negativa possa representar uma "análise" conceitual. Bem como não podemos fazê-lo em relação a propostas que apresentam cláusulas disjuntivas, que, no fim das contas, é algo próprio de definições recursivas. Em suma, nenhuma proposta pode ser de "análise", caso apresente cláusulas negativas ou disjuntivas. Um segundo defeito daquela objeção é sua aparente dependência da tese de que o modo que obtém crença justificada-elr, ou injustificada-elr, funcionaria apenas como uma espécie de seletor de crenças que estariam já justificadas-elr, ou já injustificadas-elr. Ou seja, se o modo seleciona uma crença já justificada-elr, a crença está justificada-elr. Se ele seleciona uma crença já injustificada-elr, a crença está injustificada-elr. O que ocorre é o seguinte: de fato, falar de modos como sendo itens que obtêm crença justificada-elr, ou injustificada-elr, poderia induzir-nos à crença de que o modo seria somente uma espécie de seletor de crenças já com aqueles atributos. Essa fala, porém, é mera questão de economia de palavras, pois, em rigor, são os atributos dos modos na formação de um ou outro tipo de crença que tornam uma crença justificada-elr ou injustificada-elr. Por essa razão, a justificação-elr/injustificação-elr de uma crença dependerá tão-somente das qualidades atribuídas ao modo que a obtém. É por isso, aliás, que podemos dizer que, se um modo obtém crença justificada-elr, tal modo é um justificador-elr daquela crença. De modo análogo, podemos dizer que, se um dado modo obtém crença injustificada-elr, ele é um injustificador-elr daquela crença.23 23 O uso que fazemos do termo "justificador" coincide com o de Goldman em Internalism Exposed. Sendo assim, essas considerações nos permitem reformular (Q') e torná-la mais adequada para efeito de expressar a questão que tomamos para ser o núcleo da disputa entre propostas internalistas e externalistas falibilistas, ou seja:

(Q'r) Que atributos um modo de S necessita ter para ser um justificador-elr de suas crenças?

6 Uma avaliação da resposta internalista a (Q'r)

Identificada a questão-núcleo da disputa internalismo-externalismo em justificação pró-análise do conhecimento, partamos para uma avaliação da resposta internalista para aquela questão. A conjectura com a qual estaremos trabalhando é a de que uma avaliação adequada da resposta internalista a (Q'r) irá prover-nos os elementos necessários para uma resposta adequada à pergunta-título deste ensaio. Uma avaliação adequada da resposta internalista a (Q'r) exige algumas considerações preliminares. A primeira delas é a de que, se um modo obtém uma crença, então a crença obtida é verdadeira ou falsa. Portanto, um dos atributos de um modo é o de obter crença numa proposição verdadeira ou crença numa proposição falsa. Tal consideração nos permite uma pergunta, que se encontra inerentemente ligada a (Q'r), e que é a seguinte:

(P) Qual é a medida, ou proporção, de crenças verdadeiras e falsas que um modo necessita obter num determinado mundo para que ele se constitua num justificador-elr doxástico de S?

Com (P) em mãos, agora temos que procurar-lhe uma resposta internalista. Achamos que os textos de R. Foley nos permitem extrair uma resposta internalista para (P). Nós o faremos a partir de uma investigação na seguinte exposição de Foley para o chamado "Novo Problema do Gênio Maligno" (NPGM), "problema" que Foley toma como sendo uma objeção ao externalismo confiabilista:

Imagine um mundo no qual S crê, parece lembrar, experimentar, etc., mas, aquilo que ele crê, parece lembrar, experimentar, etc. e que se refere apenas a este mundo, é freqüentemente falso. Suponha também que a convicção com a qual ele crê, a clareza com a qual ele parece lembrar e a intensidade com a qual ele experimenta este outro mundo são idênticas àquelas do mundo real. Suponha, em adição, que até mesmo aquilo que ele poderia crer sob reflexão (por exemplo, sobre quais são os argumentos preservadores da verdade) é idêntico àquilo que ele creria sob reflexão neste mundo. Assim, se, de algum modo, S fosse transportado instantaneamente de sua atual situação para a situação correspondente no outro mundo, ele não poderia fazer qualquer distinção entre tais mundos, independentemente de quão poderosas fossem suas tentativas. A fim de usarmos um exemplo familiar, suponha que um gênio maligno é quem assegura que esse seja o caso. Chame tal mundo demoníaco de "w" e reflita em relação à seguinte questão: Poderia alguma das proposições, que S crê em w, ser epistemicamente racional para ele? Por exemplo, poderiam algumas das proposições nas quais S perceptualmente crê serem epistemicamente racionais para ele? A resposta é "sim". Se nós estamos dispostos a conceder que algumas das proposições que S perceptualmente crê em nosso mundo são epistemicamente racionais, então essas mesmas proposições também seriam epistemicamente racionais para S em w. Afinal, o mundo w é, por hipótese, indistinguível do mundo de S, considerada a sua perspectiva. Desse modo, se a crença perceptual p de S fosse racional neste mundo, em w, aquela crença também o seria.24 24 FOLEY, R. What's Wrong with Reliabilism?, p. 168.

Um exame mais acurado no texto de Foley, na verdade, permite-nos identificar, pelo menos, duas diferentes teses com as quais poderíamos dar uma resposta internalista a (P). A tese-(1) diz que as crenças de S podem ser epistemicamente racionais25 25 Foley, entre outros epistemólogos internalistas, parece-nos fazer um uso sinonímico das expressões "racionalidade doxástica" e "justificação doxástica". Se esse é o caso, vamos arriscar o juízo de que eles também procederiam desse mesmo modo em relação às expressões "racionalidade doxástica" e "justificação-elr doxástica" e suas expressões correlatas. mesmo que ele esteja num mundo em que os modos de formação de crença obtenham mais crenças falsas que verdadeiras.26 26 O texto de Foley sugere-nos ser falso pensar que, se S habita um mundo que é dominado por um gênio epistêmico maligno, então qualquer crença obtida por S é falsa. De fato, a obtenção exclusiva de crenças falsas pelos modos de formação de crença de S num mundo maligno é algo que depende do tipo de gênio maligno que reina naquele mundo. Por exemplo, acossado por crises de culpa, um determinado gênio poderia permitir que S obtivesse, ocasionalmente, uma ou outra crença verdadeira. Mesmo que S lidasse com um gênio ainda mais feroz que esse, mas não o maximamente feroz, ainda assim ele poderia obter uma crença verdadeira, isto é, a crença de que ele – S – está num mundo dominado por um gênio maligno. Tais exemplos nos mostram que a utilização do artifício do gênio maligno para provar a falibilidade dos modos empregados pelos agentes que lá habitam pode ser feito mesmo concebendo que a ação maligna do gênio não seja a de provocar uma errância sistemática dos modos de formação de crença de S. A propósito do uso do artifício do gênio maligno, gostaríamos de fazer algumas observações. A primeira é a seguinte: é gênio maximamente maligno não apenas aquele que interfere nos modos de formação de crença, mas também aquele que bloqueia a ocorrência simples de qualquer crença verdadeira de S, tal como a crença de que ele – S – habita um mundo maligno ou a crença de que existe um gênio maligno governando aquele mundo. Nesse caso, podemos dizer que, se alguém forma a crença de que habita um mundo que é dominado por um gênio maximamente maligno, tal sujeito não está em um mundo dominado pelo gênio maximamente maligno. Outra observação ainda é a seguinte: vamos supor que, com base numa definição do conceito de disponibilidade dos modos, alguém arriscasse a conclusão de que, apesar de habitar um mundo dominado pelo mais maligno dos gênios, ainda assim seria possível a S formar pelo menos uma crença verdadeira. O argumento baseando essa alegação seria mais ou menos como segue: o único modo de um gênio maximamente maligno impedir que S venha a formar a crença de que ele – S – habita aquele mundo seria ou intervir nos modos de formação de crença disponíveis a S, ou bloquear a ocorrência da crença de S na respectiva proposição. Mas, se é assim, o ponto agora seria o seguinte: se o gênio pode intervir nos modos tais-e-tais de S, então é falso que S tem aqueles modos à sua disposição para formar aquela crença, naquele mundo. Nesse caso, ele não tem qualquer modo disponível para formar aquela crença. Sendo assim, a hipótese de um gênio que intervém nos modos não pode ser usada para provar a falibilidade dos respectivos modos, pois, ao intervir nos modos de S, eles deixam de ser disponíveis a S naquele mundo. Infelizmente, é importante perceber que, se, para efeito de tornar os modos disponíveis a S, o gênio não pudesse intervir nos modos de formação de crença de S, ainda assim o gênio poderia impedir ocorrências simples das crenças de S. Nesse caso, o gênio poderia impedir a formação da crença de S de que ele, S, habita um mundo maligno etc., etc. Logo, podemos não estar mesmo a salvo. A tese-(2) diz que S pode ter crenças epistemicamente racionais mesmo que ele se encontre num mundo em que os modos a ele disponíveis não lhe permitem distinguir proposições falsas de verdadeiras.27 27 Embora sejam diferentes, as teses em jogo não são alheias uma à outra. Para vê-lo, vamos notar, relativamente à tese-2, que, se um modo não distingue crença verdadeira de falsa, ele também não distingue crença falsa de verdadeira. Ora, se um modo não distingue crença verdadeira de falsa, ou falsa de verdadeira, então a diferença apresentada por um modo na proporção de crenças verdadeiras e falsas formadas variará somente em função do tipo de mundo em que este modo é executado. Ou seja, num determinado mundo, aquele modo obteria mais crenças verdadeiras que falsas, noutro, obteria mais crenças falsas que verdadeiras e, ainda num terceiro, tantas quantas. Tais considerações nos permitem deduzir que, se um determinado modo obtém mais crenças falsas que verdadeiras num mundo e mais verdadeiras que falsas noutro, etc., pode ser o caso de que esse modo não consiga distinguir crença verdadeira de falsa. É claro que essa conclusão não nos dá a condição de dizer que qualquer modo que obtenha mais crenças verdadeiras que falsas, ou mais falsas que verdadeiras, é um modo que não possui a capacidade de distinguir proposição verdadeira de falsa. E é justamente por essa razão que podemos ver que a tese-2 implica a tese-1, porém não o inverso. Um detalhe: que é verdade que um modo pode produzir mais crenças verdadeiras que falsas num mundo e mais crenças falsas que verdadeiras noutro, é algo que podemos constatar no seguinte exemplo: vamos supor que, em vez de estar no mundo-M, cujo domínio é exercido por um gênio epistêmico maligno, S está no mundo-M', cujo domínio fica a cargo de um gênio epistêmico benigno e cuja ação torna propício a S obter maior proporção de verdades que falsidades. Desse modo, ao ser executado no mundo-M, o modo-m obteria mais crenças falsas, mas, ao ser executado em M', obteria mais crenças verdadeiras. Aliás, o exemplo acima não só nos mostra que um modo poderia obter diferentes proporções de crenças verdadeiras e falsas, quando utilizado em mundos diferentes. O exemplo acima também nos mostra que, apesar de o modo-m obter mais verdades que falsidades ao ser utilizado no mundo-M', ele não possui a capacidade de distinguir verdade de falsidade quando a crença de S está para ser formada. O modo-m careceria da propriedade discriminatória, a qual, segundo Goldman (ver Discrimination and Perceptual Knowledge), é necessária para conhecimento perceptual. Apesar da diferença apontada, ambas as teses compartilham a idéia que, acreditamos, fornece-nos a resposta internalista para (P). Isto é:

(RIP) Para que um modo de S seja um justificador-elr de suas crenças, não importa nem o número, nem a proporção entre crenças verdadeiras e falsas obtidas pelo modo de S em sua atividade num dado mundo de modo que, se, no mundo-M, S está justificado-elr ao crer que P mediante a execução do modo-m, ele também estaria justificado-elr nessa crença caso estivesse no mundo-M' ou no mundo-M" etc.

Os conceitos de número e de proporção de crenças verdadeiras/falsas obtidas por um modo de S em sua atividade num determinado mundo estão conectados ao conceito de performance de um modo num determinado mundo. Assim, o conceito de performance assume importância na discussão que estamos empreendendo e, por isso, precisaremos responder à seguinte pergunta: o que é a performance de um modo num determinado mundo? Nossa resposta começa lembrando que, se algo é um modo, então o é em relação a uma meta. Assim, ao atribuirmos a um modo uma dada performance, também dizemos que uma determinada meta ou foi instanciada, ou não foi instanciada pelo respectivo modo. E, assim, a performance de um modo é um conceito relativo à instanciação, ou a não instanciação, de uma meta do indivíduo. Então, falar na performance de um modo é sempre falar na performance de um modo em relação a alcançar, ou não, uma meta determinada. Isso posto, podemos dizer que o que qualifica a performance de um modo em relação a alcançar, ou não, uma meta é a proporção entre situações em que a execução de um modo num determinado mundo alcança aquela meta e situações em que ele não a alcança. Para sermos um pouco mais precisos, deveríamos dizer que: se o modo-m apresenta uma performance positiva no mundo-M, então, levando em consideração a história total do mundo-M, há um maior número de situações em que o modo-m alcança a meta-µ do que situações em que ele não a alcança. Se a performance do modo-m em relação à meta-µ é negativa no mundo-M, então, levando em consideração a história total do mundo-M, há um maior número de situações em que o modo-m alcança a meta-µ do que instâncias em que ele não a alcança. Por fim, se a performance do modo-m em relação à meta-µ é neutra no mundo-M, então, levando em consideração a história total do mundo-M, o número de situações em que o modo-m alcança a meta-µ é igual ao número de situações em que ele não a alcança. Isso posto, estamos aptos a estabelecer uma conexão entre o conceito de performance de um modo em relação a uma dada meta e o conceito de eficácia/ineficácia de um modo em relação a uma meta. Ou seja, dizer de um modo que ele possui uma performance positiva em relação a uma dada meta equivale a dizer que ele é eficaz em alcançar aquela meta num determinado mundo. Dizer de um modo que ele possui uma performance negativa em relação a uma dada meta equivale a dizer que ele é ineficaz em alcançar aquela meta num determinado mundo. Por fim, dizer de um modo que ele possui uma performance neutra em relação a uma determinada meta equivale a dizer que ele não é neutramente eficaz, ou ineficaz em alcançar aquela num determinado mundo.28 28 A performance de um modo pode assumir diferentes graus ou intensidades. Para vermos, suponhamos que tanto o modo-m quanto o modo-m' sejam eficazes para alcançar uma determinada meta no mundo-M. Se esse é caso, então, na história total deste mundo, há mais situações em que aqueles modos estão associados às instâncias da meta que situações em que aqueles modos não estão associados àquelas instâncias. Mesmo assim, a proporção entre as situações que se encontram associadas às instâncias da meta poderia variar muito de um modo para outro. Aliás, é essa diferença que estabelece o grau de eficácia/ineficácia de um modo em atingir uma meta. Se esse é o caso, podemos falar de eficácia, ou ineficácia, em termos absolutos ou relativos. Por exemplo, se, em relação à meta de obter crença verdadeira, o modo-m é tal que alcança apenas crenças verdadeiras, ele possui eficácia absoluta em relação àquela meta. Dessa maneira, um modo que, num dado mundo, tem eficácia absoluta em relação a uma meta trata-se de um modo que, quando executado, alcança apenas instâncias da respectiva meta. Agora, se, em relação àquela meta, ele obtivesse crenças falsas, porém num número proporcionalmente menor que o de crenças verdadeiras, ou que o de quaisquer outras coisas, ele continuaria sendo eficaz, porém em grau relativo. Com as devidas adaptações, o mesmo pode ser dito acerca dos conceitos de ineficácia e neutralidade de eficácia de um modo. Dadas as considerações anteriores, não é difícil constatar que, se (RIP) exibe a resposta internalista para (P), então o internalismo toma a performance de um modo de S em relação à obtenção de crenças verdadeiras/falsas como um atributo totalmente irrelevante para a análise do conceito de justificador-elr. Ora, que a proposta internalista nos permite afirmar que a performance de um modo de S em relação à obtenção de crenças verdadeiras/falsas é irrelevante para que um modo se constitua num justificador-elr da crença de S no mundo-M é algo que não deveria nos surpreender. Afinal, essa afirmação se segue do postulado mais elementar do internalismo o qual assegura que a justificação-elr das crenças de S não depende da instanciação de quaisquer fatores externos a S. Sendo assim, a tese internalista acerca da eficácia objetiva dos modos de S poderia ser resumida da seguinte maneira:

(TI) A eficácia de um modo de S na obtenção de crenças verdadeiras/falsas no mundo-M se trata de um atributo irrelevante para que aquele modo se constitua num justificador-elr da crença de S no mundo-M.

Nossa tarefa agora é mostrar que (RIP) e (TI) são falsas. Mas, para mostrá-lo, vamos assumir, inicialmente, que tais teses internalistas sejam verdadeiras. A suposição de que (RIP) e (TI) são verdadeiras, mais o uso de outras teses já expressas nesse ensaio, permitem-nos montar o seguinte argumento:

(AI): (1) Suponhamos que S tem as metas de obter conhecimento e de obter crença justificada-elr; (2) (TI) postula que a performance de um modo na obtenção de crenças verdadeiras/falsas no mundo-M é atributo irrelevante para ser um justificador-elr da crença de S no mundo-M; (3) Se a performance de um modo de S em relação à obtenção de crenças verdadeiras/falsas no mundo-M é atributo irrelevante para que aquele modo seja um justificador-elr da crença de S no mundo-M, então é irrelevante que sua performance seja positiva, negativa ou neutra em relação à obtenção de crença verdadeira para ele ser um justificador-elr da crença de S no mundo-M; (4) Se é irrelevante que a performance de um modo seja positiva, negativa ou neutra em relação à obtenção de crença verdadeira, então o grau de eficácia/ineficácia de um modo na obtenção de crença verdadeira é irrelevante para que aquele modo seja um justificador-elr da crença de S no mundo-M; (5) Se o grau de eficácia/ineficácia de um modo na obtenção de crença verdadeira é irrelevante para ele ser um justificador-elr da crença de S no mundo-M, então é irrelevante aquele modo obter somente crenças falsas, quando executado por S no mundo-M, para ser um justificador- elr da crença de S no mundo-M; (6) Vamos supor agora que S está no mundo-M e que dispõe de apenas dois modos de formação de crença, a saber: m e m1. No mundo-M, m1 apresenta performance positiva em relação à obtenção de crenças verdadeiras, enquanto que m obtém apenas crenças falsas; (7) Conforme (1), S tem as metas de obter conhecimento e de obter crença justificada-elr; (8) Ora, para que S obtenha conhecimento, S necessita alcançar todas as submetas de sua meta de obter conhecimento; (9) Considerando que a meta de obter crença justificada-elr é uma das submetas da meta de obter conhecimento, então, para S obter conhecimento, é necessário que ele obtenha crença justificada-elr; (10) Para obter crença justificada-elr, é necessário que o modo executado por S seja um justificador-elr doxástico; (11) Segundo (TI), a diferença na performance de m e de m1 em relação à obtenção de crenças verdadeiras/falsas não impede que esses modos sejam justificadores-elr doxásticos; (12) Suponhamos que m e m1 sejam justificadores-elr doxásticos; (13) Se m e m1 são justificadores-elr doxásticos, então, de acordo com (2), é totalmente irrelevante, ou indiferente, do ponto de vista da justificação-elr, se S executa m ou m1 na formação de suas crenças no mundo-M.

Ora, (AI) concluiu pela indiferença, do ponto de vista da justificação-elr, se S executa m ou m1. Mas o ponto agora é o seguinte: Seria epistemologicamente irrelevante se S executasse, indiferentemente, m ou m1? Não, pois, se S executasse m, executaria o modo mais eficaz a ele disponível para alcançar uma meta radicalmente oposta à sua; a meta de obter ignorância. Sendo assim, podemos afirmar que, embora um modo de S tenha de obter crença justificada-elr para que S alcance a meta epistemológica máxima, esse mesmo modo também tem que obter crença verdadeira para alcançá-la. Então, fica claro que nenhum modo do qual dizemos ser um justificador-elr doxástico pode apresentar uma performance objetiva tal como a que m manifesta no mundo-M, que é a de obter absolutamente crença falsa. Desse modo, é falso dizer que a performance objetiva dos modos é totalmente irrelevante para justificação-elr, se acreditamos, como de fato o fazemos, que, estar justificado-elr numa crença, seja uma submeta da meta epistemológica máxima.

Mas é importante ver que nenhuma das considerações anteriores implica a exigência de infalibilidade dos modos de S na obtenção de crenças verdadeiras no mundo-M para que eles possam constituir-se em justificadores-elr de crenças. A tese de que um modo pode falhar em obter crença verdadeira num dado mundo e, mesmo assim, ser um justificador-elr doxástico das crenças de S não está sendo negada aqui. O que estamos negando aqui é que, se a meta de obter justificação-elr é uma das submetas da meta de obter conhecimento, então um modo de S não pode ser tão falível a ponto de obter absolutamente crença falsa num dado mundo e, mesmo assim, ser um justificador-elr doxástico de S. E se um modo não pode ser tão falível assim como descrevemos para ser um justificador-elr doxástico de S, então sua performance objetiva em termos de obtenção de crença verdadeira/falsa (ou seja, a sua eficácia/ ineficácia na obtenção de crença verdadeira/falsa num determinado mundo) é, sim, relevante para que ele possa ser um justificador-elr doxástico de S. Se a performance de um modo, tal como acabamos de descrevê-la, é relevante para que ele possa ser um justificador-elr doxástico de S, então sua eficácia/ineficácia na obtenção de crença verdadeira/falsa também o é. Conclui-se, assim, que (RIP) e (TI) são falsas.

Mas, se (RIP) e (TI) são falsas, então também é falso que S poderia usar indiferentemente m ou m1 para obter eficazmente justificação-elr. Nesse caso, o chamado "Novo Problema do Gênio Maligno" revela-se, no fim das contas, totalmente contraproducente ao propósito original de seus usuários. Isso porque mostramos aqui que nenhum agente pode estar justificado-elr numa crença, independentemente da performance que o modo executado por aquele agente apresenta no mundo em que ele habita na obtenção de crença verdadeira/falsa. Assim, qualquer que seja a proposta de análise do conhecimento, ou ela terá de postular idéias típicas de um externalismo confiabilista na análise da justificação-elr, ou terá de postular que os conceitos de conhecimento e justificação não têm qualquer conexão entre si.29 29 É o que Foley defende em Knowledge is Accurate and Comprehensive Enough True Belief, p. 20. A segunda alternativa é antijustificacionista e, conforme mostramos no início, trata-se de uma alternativa contra-intuitiva para nós. Resta-nos apenas a alternativa externalista confiabilista como proposta adequada à análise da justificação pró-análise do conhecimento.

Finalmente, estamos aptos a gerar uma resposta que consideramos ser adequada à pergunta que intitula este artigo. Como não poderia deixar de ser, nossa resposta não pode ser outra senão a de que: a proposta internalista de justificação modal — absoluta ou elementar — não pode integrar uma análise correta do conceito de conhecimento.

Artigo recebido em setembro de 2007 e aprovado em março de 2008

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  • 1
    A reflexão que aqui empreenderemos em torno do problema do conhecimento estará vinculada, basicamente, ao conhecimento de proposições contingentes. A propósito, o uso que fazemos ordinariamente do termo "conhecimento" pode ser ambíguo. Mais: a ambigüidade do termo "conhecimento" pode não se restringir àqueles casos banais em que instâncias de uso desse termo significam conceitos totalmente distintos entre si. Por exemplo, quando dizemos de alguém que ele
    sabe fazer uma cirurgia cerebral ou que
    sabe como pilotar um fórmula-1 estaríamos usando o termo "saber" para significar um conceito que possui uma análise totalmente diferente de quando usamos o termo "saber" dizendo que alguém sabe que Brasília é a capital do Brasil. Nesses casos, o termo "saber" significa conceitos totalmente distintos entre si. No primeiro, "saber" está ligado à atribuição de conhecimento proposicional. No segundo, a ligação é com a atribuição de procedimento eficiente em relação a alguma ação/operação executada pelo respectivo sujeito. Nossa advertência aqui é a de que podemos deparar com uma ambigüidade diferente dessa que acabamos de exemplificar. Estamos nos referindo a casos em que um determinado termo significa conceitos diferentes, sim, mas que possuiriam uma análise apenas parcialmente diferente entre si. Em tais casos, usaríamos o termo "saber" significando, numa determinada situação, um conceito que, se analisado apresentaria, por exemplo, a composição conceitual
    F, G e
    H, e, noutra situação, o mesmo termo significaria um conceito que, se analisado, apresentaria a composição conceitual
    F e
    G. O ponto então é o seguinte: qual seria a análise correta – ou seja, verdadeira e completa – do conceito de saber? Nossa resposta é simples: se usamos ambos conceitos em nossas atribuições, então temos, pelo menos, duas diferentes análises corretas para os conceitos significados por aquele termo. Assim, se um filósofo fixasse a meta de analisar o conceito-Φ, ele poderia alcançá-la obtendo qualquer uma das propostas que analisasse corretamente um daqueles conceitos que são significados por "Φ" e que ele utiliza em suas atribuições reais ou hipotéticas.
  • 2
    Considerando que a disputa em questão se dá em torno do problema da justificação da crença dentro da tentativa de resolver o problema do conhecimento, não iremos examinar os problemas da justificação da dúvida ou da suspensão do juízo
  • 3
    Exemplo de proposta não-justificacionista na análise do conhecimento é a proposta causalista de Goldman em
    A Causal Theory of Knowing. Nessa obra, não é difícil constatarmos o quão irrelevante é, para a obtenção de uma análise do conhecimento, a exigência de um fator interno a S em correlação com crença de S.
  • 4
    Em rigor, mesmo entre propostas internalistas, pode haver divergência quanto ao tipo de fator interno a S que é relevante para a justificação. Por exemplo, um internalismo mentalista postula que apenas fatores mentais são relevantes à justificação. Um internalismo não-mentalista postularia que apenas fatores internos a S seriam relevantes para a justificação, porém sem exigir que sejam exclusivamente mentais. O internalismo tradicional é mentalista, como podemos constatar ao examinarmos os postulados acessibilistas dessa concepção (ver Conee e Feldman, em
    Internalism Defended, p. 2). O internalismo, dito "acessibilista" ou "de acesso", exige apenas fatores mentais como fatores da justificação, em razão de que seriam os únicos aos quais o sujeito tem acesso. Mas há uma ambigüidade nessa fala acessibilista. É que podemos falar tanto de uma acessibilidade ontológica, relativa a fatores que seriam ontologicamente acessíveis ao sujeito, quanto de uma acessibilidade cognitiva, ou seja, relativa a fatores que seriam cognitivamente acessíveis ao sujeito. Mas, então, qual seria o tipo de acessibilidade postulada pelo internalismo em questão? Qualquer um que tente responder a essa pergunta precisa considerar que até mesmo fatores externos seriam acessíveis a S. Sim, fatores externos, ainda que não possam ser ontologicamente acessíveis, podem ser cognitivamente acessíveis ao sujeito. Por exemplo, se S crê verdadeiramente numa proposição, então S mantém um acesso cognitivo aos fatores que tornam verdadeira a proposição objeto de sua crença. Se ele não pudesse ter um acesso cognitivo a fatores externos, o ceticismo acerca do conhecimento de proposições contingentes seria ele mesmo implicado pela análise correta do conceito de conhecimento. Ou seja, o termo "conhecimento" possuiria uma definição inconsistente, tal como a definição de "quadrado redondo", etc. Sendo assim, o tipo de acessibilismo do internalismo acessibilista só poderia ser o de tipo cognitivo. Mas, se é esse o acessibilismo do internalismo de acesso, temos de concluir que não há qualquer disputa contra o externalismo justificacionista. Isso porque a última também sustenta a possibilidade de acesso cognitivo do agente ao fator, ou fatores, que tornam sua crença justificada. Mas, se a disputa internalistas
    vs. externalistas não se dá em torno da questão da possibilidade do acesso cognitivo, dá-se em torno do quê? Alguém poderia sugerir que ela gira em torno da exigência de que, para estar justificado, o sujeito tem de acessar o(s) fator(es) interno(s) de sua justificação. Nós achamos que esta resposta não serve porque não faz jus à disputa internalismo-externalismo em discussão, mas à eventual disputa entre internalistas que exigiriam aquele acesso e internalistas que não o exigiriam. Tais considerações mostram que a única disputa possível entre internalistas e externalistas justificacionistas é sobre se fatores externos a S têm ou não relevância na justificação.
  • 5
    Em especial, as epistemologias de Sosa, Foley e Goldman exibem, pelo menos, um elemento que consideramos próprio de uma justificação modal. Sosa, por exemplo, diz que:
    "A adequação ("aptness") de uma crença B em relação a um ambiente E exige que B esteja numa relação com E, que provenha de uma virtude intelectual (que é um
    modo de obtenção de crença) cuja preponderância de verdade sobre erro, considerando-se o campo de proposições e o contexto envolvido, seja apropriada" (
    Knowledge in Perspective: Selected Essays in Epistemology, p. 144, grifo nosso. Veja-se, também:
    Epistemic Justification: Internalism vs. Externalism, Foudations vs. Virtues, p. 104, 2º § em diante).
    R. Foley afirma que:
    "... a distinção entre razões epistêmicas e não-epistêmicas da crença se dá através dos fins, ou das metas, as quais a razão visa promover" (Epistemic Justification. In:
    Routledge Encyclopedia of Philosophy, CD-ROM).
    Quanto a Goldman, pelo menos um elemento da justificação modal está presente em sua teoria ao postular que, se S está justificado na crença de que P, então a crença foi produzida/causada por um processo cognitivo confiável, processo cuja composição é apenas de fatores internos a S (conferir em
    What is Justified Belief? e
    Epistemology and Cognition, principalmente). A propósito de Goldman, é interessante observar que ele faz uso indistinto dos termos "causar" e "produzir" quando caracteriza a relação mantida entre o processo cognitivo e a crença. Tal uso, porém, pode induzir-nos falsamente sobre suas concepções epistemológicas. Isso porque, apesar de ser verdade que,
    se x produz y, x causa y, os termos "produzir" e "causar"
    não são sinônimos. Cabe então uma pergunta acerca de como Goldman entende a questão, ou seja, de acordo com Goldman, processos produzem a crença ou causam-na? Vamos rastrear uma resposta. Em
    What is Justified Belief?, p. 179, Goldman diz que a justificação de uma crença é função da confiabilidade do processo, ou processos, que a causam. Diz também que o processo que justifica uma crença inclui esta crença como seu
    output (ver
    Reliabilism. In:
    Routledge Encyclopedia of Philosophy, CD-ROM). Com base nessas afirmações, alguém poderia ser levado a crer que Goldman se compromete com a idéia absurda de que o processo causa a crença que o constitui. Outros textos de Goldman, porém, permitem salvar, pelo menos, parcialmente a situação. Por exemplo, em
    What is Justified Belief?, p. 181, Goldman afirma o seguinte:
    "É claro, nós também queremos falar de um processo como causando uma crença. Mas, quando nós dizemos que uma crença é causada por um dado processo, tomando-o como um procedimento funcional, nós poderíamos interpretar esta declaração como significando que a crença é causada pelos
    inputs particulares do processo (e pela intervenção de eventos 'através dos quais' o procedimento funcional converte os
    inputs no
    output) na ocasião em questão."
    Agora, então, somos levados a crer que Goldman assume que o que causa a crença é o
    input que compõe o processo, não o próprio processo. Nesse caso, a crença-final seria o
    output do processo e não o item que é causado pelo processo. Porém, no mesmo texto (ver, principalmente, o fragmento entre parênteses) Goldman sugere que a crença seria causada pelo processo, pois ele alega que a crença também seria causada pela intervenção de eventos
    mediante os quais o procedimento funcional converteria
    inputs num
    output. Mas os eventos mediante os quais um procedimento funcional transforma
    inputs num
    output são justamente os eventos que caracterizam aquele processo. De acordo com isso, seriam o
    input e o processo que causariam a crença. Felizmente, ainda em
    What is Justified Belief?, p. 189, Goldman declara algo que, aparentemente, permite-nos desfazer a dificuldade em foco. Ao propor a adição de mais uma cláusula na análise da justificação, ele não fala mais em processos causando ou produzindo crença, mas em processos
    resultando crença. Bem, em que medida esta nova terminologia realmente faz diferença para a teoria de Goldman, é algo que permanece uma incógnita para nós. De qualquer modo, esse último termo nos permite acreditar que a tese de Goldman, com a qual poderíamos responder à pergunta posta anteriormente, é a de que o que causa a crença é o
    input do processo, não o processo.
  • 6
    Para mais detalhes sobre a diferença entre os conceitos de formação e de ratificação da crença, ver minha tese de doutorado
    O confiabilismo processual de A. I. Goldman e o problema da generalidade (PUC-RS/2004).
  • 7
    Esses problemas, os quais se relacionam de uma maneira especial com aquelas propostas, são o que gostaríamos de chamar de "problemas de micro-análise". Problemas de micro-análise têm a ver com a análise de conceitos que são veiculados numa determinada proposta de análise. A fim de tornar o ponto mais claro, vamos tomar a sentença "O que é Φ?" para ser a sentença esquemática dos problemas ou questões filosóficas (onde "Φ" é um símbolo para termos conceituais). Agora vamos supor que a seguinte proposta de análise completa para o conceito-Φ seja verdadeira: a é Φ =
    Def a é Ψ e a é Ω. Ora, embora uma definição encerre uma tentativa de análise completa, ainda assim poderíamos tentar dar continuidade a nossa tarefa analítica, tentando analisar, agora, os conceitos expressos no
    definiens de nossa proposta como, por exemplo, o conceito-Ψ. Em suma, um problema como o que é significado por "O que é Ψ?" se constitui em um problema de micro-análise do conceito-Φ por se tratar de um problema de análise relativo a um dos conceitos que constituiria aquele. Daí, podemos concluir que, somente após resolvermos também as questões de micro-análise envolvendo um determinado conceito, é que podemos dar por encerrada nossa tarefa analítica em relação ao conceito-Φ.
  • 8
    Aqui estamos assumindo que o conceito de alcançar é um conceito que atribuímos somente a modos de S e, sempre, numa correlação com suas metas.
  • 9
    Por "uma ou mais instanciações de uma meta" queremos dizer algo como "uma ou mais realizações do evento que constitui o conteúdo de uma meta". Por exemplo, vamos supor que S tenha como meta escalar o Everest. A instanciação da meta de S, nesse caso, será o fato de S escalar o Everest, quantas vezes for o caso. Sendo (PO') verdadeira, torna-se verdadeiro que, se o modo-m causa a meta-µ, ele antecede à meta-µ. Nesse caso, podemos ver que, mesmo sendo verdadeira, (PO) pode ser descartada, pois foi absorvido por (PO').
  • 10
    Ginet também sustenta uma tese anticausalista (conferir em
    Contra Reliabilism, p. 177).
  • 11
    Em rigor, nem mesmo o internalismo cartesiano postula, pelo menos explicitamente, a necessidade de que os fatores internos a S e a crença de S tenham uma ocorrência simultânea para que um agente esteja doxasticamente justificado (ver os primeiros parágrafos das
    Primeiras meditações de Descartes). Embora teorias cartesianistas postulem que o que tem relevância justificacional não é a formação da crença, mas sua revisão reflexiva, nem mesmo tais teorias afirmam, ou presumem, que os fatores justificacionais são eventos posteriores à crença. E tem que ser assim mesmo, pois, numa situação em que S revisa sua crença-P, S, ou irá ratificá-la, ou retificá-la. Ratificando, ou retificando, sua crença-P, a justificação/injustificação dessa crença de S dependerá da qualificação do modo por ele executado antes dessa ratificação/retificação.
  • 12
    Daqui em diante, passaremos a usar apenas o termo "formar", ou correlatos, em vez da combinação "formar/ratificar". No entanto, a segunda, ou correlatas, deverão estar subentendidas sempre que usarmos a primeira ou correlatas.
  • 13
    Em
    Epistemology and Cognition, p. 63, Goldman oferece uma cláusula anulatória segundo a qual agentes apresentando estados cognitivos incompatíveis não estariam justificados em suas crenças. O que estamos propondo acima é, no entanto, diferente do que Goldman propôs. Mas, ainda que pudesse participar de uma análise verdadeira da justificação, a cláusula anulatória de Goldman permaneceria incapaz de explicar a incompatibilidade ocorrente na hipótese que exibimos acima. Isso porque a cláusula por ele oferecida é tal que encontra aplicação
    apenas nos casos em que a incompatibilidade manifestada pelo agente é cognitiva e, portanto, não se aplica ao caso daquela hipótese.
  • 14
    Se juntarmos (PPM), (PO') e (DMS), poderemos montar o seguinte condicional:
    Se a meta de S é, por exemplo, a de obter mais crenças verdadeiras que falsas, então quaisquer procedimentos executados por S, após a fixação dessa meta, serão procedimentos de S para alcançar aquela meta. Em outras palavras, uma vez fixada uma determinada meta por parte de S, qualquer procedimento posterior a tal fixação será, de acordo com o condicional em questão, um procedimento de S para alcançar a meta por ele fixada, independentemente da questão de se os procedimentos executados por S são ou não procedimentos que alcançam aquela meta.
  • 15
    Por exemplo, ao ser dada a largada, o atleta procederia de modo a manter-se sempre ao lado de pelo menos um de seus adversários, ou correria em círculos, ou correria para trás, etc. Mais: poderíamos enfeitar um pouco mais nossa hipótese sugerindo que os procedimentos contra-producentes do atleta seriam motivados por crenças falsas que ele possui, mas que sequer suspeita, acerca dos que envolvem a disputa na qual ele participa. Por exemplo, ele pensa estar correndo para frente quando, por conta de uma alucinação que dura o exato tempo da corrida, corre, na verdade, para trás, etc.
  • 16
    A relação entre uma meta e uma submeta não é de prioridade da primeira em relação à última. Ou seja, uma submeta não será uma meta secundária, terciária,... n-ária em relação a uma certa meta. A relação entre elas é de ordem analítica. Nesse caso, se a meta de S fosse a de obter M, e a análise do conceito significado por "M" veiculasse os conceitos F e G como seus constituintes conceituais, as submetas de S seriam a de obter F e a de obter G.
  • 17
    É interessante observamos que há uma diferença de significado entre as expressões "modo executado
    em S" e "modo executado
    por S". Quando dizemos que um modo é executado
    por S, o que estamos querendo dizer é que um ou mais fatores internos a S causam a execução daquele modo. Assim, o modo de S poderia ser acionado pela célula tal-e-tal
    de S, pela enzima tal-e-tal
    de S, pela crença tal-e-tal
    de S, ou, até mesmo, acionado por uma decisão autônoma de S. Em suma, se o modo de S fosse acionado por um fator externo a S, não diríamos que o modo foi executado
    por S. É ligeiramente diferente quando falamos que o modo foi executado
    em S. Nesse caso, deixamos aberta a possibilidade de que o modo tenha sido acionado por fatores externos a S. Em suma, poderíamos assumir que eles tenham sido externos e, mesmo assim, continuarmos falando que o modo foi executado
    em S. Nossa preferência por
    por S, em vez de
    em S, nada tem a ver, porém, com a tese de que justificação doxástica depende do controle voluntário no acionamento do modo (confira a crítica de W. Alston contra o voluntarismo doxástico em
    Epistemic Justification: Essays in the Theory of Knowledge). Essa preferência nos permite, sim, preservar aquela possibilidade já que o modo de S também
    pode ser acionado pela vontade autônoma de S. E parece-nos ser importante preservar aquela possibilidade. Isso porque, num determinado mundo, crenças estariam sob o controle voluntário do agente, mesmo que num outro não o estivessem, ou que, num dado mundo, parte de seus habitantes dispusessem de tal capacidade e parte não, ou, ainda, que, num mundo, eles a tivessem em algumas circunstâncias, mas não em outras, etc.
  • 18
    Uma proposta justificacionista falibilista é aquela que admite que uma crença justificada pode ser falsa.
  • 19
    Ver E. Gettier em
    Is Justified True Belief Knowledge?.
  • 20
    Para um levantamento de propostas com esse perfil, confira-se R. K. Shope (
    The Analysis of Knowing: a Decade of Research). Nessa obra, o leitor ainda poderá conferir que o número de propostas que se encaixam na Opção-2 é esmagadoramente maior que o número de propostas que se encaixam na Opção-1.
  • 21
    Exigência assim só poderia ser feita por uma teoria da justificação/conhecimento que assumisse que apenas procedimentos inferenciais de formação de crença obtêm crença justificada-elr, caso das teorias coerentistas.
  • 22
    Nós acreditamos que, sob circunstâncias análogas, tal conclusão se aplica a qualquer outro problema filosófico. Tomemos, como exemplo, o problema do conhecimento. Sua resolução está intrinsecamente ligada à resolução do problema da eliminação da acidentalidade. Porém, dizer que S sabe que P se e somente se não existe qualquer acidentalidade envolvendo o fato da crença de S e o fato que seria correlato àquela crença certamente ainda não nos fornece uma análise
    completa do conceito de conhecimento e, por conseguinte, não resolve o nosso problema. E não o resolve, não por conta de microanálises ainda por fazer, mas porque aquela proposta contém a cláusula da não-acidentalidade, que é uma cláusula negativa. Ora, não podemos conceder que uma cláusula negativa possa representar uma "análise" conceitual. Bem como não podemos fazê-lo em relação a propostas que apresentam cláusulas disjuntivas, que, no fim das contas, é algo próprio de definições recursivas. Em suma, nenhuma proposta pode ser de "análise", caso apresente cláusulas negativas ou disjuntivas.
  • 23
    O uso que fazemos do termo "justificador" coincide com o de Goldman em
    Internalism Exposed.
  • 24
    FOLEY, R.
    What's Wrong with Reliabilism?, p. 168.
  • 25
    Foley, entre outros epistemólogos internalistas, parece-nos fazer um uso sinonímico das expressões "racionalidade doxástica" e "justificação doxástica". Se esse é o caso, vamos arriscar o juízo de que eles também procederiam desse mesmo modo em relação às expressões "racionalidade doxástica" e "justificação-elr doxástica" e suas expressões correlatas.
  • 26
    O texto de Foley sugere-nos ser falso pensar que, se S habita um mundo que é dominado por um gênio epistêmico maligno, então qualquer crença obtida por S é falsa. De fato, a obtenção exclusiva de crenças falsas pelos modos de formação de crença de S num mundo maligno é algo que depende do tipo de gênio maligno que reina naquele mundo. Por exemplo, acossado por crises de culpa, um determinado gênio poderia permitir que S obtivesse, ocasionalmente, uma ou outra crença verdadeira. Mesmo que S lidasse com um gênio ainda mais feroz que esse, mas não o maximamente feroz, ainda assim ele poderia obter uma crença verdadeira, isto é, a crença de que ele – S – está num mundo dominado por um gênio maligno. Tais exemplos nos mostram que a utilização do artifício do gênio maligno para provar a falibilidade dos modos empregados pelos agentes que lá habitam pode ser feito mesmo concebendo que a ação maligna do gênio não seja a de provocar uma errância sistemática dos modos de formação de crença de S. A propósito do uso do artifício do gênio maligno, gostaríamos de fazer algumas observações. A primeira é a seguinte: é gênio maximamente maligno não apenas aquele que interfere nos modos de formação de crença, mas também aquele que bloqueia a ocorrência simples de qualquer crença verdadeira de S, tal como a crença de que ele – S – habita um mundo maligno ou a crença de que existe um gênio maligno governando aquele mundo. Nesse caso, podemos dizer que, se alguém forma a crença de que habita um mundo que é dominado por um gênio maximamente maligno, tal sujeito não está em um mundo dominado pelo gênio maximamente maligno. Outra observação ainda é a seguinte: vamos supor que, com base numa definição do conceito de disponibilidade dos modos, alguém arriscasse a conclusão de que, apesar de habitar um mundo dominado pelo mais maligno dos gênios, ainda assim seria possível a S formar pelo menos uma crença verdadeira. O argumento baseando essa alegação seria mais ou menos como segue: o único modo de um gênio maximamente maligno impedir que S venha a formar a crença de que ele – S – habita aquele mundo seria ou intervir nos modos de formação de crença disponíveis a S, ou bloquear a ocorrência da crença de S na respectiva proposição. Mas, se é assim, o ponto agora seria o seguinte: se o gênio pode intervir nos modos tais-e-tais de S, então é falso que S tem aqueles modos à sua disposição para formar aquela crença, naquele mundo. Nesse caso, ele não tem qualquer modo disponível para formar aquela crença. Sendo assim, a hipótese de um gênio que intervém nos modos não pode ser usada para provar a falibilidade dos respectivos modos, pois, ao intervir nos modos de S, eles deixam de ser disponíveis a S naquele mundo. Infelizmente, é importante perceber que, se, para efeito de tornar os modos disponíveis a S, o gênio não pudesse intervir nos modos de formação de crença de S, ainda assim o gênio poderia impedir ocorrências simples das crenças de S. Nesse caso, o gênio poderia impedir a formação da crença de S de que ele, S, habita um mundo maligno etc., etc. Logo, podemos não estar mesmo a salvo.
  • 27
    Embora sejam diferentes, as teses em jogo não são alheias uma à outra. Para vê-lo, vamos notar, relativamente à tese-2, que, se um modo não distingue crença verdadeira de falsa, ele também não distingue crença falsa de verdadeira. Ora, se um modo não distingue crença verdadeira de falsa, ou falsa de verdadeira, então a diferença apresentada por um modo na proporção de crenças verdadeiras e falsas formadas variará somente em função do tipo de mundo em que este modo é executado. Ou seja, num determinado mundo, aquele modo obteria mais crenças verdadeiras que falsas, noutro, obteria mais crenças falsas que verdadeiras e, ainda num terceiro, tantas quantas. Tais considerações nos permitem deduzir que, se um determinado modo obtém mais crenças falsas que verdadeiras num mundo e mais verdadeiras que falsas noutro, etc., pode ser o caso de que esse modo não consiga distinguir crença verdadeira de falsa. É claro que essa conclusão não nos dá a condição de dizer que qualquer modo que obtenha mais crenças verdadeiras que falsas, ou mais falsas que verdadeiras, é um modo que não possui a capacidade de distinguir proposição verdadeira de falsa. E é justamente por essa razão que podemos ver que a tese-2 implica a tese-1, porém não o inverso. Um detalhe: que é verdade que um modo pode produzir mais crenças verdadeiras que falsas num mundo e mais crenças falsas que verdadeiras noutro, é algo que podemos constatar no seguinte exemplo: vamos supor que, em vez de estar no mundo-M, cujo domínio é exercido por um gênio epistêmico maligno, S está no mundo-M', cujo domínio fica a cargo de um gênio epistêmico benigno e cuja ação torna propício a S obter maior proporção de verdades que falsidades. Desse modo, ao ser executado no mundo-M, o modo-m obteria mais crenças falsas, mas, ao ser executado em M', obteria mais crenças verdadeiras. Aliás, o exemplo acima não só nos mostra que um modo poderia obter diferentes proporções de crenças verdadeiras e falsas, quando utilizado em mundos diferentes. O exemplo acima também nos mostra que, apesar de o modo-m obter mais verdades que falsidades ao ser utilizado no mundo-M', ele não possui a capacidade de distinguir verdade de falsidade quando a crença de S está para ser formada. O modo-m careceria da propriedade discriminatória, a qual, segundo Goldman (ver
    Discrimination and Perceptual Knowledge), é necessária para conhecimento perceptual.
  • 28
    A
    performance de um modo pode assumir diferentes graus ou intensidades. Para vermos, suponhamos que tanto o modo-m quanto o modo-m' sejam eficazes para alcançar uma determinada meta no mundo-M. Se esse é caso, então, na história total deste mundo, há mais situações em que aqueles modos estão associados às instâncias da meta que situações em que aqueles modos não estão associados àquelas instâncias. Mesmo assim, a proporção entre as situações que se encontram associadas às instâncias da meta poderia variar muito de um modo para outro. Aliás, é essa diferença que estabelece o grau de eficácia/ineficácia de um modo em atingir uma meta. Se esse é o caso, podemos falar de eficácia, ou ineficácia, em termos absolutos ou relativos. Por exemplo, se, em relação à meta de obter crença verdadeira, o modo-m é tal que alcança apenas crenças verdadeiras, ele possui eficácia absoluta em relação àquela meta. Dessa maneira, um modo que, num dado mundo, tem eficácia absoluta em relação a uma meta trata-se de um modo que, quando executado, alcança
    apenas instâncias da respectiva meta. Agora, se, em relação àquela meta, ele obtivesse crenças falsas, porém num número proporcionalmente menor que o de crenças verdadeiras, ou que o de quaisquer outras coisas, ele continuaria sendo eficaz, porém em grau relativo. Com as devidas adaptações, o mesmo pode ser dito acerca dos conceitos de ineficácia e neutralidade de eficácia de um modo.
  • 29
    É o que Foley defende em
    Knowledge is Accurate and Comprehensive Enough True Belief, p. 20.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2010
    • Data do Fascículo
      2008

    Histórico

    • Recebido
      Set 2007
    • Aceito
      Mar 2008
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